JAM - JURÍDICA Ano XV, n.1, janeiro, 2010 tido de que, para tanto, ter-se-ia que subverter a estrutura do Poder Judiciário em nosso país, haja vista que, sabidamente, as ações processadas em primeira instância invariavelmente se submetem ao Juízo singular, vale dizer, a decisões monocráticas. É que, tal como apropriadamente sustenta o Doutor em Direito Deoclécio Galimberti, “no Brasil, infelizmente, é alimentada uma cultura de cinismo e engodo. Ninguém atenta para o que muitos políticos diziam e faziam antes de se elegerem e o que realmente fazem depois que se instalaram nas cadeias do poder”8. Inequivocamente, conquanto se pudesse invocar, outrossim, multifacetárias questões acerca do projeto de lei cognominado “Ficha Limpa”, pretendemos nos circunscrever, por ora, ao exame do projeto tão só sob a perspectiva da participação do povo no cenário político brasileiro. É fato incontroverso que maciça parcela do povo brasileiro se limita a se apresentar às urnas, obrigatoriamente, de tempos em tempos, emitindo votos que, não raras vezes, apresentam-se como objeto das mais variadas formas de negociação possíveis, as quais trazem consigo, em regra, a satisfação de interesses individuais e imediatos dos eleitores. Nesse viés, convém registrar, desde já, que se propaga, aos quatro cantos, que o projeto revelaria a irresignação do povo brasileiro em relação à corrupção que se encontra sedimentada na vida pública, e que permanece instalada, essencialmente, em razão da representação popular por meio de políticos desonestos. Diz-se que o projeto de lei “Ficha Limpa” apresentar-se-ia como importante marco para o processo de conscientização de nosso povo, porquanto teria provocado o desejo de mudança por meio de uma ação coletiva. Todavia, ousamos afirmar, de maneira paradoxal, que, conquanto seja louvável a iniciativa popular, o texto do referido projeto de lei, em última análise, intenta encobrir, quiçá estimular, a apatia política em que se encontra submerso o povo brasileiro. Antes, porém, de explicitarmos as razões pelas quais obtivemos tal conclusão, forçosas se apresentam ligeiras digressões. Com efeito, o pensamento do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855), no sentido de que “a vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para frente”, a despeito de ter atravessado séculos, permanece contemporâneo. SEÇÃO ESPECIAL 2010 – ELEITORAL Aliás, conquanto seja cediço que a troca de votos por benefícios de qualquer natureza se traduza em prática expressamente vedada pela nossa legislação, sabe-se, outrossim, que tal conduta, lamentavelmente, sobretudo nos períodos de campanhas eleitorais, avulta-se na realidade social. Roberto Damatta, inclusive, bem assevera que, em um país como o nosso, “onde a lei sempre significa o ‘não pode!’ formal, capaz de tirar todos os prazeres e desmanchar todas as iniciativas”, acabamos por “descobrir e aperfeiçoar um modo, um jeito, um estilo de navegação social que passa sempre nas entrelinhas desses peremptórios e autoritários ‘não pode!’”9. Operamos, portanto, “um sistema legal que quase sempre nada tem a ver com a realidade social”10. Esclareça-se, nesse particular, que aqui não estamos a sustentar, indubitavelmente, que a prática de negociação de votos deveria ser permitida. 8 9 10 GALIMBERTI, Deoclécio. Idéias não são metais que se fundem. Revista Jus Vigilantibus. Disponível em: <http:// jusvi.com/artigos/30751>. Acesso em 21/8/2009. DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1984, p. 98. DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1984, p. 99. 115