VENTO DE MUDANÇA por Mário Soares 1. Três anos e oito meses depois da invasão e ocupação anglo-americana do Iraque, a derrota do Partido Republicano, nas eleições do passado dia 7, representa o fim da política unilateralista, agressiva e tendencialmente "imperial" do Presidente Bush e da sua infeliz Administração. Uma política que tentou marginalizar, se não destruir, as Nações Unidas, ignorar os Direitos Humanos, tanto no plano externo como interno, não recuando perante o emprego da tortura e do assassinato, em Guantânamo, em Abu Grahib e em outros lugares. Uma política que recusou subscrever os acordos de Quioto, em oposição aos seus Aliados ocidentais, que criou um colossal déficit externo, com um despesismo militar e securitário nunca visto, permitiu que grandes empresas multinacionais, sediadas na América ou americanas, se envolvessem em escandalosos negócios em prejuízo dos seus accionistas e que a corrupção alastrasse, dentro e fora do território americano. Uma política, enfim, que declarando "guerra" ao "terrorismo global", o alimentou, criando condições objectivas para que se desenvolvesse e que, proclamando ter como finalidade a "democratização" do Médio Oriente semeou o caos, acirrando por toda a parte os conflitos, a violência e a arbitrariedade, desestabilizou os países muçulmanos, mesmo os aliados da América, como a Arábia Saudita, o Paquistão, os Emiratos, o Egipto ou os países do Magreb. Pior do que tudo: incrementou, indirectamente, "viveiros de terroristas", a começar pelo Iraque e pelo Afeganistão, que vão alastrando a todo o Mundo onde haja muçulmanos, para além de ter desacreditado a América, como hiperpotência hegemónica e, consequentemente, o Ocidente e os seus valores, ditos universais. É certo que a União Europeia tem enormes responsabilidades nesse processo, pela subserviência em relação à política americana manifestada por alguns dos seus dirigentes - como Tony Blair, Aznar, Durão Barroso, para só referir o quarteto da "Cimeira dos Açores" - mas também pelo silêncio cúmplice e pela omissão de políticas alternativas de tantos outros. 2. O balanço crítico, objectivo, do que foram os resultados desastrosos e as consequências - que permanecem - das políticas da Administração Bush, vai levar tempo a fazer e a ser interiorizado pela opinião pública americana e mundial. Verdadeiramente, é agora que tudo vai começar. E, no entanto, o tempo urge. O Iraque é decisivo mas só é uma parte do problema. As mudanças irão sentir-se nos próximos meses quando os novos eleitos (maioritários) da Câmara dos Representantes e do Senado e os novos Governadores tomarem posse e começarem a falar e a agir. Mas os partidos estão já a ajustar-se à grande viragem ditada pelo eleitorado... No dia seguinte às eleições, Bush reagiu com aparente fair play. Aceitou a derrota mas procura agora sobreviver a ela com um taticismo que se manifestou logo, ao convidar para almoçar, na Casa Branca, os futuros presidentes da Câmara dos Representantes e do Senado, ambos democratas, sobretudo Nancy Pelosi, assumida como de Esquerda, sem adjectivos moderadores... Bush mostrou, assim, que compreendeu que os tempos vão mudar necessariamente. Reconheceu os erros colossais cometidos, é fácil, para quem não tem vergonha. Mas muito mais difícil será corrigir o rumo até agora seguido e definir com rigor as alternativas possíveis. Os vencedores não terão uma tarefa fácil. A comissão criada por Bush, presidida por James Baker (republicano moderado, amigo de Bush Pai, mas crítico da política do Filho) e pelo democrata Lee Hamilton, para definir uma nova política para o Iraque, representa uma tentativa inteligente para criar um caminho bipartidário que assegure uma saída dos americanos do Iraque, o menos desprestigiante possível. Para tanto, Bush não hesitou em sacrificar já o seu amigo Donald Rumsfeld, tentando fazer dele o "bode expiatório" da desgraça. Mas uma operação desse quilate tem elevados custos. Não pode ser um simples lavar de mãos. Como se a responsabilidade não coubesse sempre - e totalmente - ao Presidente e Comandante em Chefe... 2 3. A saída do Iraque não é simples, uma vez aberta a caixa de Pandora, que se revelou o Iraque, à beira da secessão e da guerra civil. O sindroma do Vietnam está cada vez mais presente no panorama político americano. Mas como evitá-lo, sem corrigir a errada estratégia de "guerra ao terrorismo", sem renunciar a alianças comprometedoras com teocracias despóticas e obsoletas, sem afastar os parceiros errados, como os xiitas, no caso do Iraque e, sobretudo, sem ser capaz de conter a política agressiva, intolerável, suicida, de Israel contra a Palestina, que continua na origem da maior parte dos conflitos daquela região? 4. Como pode Bush compreender, ele próprio, um fanático religioso, que é preciso evitar a todo o custo, o anunciado "choque de civilizações", que se caia em "guerras religiosas", as piores de todas as guerras, que dividirão irremediavelmente o Ocidente, substituindo-as pelo diálogo ecuménico entre as diferentes religiões, em favor da paz e pela Aliança das Civilizações? Como não compreender, finalmente, que num mundo globalizado, sem regras éticas e valores humanistas que o orientem, tudo está interligado e que o esquecimento dos objectivos do Milénio, definidos e votados pelos Chefes de Estado de todo o Planeta e, depois, escandalosamente ignorados, está intimamente relacionado com a crispação social, a revolta contra o crescimento intolerável da pobreza, a exclusão social, os tráficos ilegais de armas, de drogas, de pessoas e de órgãos humanos, a cultura da violência, sistemática e intencional, nos media do mundo inteiro, o consumismo ostensivo a par da miséria, da ignorância e da doença para o maior número, em sociedades dualistas e de "mal estar", mesmo dos países mais desenvolvidos? 5. É o sistema que está em causa - a globalização neo-liberal - e que tem de ser corrigido e reorientado. Não se pode fugir a este dilema. Para tanto, será necessário, um outro "new deal" e um outro Roosevelt. É por isso que os próximos dois anos são decisivos - e criativos, espero - até às próximas eleições presidenciais. Muito passará por aí. Bem como pela União Europeia, visto que 2007 será um ano de muitas mudanças e até pela América Latina que se encontra em acelerada transformação. E, sobretudo, pela força da pressão pacífica crescente da cidadania mundial. O sinal de viragem foi dado pela vitória do Partido Democrático. O debate que se irá aprofundar até à eleição do novo Presidente, em 2008, interessa ao mundo inteiro e deverá ser seguido com a maior atenção. Muito vai ter de mudar, desde já, no Médio Oriente. A União Europeia, se quiser exconjurar as ameaças de decadência, terá de vencer o impasse em que se encontra, regressar aos grandes valores humanistas que sempre foram os seus e avançar na construção da União Política e Social. Se o fizer, dará um contributo importante - como é indispensável - para que a América saia do atoleiro para onde a Administração Bush a empurrou. É como amigo da América que, mais uma vez, o escrevo. Lisboa, 16 de Novembro de 2006