Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura e humor, no 37, p. 121-133, 2º sem. 2008
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WITTGENSTEIN E SARTRE: BREVES
APROXIMAÇÕES ACERCA DAS CRÍTICAS À
POSSIBILIDADE DAS LINGUAGENS PRIVADAS
Aldo Litaiff e Kátia Maheirie
UFSC
RESUMO
Uma das fundamentais preocupações da psicologia social, a partir da década de 70, é elaborar uma compreensão a respeito do homem que garanta seu caráter social
e historicamente construído. Este artigo procura dirigir suas reflexões à crítica a noção de “mundo privado”
ou “mente privada”, atráves dos argumentos de L. J. J.
Wittgenstein (1889-1951) e de Jean-Paul Sartre (19051980), buscando aproximações entre estes dois autores.
PALAVRAS-CHAVE: Wittgenstein; Sartre; linguagem
privada
Introdução
U
ma das fundamentais preocupações da psicologia social, a partir da década de 70, é elaborar uma compreensão a respeito do homem que
garanta seu caráter social e historicamente construído1. Esta disciplina tem procurado um diálogo com outras disciplinas das ciêncas humanas,
em especial, a filosofia, buscando fundamentar tanto a partir do ontológico,
LANE, S. T. M.. “Avanços da psicologia social na América Latina”. Em Novas ve-
1
redas da psicologia social, org. S. T. M. Lane e B. B. Sawaia. São Paulo: Brasiliense/
EDUC, 1995, p. 67-81.
Litaiff, Aldo e Maheirie, Kátia
122 Wittgenstein e Sartre: breves aproximações acerca das críticas à possibilidade das linguagens privadas
quanto do lógico-semântico, argumentos que viabilizem sua tese. É uma disciplina que, por razões óbvias, entra em atritos com outras no que diz respeito
à tese do mundo privado. Uma possibilidade crítica surge com L. J. J. Wittgenstein a partir da obra Investigações Filosóficas, onde argumenta contra a tese
do mundo privado, fornecendo uma discussão consistente do ponto de vista
filosófico. Outra possibilidade crítica vinda da filosofia é a reflexão de J.-P.
Sartre sobre a noção de consciência, fazendo também uma crítica a idéia de
mundo privado.
Neste sentido, este artigo procura dirigir suas reflexões à crítica a noção de
“mundo privado” ou “mente privada”, atráves dos argumentos de L. J. J. Wittgenstein e de Jean-Paul Sartre, buscando aproximações entre estes dois autores.
As críticas elaboradas por Wittgenstein em relação ao pensamento filosófico tradicional giram em torno da noção, principalmente, de “linguagem
privada”, onde o significado da palavra é o objeto, e seu sentido estaria numa
“misteriosa ligação” entre os termos da linguagem e os objetos, no interior
da mente. A partir daí, faz uma estruturada crítica dirigida às teses filosóficas que servem de base para a psicologia, que são amparadas na noção de
mundo privado.
As críticas elaboradas por Sartre giram em torno da noção de consciência,
a partir de uma análise ontológica. Elas marcam uma adesão e, ao mesmo tempo, um rompimento com as idéias de Husserl a respeito da noção de consciência
e consequentemente, neste caso, com a idéia de mundo privado.
A partir de um breve contorno na filosofia crítica de Wittgenstein, pudemos traçar pequenas aproximações com o pensamento de Sartre. Aprofundar
estas aproximações seria um trabalho bastante árduo para o momento, empreendimento fora dos limites deste artigo, cujo objetivo central está limitado a
breves considerações aproximativas, dado a complexidade do pensamento de
dois grandes filósofos do século XX.
Mas, mesmo com o caráter de breves aproximações, não estamos livres de
cometer enganos nas comparações que possam ser realizadas, já que nenhuma
obra consultada tinha este objetivo em seu conteúdo. Arriscamos, portanto,
esboçá-las apesar disso, apostando que talvez, no futuro, possa render aproximações com um caráter reflexivo maior e melhor elaborado.
Para Ludwig Josef Johann Wittgenstein, o grande erro da filosofia, o qual
criticou firmemente, consiste na crença de que as sentenças são compostas
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por palavras, que por sua vez, designam objetos, e o significado da palavras é
o objeto. De acordo com esta perspectiva, na medida em que reconhecemos
o sentido da sentença, somos obrigados a procurar objetos no mundo que
cumpram as funções de significado da palavra.
A partir de uma perspectiva holista, o que autor põe em questão, além de
fazer uma crítica do ponto de vista empírico, é o caráter lógico-semântico que
estrutura afirmações filosóficas, através de frases descritivas que têm a pretensão de verdades, sempre que possível, absolutas. A principal crítica é relativa à
noção de linguagem privada, centro do erro mais grave da filosofia metafísica,
segundo a qual o significado das palavras designa objetos, de forma que no
âmbito privado “as expressões de uma linguagem adquirem o seu sentido na
base do estabelecimento de uma ‘misteriosa’ ligação entre os seus termos e os
objetos que eles denotam”2.
Frases com caráter descritivo que têm a pretensão de verdades assumem um
perfil filosófico, provocando no leitor ou ouvinte uma impressão de obviedade,
do tipo “é isso mesmo!”. Frases como, por exemplo, “só eu posso sentir as minhas
dores” é típico deste jogo de linguagem, provocando grandes desastres no âmbito
das regras gramáticas e também no âmbito das discussões epistemológicas e ontológicas, às quais a filosofia tem prestado seus serviços ao longo dos séculos e, mais
recentemente, a psicologia autorizada pelo dito ”discurso científico”.
Wittgenstein via o ser humano como uma unidade psicofísica, e não uma
anima ligada a um corpo, pois, são seres humanos em sua totalidade, e não
mentes, que percebem e pensam, desejam e agem, sentem alegria ou tristeza.
Segundo Wittgenstein, tanto os cartesianos quanto os empiristas concebiam
o interno como algo “privado”, algo que só é verdadeiramente conhecido pelo
sujeito por introspecção. Entretanto, o autor nega que a introspecção seja uma
faculdade do “sentido interno”, ou uma fonte de conhecimento de qualquer
tipo de experiência privada , vendo o homem como um ser vivo no fluxo da
vida3. Enquanto behavioristas (que pensam que inferimos o interno a partir
do externo) e cartesianos (que afirmam o contrário) representaram a conduta
ZILHÃO, A. “Porque é Que a Minha Mão Direita Não Pode Oferecer Dinheiro à
2
Minha Mão Esquerda?”. In: Linguagem da filosofia e filosofia da linguagem. Lisboa:
Edições Colibri, 1993, p. 64.
3
HACKER, P.M.S. Wittgenstein, sobre a natureza humana. São Paulo: Editora
UNESP, 1999, p. 8.
Litaiff, Aldo e Maheirie, Kátia
124 Wittgenstein e Sartre: breves aproximações acerca das críticas à possibilidade das linguagens privadas
humana como um mero movimento corporal, Wittgenstein enfatizou que o
comportamento está (e é vivido como) impregnado por significação, pensamento, paixão e vontade.
A partir de sua visão da função da filosofia como “terapia” que busca
curar as “doenças” causadas pelo uso inadequado da linguagem, Wittgenstein
insistia que temos de nos livrar da idéia preconcebida segundo a qual o principal papel desempenhado por enunciados psicológicos na primeira pessoa é
descrever aquilo que se passa conosco, transmitindo aos outros uma informação privilegiada. Devemos tomar cuidado, dizia o autor, para não usarmos a
palavra “descrição” de maneira descuidada, pois, “a palavra ‘descrever’ talvez
tenha nos pregado uma peça. Eu digo ‘Eu descrevo meu estado mental’ e ‘Eu
descrevo meu quarto’. É necessário trazer à lembrança as diferenças entre os
jogos de linguagem”.
“Só eu posso sentir as minhas dores” pode parecer ao leitor um linda frase poética e, consequentemente, profunda, daquelas que ficamos “sonhando”,
avaliando e afirmando: “como alguém pôde dizer algo tão verdadeiro!”. Isto
representa um profundo equívoco sobre a realidade humana e sobre a forma
de expressar esta realidade, porém seu apelo descritivo faz com que a encaremos como uma verdade objetiva e absoluta.
Um dos possíveis argumentos utilizados nas críticas de Wittgenstein a
este tipo de frase consiste em que, na caracterização das proposições descritivas, deve haver a possibilidade da sua negação também ser verdadeira. Ou seja,
reconhecer o seu contrário como verdade seria uma condição para a aceitação
daquela afirmação. Então, “só eu não posso sentir as minhas dores” deveria
fazer sentido, o que não acontece de fato. Portanto, o estabelecimento de condições de verdade é fundamental, devendo culminar num discurso coerente
e pleno de sentido. Em que situações eu diria que só eu não posso sentir as
minhas dores? Apenas em situações de anedotas, onde subverter o sentido
gramatical faz parte do jogo de linguagem.
Para Wittgenstein, enunciados psicológicos são jogos de linguagem bem
mais sofisticados do que poderíamos imaginar, pois: 1. eles não se baseiam na
percepção; 2. não há condições de observação, nem órgão de percepção, nem
uma faculdade perceptiva associada a um “sentido interno”, nem qualquer
tipo de habilidade para apreender as próprias dores, medos, intenções ou crenças; 3. ninguém reconhece ou deixa de reconhecer, identifica ou não identifica
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o que está se passando consigo mesmo (muito embora seja possível perceber,
por exemplo, que tal dor é sintoma de angina, ou que tal intenção é indecorosa). “Eu pensei que tinha dores, mas estava enganado” não faz sentido; 4.
não existe isso de se verificar o que foi dito olhando-se mais de perto (o que
fazemos, em determinados casos, é refletir mais um pouco), nem há a comparação daquilo que se tem (uma dor, um pensamento, uma emoção) com
paradigmas de correção ou precisão descritiva; 5. como já foi dito, não existe
aqui conhecimento ou ignorância, certeza ou dúvida, mas apenas indecisão:
“Não estou certo sobre o que farei” não significa que tenho a intenção de fazer
algo, mas ainda tenho de descobrir o quê; pelo contrário, significa que ainda
não me decidi. Segundo Hacker4 nada disto significa que não haja descrições
de estados psicológicos. O que faz que uma forma verbal seja a descrição de
um estado psicológicos é o contexto enunciação, o discurso que a antecedeu,
o tom de voz do falante e seus propósitos.
Insistente na veracidade da sua tese, o opositor poderia argumentar
que “outra pessoa poder ter uma dor igual à minha, mas não IDÊNTICA”.
Ora, uma afirmação deste tipo também não resolve o problema, pois pressupõe aí um critério de identidade. Vejamos: em primeiro lugar, o opositor
compreende DOR como um objeto, uma coisa, como moeda, mesa, cadeira
etc. Então, os critérios para identificação das dores, minhas e alheias, seria
o espírito, assim para um objeto qualquer, o espaço, tamanho, forma etc.
Mas o critério de identificação não pode ser o espírito, logo não há critério
de identidade e, portanto, a frase não pode ter caráter de verdade descritiva.
As palavras nem sempre designam objetos, e DOR não é um objeto, é uma
palavra que, sem dúvida tem um significado, mas o significado de uma palavra não é um objeto.
Em síntese, aquelas duas sentenças têm pretensões descritivas que nunca
são cumpridas. Grande parte das teses filosóficas que servem de base para a
psicologia, e que dizem respeito aos estados psíquicos, sofrem do mesmo tipo
de mal: uma aparência descritiva, com caráter de verdade filosófico-científica,
mas que são realmente vazias de conteúdo descritivo e carentes do ponto de
vista lógico-semântico. Todas as sentenças que pretendem indicar a tese da
privacidade têm estas características.
Ibid., p.40.
4
Litaiff, Aldo e Maheirie, Kátia
126 Wittgenstein e Sartre: breves aproximações acerca das críticas à possibilidade das linguagens privadas
Os enganos provenientes da tese do “mundo privado” não acabam aí.
Outros equívocos surgem, por exemplo, em relação à palavra “pensamento”.
O opositor afirma: “para entender o que é pensamento, basta observar o que
acontece internamente quando eu penso”. Aqui, novamente, um verbo psicológico é compreendido e tratado como um objeto e, assim como a dor, o
pensamento não é objeto. Observar o que acontece dentro de si não esclarece
nada, pois implica no erro que consiste em isolar o pensamento para obter o
seu significado. O pensamento é visto como algo interno, portanto inacessível
a qualquer outra pessoa. Para Wittgenstein, o opositor esclareceria a palavra
“pensamento” do mesmo modo que se eu, “sem conhecer o jogo de xadrez,
quisesse, observando atentamente a última jogada de uma partida, descobrir
o significado da palavra ‘xeque-mate’”5. Do mesmo modo que “xeque-mate”
não é uma peça do xadrez, o pensamento não é um objeto.
As consequências da tese do mundo privado podem ser desastrosas. Vejamos: o pensamento ocorre no nível do privado, como algo interno, dentro
de mim. Então, toda realidade estaria dividida em dois planos: o público e o
privado, onde o pensamento estaria no domínio do privado. O pensamento
passa a ser um processo que acompanha o processo verbal (acompanha os
sons da fala) e dota-os de sentido (vai aparencendo o sentido da sentença). O
pensamento trancado em mim é fonte de toda racionalidade, e todo discurso
passa a ser associado ao processo mental. Desta forma, temos, então, um
modelo de funcionamento da mente, da razão, da linguagem: um modelo
estruturado na privacidade.
Assim, as sensações teriam, cada uma, uma linguagem privada que só eu
poderei compreender: a minha linguagem. No mundo privado, faço associações entre palavras e objetos do privado, de forma que o nome seria o representante do objeto, dando um sentido a ele, formando aí o MEU MUNDO,
repleto de palavras e objetos.
Se quiséssemos aceitar esta tese, teríamos que ser capazes de, no futuro
lembrarmos CORRETAMENTE, de uma associação já realizada. Implica,
portanto, num critério do que seja correto/incorreto, engano/acerto, verdadeiro/falso, etc., pois toda linguagem depende destas oposições e de critérios de
WITTGENSTEIN, L. J. J. Investigações filosóficas: Os pensadores. São Paulo: Nova
5
Cultural, 1989, p.109.
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avaliação. Ora, se a atribuição de sentido é privada, seus critérios de avaliação
também, então, o termo CORREÇÃO fica sem sentido, pois este só é definido no domínio público.
O mesmo argumento vale para quando o opositor afirmar que a identidade entre os objetivos privados se daria atráves de uma memória infalível. Aí
também precisamos de um critério de correção, ou seja, de normas que são
socialmente definidas que, transportadas para o âmbio do privado, não podem
servir de paradigma6, e o universo privado é carente de regras. Nesta direção,
a linguagem privada não seria uma linguagem, mas sim uma contradição, o
“sentido de um termo” deixa de ter sentido e, uma linguagem sem sentido,
não é linguagem.
O opositor, não contente com as objeções feitas, afirma então a tese da
crença ou a impressão de ter realizado corretamente a associação. Wittgenstein
argumenta que, não será possível testar a fiabilidade da crença ou da impressão, mostrando que o modelo proposto não faz sentido, pois viola as regras
da gramática.
Nenhum argumento consegue ser mais lógico e real do que o da linguagem pública e socialmente estabelecida. O significado de uma palavra é o uso
social dela, partilhado e controlado coletivamente, de forma que todo sentido
é sempre público. Objetos ou, se preferir, mundo privado, mesmo que existissem, não exerceriam nenhuma influência na linguagem pública, mas esta,
ao contrário, é o fundamento da realidade humana, submetida à gramática do
mundo coletivo.
Wittgenstein acrescenta, então, que a forma para que o outro compreenda os sentidos das palavras para as sensações, seria apontar para o que é
real, como os comportamentos e a exteriorizações, e não atráves de imagens
mentais que se voltam sobre si. “Eu penso, eu creio etc.”, não são aprendidos
ou usados para descrever um estado interno que observamos dentro de nós
mesmos e descrevemos para que os outros saibam o que se passa em nós. Estas
expressões são utilizadas para qualificar uma alegação que fazemos. As bases
sobre os quais os termos psicológicos se sustentam são muitas, porém, de acordo com Hacker (ibid., p.45), estas diferenças não re-introduzem a imagem
clássica do interno.
ZILHÃO, op. cit.
6
Litaiff, Aldo e Maheirie, Kátia
128 Wittgenstein e Sartre: breves aproximações acerca das críticas à possibilidade das linguagens privadas
Assim, do ponto de vista lógico-semântico a tese da linguagem privada é
insustentável, incoerente e totalmente desprovida de sentido. Nesta perspectiva, a piscologia, conforme Wittgenstein, permanece na sua infância, pois não
leva em conta os significados dos termos que usa para descrever os estados
psíquicos. A impossibilidade das linguagens privadas tem como argumento
central a constatação de que, a menos que a linguagem seja compartilhada,
nós não poderiamos ter meios de distinguir entre pensar que se está utilizando
a linguagem corretamente e utilizá-la de forma incorreta. Somente a comunicação com outros seres humanos pode nos fornecer um critério seguro do uso
correto das palavras.
As críticas de Sartre acerca do “mundo privado”
Edmund Husserl (1859-1938), filósofo alemão, preocupado em fazer
da filosofia uma ciência de rigor, propôs que se voltasse “às coisas mesmas” e
ao “mundo do vivido” (lebenswelt), criando o que se chama genericamente de
Fenomenologia.
Na introdução de “El Ser y la Nada”7, Jean-Paul Sartre discute os progressos de Husserl, ao afirmar que a essência já não se opõe à aparência e que tudo
existe em ato, não existindo a potência. Teria desaparecido o dualismo do ser e
do aparecer, o dualismo que coloca no objeto um interior e um exterior, sendo
o interior sua realidade secreta que jamais seria alcançada, e o exterior, uma pele
superfcial que tenderia a esconder a verdadeira identidade do fenômeno.
Isto significa que ao nos confrotarmos com um objeto, uma mesa, por
exemplo, não haveria um ser oculto “mesa” por detrás daquilo que observo. A
mesa é precisamente aquilo que a define enquanto tal, em todas as suas perspectivas (abschattung), ou o “nexo das aparições”.
Da mesma forma, a dualidade da potência e do ato não teria mais espaço
no campo filosófico. Este dualismo pressupõe haver uma potência habitando
o ser, como se fosse sua essência oculta e o ato, no melhor dos casos, revelaria
apenas uma parcela desta potência, ou até mesmo, o contrário do que ela
representa. Com a queda deste dualismo, tudo é em ato, não existindo o que
se chama de potência. A mesa é enquanto mesa, enquanto ato.
SARTRE, J. P. El ser y la nada. Buenos Aires: Losada, 1983.
7
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No que se refere ao humano, não existe um homem oculto dentro do
homem. O que um homem é, é em ato, e é este ato precisamente sua essência.
Buscando o próprio exemplo de Sartre, só podemos compreender por “gênio”,
a totalidade das obras produzidas por um sujeito. Nada habita o sujeito para
que ele produza uma obra, ao contrário, é a obra, enquanto ato, que define sua
essência, que define seu ser.
Sartre, acerca das considerações epistemológicas desenvolvidas por Husserl,
coloca que, ao derrubar os dualismos já citados, Husserl cria um novo dualismo
que vem a substituir os dualismos já derrubados. Trata-se de lançar ao infinito
a série de aparições do fenômeno, pois, para Husserl, a aparência depende da
perspectiva que o sujeito adota, de sua subjetividade interna, do sentido daquilo
na sua particularidade, de seu “ponto de vista interno”. Assim, a essência não
é mais do que o “sentido da coisa” para o sujeito singular. Sendo infinito, não
alcanço sua totalidade, a série de suas aparições, a essência, portanto.
Se a essência vem a ser o “sentido da coisa para mim”8, a filosofia husserliana carece de objetividade e as verdades são estabelecidas pelo recurso à
subjetividade “absoluta” do sujeito, pois a verdade é, para Husserl, o “sentido” do objeto para o sujeito, dado por uma consciência transcedental, que
é intrapsíquica.
Isto porque, atráves do método da redução eidética, Husserl colocou
entre parênteses as coisas objetivas, remetendo às essências mentais que se tem
destas coisas. Estas essências ele chamou de coisas mesmas ou coisas em si.
Porém, ao colocar entre parênteses as coisas transcedentes, caiu no dualismo
finito/infinito, já que a essência se daria pelo “eidos”. Estas idéias seriam dadas
pela consciência transcedental ou eu puro.
Segundo Sartre, Husserl inviabiliza seu próprio projeto, pois faz das coisas reais, idéias que habitam a mente. O EU, como fonte interior de todos
os sentidos, passa a ser uma substância pensante, que atrai para si todos os
objetos do mundo, formando objetos próprios, os sentidos ou significados, a
verdadeira essência da realidade. Seu cogito, tal como o de Descartes, conduz
“à idéia de substância pensante”9 .
TAVARES, H. da S. “Fenomenologia de Husserl”. In: KRITERION. Belo Horizonte:
UFMG, v. 25, n. 72, 1984, p. 38
9
BERTOLINO, P. “Sartre: Transcendência e Constituição do Ego”. In: Revista de
8
Ciências Humanas da UFSC. v. 1, n. 2, 1982, p. 28.
Litaiff, Aldo e Maheirie, Kátia
130 Wittgenstein e Sartre: breves aproximações acerca das críticas à possibilidade das linguagens privadas
Preocupado em resgatar a objetividade e sua fundamental relação com a
subjetividade, Sartre pretendia transformar a filosofia e psicologia ensinadas em
sua época, consideradas por ele mesmo como “mentalistas” e fadadas à metafísica. Para ele, o primeiro passo de uma filosofia é expulsar as coisas da consciência e estabelecer a relação desta com o mundo, qual seja, “a consciência como
posicional do mundo”10. Para tanto, recupera o princípio de intencionalidade
proposto por Husserl, que define a consciência como sendo pura relação com o
mundo, sempre para fora, para aquilo que ela não é. Neste sentido, ela não tem
conteúdo, não tem interior, sendo exterior por condição, é pura existência e existe para fora de si. Sendo um vazio total, a consciência não é uma substância, não
é uma coisa, ao contrário do que supõe o cógito cartesiano. Desta forma, Sartre
afirma a existência de um cógito pré-reflexivo, pondo a existência, ou seja, relação no mundo, como anterior e fundamentando os acontecimentos psíquicos.
Assim, quando percebemos uma mesa, por exemplo, ela não estaria dentro
da consciência, nem a título de representação. Ela permancece lá, aonde está,
num determinado espaço específico, fora de mim, no mundo concreto. A natureza da mesa é materialidade (objeto, coisa) e a consciência é ausência de materialidade e não de um plano interno. Não poderia, desta forma, aceitar o pressuposto
de que a mesa pudesse entrar num vazio de materialidade. Para tanto, teríamos
que crer no “‘Espírito-Aranha’ que atraía as coisas para a teia, cobria-as com uma
baba branca e as deglutia lentamente, reduzia-as à sua própria substância.
Todo acontecimento psíquico é relação com o mundo e não podemos
qualificá-lo como uma coisa, como qualificamos uma mesa ou uma cadeira.
A dor ou o prazer não é uma representação nem tampouco uma qualidade da
consciência, pois é um acontecimento concreto. Não existe um “prazer” ou
uma “dor” que receba depois a qualidade de consciente, assim como não existe
uma consciência que receba a impressão “prazer” ou “dor” para dentro de si.
Em síntese, Sartre procura fundamentar as “famosas reações subjetivas”
na relação do homem com o mundo, ou melhor, na relação do homem no
mundo, mostrando que “no fim das contas, tudo está fora, tudo até nós próprios: fora, no mundo, entre os outros”11.
10
11
SARTRE, J.-P. El ser y la nada, p.18 e 28.
SARTRE, J.-P. “Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade”. In: Situações I. Lisboa: Publicações Europa-América, 1968, p. 31.
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Daí que o método da introspecção, tão objetiva na filosofia metafísica,
não tem razão de ser. Este método pressupõe que cada sujeito tem um mundo
dentro de si, em última instância, inacessível para quem quer que seja. Não
existe um mundo dentro de cada homem, ao contrário, é o homem que está
no mundo. Por isso, nada é puramente subjetivo. Se quisermos nos conhecer,
“não é em nenhum refúgio que nos descobriremos: é na rua, na cidade, no
meio da multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens” (idem).
Wittgenstein e Sartre: algumas relações possíveis
As preocupações de Wittgenstein e de Sartre relativas à filosofia e à psicologia predominantes no nosso século têm pelo menos um ponto comum:
uma crítica à ideia do mundo privado. Partindo de caminhos diversos e,
tendo no horizonte questões específicas a tratar, a abordagem de cada autor
leva a conclusões semelhantes no que diz respeito à constituição social do
homem no mundo.
Sem maiores detalhes sobre a visão do homem de cada autor, podemos
arriscar algumas considerações sobre o caráter público que ambos reconhecem
na estrutura do humano, mais especificamente, na produção de significados e
de acontecimentos psíquicos.
Wittgenstein critica duramente a concepção de mundo privado, um
mundo voltado para o interior e fonte de toda racionalidade humana. Critica
a noção de que o indivíduo, a partir de sua subjetividade constituinte, seria a
fonte absoluta dos significados, “centro do exercício racional, como sede deste
exercício e como condição de possibilidade deste exercício”12. Ele mostra que
o inivíduo não pode ser a sede de uma atividade altamente regulada como a
razão, apontando para a necessidade da mediação do outro para este exercício.
A linguagem não é um processo natural, é uma aprendizagem que se realiza
sob normas coletivas e socialmente partilhadas, e é a base deste exercício, pois
é através dela que pensamos, levantamos hipóteses ou qualquer outra forma
que criamos para produzir conhecimento.
Para Sartre, igualmente, não podemos acatar a noção de mundo privado.
O homem, para ele, é um ser constituído social e historicamente, criticando a
João Virgilio G. Cuter, comunicação pessoal (26/11/1996).
12
Litaiff, Aldo e Maheirie, Kátia
132 Wittgenstein e Sartre: breves aproximações acerca das críticas à possibilidade das linguagens privadas
idéia da existência de uma subjetividade como fonte absoluta da razão. A razão
é uma atividade que se exerce por meio das relações com os outros na aprendizagem da linguagem, pública por excelência, portanto, submentida à construção coletiva. A mediação do outro é fundamental para qualquer atividade
psíquica, para a produção de significados que, por condição, é constituída no
convívio social, em meio à materialidade do mundo. A comunicação, assim
como para Wittgenstein, não é uma ligação do tipo “mente-mente”, mas uma
atividade humana que se faz possível na linguagem, com atividade objetiva e
real no mundo concreto. De acordo com sua perspectiva ontológica, também
considera absurda a tese da linguagem privada, pois não concebe a idéia de um
mundo interior, com seus objetos e sensações.
Ambos criticam o conceito de “mente”, assim como o dualismo interior/exterior, realidade privada/pública, e os acontecimentos psíquicos como
objetos de um olhar interno. Não negam estes acontecimentos, mas negam
que possam ser compreendidos como objetos, e que sejam fundamentados
no interior do indíviduo. Fatos psíquicos são recortados pela linguagem que
tem sua sede na coletividade, na cidade, na polis, em meio de outros homens,
nas instituições sociais. A racionalidade, para ambos, está fora do sujeito, está
entre os sujeitos, e só é possível como produto das relações humanas.
Ambos, por caminhos diversos, contribuíram para que o homem pudesse
ser compreendido como um ser social por condição, exterior por excelência,
produtor e produto no mundo concreto. Os fatos psíquicos não se caracterizam por uma névoa obscura, inacessível e misteriosa, pois se exteriorizam em
comportamentos e essa é sua objetivação; fora isso, qualquer compreensão seria
mero delírio. O homem pode e deve ser conhecido e compreendido do ponto
de vista psicológico, não como uma incógnita ou um objeto desprovido de subjetividade, mas como um ser que é subjetivade objetivada13, necessariamente.
Nada pode fundamentar o homem que não seja sua condição de ser
social, coletivo e historicamente situado. O pensamento é uma face da linguagem e não existira sem ela, que por sua vez, não existiria sem convivência
coletiva, de forma que nada compreenderíamos se fossemos observar o que
13
MAHEIRIE, K. e K. França, “Vygotski e Sartre: Aproximando Concepções Metodológicas na Construção do Saber Psicológico”. Psicologia & sociedade, n. 19, v. 1,
p. 23-29, jan/abr 2007.
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133
acontece dentro de nós quando pensamos. Nada encontraríamos pela observação inteiror, estamos totalmente fora, pois quando pensamos, pensamos sobre
alguma coisa que está aqui, ou lá, em algum lugar no mundo. Mesmo a imaginação, é a imaginação sobre alguma coisa, real ou irreal, é sobre os elementos
do mundo que se cria uma imagem, uma imagem sobre o mundo.
Sem dúvida, apesar das diferenças que podem existir entre esses dois
autores e, mesmo partindo para caminhos diversos em suas análises sobre a
filosofia tradicional, ambos compartilham de uma das mais fundamentais críticas feitas à base da psicologia do nosso século. A tese da privacidade não pode
ignorar os argumentos levantados por eles, sem perder sua estrutura e repensar
a si mesma como argumento pretensamente científico.
***
WITTGENSTEIN AND SARTRE: REFLECTIONS ON THE CRITIQUE OF THE NOTION OF A ‘PRIVATE WORLD’ OR ‘PRIVATE MIND’
ABSTRACT: From the 1970s on one of the fundamental concerns
of Social Psychology has been to elaborate an understanding about
man, which assures his socially and historically built character. In
that sense, the present article directs its reflections to the critique of
the notion of a ‘private world’ or ‘private mind’, by means of the
arguments raised by L.J.J. Wittgenstein (1885-1951) and JeanPaul Sartre (1905-1980), also in an attempt to bring these two
authors closer.
KEYWORDS: Wittgenstein; Sartre; private language.
Recebido em: 11/06/2008
Aprovado em: 14/10/2008
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