Ideias Entrevista
Bolsa Família
para
todos
| O filósofo belga defende um programa
philippe Van parijs
de transferência de renda universal e sem restrições
A LUIZ ANTONIO CINTRA
P
rofessor nas universidades de Harvard e
Oxford, o economista e filósofo Philippe Van ­Parijs
também leciona, na sua
Bélgica natal, na histórica Universidade de Louvain, onde, em 1516, Thomas Morus publicou Utopia. Defensor da renda básica universal e sem condicionantes, Van
Parijs é uma referência para o debate internacional sobre o tema, aquecido com
a crise nos países desenvolvidos. Segundo ele, um programa dessa natureza serviria como piso financeiro para os
cidadãos. A renda seria dada inclusive a
quem não necessita dela (nesses casos
seria “recuperada” por meio dos impostos). Seria uma maneira, diz o acadêmico, de evitar a “armadilha da pobreza”,
que resulta dos programas em que o beneficiário é excluído ao obter uma renda extra, por mais instável que essa seja.
CartaCapital: Quais os prós e contras do
Bolsa Família em comparação a um programa sem restrições de renda básica?
Philippe Van Parijs: Existem três diferenças em relação ao Bolsa Família. A primeira é que o programa brasileiro não é estritamente individual. Depende da composição da família, do número de adultos, de
quantas crianças existem na casa. Já uma
renda básica universal é um direito de todo
indivíduo. A segunda diferença é o fato de
o Bolsa Família possuir requisitos: você é
apto de acordo com a renda da residência,
se é maior ou menor de 70 reais per capita.
A renda básica seria completamente universal, dada a todos, independentemente
da renda. Um programa desse gênero muda quando se acrescenta a expectativa de
procurar um trabalho ou de ser obrigado a
aceitar um emprego. No Brasil, a linha de
60
O repasse aos mais
ricos, diz, seria
compensado pela
cobrança de impostos.
O sistema evitaria a
armadilha da pobreza
Piso. A renda básica universal
representaria um ponto mínimo
para qualquer indivíduo
corte do Bolsa Família é relacionada aos
ganhos, mas há outras condições, como a
de exigir o acompanhamento médico no
caso de haver gestantes na família ou a
obrigação de enviar as crianças para a escola. Ao não colocar como foco o benefício
à criança, a renda básica é incondicional.
CC: Qual é melhor?
PVP: A renda básica para as crianças existe
em vários lugares no mundo, nesse sentido são programas condicionados. Que os
benefícios para as crianças estejam atrelados à escolarização acho perfeitamente
satisfatório, e é compatível com a ideia de
uma renda básica. Já a renda mínima para adultos não seria condicionada à falta
de trabalho ou a ter filhos na escola. Mas
isso não faz o Bolsa Família ser pior do
que um esquema de renda básica. Existe a desvantagem da condicionalidade e
o fato de depender da situação familiar.
E existiria outra desvantagem, também
presente em vários esquemas norte-americanos e europeus de renda mínima, que
é a de ir lá e checar se o beneficiário vive
sozinho ou com outros.
CC: Faz diferença?
PVP: Em muitos casos, quando se descobre que o sujeito divide casa com outro
adulto, retira-se o benefício ou reduz-se
o valor pago. Isso é ruim porque é invasivo, além de ser preciso checar. Também
por ir contra o que os cidadãos pensam
sobre o que significa viver acompanhado. Viver acompanhado é uma coisa boa,
reduz a solidão e favorece as economias
de escala. Os seres humanos, ao dividir
www.cartacapital.com.br
••CCIdeiasEntrevista729.indd 60
19/12/12 16:15
s
uma casa, podem usar menos recursos
naturais. Na verdade, quanto mais individual o esquema, melhor para a comunidade. Mas uma coisa interessante no
caso do Bolsa Família é existir um teste
de qualificação peculiar apenas no momento de entrada no programa. Um recenseador vai e checa, o que em geral é
difícil de ser feito de forma precisa, para
saber se a família está acima ou abaixo
dos 70 reais per capita. Mas nos meses
seguintes, ou mesmo em dois anos, não
há nenhum tipo de verificação real para
saber se alguém conseguiu uma renda
PVP: Acredito que seja muito fácil responder porque a quantia paga segue
muito modesta. É verdade que alguns podem adiar a procura de um emprego por
conseguirem alimentar um filho imediatamente, em vez de abandoná-lo para obter um emprego a duas horas de distância
de ônibus. Às vezes permite a eles aguardarem um pouco e não levarem uma vida
tão dura, mas é uma quantia tão modesta
que todo beneficiário procurará aumentá-la com um rendimento extra. A boa
coisa da incondicionalidade de facto do
Bolsa Família é não existir essa punição.
ciedade simplesmente por gostar dela.
Precisamos de propostas realistas em
relação ao futuro, uma visão de futuro
à luz dos nossos valores, e é aí que entra a filosofia política. Além disso, são
necessários políticos, que tornem essas
propostas viáveis. E ainda ativistas, militantes que lutem por elas.
R eg i s F i l h o
CC: A crise tem provocado regressão social
na Europa?
PVP: Vemos a desigualdade crescer por
causa da redução da renda dos mais pobres. Há cada vez mais gente que ganha
cada vez menos na base, e cada
vez ganhando mais e mais no topo. Há um problema realmente
sério na Zona do Euro. Temos
um sistema muito instável e doentio por termos uma moeda comum. Quando um país torna-se
menos competitivo, ele não pode
desvalorizar a moeda. E assim a
crise não é mitigada. A Grécia e a
Espanha perdem competitividade, mas não podem desvalorizar
a moeda. Cresce o desemprego,
mas é preciso pagar benefícios a
essas pessoas. Mas como o welfare system é de base nacional,
isso aumenta o déficit público.
E o aumento do déficit leva as
agências de rating a ficar desconfiadas, o que eleva os juros
dos títulos públicos etc.
extra, o que levaria a família a estar acima
do valor de corte e à perda do benefício.
Isso significa que, se não existe a verificação, o programa opera na prática como
um esquema de renda básica. E também
funciona como um piso no qual se pode
apoiar para em seguida ir além dele.
CC: Como o senhor responde à crítica
de que o Bolsa Família desencoraja a
­pro­curar trabalho?
CC: O senhor mencionou em sua palestra
que nunca a filosofia política foi tão importante como hoje. Por quê?
PVP: Se você deseja reformas para tornar a nossa sociedade mais justa, são
necessários três elementos. Um é ter
a visão de que o chamado pensamento
utópico é preciso. Mas um pensamento utópico não é a mesma coisa que um
wishiful thinking, que significaria imaginar uma determinada forma de so-
CC: Não há escapatória?
PVP: O grande problema é o Welfare State estar organizado em
um nível menor que o da união
monetária e do mercado único. É
uma receita para forçar os países
a usar o seu Welfare State para
reconquistar a competitividade,
uma espiral que precisa ser interrompida. Nesse ponto volta
a discussão sobre a renda básica. Precisamos de um sistema
completo de Welfare State no âmbito da
União Europeia. O modo de organizá-lo será criar um piso de renda comum,
modesto, a ser financiado pela UE. É paradoxal. Você tem razão ao sugerir que
há um sério risco de desmontarmos o
Welfare State, mas a resposta pode vir
justamente de algo completamente sem
precedentes na história mundial, pois
nunca houve um sistema redistributivo
que cruzasse as fronteiras dos países.
•
cartacapital | 26 de dezembro de 2012
••CCIdeiasEntrevista729.indd 61
61
19/12/12 16:16
Download

Bolsa Família para todos