Subsídios históricos para designers acerca do patrimônio cultural material e imaterial Subsídios históricos para designers patrimônio cultural material e imaterial. acerca do Historical subsidies to designers about the tangible and intangible cultural heritage. FARIA, Alessandro; Msc. Escola de Belas Artes ::: Universidade Federal da Bahia ::: EBA / UFBA [email protected] GALLO, Haroldo; Dr. Instituto de Artes ::: Universidade de Campinas ::: IA / UNICAMP [email protected] Resumo Este artigo aborda aspectos da cultura popular e do artesanato sob a perspectiva do patrimônio cultural. Aborda ainda questões históricas e conceituais sobre patrimônio cultural material e imaterial e propõe contribuições no sentido de disseminar as informações entre designers e artesãos. Palavras Chave: Patrimônio Cultural, Cultura Popular, Artesanto e Design Abstract This article discusses aspects of popular culture and craft in the perspective of the cultural heritage of Brazil. Discusses historical and conceptual issues on tangible and intangible cultural heritage and contributions proposed in order to disseminate information between the designer and craftsmen. Keywords: Cultural Heritage, Popular Culture, Handicrafts and Design. Subsídios históricos para designers acerca do patrimônio cultural material e imaterial Contextualização Histórica – parte I Há mais de um século que profundas transformações assolan as estruturas na Terra. O século XIX foi marcado por profundas transformações de ordem tecnológica, econômica, social, e política. O surgimento da Revolução Industrial, que iniciara na segunda metade do século XVIII, ofertava neste momento, muitas possibilidades para a construção de um “novo mundo”, e estava em pleno florescimento nesta época (OSINSKI, 2002, p.44). Nesse contexto, muitos críticos a esse processo de desenvolvimento foram surgindo. No sentido contrário, um dos mais expressivos foi John Ruskin1 na Inglaterra. Quase contemporâneo da Rainha Vitória, John Ruskin (1819-1900), o principal teórico da preservação na Inglaterra do século XIX, foi um dos maiores e mais perspicazes críticos das profundas transformações por que passava o país. Excêntrico, reacionário, intransigente inimigo da industrialização, Ruskin foi de fato um dos maiores expoentes da crítica romântica, de cunho socialista, à sociedade capitalista industrial e suas evidêntes mazelas – miséria generalizada, injustiça social, inchaço urbano, destruição da natureza, entre outras. Sua contribuição foi essencial para as reformas sociais, urbanas e de proteção ao meio ambiente, pouco a pouco conquistadas. Não menos importante do que a dimesão do pensamento politico de John Ruskin é sua reflexão sobre preservação (PINHEIRO, Maria Lúcia Bressan, 2008). Ruskin foi um crítico de arte que pôde acompanhar de perto a degradação física e moral provocada pela Revolução Industrial e posicionava-se radicalmente contra a divisão do trabalho e a mecanização do ser humano. Julgava que os ganhos adivindos com a fabricação em série não justificava a perda do espírito humano, pois a verdadeira riqueza estava na vida digna e inteira. Para ele as ordens moral e social estão diretamente ligadas à arte. Sua crítica de arte se torna crítica da sociedade que a produz. Ruskin acreditava na construção das coisas como elemento duradouro; Quase uma condição sagrada, abolindo a idéia de reforma e manipulação da matéria. Toda ação humana ganha em honra, em graça, em toda a verdadeira magnificência, por sua consuideração pelas coisas que virão. É a visão distante, a paciência serena e confiante, que, acima de todos os atributos, diantancia o homem do homem, e aproxima de seu criador; não existe ação ou arte, cuja grandeza não possa ser medida por esse critério. Assim , quando construirmos, lembremos-nos de que construímos John Ruskin (Londres, 8 de fevereiro de 1819 – 20 de janeiro de 1900) - O pensamento de Ruskin vincula-se ao Romantismo, movimento literário e ideológico (final do século XVIII até meado do século XIX), e que dá ênfase a sensibilidade subjetiva e emotiva em contraponto com a razão. Esteticamente, Ruskin apresenta-se como reação ao Classicismo e com admiração ao medievalismo. Na sua definição de restauração dos patrimônios históricos, considerava a real destruição daquilo que não se pode salvar, nem a mínima parte, uma destruição acompanhada de uma falsa descrição. A partir de 1851, foi um defensor inicial e patrono da Irmandade Pré-Rafaelita, inspirando a criação do movimento Arts & Crafts (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Ruskin). 1 Subsídios históricos para designers acerca do patrimônio cultural material e imaterial para sempre. Que nnao seja para o deleite presente, nem para o uso presente apenas; que seja uma obra tal que nossos descendentes nos sejam gratos pore la; que nós pensemos, enquanto colocamos pedra sobre pedra, que virá um tempo em que aquelas pedras serão consideradas sagradas porque nossas mãos as tocaram, e que os homens dirão ao contemplar a obra e a material trabalhada. (RUSKIN, 2008, p. 67). Nesse sentido, Ruskin pode ser considerado um dos pioneiros do pensamento da conservação, influenciando pensadores e projetistas a partir de suas idéias e conceitos, ampliando consideravemente seus argumentos durante todo o século XX e ecoando a discussão acerca de restaurar manipulando o objeto ou conservar através da mínima interferência? Parecendo contrário aos conceitos de Ruskin, entretanto muito próximo de seus pensamentos, havia Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc2. Le-Duc foi um dos primeiros estudiosos que, ao pensar no conceito moderno de restauração, tentou estabelecer princípios de intervenção em monumentos históricos e uma metodologia para esse trabalho. Viveu na França durante um período onde a atividade da restauração estava se firmando como ciência, em detrimento aos acontecimentos históricos do momento. Além da Revolução Indusrtrial, havia também a influência do Iluminismo e da Revolução Francesa. Segundo Santos (2005), Viollet-le-Duc afirmava categoricamente o perigo tanto de se reproduzir exatamente o original como de substituí-lo por formas posteriores, e deixa claro que nada deve ser encarado como um dogma, mas como algo relativo e específico de cada obra. Le-Duc ao utilizar-se da constituição do “tipo” e do “modelo ideal” não conseguia atuar com imparcialidade e sem dogmatismo, pois intervinha com base em um modelo que ele considerava perfeito e adequado, e propunha soluções que não respeitavam as marcas, a história e as peculiaridades dos monumentos, entretanto, satisfaziam apenas a pureza de estilo que ele próprio determinara. Durante o século XIX, houve simpatizantes das doutrinas aparentemente antagônicas de Ruskin e Lê-Duc, espalhados por quase toda a Europa, entretanto foram seguidos especialmente por estudiosos modernos das questões da conservação e do restauro. Dentre Eugène Emannuel Viollet-le-Duc (Paris, França, 27 de Janeiro de 1814 - Lausanne, Suíça, 17 de Setembro de 1879) foi um arquitecto ligado à arquitectura revivalista do século XIX e um dos primeiros teóricos da preservação do património histórico. Pode ser considerado um precursor teórico da arquitectura moderna. Le-Duc estudou arquitectura na Escola de Belas Artes de Paris, mas interrompeu os estudos devido ao carácter arquitectónico fechado em relação ao futuro que verificava no ensino. O seu trabalho foi desenvolvido sobretudo na área de restauro. Como teórico estava interessado na procura de um estilo próprio para o sec. XIX, apostando assim nas novas técnicas de construção, e na importância da máquina (isto estava associado aos novos desenvolvimentos como a electricidade, o vapor, a velocidade, o ferro e outros novos materiais e técnicas). O seu pensamento foi de certa forma visionário embora restrito às possibilidades de então. Previu 2 Subsídios históricos para designers acerca do patrimônio cultural material e imaterial eles: Alois Riegl, Camillo Boito e Cesare Brandi. Ambos aprofundaram as questões acerca dos estudos de Lê-Duc e Ruskin e continuaram a transformar as idéias sobre a temática da conservação e restauro por boa parte do século XX, tranformando e amadurecendo a matéria diante da nossa sociedade. Contextualização Histórica – parte II No decorrer do século XX e já mais amadurecidos pelo tempo e pelas reais necessidades das pessoas daquele contexto histórico, os grupos envolvidos na temática da conservação e do restauro se organizaram com mais eficiência e sistematização, gerando conceitos e políticas para progredir adiante. Uma das ações mais representativas desse período foram as criações das Cartas Patrimoniais; Dentre elas as Cartas de Atenas em 1931 e de Veneza em 1964. Conforme informa Rowney (2004), de uma forma geral, as cartas patrimoniais atendem a dois objetivos: apresentar uma destilação da filosofia da conservação do momento presente e definir diretrizes para a prática da conservação. Por esta razão, como poderá ser constatado na seção seguinte, há uma clara influência da obra dos autores analisados na aula passada no conteúdo das cartas. Juridicamente as cartas não têm força de lei. Todavia, são fontes fundamentais a serem utilizadas pelos Estados na concepção das normas legais e execução das estratégias de proteção e conservação do patrimônio. Mesmo sendo a proteção institucional do patrimônio uma realidade desde o século XIX, a primeira carta patrimonial de abrangência internacional só é elaborada no final da Primeira Guerra Mundial, em virtude da necessidade de restaurar o patrimônio destruído. É quando, em 1931, os países europeus organizaram uma conferência sobre o tema e elaboraram o primeiro documento internacional que trata de políticas de preservação do patrimônio, a Carta de Atenas. A partir desse momento, a preocupação com o patrimônio extrapola as fronteiras nacionais e passa a ser discutida no âmbito internacional. De acordo com Gallo (2010, p.02), a Carta de Veneza foi a origem das elaborações conceituais e metodológicas para a preservação, conservação e restauro estendendo sua validade até hoje. a construção de arranha-céus: grandes estruturas de ferro revestidas a pedra (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Viollet-leDuc). Subsídios históricos para designers acerca do patrimônio cultural material e imaterial Se essa validade nos parece, por um lado, incontestável, por outro, parece carecer de revisão para a transformação dos instrumentos e das técnicas concomitante com o aprimoramento da instância conservativa, com o alargamento do cenceito de bem cultural através de contextos geográficos sempre mais vastos e de um novo desenvolvimento da vida cotidiana. Opatrimônio não mais se limita ao puro objeto de contemplação ou ao documento histórico. Se estende ao contexto urbano e todas as expressões dos saberes e fazeres humanos. Nesse sentido, novos conceitos surgem e as definições se alteram no decorrer do tempo e a amplitude do assunto se apresenta cada vez mais complexo, necessitando de uma sensibilidade especial na avaliação das questões que cercam essa temática. Dentre tantas manifestações no entorno da questão do patrimônio cultural3, a imaterialidade certamente é uma dessas. No Brasil os interesses sobre o assunto datam do início da década de vinte do século passado, conforme mostra o documento a seguir: Os bens materiais e imateriais, tangíveis e intangíveis que compreendem o patrimônio cultural são considerados "manifestações ou testemunho significativo da cultura humana", reputados como imprescindíveis para a conformação da identidade cultural de um povo(Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882006000100012&script=sci_arttext) 3 Subsídios históricos para designers acerca do patrimônio cultural material e imaterial Gráfico 01 – Linha do tempo sobre as questões do patrimônio cultural. A trajetória da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil Fonte: IPHAN 2010. A visão dos modernistas de 22 fez eclodir uma das manifestações mais intensas do século XX: a cultura e a arte popular! De lá para cá, muita coisa mudou e ainda há uma lacuna gigante entre as definições sobre o que é cultura popular e como se manifesta; E mais do que isso, como reconhecê-la. É compreensível que o desenvolvimento da humanidade seja marcado por conflitos entre os diferentes modos de organização da vida social, porém, na prática, os estudos apontam muito mais para uma questão de discriminação das elites dominantes em relação ao restante da população. Discriminação essa, que passa desde os costumes de falar, de vestir, de se alimentar, e sobretudo, na produção de seus artefatos, pois determinadas classes dominantes separam com muita clareza essa produção de outros tipos de manifestações. Essas separações podem se configurar principalmente na arte. Subsídios históricos para designers acerca do patrimônio cultural material e imaterial Definições e manifestações sobre cultura popular Segundo Hauser (1988, p. 239), a origem da arte popular surge nos grandes centros industriais, sendo impulsionada pela revolução industrial e sobretudo pela possibilidade da reprodução em larga escala. A ascensão de uma classe trabalhadora com algum capital armazenado começa a fomentar a produção de bens culturais de baixo valor. O autor descreve também que, até o século XV, não havia nas artes visuais, por exemplo, traços do dito “aspecto popular” até o surgimento da xilogravura, arte de baixo custo de produção e boas possibilidades de reprodução, limitando a representação em função do suporte (madeira), mas instituindo uma identidade muito forte e que, mesmo diante de tantas transformações que aconteceram nas artes visuais, até hoje pode ser reconhecida com bastante facilidade. Por meio da xilogravura, foi possível reproduzir e comercializar as artes pictóricas para uma determinada classe que tinha muito poucas possibilidades de aquisição de objetos decorativos até então. Hauser (1988, p. 247) declara ainda que o passo decisivo e final na criação da Arte Popular se deu com a combinação da pequena burguesia com a classe trabalhadora, combinado com o que ele chama de “tipo social que se move entre essas classes e lhes está alienado”. Já Clarival Valladares (1918 - 1983), crítico e professor de História da Arte, tem indicado como arte popular apenas aquela constituída de objetos dotados de qualidade artística e motivados por emoções próprias da comunidade, sendo destinados ao consumo limitado de seu meio de origem. Por definição, basicamente seriam os produtos que foram desenvolvidos sem a intenção da contemplação prévia. Essa arte a que se refere Valladares é aquela próxima dos objetos da produção utilitária do povo pobre que atua em setores como: mobiliário, vestuário, adornos litúrgicos, brinquedos, armas, ferragens, ferramentas de trabalho, dentre tantas outras (PONTUAL, 1969, p. 17 e 18). Entretanto, Roberto Albergaria, antropólogo baiano e professor da Universidade Federal da Bahia, defende a idéia de Cultura Popular como aquela construída durante os anos a partir do olhar da elite acadêmica de cima para baixo (ONG-CIPÓ – Publicação da Cultura da Bahia – Design Popular – 2002). Normalmente significa algo populista e predominantemente pobre, porém diferente da idéia de folclore4, 4 O termo “folclore - folklore” aparece pela primeira vez cunhado por Ambrose Merton - pseudônimo de William John Thoms - em uma carta endereçada à revista The Athenaeum, de Londres, onde os vocábulos da língua inglesa “folk” e “lore” (povo e saber) foram unidos, passando a ter o significado de saber tradicional de um povo. Esse termo passou a ser utilizado então para se referir às tradições, costumes e superstições das classes populares (BARDI 1994, p.18). Subsídios históricos para designers acerca do patrimônio cultural material e imaterial que usualmente toma as manifestações populares e depois cria uma imagem de beleza e elimina todas as situações de realidade daquela manifestação. Albergaria ainda sustenta que o termo cultura popular deveria ser mais apropriado se fosse trocado pelo termo cultura ordinária, no sentido de usual, habitual. Ou seja, aquilo que as pessoas fazem na rua. De acordo com Bardi (1994, p.22), os objetos deixam de ser populares quando se esgotam as condições sociais que os condicionam. Nesse sentido, podemos entender que quase todas as expressões artesanais deixaram de ser produtos com identidades populares ao longo do tempo, sendo somente mais uma expressão material e cada vez mais associado e percebido como folclore da cultura popular. Já Barroso (1996, p. 34) descreve sua visão sobre arte popular como sendo toda atividade produtiva de objetos realizada manualmente, com a utilização de meios tradicionais ou rudimentares, mas com habilidade criativa e engenhosa, separando-a de outras modalidades de trabalhos manuais, sendo duas dessas divisões muito importantes: 1. Em uma fronteira mais próxima com o artesanato, uma atividade manual é em geral uma ocupação secundária, utilizando-se o tempo disponível ou ocioso com o objetivo principal de complementar a renda familiar, enquanto o artesanato é a atividade principal de quem o produz. 2. Em outra fronteira mais distante estão os trabalhos manuais caracterizados como de preparação de matérias-primas direcionadas à indústria de transformação para a produção de peças semi-acabadas e à confecção de produtos de baixa complexidade produtiva e baixo valor cultural (e.g. Garimpo). O estudo de Barroso (2006) é uma importante ferramenta para identificar algumas características assumidas pelas atividades artesanais, arte popular e trabalhos manuais. No entanto, paradoxalmente, o autor descreve que essas definições só interessam verdadeiramente aos grupos de pessoas que estão fora do processo de produção. Vale ressaltar que mesmo diante de algumas certezas que podemos ter no processo de entendimento das questões de arte popular, ainda são muito incipientes as respostas concretas apontadas nessa direção. Entretanto, ele ainda acredita na necessidade de melhores definições entre artesanato e trabalhos manuais. Não, evidentemente, pelo simples fato em defini-las, mas de conhecer sua história e suas particularidades para poder proporcionar uma possibilidade efetiva de Subsídios históricos para designers acerca do patrimônio cultural material e imaterial interferência mais precisa nesse ambiente; Dentre elas a preservacão e a catalogacão dessas manifestações. ...é necessário resgatar, nas origens e raízes culturais, os elementos que possam assumir a condição de novos arquétipos orientadores de uma estética própria. No caso Latino, esta tarefa assume enormes proporções em virtude da extraordinária diversidade cultural existente em nível regional, obrigando a identificar de modo apropriado cada produto à sua região de origem, para evitar a simplificação reducionista baseada em estereótipos sem valor, resultantes, em sua maioria, de uma visão preconceituosa. Esse preconceito permeou por muitos anos a base da discussão envolvendo o artesanato e as áreas correlatas no Brasil e até hoje está longe de ser dissolvido. Isso se deu, talvez, pelo reflexo do modelo de colonização a qual fomos submetidos. Entretanto, houve personagens que sempre estiveram na vanguarda dessa discussão e mesmo sabendo que muitas vezes era “voto vencido” ainda proferia ideias e provocações que simbolizaram toda uma época. Dentre os grandes, um dos nomes foi Aloísio Magalhães. Aloísio que foi designer, artista plástico e secretário geral do Ministério da Educação e da Cultura (MEC), além de diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), sempre esteve ligado às questões próprias da cultura brasileira e era um exemplo clássico desses provocadores, como mostra o texto abaixo: Diria de início, que, na realidade, dentro dos padrões ortodoxos, não existe artesanato no Brasil. O que existe é uma disponibilidade imensa para o fazer. Aproximamo-nos, agora, de um possível raciocínio ligado ao problema artesanal. Parece-me que, no caso brasileiro, toda atividade com características de artesanato, ou seja, pequena intermediação entre a mão que faz e o objeto que se usa, são formas iniciais de uma atividade que quer evoluir na direção de maior complexidade tecnológica para resultados mais efetivos. Talvez seja preciso dizer que, não existindo tradições profundas, nem cristalização no trato da matéria-prima – que constituiriam características do artesanato clássico, o que devemos fazer no Brasil é observar essa disposição, essa presença de um índice muito alto de invenção, na busca de peculiaridades a serem estimuladas, criando-se, assim, condições para que o processo se desenvolva em harmonia. É possível, até caracterizar-se essa alta inventividade como uma atitude que se poderia chamar de pré-design: o homem brasileiro estaria intuitivamente mais próximo de conceitos de design do que propriamente artesanais, no sentido clássico. (Discurso na Fiesp/Ciesp, 1981). Diante do exposto e conforme os estudos apontaram, existe também um outro modelo não identificado por Barroso (2006) e demais autores. São aqueles que possuem um caráter de objeto utilitário e artísticos e se configuram para auxiliar no trabalho diário do indivíduo, porém carregam consigo valores artísticos de contemplação estética do objeto, que podem ser encontradas no dia a dia de quase toda a cultura popular dos centros industriais. Estes objetos são elaborados a partir de restos e sobras dos produtos industrializados e são separados de Subsídios históricos para designers acerca do patrimônio cultural material e imaterial acordo com a qualidade que ainda possuem para ser reutilizados numa “outra vida” que receberão após a nova intervenção do artesão ou designer, conforme mostram os modelos a seguir: Figura 01 – Bancos de madeira reaproveitada. Objetos da Cultura Popular Baiana Fonte: Ed. ONG Cipó: Cultura da Bahia – Design Popular – 2002. Figura 02 – Lamparina/candeeiro de folhas de flandres. Objetos da Cultura Popular Baiana – Fonte: Ed. ONG Cipó: Cultura da Bahia – Design Popular – 2002. Subsídios históricos para designers acerca do patrimônio cultural material e imaterial Figura 03 - Caneca produzida pelo reaproveitamento de embalagem de folha de flandres. Fonte: Arquivo Instituto Lina Bo Bardi. Figura 04 – Display para venda de Taboca e embalagem de sorvete caseiro. Objetos da Cultura Popular Baiana Fonte: Ed. ONG Cipó: Cultura da Bahia – Design Popular – 2002. Subsídios históricos para designers acerca do patrimônio cultural material e imaterial Patrimônio Cultural – Uma breve reflexão! Se o patrimônio cultural é o legado que os outros povos e civilizações deixaram em nossas terras e que contribuem para perpetuar a memória dos caminhos percorridos, então, salvaguardar, difundir e conservar os bens aos quais se atribuiu valor patrimonial são procedimentos necessários para preservar as histórias e as identidades que o patrimônio expressa e impedir sua destruição ou descaracterizacão. Esse entendimento transformou-se gradualmente ao longo do século XX, sobretudo pelo reconhecimento de que a sociedade é composta por grupos sociais com interesses diferenciados, pertencimentos múltiplos, interesses conflitantes e contraditórios e não se pode falar em identidade como um dado puro, mas sim em identidades fluídas e em constante transformação. Dessa constatação compreendeu-se uma série de transformações no conceito de patrimônio, que permite hoje identificá-lo como o conjunto de bens móveis e imóveis, materiais e imateriais, culturais e naturais, de propriedade de particulares, de instituições e organismos públicos ou semi-públicos, que tenham um valor excepcional do ponto de vista da história, da arte, da ciência e da cultura que os tornem dignos de conservação. Apesar da ampliacão do conceito, a conservação da patrimônio cultural no âmbito do Brasil ainda não contempla a diversidade cultural e a multiplicidade de identidades que conformam a sociedade brasileira, sobretudo a produção dos grupos populares. Talvez por isso mesmo, a grande dificuldade em inserir a populacão na defesa dos signos do passado. Contudo ainda há alternativas viáveis para o estudo da conservação da patrimônio, sobretudo os de origem popular, sendo apenas necessário entender e aceitar as mudanças da sociedade e suas ambições ao longo do tempo, conforme relata Gallo (2010, p. 09): A transformacão é algo intrínsico à própria vida. Mesmo no âmbito mais restrito do artefato e do contexto urbano, para conservar é preciso intervir e muitas vezes transformar, pois o monumento nunca é uma coisa estagnada em si mesma. Ele é coisa que se transforma no curso do tempo… Subsídios históricos para designers acerca do patrimônio cultural material e imaterial Considerações Finais Diante do exposto o que me parece mais coerente é que a educação é sem sombra de dúvidas um dos instrumentos mais valiosos para o reconhecimento dos bens que configuram o patrimônio cultural. Essa mesma educação converte-se no meio capaz de capacitar os sujeitos para participarem das discussões e decisões sobre a questão patrimonial, num cenário marcado por interesses extremamente conflitantes. Aprender a lidar com os conflitos e com as diferenças no sentido mais amplo da palavra, me parece o primeiro grande passo no sentido de termos políticas públicas e comprometimento da população sobre as questões relevantes que queremos perpetuar para as futuras gerações. Preservar, acima de qualquer coisa, me parece conhecer, descobrir, desvendar o objeto! 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