ESTÉTICA DO ENCONTRO: O NEO-REALISMO PORTUGUÊS E O (RE)CRIAR DA REALIDADE MARCOS VINICIUS FIUZA COUTINHO “A emoção é uma certa maneira de apreender o mundo.” (Jean- Paul Sartre) RESUMO: Pensar a estética neo-realista leva-nos ao encontro de uma concepção, no mínimo, diferente de realidade. Uma literatura que se quis atuante e modificadora, já em um primeiro momento, transporta-nos a uma localização particular de percepção, apreensão, julgamento e transposição do real. A arte neo-realista se mostrou combativa e, por muitas vezes, mal interpretada no seu discurso politicamente engajado e estruturalmente sóbrio. A coletividade era o foco neo-realista. Porém, mais que uma literatura de cunho social, a obra neo-realista se mostrou, sobretudo, uma investigadora de seu tempo, onde, através de um olhar minucioso, trouxe o ignorado, o imperceptível, ao patamar da visão. Desta forma, este trabalho tem como foco principal analisar aspectos estruturais do neo-realismo, assim como entender o processo de (re)criação do real a partir da potencialização do cotidiano. Pensar a estética neo-realista leva-nos ao encontro de uma concepção, no mínimo, diferente de realidade. Uma literatura que se quis atuante e modificadora socialmente, já em um primeiro momento, transporta-nos a uma localização particular de percepção, apreensão, julgamento e transposição do real. A arte neorealista se mostrou combativa e, por muitas vezes, mal interpretada no seu discurso politicamente engajado e estruturalmente sóbrio, já que exigiu dos artistas e da própria arte um compromisso e uma militância que eram o oposto das teorias subjetivistas vigentes, considerando, portanto, o homem como ser social. A coletividade era o foco neo-realista. Porém, mais que uma literatura de cunho social, a obra neo-realista se mostrou, sobretudo, uma investigadora de seu tempo, onde, através de um olhar minucioso, trouxe o ignorado, o imperceptível aos olhos do leitor, ao patamar da visão. O Neo-realismo desloca o trivial, o considerado banal, para um primeiro plano. O cotidiano é o ator principal da obra. É ele “um espetáculo ambulante”1, sendo o responsável por desvelar aquilo que está diante de nós, entretanto encoberto pela penumbra do dia-a-dia. Apropriando-se das palavras de Urbano Tavares Rodrigues, temos uma “literatura de análise da realidade social e de comba- 1 2 DELEUZE, Gilles. “Para Além da Imagem-Movimento”. In: Cinema 1: A Imagem-Movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 14. te”2, onde, em tempos sombrios, buscou-se, através da recriação de uma realidade machucada, construir uma estética focada nas relações sociais do homem. O interessante é notar que o processo de construção da obra não se volta para uma noção de representação, mas sim para uma concepção de criação do real. O neorealismo não entende a realidade como algo já concluído e consequentemente estático. O real é trabalhado e modificado, contribuindo, desta forma, para o processo de entendimento daquilo que está latente e se quer descortinar. Assim, vemos que: O real não é somente o que se pode designar, o que se pode mostrar, e portanto reconhecer, é também o que, por ainda não pertencer ao modo do presente, deve ser antecipado e, por sê-lo, constituir-se em correlato de um autêntico discurso de descoberta ou revelação. (PITA, 1997, p. 148.) Este “revelar” traz ao artista neo-realista uma responsabilidade concreta, pois sendo o escritor o ente construtor de realidades novas, que se querem objetivadas a uma perspectiva sócioideológica, tem este escritor, uma função sabidamente complexa e ativa na comunidade, já que “a idéia de revelação remete-nos para um processo em que a actividade consciente do artista é a mediação explicitadora de um fundo originário” (PITA, 1997, p. 149). 2 RODRIGUES, Urbano Tavares. “O Neo-Realismo geo-social, político e artístico”. In: Encontro Neo-Realismo. Reflexões sobre um movimento, perspectivas para um museu. Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1997. p. 23. 3 Microcosmos são criados e a partir deles desencadeiam as relações e questionamentos internos das personagens. A literatura neo-realista é, antes de tudo, uma literatura que se desenvolve dentro, e a partir, da experiência humana. É no encontro, aparentemente corriqueiro, das personagens, que afloram todos os desdobramentos crítico-sociais. Ao trabalhar com o humano, o artista neo-realista cria, como falou Mário Dionísio, “um mundo dentro do mundo” e, a partir das vidas que se entrelaçam, surge uma literatura que exalta os sentimentos. Portanto, ao dar vida a uma nova realidade, a literatura neo-realista não se empenha em retratar o mundo, mas volta seus olhares e preocupações para um redesenhar, um reconfigurar, acarretando assim um redimensionamento desta realidade, deixando clara a sua posição e exaltando seu discurso. Assim, entendemos que: Enquanto discurso de conhecimento (ou revelação), a finalidade da arte não reside em desenvolver-nos a reconstrução coerente – seja ideal, seja mobilizadora – de um real que todos conhecem ou podem já conhecer, mesmo difusamente, por outros meios. Consiste em abrir zonas de real inexploradas e insuspeitas (...) pelo apuramento ou cultivo dos sentidos. (Id., ibid., p. 147) A realidade neo-realista é algo que se quer legítimo por contemplar a coletividade. Mais que trabalhar o indivíduo, esta estética busca desenvolver-se de forma a, partindo do individual, trazer à superfície um grito coletivo. Vemos que nesta escrita, há um sujeito coletivo eleito e representado, por seus escritores, na 4 figura povo e, ao contrário do realismo oitocentista, que elegeu a burguesia como parâmetro social, os autores deste movimento tem no povo o reflexo e a representatividade de uma sociedade marcada pelas injustiças sociais e pelo descaso das autoridades. A necessidade de se fazer ouvir uma sociedade oprimida através da escrita, faz com que o escritor busque a imagem, a cena que possa traduzir um sentimento coletivo reprimido. Neste sentido, o neo-realismo vai focar seus interesses na captura desta imagem que traduz este coletivo. Isso aproxima-nos da “imagemfato” trabalhada por Deleuze (Op. cit.), em que, da recriação do cotidiano, retirava-se aquilo que se queria desvelar, ou seja, o “real não era mais representado ou reproduzido, mas ‘visado’. Em vez de representar um real já decifrado, o neo-realismo visava um real, sempre ambíguo, a ser decifrado” (Id., ibid., p. 9). Alves Redol (1969), escritor que inaugura o neo-realismo português com o seu romance “Gaibéus”, mostra a necessidade de se fazer da literatura uma ferramenta útil à sociedade, resguardando e registrando um período. Diz Redol: “Gaibéus” seria um compromisso deliberado da reportagem com o romance, em favor dos homens olvidados e também da literatura aviltada. Não conseguiu voar tão alto nem tão longe. Mas, perante a ameaça que depois tão tragicamente todos provaram na consciência, ou na própria carne, “Gaibéus” quis ser, e foi um dos gritos exactos de um drama coletivo e privado. (REDOL, 1969, p. 30) 5 Em “Gaibéus”, Redol leva ao extremo o intuito de dar a ver essa coletividade e trabalha seu romance de modo a não haver na narrativa um personagem principal, mas sim um grupo, pois, como afirmou o próprio autor, propôs, com essa obra, “criar um romance antiassunto, ou melhor, anti-história, sem personagens principais que só pedissem comparsaria às outras” (Id., ibid., p. 28). Porém, com o passar dos anos, o autor aprofunda seu olhar crítico e analítico e em “A Barca dos Sete Lemes”, romance publicado dezenove anos após “Gaibéus”, a partir da vida de um personagem, tece um mundo de encontros que desencadeiam uma série de questionamentos acerca do homem, de sua relação com os outros, de sua relação com a natureza e põe em discussão até que ponto a sociedade transforma e modifica personalidades. Temos uma profunda investigação arqueológica do homem que, representado pelo protagonista Alcides (Cidro), mostra-nos como nas pequenas minúcias da vida, nos encontros aparentemente mais banais, é que se depositam os sentimentos mais intensos e transformadores. Redol nos conduz a uma jornada de descobrimentos, em que por entre as muitas personalidades que navegam na vida de Alcides, encontramos aquelas que, de certa maneira, são pontuais e representam um corte, uma guinada em sua vida. O encontrar, o relacionar-se, é, em “A Barca do Sete Lemês”, o tópico central do romance, dando a diretriz e impulsionando a trama. A narrativa, que é o recontar da trajetória de Ci6 dro, caminha por uma linha sinuosa e recortada, já que eventos são narrados, desde seu nascimento até sua prisão, e, neste sentido, acompanhamos as diversas rotas tomadas por ele e quedamos nas bruscas paradas e retomadas da narrativa em seus diálogos a espera de julgamento no cárcere. Entendendo a estética neo-realista como um potencializador de minúcias, fica clara a forma como Redol amplia e problematiza o trivial, mostrando que das pequenas e, ao mesmo tempo, dilacerantes escolhas feitas pelo personagem, há um desencadear de circunstâncias alheias a sua vontade, que acabam por moldar, ou melhor, conduzir a certas atitudes e temperamentos. Neste ponto, começamos a entender os processos que levaram a transformação do jovem Cidro no duro Alcides ou “como de um homem se faz um falcão” (Idem, 1958, p. 308). Vemos que o autor questiona um certo determinismo social, pois mostra como Alcides é o reflexo de tudo aquilo que viveu, mas que, em contrapartida, é a partir de suas escolhas, suas decisões, que há o desenrolar dos acontecimentos, sendo, então, ele próprio, o estopim das mudanças ocorridas em sua vida. Alves Redol acredita no homem como agente modificador e, desta forma, questiona o discurso ameaçador do personagem “Maioral”, que defende uma atitude passiva em relação à vida, proferindo um discurso castrador que traz resignação e apatia. Ele contesta elementos como “sina” e “fatalidade”, desmanchando e desconstru- 7 indo um universo imagístico determinista. Para Redol, o homem é capaz de guiar a si próprio e conduzir o leme de sua vida. Cito: “– (...) Pra que se metem vocês nessas andanças? O cavalo branco tem mais força... – Até agora não a teve. A gente amansa-o... Amansa-o com esta pàzita, que parece uma brincadeira de rapazes. Isso do cavalo branco é uma história...” (Id., ibid., p. 262) Nesta mesma direção, o autor demonstra como, mesmo em situações-limite, o homem pode, e deve, tomar a posição que acredita ser a correta. Alude, através do simples, a uma situação extrema, confronta o leitor com uma realidade externa e sugere uma atitude pró-ativa: “Uma guerra é uma guerra e um soldado nada pode. O senhor asbe o que me sucedia, se eu me negasse?” “Sei, Mas um homem pode escolher a morte quando o querem aviltar.” (Id., ibid. p. 308) (grifo nosso) O escritor mostra que, a partir das relações vividas por Alcides, construiu-se um conjunto de fatores que, unidos, formam a personalidade do personagem. Percebemos que Cidro não possui a consciência do que foi e do que se tornou, mas, desde o momento em que se encontra a narrar sua vida a outra pessoa na cadeia, a ação da memória, o recontar, aliado ao diálogo com seu “patrício” na cela, faz com que comece a descobrir quem ele realmente é. Ele é confrontado com sua fala, sua memória, e juntamente com o olhar do outro, há uma tomada de consciência por parte dele, que 8 o faz tomar as rédeas da narração e refletir sobre si e sua vida. Cito: “A vida é uma manta de retalhos com muitas cores. Nunca vi manta de pobre com tanto remendo. Eu gosto mais de azul, não sei porquê. Mas na manta da minha vida há pouco dessa cor. Talvez por isso mesmo.” (Id., ibid. p. 401) Neste acumular de sentimentos, Alcides passa a compreender e visualizar pontos precisos em sua história que o modificaram e são peças fundamentais para o entendimento de sua formação. Cito: “(...) foi o primeiro sinal que me deu de se me ter partido qualquer coisa cá dentro. Lá o que foi, não sei bem. Devia ter sido o coração, já lho disse, porque daí em diante tanto me apetecia fugir e atirar-me às cabanas e às pessoas como dixarme cair e chorar apodrecer até ao fim. Só passei a conhecer duas coisas: ou a raiva, ou tristeza.” (Id., ibid. p. 367) Fica clara a fragilidade de Cidro perante a vida e são desses encontros e desencontros, desse conjunto de retalhos, ora “vermelhos”, ora “azuis”, que o homem caminha e se auto-reconhece. Vemos que Alcides é a soma de si mais tudo que o encontrara. Sua vida é um absorver de vivências, um depósito de experiências, em que, deste acúmulo, transbordam contentamentos e, principalmente, frustrações, mostrando ser o neo-realismo, também, uma estética do sentimento. 9 Alves Redol direciona sua narrativa no sentido de, através de todas as personagens que passam pela vida de Alcides, alegorizar uma camada plural da sociedade, esquecida e abandonada, onde “teresas”, “marianas” e “Mulas bravas” transitam na normalidade do cotidiano. Desta forma, entendemos que são desses pequenos pormenores que se nutre o neo-realismo, em que, ao ampliá-los com sua lupa vigorosa, faz do imperceptível, do aparentemente insignificante, um efervescer de signos e significados que nos põem de frente a imagem antes ignorada. A imagem está lá, mas não a vemos devido a inúmeros bloqueios. O que o neo-realismo faz é retirar as vendas do dia-dia e trazer-nos à luz da simplicidade. Deixamos de enxergar e passamos a ver, ver profundamente aquilo que estava diante de nós e não sentíamos. Assim, podemos definir o neo-realismo como o “descobrir”, o “descortinar”, pois, citando Deleuze, vemos que: “(...) nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos, percebemos apenas o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o que temos interesse em perceber, devido a nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas. Portanto, comumente, percebemos apenas clichês. Mas, se nossos esquemas sensório-motores se bloqueiam ou quebram, então pode aparecer outro tipo de imagem: uma imagem (...) pura, a imagem inteira e sem metáfora, que faz surgir a coisa em si mesma, literalmente, em seu excesso de horror ou de beleza, em seu caráter radical ou injustificável, pois ela não tem mais de ser “justificada”, como bem ou como mal...” (DELEUZE, op. cit., p. 31) 10 Referências bibliográficas: DELEUZE, Gilles. “Para Além da Imagem-Movimento”. In: Cinema 1: A Imagem-Movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. PITA, António Pedro. “A árvore e o espelho. Elementos para a interpretação da heterogeneidade neorealista”. In: Encontro NeoRealismo. Reflexões sobre um movimento, perspectivas para um museu. Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1997. REDOL, Alves. A Barca dos Sete Lemes. Lisboa: Publicações Europa-América, 1958. ______. Gaibéus. Lisboa: Publicações Europa-América, 1969. RODRIGUES, Urbano Tavares. “O Neo-Realismo geo-social, político e artístico”. In: Encontro Neo-Realismo. Reflexões sobre um movimento, perspectivas para um museu. Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1997. SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM Editores, 2006. 11