O OLHAR EM SARTRE: RELAÇÃO ENTRE O EU E O OUTRO
O OLHAR EM SARTRE: RELAÇÃO ENTRE O EU E O OUTRO1
Maria Ivone Camargos Silva*
Silvano Severino Dias**
Vani Terezinha de Rezende***
RESUMO
O objetivo deste estudo é investigar a relação entre o olhar do eu e o do outro, com base no capítulo
“O Olhar” da obra de Sartre O Ser e o Nada. Propomos averiguar quais os conflitos gerados na
descoberta do eu diante do outro e os artifícios usados para esconder-se perante o outro. Para isso
buscaremos expor o incômodo do olhar do outro em mim e a relação que se estabelece a partir do
momento em que o eu toma consciência do outro.
PALAVRAS-CHAVE: Olhar. Inferno. Incômodo. Eu. Outro.
INTRODUÇÃO
No contexto atual observamos como é grande a dificuldade existente em um
relacionamento interpessoal: há um abismo enorme entre as pessoas, as quais não conseguem
mais se relacionar no dia a dia, conversando, dialogando. É visível o medo ou receio de se
“mostrar”, criando dessa forma uma barreira invisível e intransponível para chegar ao outro.
Tal situação pode ser observada na busca cada vez mais freqüente, por exemplo, de
relacionamentos virtuais. Nestes as pessoas não assumem a sua própria identidade perante si
mesmas e os outros.
Diante disso, podemos perguntar: por que buscar meios de fuga para não serem
vistas
e
conhecidas,
escondendo-se,
ao
contrário,
em
sua
“clausura
interior”,
metamorfoseando-se em coisa?
Tentaremos responder a essas indagações utilizando como base de nossas
reflexões o capítulo “O olhar” da obra de Sartre intitulada O Ser e o Nada, e, como apoio,
além de outros textos de Sartre, textos de comentadores da obra bem como obras afins, que
poderão servir de auxílio ao tema.
1
TCC apresentado na disciplina PLOVII em 2008 sob a orientação do prof. Ms. Silvano Severino Dias e da
profª Dra. Vani Terezinha de Rezende.
* Bacharel em Filosofia pela Faculdade Católica de Uberlândia.
**
Mestre pela Universidade Federal de Uberlândia. Professor de Filosofia da Faculdade Católica de Uberlândia.
Desenvolve pesquisa na área da Filosofia, com ênfase na gênese da subjetividade nas filosofias modernas e
contemporâneas. Editor Responsável da Revista Poros, do curso de Filosofia da FCU.
***
Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Professora de Filosofia da Faculdade Católica de
Uberlândia. Editora Responsável de Interações – Cultura e Comunidade, Revista de Ciências da Religião da
Faculdade Católica de Uberlândia. Coordenadora do Setor de Publicações da Faculdade Católica de Uberlândia.
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Sartre levanta as dificuldades que o outro tem de se relacionar e o incômodo que o
outro causa quando é visto e percebido. A partir daí podemos perguntar se é possível
encontrar na obra sartreana respostas para estes questionamentos de relação interpessoal que
ainda hoje insistem em se fazer presentes.
Para Sartre, não há separação entre o eu e o outro no momento em que um toma
consciência do outro, pois a visão do outro vai acender no eu a luz de alerta, sendo captado
como um objeto estranho ao eu, e daí começa um reconhecimento prévio das intenções que o
outro tem sobre mim. “[...] Porque perceber é olhar, e captar um olhar não é apreender um
objeto no mundo, mas tomar consciência de ser visto [...]” (SARTRE, 2003, p. 333)
Após as reflexões sobre a noção de olhar a partir da relação entre o eu e o outro e
as conseqüências geradas a partir do momento em que ocorre a descoberta do eu no outro,
avaliaremos também a descoberta e as manifestações geradas por esta. Isto é, depois do
impacto de ser percebido no outro, deixo de ser eu e começo a existir perante o outro e o
mundo. No dizer de Sartre (2003, p.341), “a aparição do outro faz surgir na situação um
aspecto não desejado por mim, do qual não sou dono e que me escapa por princípio, posto que
é para o outro”. Então, nos perguntaremos: a partir de que momento o eu existe? Quando
descobre o outro, ou quando descobre a si mesmo? O outro é totalmente separado, isolado do
eu ou apenas começo a existir quando o outro me percebe? Embora Sartre ache que o outro
seja o meu inferno, é possível o eu constituir-se sem o outro? Por que as “máscaras” usadas
para disfarçar o reconhecimento de mim no outro? Indo mais além: por que as pessoas se
escondem cada vez mais no mundo virtual, nos sites de relacionamento? Enfim, por que o
medo de ser descoberto pelo outro aterroriza tanto assim?
1. O INFERNO SÃO OS OUTROS
No texto “O olhar” Sartre expõe as verdades ocultas no incômodo do olhar entre
eu e outro. Desnuda com isso, sem dó e piedade, todas as verdades e receios contidos na
revelação do outro quando “ele” nos percebe.
[...] temos, com efeito, consciência de um ser concreto e individualizado,
com uma consciência coletiva: são imagens que poderão servir para traduzir
depois nossa experiência, mas não corresponderão a ela nem pela metade.
Mas tampouco captamos um olhar plural. Trata-se, sobretudo, de uma
realidade impalpável, fugaz e onipresente, que realiza, frente a nós, o nosso
eu não-revelado e que colabora conosco na produção desse Eu que nos
escapa. (SARTRE, 2003, p.361)
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Ou seja, o eu é o ser revelado ao outro, captado pela consciência deste, que reflete
de muitas maneiras o eu que está diante da pluralidade do olhar do outro. Nesse instante o eu
e o outro são apenas um caleidoscópio onde tudo gira rapidamente, como se estivessem em
ondas eletromagnéticas que geram um turbilhão de emoções contraditórias. Por um segundo o
eu tem plena consciência do outro. Há neste momento um silêncio constrangedor, instigante,
desconfortável, quase insuportável, pois ambos estão paralisados um diante do outro, tentando
compreender qual a dimensão dessa descoberta. Ora, como diz Sartre. “[...] sou eu, pela
afirmação de minha livre espontaneidade, que faço com que haja um outro, e não
simplesmente uma remissão da consciência a si mesmo.” (2003, p.366)
Há um deslocamento do eu interior para que o outro perceba e alcance a
consciência do outro, mas uma consciência limitada, restringida ao limite que é dado pelo eu.
“[...] A consciência só pode ser limitada por minha consciência.” (SARTRE, 2003, p.366).
Quando a consciência do eu funde-se com a consciência do outro, elas estão simultaneamente
avaliando-se, reconhecendo-se em si e no outro. Esta conscientização mútua produz uma
visão indefinida, obtusa, distanciada, e esta dissociação causa sensações conflitantes tanto no
eu como no outro.
A revelação do eu diante do outro traz uma realidade assumida: é inegável a
presença do outro como uma totalidade estendida do eu, e a partir desse momento de
completude, ambos encontram-se na estranha condição de intimidades compartilhadas e estão
visceralmente ligados. Essa intimidade forçada causa um mal-estar terrível, pois o “outro”
enxerga as entranhas do “eu”. Diz Sartre “[...] Pelo olhar do outro eu vivo fixado no meio do
mundo, em perigo, como irremediável. Mas não sei qual meu ser, nem qual meu sítio no
mundo, nem qual a face que esse mundo onde sou se volta para o outro”. (SARTRE, 2003,
p.345).
Estão diante do ser não revelado de ambos sem onde se apoiar, se esconder – a
liberdade de ambos está comprometida com a presença inquietante e perturbadora e com o
perigo iminente de uma descoberta não permitida, mas invadida de tal forma que chega a ser
sufocante. “[...] E esse perigo não é um acidente, mas estrutura permanente de meu ser-paraoutro.” (SARTRE, 2003, p.344)
Podemos melhor compreender a reflexão que Sartre empreende em seu texto “O
Olhar”, acima exposto, ilustrando-a com sua peça “Entre Quatro Paredes”. Nesta, relata a
convivência forçada entre três pessoas a partir do momento em que deixam o mundo terreno,
ou seja, em que já estão mortos.
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Nesse confinamento os três personagens descobrem que o inferno imaginado na
vida terrestre não tem nada daquilo que eles estão vivenciando agora, e sim revela um
tormento sem fim onde cada um é o inferno do outro. Totalmente expostos uns diante dos
outros, essa convivência em ambiente fechado, sem janelas, sem camas, no qual estão à
disposição apenas canapés para sentar, mostra-se por meio de uma total falta de afinidade
entre eles.
Trancados em um pequeno espaço, são gritantes não só a aversão que cada
personagem tem pelo outro, como também o medo, a solidão, a angústia de saber que não tem
como sair dali. Além disso, ainda estão fadados ao sofrimento acusativo de sua própria
consciência. Segundo Sartre: “[...] castigo infernal é este convívio de pessoas que perderam
suas proteções, de seres cuja consciência aflorou brutal, de tal forma que nada pode ser
escondido”. (2005, p.21)
Nessa abordagem que Sartre faz do incômodo do olhar do eu e do outro, ele
consegue descrever todos os sentimentos vividos e experimentados, quando o eu e o outro se
descobrem. A existência de um depende do outro. A liberdade de ambos está entrelaçada. Há
um limite dado pelo eu para a liberdade do outro, pois vai existir sempre um obstáculo como
forma de barreira para o impedir de expor-se totalmente diante do outro.
Confrontando os dois textos, ou seja, “O olhar”, obra de Sartre de 1943, com sua
peça “Entre Quatro Paredes”, encenada em 1944, no final da Segunda Guerra Mundial,
entendemos que existe uma conexão entre o primeiro, que trata de maneira geral do incômodo
que causa o olhar do outro em mim, e o segundo, que retrata a convivência de três pessoas
que nunca se viram e estão condenadas para sempre a conviver entre si. É realmente possível
o conhecimento do eu através do outro? E como entender manifestações causadas a partir do
momento da descoberta do outro? Sartre toca no âmago dessa questão, remetendo às
profundezas do “eu” as dolorosas verdades e descobertas do outro perante o mundo. “[...] O
outro é, antes de tudo, a fuga permanente das coisas rumo a um termo que capto ao mesmo
tempo como objeto a certa distância de mim e que me escapa na medida em que estende à sua
volta suas próprias distâncias.” (SARTRE, 2003, p.329)
Vicente Ferreira da Silva, em seu texto “O Existencialismo de Sartre” afirma a
esse respeito: “A liberdade só encontra os limites que ela mesma põe. Só existe um obstáculo
e um limite pelo fato de ultrapassarmos o dado traçado de um determinado objeto.” (s/d,
p.118). Tanto o eu como o outro delimitam o seu espaço de liberdade, e esses limites existem
dentro de uma realidade subjetiva fornecida pela própria liberdade de ambos. Quando tomam
consciência disso, há um elo quase imperceptível que mantém a existência de ambos
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dependente de si mesmos, descobrem-se e não têm como negar esta descoberta: estão visíveis,
com total consciência da existência de um e de outro. Como diz Sartre: “[...] não é suficiente
que eu negue a mim o outro para que o outro exista, mas é preciso também que o outro me
negue a si, em simultaneidade com minha própria negação. É a facticidade do ser-para-outro.”
(SARTRE, 2003, p. 383)
Há uma negação instantânea recíproca entre o “eu” e o “outro”, mas ao mesmo
tempo, como estes não têm como se negarem a si mesmos, estão se “colidindo entre si” e a
partir desse momento não há como retroceder, pois ambos estão refletindo um no outro.
Com efeito, o reflexivo, como testemunha, é profundamente alcançado em
seu ser por sua própria reflexibilidade, e, por isso na medida que se faz
reflexivo, visa não ser refletido. Mas, reciprocamente, o refletido é
consciência (de) si como consciência refletida de tal ou qual o fenômeno
transcendente. (SARTRE, 2005, p. 381)
Para Sartre, a consciência se explode para o mundo, ela é o ser consciente do
mundo: existe e está no mundo como um ser entre outro seres, é a aparição de si rumo ao
mundo. Ela é o objeto intencional revelado, é o desprendimento do “eu”, que por alguns
segundos fica em “órbita” com se fosse um desfalecimento momentâneo, pois o “eu” avistou
definitivamente o outro. Acontece um recuo de ambos, uma negação instantânea do
irremediável encontro.
Sem dúvida, é inapreensível, já que não é produzido seja pelo outro, seja por
mim, seja por um intermediário. Sem dúvida, onde quer que dirijamos a
vista, só encontramos como objeto de nossa descrição uma pura e simples
negação da interioridade. (SARTRE, 2003, p. 382)
Nesse item, tentamos mostrar os efeitos causados na descoberta do “eu” diante do
“outro” e chegamos à conclusão de que não há mais como sair ileso depois de ser “visto” e
“percebido”. É fato consumado, irremediável. E tentamos aqui transpor os sentimentos e
conflitos experimentados diante de tal descoberta, mostrando que é impossível negar esta
realidade vivida, da qual não se pode fugir ou escapar, ela está diante de ambos como um
objeto disforme, mas que aos poucos toma forma e mostra sua dura e crua face, qual seja, a de
conhecer a si mesmo, diante do outro e de conhecer também a do outro.
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2. AS INTENÇÕES OMITIDAS SOB A MÁSCARA DA MÁ-FÉ
Nesse item abordaremos o problema da má-fé, à luz de uma compreensão das
intenções não reveladas diante do impacto da descoberta do “eu” diante do “outro”, ou seja,
das duplas faces usadas por ambos para mascarar a dolorosa verdade de se expor diante do
outro sem ter como se esconder. E durante esta avaliação de reconhecimento do “eu” e do
“outro”, ambos estão se auto-avaliando e ao mesmo tempo tentando manipular os seus
sentimentos e suas intenções diante do objeto estranho. Há uma negação instantânea de
ambos, pois não querem que invadam sua “intimidade”, o seu “eu”, então começam a
dissimular as suas intenções diante do objeto estranho, moldam as suas intenções de acordo
com a análise que o outro faz de si. A partir desse momento ambos só vêem uma saída, que se
apresenta de forma ardilosa, sutil. A isso se chama agir de má-fé. As atitudes e condutas de
ambos são calculadas e manipuladas, pois sabem exatamente o que estão fazendo, ou seja,
cada um representa um ser que não possui uma maneira própria de agir, que não revela
exatamente o que cada um é. Assim Sartre descreve a má-fé:
Com a má-fé aparecem uma verdade, um método de pensar, um tipo de ser
dos objetos; e esse mundo de má-fé, que de pronto cerca o sujeito, tem por
característica ontológica o fato de que, nele, o ser é o que não é e não é o que
é. [...] A má-fé apreende evidências, mas está de antemão resignada a não ser
preenchida por elas, não ser persuadida e transformada em boa-fé: faz-se
humilde e modesta, não ignora – diz – que fé é decisão, e que, após cada
intuição, é preciso decidir e querer aquilo que é. (SARTRE, 2003, p. 116)
Essa conduta de má-fé é usada por ambos não somente pelo “eu” que fará uso
desse artifício, mas sim pelo “outro” também, porque está intrínseco no comportamento do
homem usar meios ou métodos para não se revelar abertamente ao objeto curioso que espia
de maneira despudorada sobre o seu “ser”. E, então, o objeto tencionado a ser revelado
também dissimula suas reais intenções e instantemente faz uso da “máscara” da má-fé. Esses
meios usados para dissimular suas intenções manipulam ou destroem sua consciência. “E, por
conseguinte, o projeto primitivo da má-fé não passa dessa auto destruição do fato da
consciência” (SARTRE, 2003, p.117), pois a acredita de tal forma naquilo que é que se torna
uma crença “verdadeira” para si. Ou seja, esta crença faz parte de si, do seu “novo jeito” de
ser, que ao mesmo tempo nega a esse seu novo “ser” e molda a sua consciência a esse
“novo” ser.
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Mas a natureza da consciência é de tal ordem que, nela, o mediato e o
imediato são um único ser. Crer é saber que se crê, e saber que se crê é já
não crer. Assim, crer é já não crer, porque nada mais é senão crer, na
unidade de uma mesma consciência não-tética de si. (SARTRE, 2003, p.
117)
Há uma permissão consciente da consciência para que esse “novo” ser se adapte a
essa “nova” consciência, ou seja, a consciência foge de si mesma e se adequa a esta nova face
do seu “ser”. “Neste sentido, a consciência é perpetuamente fuga a si, a crença se converte em
não crença, o imediato em mediação, o absoluto em relativo e o relativo em absoluto”.
(SARTRE, 2003, p. 117)
Mesmo sob esta “nova” face o “eu’ e o “outro” não conseguem manipular as suas
emoções diante do primeiro encontro, pois ela é o impacto de sua descoberta e se aflora em
cada um despertando sentimentos contraditórios e confusos, como a vergonha, o medo, o ódio
e o repúdio de ser descoberto. Há no primeiro momento uma tensão no ar, uma barreira
conflituosa de emoções que se misturam e geram uma força negadora de ambos a si mesmos.
“[...] Não temos consciência da finalidade da emoção, como também rejeitamos a emoção
com todas as nossas forças, e ela nos invade contra a nossa vontade.” (SARTRE, 2007, p. 55)
Essa tensão emocional provoca uma fuga de ambos, que não se reconhecem e fogem de si
mesmos e do outro. “[...] A tensão persistente manifesta-se pela tendência a renunciar à prova,
a evadir-se do campo ou fechar em si mesmo numa atitude passiva.” (SARTRE, 2007, p. 4142)
Essa fuga é apenas um recuo momentâneo de ambos por suas descobertas, pois
sentem-se invadidos e erguem uma barreira temporária de proteção entre si por si sentirem
diminuídos e vulneráveis diante de tal revelação. “A evasão é somente uma solução brutal,
pois é preciso romper a barreira geral e aceitar uma diminuição do eu” (SARTRE, 2007, p.
42). Mas que ao mesmo tempo ambos continuam se avaliando, e isso resulta em uma
desordem emocional de fragilidade, fraqueza e cólera por não terem como preservar os seus
espaços únicos. Invadiram de modo brutal a intimidade um do outro, tornando intolerável
essa exposição irremediável de seu “ser”.
É preciso urgentemente encontrar um meio para sair dessa invasão, pois o “eu”
sente-se inferiorizado diante do “outro” e esta tensão fica insuportável,
porque está
visivelmente sem proteção, sem recuo, suas fraquezas estão à mostra, não consegue recuar,
tenta de todas as formas se esconder, mas suas emoções o condenam, mostra realmente a sua
verdadeira face e nesse momento tem a nítida certeza que é um ser pequeno, frágil,
diminutivo diante do “outro”. “[...] Somos nós mesmos que nos colocamos em estado de total
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inferioridade, porque nesse nível muito baixo nossas exigências são menores, satisfazemo-nos
com menos dispêndio.” (SARTRE, 2007, p.44)
Nesse momento, o “eu” sente-se possesso, encolerizado e tenta mostrar-se
ameaçador, temível, tentando intimidar o “outro” a afastar-se de si, mas o que acontece na
verdade é que o “eu” está com um medo terrível do “outro” e tenta sair dessa tensão
emocional usando de subterfúgios como a raiva, a cólera, para se manter distante do “outro”,
para poder, então, criar uma válvula de escape que permita sair com superioridade diante do
“outro”.
Ao mesmo tempo, uso de meios derivados (ersätze) para vencer meu
adversário: injúrias, ameaças que “valem pelo” dito espirituoso que eu não
soube encontrar, e me torno, pela transformação brusca que me imponho,
menos exigente quanto à escolha dos meios. (SARTRE, 2007, p. 45)
É nesse processo fugitivo de si mesmo que o “eu” desenvolve várias facetas com
o uso da má-fé, pois acaba se representando o tempo todo, não permitindo que o seu “eu” seja
visto. “A condição é uma ‘representação’ para os outros e para mim, o que significa que só
posso sê-la em representação.” (SARTRE, 2003, p. 106). O “eu” já não consegue mais ser
visto sem sua “máscara”, pois sem ela, ele é um nada, um vazio, não consegue mais se
identificar consigo mesmo, está totalmente integrado a essa “nova” condição de seu ser. “E
transcendemos, o ser, não rumo a outro ser, mas rumo ao vazio, ao nada. (SARTRE,2003,
p.109-110)
E por mais que o “eu” tente se esconder de si mesmo, há momentos de lucidez de
sua consciência, de sua conduta fugitiva. Mas isso serve apenas para refazer com mais
firmeza a sua conduta de má-fé. “De fato, quando me examino, trata-se de determinar
exatamente o que sou, de modo a decidir sê-lo sem rodeios – talvez para me pôr, em seguida,
à procura de meios aptos a me modificar.” (SARTRE, 2003, p. 110).
O “eu” reconhece por si mesmo o caráter irrevogável de sua conduta, e mesmo
assim continua afirmando ser o que não é. Pois fez uma escolha livre de seus atos e isso não
tem mais como negar. O “eu” vai ser sempre o que não é. E para isso precisa evadir-se o
tempo todo de si mesmo, mesmo que em alguns momentos precise renascer dessa evasão, e
continuar escapando constantemente do julgamento do “outro”. “Ao mesmo tempo, porém,
tem necessidade desse perpétuo renascer, dessa constante evasão para viver: precisa colocarse constantemente fora de alcance para evitar o terrível julgamento da coletividade.”
(SARTRE, 2003, p. 111).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tentamos elucidar todas as questões propostas neste texto a partir da descoberta
do “eu” diante do “outro” dentro da visão sartriana. E o que observamos é que, por mais que
o ”eu” tente evitar o “outro”, “ele” vai estar sempre diante dele, inevitavelmente “ele” estará
ali. Porque a partir do momento em que o “eu” descobre o “outro” não há mais como fugir,
precisam-se um do outro para existir, pois não há um sem o outro. Não há mais como
negarem-se, estão diante um do outro, não tem volta, e a partir desse momento estão expostos
ao mundo real e fatídico. E o “eu” se materializa diante do “outro”, ambos tornam-se reais,
suas existências começam ali, não têm como recuar. O outro é irremediavelmente o meu
inferno, pois me enxergo diante dele.
E nesse exato momento começa o conflito entre ambos, pois estão se gladiando
um com outro, não querem ser vistos e muito menos descobertos, e dentro desse mundo
conflitante buscam de todas as formas e maneiras o disfarce e a manipulação para que um não
consiga ver o outro. Então começam a criar “máscaras” dissimuladas para esconder do outro o
seu verdadeiro “eu”. Ambos conseguem manipular suas intenções, “maquiar” os sentimentos,
ludibriar suas condutas, acreditando que estão escondendo-se diante do outro e de si mesmos.
Este mundo frio e distante é o caminho mais apropriado para cada um “viver”
conforme lhe convém, “conhecer” muitos outros “eus”, trocar confidências, revelar
“verdades” que pensa serem verdadeiras. O “eu” de cada um está em constante movimento
exercendo seu papel mais “verdadeiro”: omitir-se diante do outro, não revelar, não deixar que
o outro conheça suas fraquezas, que perceba que é um “ser” frágil. Ambos estão realmente
diante do “seu” mundo “real”.
Então chegamos à conclusão: o outro existe a partir do momento que o “outro’ me
percebe e isto é inegável. Mesmo que o “eu” crie “meios” para evadir, disfarçar, não adianta,
o “outro” vai estar lá. Há uma transcendência imanente do “eu” sobre” outro” e ambos vão
estar sempre fazendo esse movimento um com outro, mas nunca conseguirão transcender
sobre si mesmos, pois acabam ali mesmo, estão visivelmente “nus” diante um do outro. Não
há escolha, estão condenados a serem livres para tornarem-se livres.
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REFERÊNCIAS
SARTRE, J. P. O ser e o nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão.
Petrópolis: Editora Vozes, 2003
SARTRE, J. P. Entre quatro paredes. Tradução de Alcione Araújo e Pedro Hussak. Rio de Janeiro.
Civilização Brasileira, 2005
SILVA, Vicente Ferreira da. O existencialismo de Sartre. In:______. Ensaios Filosóficos. São Paulo:
Instituto Progresso Editorial (IPÊ), s/d.
SARTRE, Jean Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Jean Paul Sartre; tradução de Paulo
Neves. Porto Alegre: L&PM, 2007. (Coleção L&PM Pocket Plus)
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