ENGATINHANDO PARA UM FILOSOFAR COM CRIANÇAS Aline Schmidt1 Profª. Elisete Medianeira Tomazetti2 Aproximar a Filosofia da criança, segundo Matthew Lipman, seria a melhor forma para auxiliá-la a pensar com maior habilidade, aprender a questionar e refletir e assim, tornar-se um adulto autônomo e emancipado. Para isso, Lipman procura aproximar metodologias didático-reflexivas da sala de aula e passa a escrever no fim dos anos 60 do século XX obras literárias que abordam temas filosóficos. Estas obras começam a ser trabalhadas por professores, capacitados e orientados por materiais didáticos, com crianças em grupos de discussão ou comunidades investigativas. Sua precursora proposta de trabalho é chamada de Programa de Filosofia para Crianças. A partir de 1985, tal proposta chega ao Brasil, por meio do trabalho de Catherine Young Silva, que junto a colaboradores funda o Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças (CBFC), a fim de divulgar o programa de Filosofia para Crianças e facilitar a formação de professores. No Brasil, de uma forma geral, a presença da Filosofia em escolas que atendem crianças dos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental vem ganhando força. Em Santa Maria, constata-se esta situação e, por isso, propusemos uma pesquisa sobre os limites e as possibilidades ressaltadas por professores ao implantar uma proposta de Filosofia com crianças, utilizando diferentes modelos de reflexão e metodologias em atividades com crianças em escolas da rede pública e privada do município. Estamos investigando, inicialmente, quais as escolas que oferecem a disciplina de Filosofia no Ensino Fundamental, procurando conhecer suas propostas e metodologias de ação. Em seguida, serão realizadas entrevistas com alguns professores responsáveis e observação das respectivas aulas. Em particular, nos questionamos sobre a formação desses professores que atuam com a Filosofia no Ensino Fundamental. Se de um lado o curso de Filosofia está formando futuros professores para atuarem com jovens no Ensino Médio, de outro, a Pedagogia não oferece suficiente inserção na tradição filosófica aos futuros professores que atenderão à infância. A pergunta, então, que surge é: quem será o profissional que atuará nesta área? De outra forma, compreendemos que o trabalho de reflexão e de pensar bem em sala de aula, proposto por Lipman, não se encontra atrelado à idéia do desenvolvimento de conteúdos filosóficos, mas a uma prática pedagógica que procure a aprendizagem crítica e criativa, para a autonomia do educando. Assim, compreendemos que ao estudar individualmente cada escola e as diferentes propostas de Filosofia com crianças construídas pelos professores, estaremos nos deparando com relevantes possibilidades e detectando as limitações de cada uma. Antes disso, porém, nossa pesquisa deve compreender as diferentes propostas de Filosofia com crianças, centrando-se primeiramente em uma investigação de cunho bibliográfico, a partir da qual destacaremos neste trabalho alguns resultados. Palavras chaves: Filosofia; Crianças; Educação para o Pensar. 1 Autora. Acadêmica do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]. 2 Orientadora. Professora do Departamento de Metodologia do Ensino da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected] CONSIDERAÇÕES INICIAIS O objeto de investigação dessa pesquisa tem sua origem em minha participação no grupo de pesquisa “Filosofia, Cultura Juvenil e Ensino Médio” (FILJEM/UFSM) que estuda, entre outros fatores, a dificuldade de implementar a Filosofia como disciplina pedagógica no Ensino Médio, devido às dificuldades que esses alunos apresentariam em “pensar”, pois não são preparados ao longo do processo de escolarização. O ensino de Filosofia estava presente nos currículos das escolas brasileiras até a ditadura militar. Assim que este regime foi derrubado, as propostas de Filosofia para jovens e crianças foram novamente entrando nos currículos escolares de maneira optativa. Atualmente, na Universidade Federal de Santa Maria, situada no município de Santa Maria, temos a disciplina fazendo parte dos processos de seleção para o ingresso seja pelo vestibular ou pelo PEIES (Programa Experimental de Ingresso ao Ensino Superior). Conseqüentemente a isso e a nova legislação nacional para a Educação Básica (Parecer CNE/CEB n° 38/2006), as escolas estão sendo obrigadas a implantar a Filosofia no currículo do Ensino Médio. Os professores, por sua vez, precisam encontrar meios de trabalhar uma disciplina que ainda causa polêmica sobre a possibilidade de ser ensinada. As dificuldades esbarram ainda na falta de leitura, de criticidade e problematização na educação dos jovens. Por isso, alguns especialistas apontam que a solução seria trabalhar a Filosofia desde a infância. Chegamos assim, ao Programa de Filosofia para Crianças de Matthew Lipman, que será brevemente apresentado neste trabalho. Salientamos também, que muitas críticas surgiram a Lipman devido a algumas limitações do programa Filosofia para Crianças. Uma destas refere-se à visão instrumental que este apresentava na formação dos professores, considerados reprodutores e não produtores dos saberes. Por outro lado, o programa teve grande destaque no Brasil nos anos 80 e 90, na promessa de uma formação integral do educando, promovendo autonomia e emancipação. Frente a isto tudo, faz-se necessário perguntar: de que forma, por quem e em que escolas se está trabalhando a filosofia nos anos iniciais e quais os limites e as possibilidades percebidas pelos professores que com ela trabalham? Dessa forma, este estudo pretende mais a frente fazer uma análise dos limites e possibilidades da inserção de Filosofia nas propostas educacionais, principalmente nas séries iniciais do Ensino Fundamental de escolas da rede pública e privada de Santa Maria. Para isso, iniciou-se com a pesquisa bibliográfica a respeito do tema “Filosofia para/com crianças” baseada inicialmente no programa de Matthew Lipman, que aqui apresentará seus resultados. LIPMAN E O PROGRAMA Matthew Lipman foi o precursor do trabalho com Filosofia voltada para crianças. É, por isso, nosso principal referencial teórico neste trabalho. Lipman nasceu em Nova Jersey, nos Estados Unidos, em 1923. Já o Programa de Filosofia para Crianças nasceu no fim da década de 1960. As dificuldades por Lipman encontradas ao lecionar a disciplina de Lógica na faculdade para alunos que teriam “seus hábitos lingüísticos e psicológicos já tão firmemente estabelecidos que qualquer tipo de prática ou instrução no raciocínio chegava tarde demais” (LIPMAN in KOHAN, 1998, p.21) o levaram a construir o programa a fim de que fossem desenvolvidos o “pensar” desde a criança. Segundo Silveira, além desta motivação de ordem “pedagógico-cognitiva”, em que Lipman apresentava-se preocupado com “as deficiências de raciocínio e de aprendizagem verificadas em crianças e jovens escolares”, outra de natureza “político-social” estava atrelada ao seu programa, “sua apreensão quanto ao comportamento rebelde da juventude, sobretudo a partir da revolução estudantil do final da década de 1960” (SILVEIRA, 2001, p.14). Para que a filosofia se tornasse acessível às crianças e ao mesmo tempo motivadora e instigante, a idéia de Lipman então, foi apresentá-la na forma literária, através de romances e novelas, utilizando-se muitas vezes de diálogos apropriados à faixa etária e que proporcionassem posterior conversação. Tais interações eram acompanhadas, por sua vez, por um professor que era treinado nas instituições do Programa de Filosofia para Crianças e orientado por um manual que acompanhava as novelas. Esse grupo de discussão era chamado por Lipman de Comunidade Investigativa, baseada em referenciais de C. Peirce, para quem a investigação científica parte de uma dúvida e da ausência de respostas de antemão que geram um questionamento e a investigação (KOHAN, 1998, p. 102), mas também e principalmente nas idéias de J. Dewey de educação, destacando-se o papel da pesquisa e da prática durante o ensino. A primeira novela de Lipman, A descoberta de Ari dos Teles (1969), propõe trabalhos com a lógica para crianças de onze a treze anos. A seguir, surgem as personagens Luisa, Satie e Marcos que propõem respectivamente os temas ética, estética e filosofia política para jovens de treze a dezoito anos. Para as crianças de oito a dez anos, a linguagem é proposta pela personagem Pimpa. Dos seis aos oito anos, a filosofia da natureza aparece com Issao e Guga. Para a “idade dos porquês”, cinco e seis anos, a importância de formular boas perguntas surge com a personagem Elfi. Ann Sharp, grande colaboradora de Lipman no programa, escreve mais tarde para crianças de três a cinco anos, “Hospital de Bonecos” (SANTIAGO in KOHAN, 1998, p.30-31). Em 1974, Lipman e Sharp fundam o IAPC – Institute for the Advancement of Philosophy for Children ou Instituto para o Desenvolvimento de Filosofia para Crianças, com o objetivo de organizar a difusão e implementação do Programa de Filosofia para Crianças, não apenas nos Estados Unidos, mas internacionalmente. Assim, nos anos 80, o programa Filosofia para Crianças chega ao Brasil através de Catherine Young Silva (1937-1993), norte-americana naturalizada brasileira e graduada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e pela PUC-SP, que realiza seus estudos de mestrado com Lipman. Junto a um grupo de professores, ela começou uma empresa de difusão e prática do diálogo filosófico com crianças, inspirado pelos materiais e métodos criados por Lipman, entre eles suas novelas a serem trabalhadas com as crianças. A fim de, principalmente, divulgar o programa de Filosofia para Crianças e facilitar a formação de professores, Silva e seus colaboradores fundaram em 1985, o Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças (CBFC) (SILVEIRA, 2001, p.23). Este centro foi responsável pelo destaque do programa no Brasil, pois segundo Kohan e Wuensch: Chama a atenção que em nenhum país do mundo tantas crianças estejam praticando a filosofia – pelo menos a filosofia segundo Lipman – como no Brasil. (...) Deve haver algum significado, também, no fato de o Brasil ser o país com maior número de centros de filosofia para crianças no mundo. (In KOHAN, 1998, p.10). Contudo, esse destaque ainda prevalece na rede privada do ensino, pois segundo os autores supracitados “apenas 30% das escolas que trabalham com filosofia para crianças pertencem à rede pública” (In KOHAN, 1998, p.10). Este não era o objetivo da proposta de Lipman, que desejava ampliar a capacidade de reflexão principalmente nas periferias dos grandes centros. O programa Filosofia para Crianças deve ser visto como uma forma de acesso democrático “ao universo do pensamento e ao desenvolvimento do senso crítico”, não ignorando que a presença da filosofia nas séries iniciais da escola pública “rompe com a elitização econômica do acesso a este saber” (WUENSCH in KOHAN, 1998, p.78). No entanto, essa visão esbarra na falta de recursos financeiros das escolas públicas para a compra de material para alunos e professores, além da remuneração dos monitores e os cursos de formação dos professores. A formação de professores era uma das principais limitações do programa, pois de certa forma, Lipman compreendia o professor como um reprodutor de conhecimento, necessitado de instrumentalização para trabalhar com a perspectiva de Filosofia para Crianças, recebendo materiais prontos e treinamento. Tal ponto é ressaltado pela precária formação inicial, seja nos cursos de Filosofia – que prepara o licenciado para trabalhar com jovens – seja na Pedagogia – que não oferece suficiente inserção na tradição filosófica aos futuros professores que atenderão à infância. Apesar disso, compreendemos o professor como um produtor de conhecimentos, capaz de construir sua própria proposta, a partir de estudos e avaliações das possibilidades e limites do programa de Lipman. A FILOSOFIA E AS CRIANÇAS O programa Filosofia para Crianças proposto por Matthew Lipman consistia principalmente em auxiliar as crianças a “pensar bem”, refletia ele assim: “Era possível ajudar as crianças a pensar com maior habilidade? Eu não tinha dúvidas que as crianças pensavam tão naturalmente como falavam e respiravam. Mas como conseguir que pensassem bem?” (LIPMAN in KOHAN, 1998, p.22). Segundo Lipman, a experiência cotidiana das crianças e a filosofia são aliadas, pois ambas começam com o “assombro”. Assim, Se a filosofia começa com o assombro, também se pode dizer que surge como um diálogo reflexivo que enriquece e traz uma maior compreensão das vivências. Mas as transições precisam ser mediadas e talvez chegue o dia em que a literatura ajude as crianças a encurtar a distância existente entre o assombro e a reflexão, entre a reflexão e o diálogo e entre o diálogo e a experiência. O impacto desse tipo de literatura nas crianças de hoje pode não ser observado imediatamente. Mas o impacto nos adultos de amanhã poderia ser tão sério que nos leve a perguntar por que privamos, até hoje, as crianças da filosofia. (LIPMAN in KOHAN, 1998, p. 27). Dessa forma, a filosofia segundo o programa de Lipman é vista como a reflexão sobre o mundo de forma crítica e criativa, não importando a terminologia usada ou o grau de profundidade da discussão (LIPMAN, 1990). Nas palavras de Sharp, a filosofia: [...] ocupa-se não só de como as coisas são, mas também de como deveriam ser. Quando observamos o mundo, percebemos muita injustiça, muita falta de liberdade, muito ódio em vez de amor, e nós gostaríamos de conceber e criar um mundo mais justo, mais belo, mais verdadeiro. Para isso é necessário sabedoria e bom julgamento, precisa-se saber pensar e saber pensar bem, saber quais são aquelas opções e também cultivar a imaginação para talvez propor outras opções; precisa-se também ser crítico, ser capaz de olhar as instituições da sociedade e perguntar se elas cumprem aquilo que deveriam fazer. (...) Como pessoas, não nascemos dessa maneira, mas podemos ser educados desta forma. (In KOHAN, 1998, p. 18). Portanto, a influência de Vygotsky (1896-1934) no programa Filosofia para Crianças, que aparece na última frase de Sharp, compreendendo a criança, por sua vez, como ser social, ou seja, que aprende em interação com os outros. A idéia piagetiana, é portanto, deixada de lado, a “prontidão cognitiva da criança, portanto, não é algo que deva ser aguardado mas, antes, estimulado” (SILVEIRA, 2001, p.51). Contudo, para Lipman (KOHAN, 1998, p.171-172), a ferramenta mais importante que a filosofia pode pôr ao alcance das crianças é conseguir que elas questionem e busquem a investigação. Lipman ressalta ainda a idéia de Dewey de “aula ideal” que deveria resultar em pensamento, este reflexão com base na experiência. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em particular, nos causa grande preocupação a questão da formação dos professores que atuam com a Filosofia no Ensino Fundamental pois, se de um lado o curso de Filosofia está preparando para trabalhar no Ensino Médio e de outro, a Pedagogia não oferece suficiente inserção na tradição filosófica aos futuros professores que atenderão à infância, quem será o profissional que trabalhará com esse campo? De outra forma, compreendemos que o trabalho de reflexão e de pensar bem em sala de aula, proposto por Lipman, não deveria encontrar-se atrelado à idéia da Filosofia, mas a qualquer prática pedagógica que procure a aprendizagem crítica e criativa, para a autonomia do educando. Para concluir, após esta apresentação de resultados bibliográficos, gostaríamos de ressaltar nossa proposta de pesquisa, pois como vimos, a proposta de Lipman apesar de bastante fechada, abre portas para novas propostas, pois prova que a reflexão e o perguntar filosóficos em determinado grau de intensidade são possível com crianças. Assim, compreendemos que ao estudar individualmente cada escola e as diferentes propostas de filosofia com crianças construídas pelos professores, estaremos nos deparando com relevantes possibilidades dentro das propostas e claro, verificando as limitações de cada uma. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CASANOVA, Bernadeti Gressler. Filosofia com crianças PNE. Monografia de Especialização: UFSM, Santa Maria, 2001. KOHAN, Walter Omar. Filosofia para crianças: a tentativa pioneira de Matthew Lipman. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. LIPMAN, Matthew. A filosofia na sala de aula. São Paulo: Nova Alexandria, 2001. LIPMAN, Matthew. A filosofia vai à escola. 2.ed. São Paulo: Summus, 1990. MOUSQUER, Elenir de Fátima Cazzarotto. Filosofia das imagens na escola: uma alternativa para filosofar com crianças. Dissertação de Mestrado: PPGE/UFSM, Santa Maria, 2004. SILVEIRA, Renê José Trentin. A filosofia vai à escola?: contribuição para a crítica do programa de Filosofia para Crianças de Matthew Lipman. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.