CURSO DE FORMAÇÃO EM FASCIATERAPIA MÉTODO DANIS BOIS MONOGRAFIA TERAPIA DO SER UM ESTUDO INTRODUTÓRIO AO TOQUE DAS FÁSCIAS CORPORAIS Facilitadores: Armand Angibaud e Florence Lecoq CLARICE NUNES Rio de Janeiro, março de 2008 Escutar o corpo... na sua demanda íntima, no seu saber escondido... 2 TERAPIA DO SER: UM ESTUDO INTRODUTÓRIO AO TOQUE DAS FÁSCIAS CORPORAIS ÍNDICE 1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 4 2. MÉTODO DANIS BOIS: ASPECTOS TEÓRICOS.............................................. 6 2.1 Sobre o criador do método ..........................................................................6 2.2 Concepção de corpo .....................................................................................7 2.3 Uma terapia que toca o Ser..........................................................................8 2.4 Fáscia: “farmácia de Deus” ........................................................................9 2.5 O gesto terapêutico em fasciaterapia ........................................................12 2.5.1 A introspecção sensorial..............................................................14 2.5.2 A terapia gestual ..........................................................................15 2.5.3 O diálogo verbal............................................................................16 3. MÉTODO DANIS BOIS EM PRÁTICA: REFLEXÕES SOBRE UM ESTUDO DE CASO.......................................................................................................................16 4. CONCLUSÃO ..........................................................................................................21 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................22 ANEXO 1 - RELATO DE APLICAÇÃO TERAPÊUTICA ...................................23 FIGURA 1 Cadeias Fasciais Posteriores ....................................................................10 FIGURA 2 Cadeias Fasciais Anteriores .....................................................................10 FIGURA 3 Fáscia Axial Profunda ..............................................................................11 FIGURA 4 Esquema do Diálogo Tônico Psíquico .....................................................13 QUADRO 1 Leis do Biorrítimo Sensorial ..................................................................13 QUADRO 2 Biomecânica Clássica .............................................................................14 QUADRO 3 Biomecânica Sensorial ...........................................................................14 3 1. INTRODUÇÃO Como afirmo no capítulo de livro que escrevi, Dança, terapia e educação: caminhos cruzados 1 meu contato com o trabalho corporal ocorreu tardiamente, já que estive condicionada a uma rotina contínua de tarefas intelectuais praticamente toda a minha vida. Tornei-me professora e pesquisadora e à medida que mergulhava em minha área de investigação, a pesquisa histórica, dedicando horas de estudo em bibliotecas e arquivos públicos e privados, aumentava a imobilidade do meu corpo. Cultivava dores nas costas, nuca, dorso, quadris e olhos. Meu corpo disciplinado à árdua rotina dos arquivos criou um padrão de movimentos demasiado pequenos, lentos. Direcionava preferencialmente minha energia para a cabeça, garganta, parte superior do corpo e mãos. Recuperar o contato com as outras partes desabitadas de mim só foi possível por meio da dança. A vivência do movimento harmônico no espaço Coringa/Rio Abierto e as práticas de dança e de conscientização do movimento na Escola Angel Vianna, na década de 1990, abriram caminho para um intenso processo de reeducação de mim mesma. Fui lançada, a partir de então, num rico espaço de cruzamento entre a dança, a terapia e a educação. Não vou aqui relatar o processo de redescoberta do meu corpo, o que fiz no capítulo de livro citado, mas afirmar que mover-me nesse espaço híbrido, me fez procurar alternativas de compreensão para as minhas vivências corporais. Foi no final da década de 1990 que entrei em contato com o trabalho de Leitura Corporal criado pela mineira Nereida Vilela e comecei a descortinar, de um modo sistemático, as recorrentes relações entre o corpo físico, os processos patológicos e os modos como lidamos com as emoções. Tornei-me massoterapeuta, ofício que considero rico de oportunidades para o trabalho terapêutico com a memória do corpo. Quanto mais pratico mais se desperta em mim o desejo de aliar à mão mecânica, a mão sensível, capaz de facilitar àquele que freqüenta as seções de massoterapia a consciência de si mesmo, o relaxamento das tensões desnecessárias, a possibilidade de colocar em movimento o que por algum motivo estagnou. Sinto gratidão por tudo que me ensinaram terapeutas das mais diversas abordagens com os quais convivi por certo tempo. Essa troca plural me trouxe benefícios, mas também promoveu o crescimento de insatisfações. Percebia que, apesar da seriedade e da dedicação de alguns deles, seu trabalho de formação apresentava e ainda apresenta sérios problemas de concepção e lacunas com relação aos conhecimentos que me pareciam urgentes e necessários a uma proposta que pretende direcionar-se para a promoção da autoconsciência. Em algumas abordagens, o paciente2 é tratado de forma paternalista e colocado num grau de passividade incompatível com a proposta original que enfatiza a autonomia e amadurecimento emocional. Alguns usam o método que conceberam como instrumento de poder que é partilhado exclusivamente com os “eleitos”, ficando o terapeuta estudante a reboque de um processo que não consegue saber com clareza como ocorre, apesar de alguns dos resultados serem sugestivos. De um lado, há excesso de informações, e de outro, ausência delas. Nem sempre todos os conhecimentos são partilhados, o que cria um grau de subordinação e dependência entre o terapeuta criador do método e terapeutas aplicadores que apenas cumprem 1 Capítulo do livro organizado por Julieta Calazans, Jacyan Castilho e Simone Gomes. Dança e Educação em movimento, São Paulo: Cortez Editora, 2003, pp. 31-46. 2 Uso o termo paciente para designar o sujeito que não apenas se submete à ação terapêutica, mas também se implica nela. 4 programações feitas, sem terem acesso ao processo de criação que as elabora nem terem a liberdade de criarem suas propostas dentro da concepção que os “formaram”. Essa atitude cultiva relações antidemocráticas no processo de formação, ou seja, as relações pessoais beneficiam alguns em detrimento de outros. Como conseqüência, o conhecimento denominado “alternativo” tem grandes limites de expandir-se. Alguns métodos estão apenas baseados na terapia manual, outros exclusivamente no movimento corporal, outros ainda na manifestação verbal. Poucos enfatizam, no processo formativo do terapeuta, como se torna possível a reeducação de hábitos cristalizados. Quando fui apresentada aos princípios do método de Danis Bois percebi uma luz brilhando ao final do túnel. Afinal, tinha em minha perspectiva uma proposta de formação atenta aos aspectos somato-psico-pedagógicos. Encontrava uma concepção apresentada de forma sistemática, consistente, reunindo o que em outros métodos está separado. Fiquei absolutamente encantada com a palestra de Armand Angibaud que assisti ao final do ano de 2006. Minhas inquietações encontraram uma oportunidade de serem acolhidas. Ao término dos módulos da formação como fasciaterapeuta resolvi apresentar uma monografia na qual pudesse articular a experiência da terapia manual com os conhecimentos básicos que me foram apresentados com extremo cuidado e competência pelos facilitadores do Curso de Formação. Procurei criar um trabalho viável no tempo disponível e que articulasse de um modo próprio algumas importantes informações que recebi com a experiência do toque dirigido ao tratamento das fáscias corporais. Optei por realizar um estudo de caso, com um voluntário que aceitou minha proposta e se submeteu a seis seções de terapia manual. Tive o objetivo de construir uma referência – a partir de minha própria experiência como facilitadora – das possibilidades do Método Danis Bois. O texto que se segue apresenta, em sua primeira parte, os principais aspectos teóricos do método mencionado e para escrevê-lo me apoiei fundamentalmente no material fornecido no curso, em artigos de praticantes e pesquisadores do método Danis Bois e no seu livro Le moi renouvelé. Introduction à la somato-psychopédagogie (2006). Na segunda parte, há uma reflexão sobre as seções realizadas, nas quais é possível apreciar a evolução do trabalho, os pontos de abertura e impasse, as questões que surgiram, a implicação do facilitador e do paciente numa relação de reciprocidade atuante. Foi minha primeira tentativa de integrar anatomia e tratamento das fáscias corporais. As conclusões são provisórias e apontam perspectivas vislumbradas a partir dessa vivência. Em anexo apresento uma descrição sucinta das seções. 5 2. MÉTODO DANIS BOIS: ASPECTOS TEÓRICOS 2.1 Sobre o criador do método Os historiadores dizem que para se conhecer a história é preciso conhecer o historiador que a escreveu. O mesmo pode ser dito sobre a prática terapêutica eleita. Para conhecê-la é preciso saber quem a criou. Danis Bois (1949) nasceu em Loir et Cher na França. Ex-jogador de futebol, fisioterapeuta, cinesioterapeuta e osteopata, começou a criar seu método após uma longa seção de introspecção que praticava. Como declara o próprio Danis Bois: Vivi, então, uma experiência extraordinária: no silêncio, durante um trabalho de interiorização que realizava na época, em torno de 10 horas por dia, descobri coisas extraordinárias. No início, não tive outra intenção a não ser a de aperfeiçoar meu gesto terapêutico. E eis que, numa noite às nove horas, toda a matéria do meu corpo fora estimulada por um movimento, um movimento de extrema lentidão! Não conseguia chegar a diferenciar o movimento determinado em mim do movimento indeterminado do que se nomeia o universo. Sentia-me presente em mim mesmo e percebia uma luz azul. Sou, antes de mais nada, de natureza pragmática e, entretanto, no dia seguinte, minhas mãos desencadeavam este mesmo movimento em meus pacientes (...)3. Esse fascinante momento relatado por Dani Bois foi a vivência do que denominou Movimento Interno, evento que o animou a continuar suas pesquisas distanciando-se da Osteopatia que até então praticava. Aí está o ponto de partida da abordagem que ficaria conhecida como somato-psico-pedagogia, que inclui a terapia manual (Fasciaterapia); a terapia gestual (esquemas associativos, a accordage gestual da ginástica sensorial) e a pedagogia que se apóia, entre outros elementos, na diretividade informativa e na reciprocidade atuante. A somato-psico-pedagogia procura dar resposta às seguintes questões: Estamos dispostos a reencontrar a parte sensível de nosso ser? A partir desse reencontro estamos dispostos a modificar nossa concepção de mundo sobre a qual fundamos nossas escolhas de vida? Estamos prontos a mudar a relação que temos na nossa vida a partir de um retorno ao nosso próprio corpo? Essas perguntas abrem o livro de Danis Bois de introdução à somatopsicopedagogia já mencionado (2006). As investigações do criador desse método e daqueles que já formou estão oferecendo a base para a produção de conhecimento na Universidade Moderna de Lisboa e nos cursos de formação espalhados pela Europa, Estados Unidos e Brasil. Em seguida, vou me deter nos aspectos teóricos da Fasciaterapia. 3 Danis Bois. A paixão pelo movimento. A via do movimento. Matéria obtida por Manikoth Vongmany com fotos de Jean-Marc Lefèvre, s.n.t., p. 1. 6 2.2 Concepção de corpo O corpo é uma mediação para a globalidade de cada um. Toda a terapia manual parte de uma concepção de corpo. Esta concepção, para Danis Bois, está ancorada em diversas contribuições. Da osteopatia reteve a concepção de que em nosso corpo existe uma força de regulação orgânica autônoma4. Seus esforços convergiram na direção de apreender as propriedades desse movimento e seus estudos mostraram que ele não era apenas uma força de regulação orgânica, mas também uma força de regulação de esquemas psíquicos e comportamentais. O corpo orgânico se revelou, para ele, um corpo sensível no qual se podia confiar. Esta opção pelo corpo sensível levou Danis Bois a buscar na filosofia alguma reflexão que lhe ajudasse. Encontrou em Maine de Biran (1766-1824), a concepção do sentimento de existência que repousa sobre uma subjetividade vivida através de uma percepção ativa. Predecessor dos fenomenólogos5, nele estava o ponto de partida para toda a discussão que essa corrente filosófica faz recolocando o estudo do Ser sobre a percepção e a consciência do corpo. Desta aproximação com o sensível, através da leitura dos fenomenólogos, Danis Bois compreendeu que era possível e necessário religar a atenção a si mesmo e o sentimento de existência como condição necessária ao bem estar. Penetrava no domínio de uma subjetividade profunda, porque animada em uma totalidade com várias dimensões: a do próprio corpo, a da humanidade, a do universo. Como ter acesso a ela? Como ser tocado por um evento sem ser perturbado por ele? Em outras palavras: como se deixar tocar conservando uma distância preenchida pela presença de si? A qualidade de presença exigida por essa subjetividade profunda depende da qualidade de atenção que damos a nós mesmos, da qualidade de percepção das nossas sutis tonalidades internas, dos fatos de consciência dos quais, a princípio, sequer suspeitamos. De fato, existem diversas possibilidades de percepção do corpo dependendo do nível perceptivo da nossa observação. Assim, por exemplo, podemos afirmar: eu tenho um corpo ou eu vejo meu corpo. Ainda, eu habito meu corpo ou eu sou meu corpo. Essas formas de referir-se ao corpo evidenciam o quanto estamos, ou não, distanciados do nosso ser sensível. Estar próximo ao nosso ser sensível exige uma atitude introspectiva. Para a somato-psico-pedagogia não existe antagonismo entre o espírito e o corpo. Existe uma dinâmica de simultaneidade entre reação somática e reação psíquica. Quando esta unidade é rompida a pessoa desenvolve um sentimento de distância de si mesma. Qual é, então, a função da somato-psico-pedagogia? É restabelecer a unidade entre corpo e psiquismo, pensamento e sentimento, atenção e ação. Como essa unidade pode ser tocada manualmente? 4 Foram fundadores da Osteopatia os doutores Andrew T. Still (1828-1917), criador da American School of Osteopathy em 1892 e W. G. Sutherland (1873-1954), aluno de Still, que funda em 1895 a terapia craniosacral depois de descobrir a existência de movimentos fisiológicos entre os ossos do crânio. Cf. Danis Bois (2006, p. 18, notas 1 e 2). 5 Husserl (1859-1938), Heidegger (1889-1976), Merleau-Ponty (1908-1961) dentre outros. 7 2.3 Uma terapia que toca o Ser Não manipulamos uma força de vida. Nós a estimulamos por um gesto humano. Só a vida pode captar a vida! Uma seção de fasciaterapia não é apenas uma seção na qual se toca o corpo enquanto objeto mecânico e submetido às nossas mãos. Ela age sobre todos os sistemas corporais, incentivando a autocura e o aumento da vitalidade, dinamizando o movimento interno com o intuito de que o sujeito tocado vá ao encontro de si mesmo e se conecte com a sua genuína identidade. Quando tocamos o corpo de alguém numa seção de fasciaterapia o tocamos na sua totalidade. A unidade do ser, revelada no seu movimento interno, pode ser apreendida através da força motora. A relação que cada um estabelece com sua própria força motora e, portanto, com sua própria força interna, varia de indivíduo para indivíduo. Essa força se evidencia em todos os tecidos, mas especialmente na fáscia, que Still denominava de uma forma bem interessante: “farmácia de Deus”6. A fáscia é um tecido presente em todo o corpo, das estruturas mais superficiais às mais profundas. Ela se embrenha e se esgueira em torno e dentro de todas as estruturas anatômicas a fim de resguardar a globalidade e a funcionalidade corporais. O movimento da fáscia pode ser percebido pela mão do terapeuta, através de uma ritmicidade estável de dois ciclos por minuto numa cadência lenta, profunda, global. Quando trabalhamos com a fáscia mergulhamos numa atmosfera de lentidão tissular, como observa Danis Bois (2006). Viajamos nessa lentidão, tendo acesso a uma profundidade que dificilmente conseguimos imaginar se não passamos pela experiência de receber e oferecer nosso toque. Entramos em diálogo com o movimento interno, uma espécie de animação da profundidade da matéria que porta uma supra consciência e um novo modo de conhecimento. Quando saímos do estado tenso para a descontração, da hipertonia para uma tonicidade relaxada, da angústia para a paz, da imobilidade para o movimento interno, afirma Danis Bois (2006), entramos em contato com nossa potencialidade, entendida como força evolutiva que conduz cada um a sentir seu corpo, maleabilizar sua matéria, desenvolver sua percepção e enriquecer suas perspectivas. Quando a matéria corporal se renova influencia diretamente a maneira de ser de uma pessoa. E essa maneira de ser é plástica, variável, podendo se modificar a cada circunstância e momento da vida. Ao tocar o outro e seguir seu movimento tissular, estabelecemos um diálogo entre aquele que toca e o sensível do corpo tocado. Trata-se de um diálogo silencioso realizado em dois momentos: o primeiro, dinâmico, que permite acompanharmos manualmente as diferentes orientações e amplitudes do movimento interno do ser tocado. O segundo, envolve-nos numa pausa circunstanciada desse movimento percebido que é aplicada no lugar adequado, no momento adequado e com uma pressão adequada. Essa pausa é, para o criador do método, ferramenta importante da sua abordagem terapêutica. Nela se solicita do terapeuta que escute, com suas mãos, as orientações liberadas como propulsões do movimento interno da pessoa tocada, as forças de regulação orgânicas e psíquicas que foram mobilizadas. A pausa é, portanto, um momento significativo e palpável. 6 Esta expressão é citada por Danis Bois. Cf. livro citado, 2006, p. 33. 8 Quando tocamos uma pessoa na seção de fasciaterapia estamos convidando a unidade daquele ser a um diálogo do qual podem emergir estados interiores, percepções novas, nuanças de sensações e sentimentos, lembranças. Entramos em contato com o que Danis Bois (2006) denomina de os a priori inconscientes, os esquecimentos fisiológicos, os segredos não formulados, a memória corporal, o inconsciente recalcado no sentido psicanalítico e o inconsciente cognitivo. Tocamos, portanto, para mobilizar novamente a memória sensorial, para que o paciente reencontre o gosto de si, reveja suas escolhas e cicatrize suas “feridas”. Esses machucados adquiridos pela e na vida criam registros fixados nas áreas corporais imobilizadas, densas, congeladas e anestesiadas como defesa para dissimular o sofrimento ligado a qualquer tipo de trauma, físico e/ou emocional. A conversa que se estabelece no plano tissular pode descobrir o acesso de passagens inéditas no corpo que influenciam o pensamento e a ação da pessoa tocada. 2.4 Fáscia: “farmácia de Deus” A consciência se move no seio da matéria. O que está dentro está fora. Fáscia é um termo latino que significa “faixa” ou “bandagem” (Clay e Pounds, 2003). A fáscia é o tecido conjuntivo fibroso mais abundante do corpo. Está em todos os lugares como a “hera nas casas antigas”. Talvez possamos afirmar que a fáscia é a infraestrutura do corpo. Há quem a considere uma espécie de “esqueleto” de tecido mole. Muito importante é o fato de que toda a fáscia distribuída pelo corpo é contínua, podendo ser comparada a uma malha de tricô que quando tem um fio puxado em alguma parte altera outro ponto, mesmo distante desse repuxo inicial. Se imaginarmos alguém usando uma espécie de collant, podemos ter idéia do desconforto quando esse collant está apertado ou desalinhado. A fáscia possui células7 e se diferencia, isto é, se constitui como tecido conjuntivo frouxo (por exemplo, em todas as mucosas dos sistemas corporais); tecido conjuntivo denso (nas aponeuroses, ligamentos e tendões) ou cartilaginoso (seja nas extremidades dos ossos, no nariz, traquéia, laringe, etc... ou fibrocartilagem, nos discos intervertebrais, meniscos, sínfese púbica). Com toda essa capacidade de assumir muitas formas ela ganha nomes diferentes de acordo com as áreas corporais: no entorno do encéfalo e da medula espinhal ela é chamada de meninge; ao redor dos ossos, periósteo; do coração pericárdio; do abdômen, peritônio; dos pulmões, pleuras e ao cobrir todo o corpo sob a pele, envolvendo músculos e suas partes, fáscia. Podemos distinguir fáscias superficiais e profundas, como se fossem camadas corporais que vão da periferia à profundidade da matéria. Assim, teríamos a fáscia subcutânea (fáscia superficial e aponeurose superficial) que faz parte do invólucro humano; a fáscia miotensiva, que liga todos os músculos e tendões do corpo penetrando até o interior das fibras musculares (fáscia axial periférica posterior, anterior e dos 7 São células da fáscia: os fibroblastos, que secretam moléculas formadoras da substância fundamental e as fibras; os macrófagos, que “engolem” bactérias e resíduos celulares; os plasmócitos, que secretam anticorpos e participam da imunidade corporal; os mastócitos, numerosos nos vasos sangüíneos que produzem histamina e podem dilatar pequenos vasos. Cf. Apostila do Curso de Formação em Fasciaterapia, n. 1, outubro de 2006, p.15. 9 membros inferiores e superiores); a fáscia axial profunda que envolve todas as vísceras da base do Occipital até o Períneo e a Pélvis; a fáscia dura-mater, que envolve todo o sistema nervoso dentro do crânio, da coluna até o cóccix; a fáscia do periósteo, que envolve os ossos; a fáscia adventicial que envelopa as artérias. FIGURA 1 Cadeias Fasciais Posteriores Fonte: Apostila do Curso de Formação em Fasciaterapia, outubro 2006, p. 19 FIGURA 2 Cadeias Fasciais Anteriores Fonte: Apostila do Curso de Formação em Fasciaterapia, outubro 2006, p. 20 10 FIGURA 3 Fáscia Axial Profunda Fonte: Apostila do Curso de Formação em Fasciaterapia, outubro 2006, p. 20 A fáscia conforma e suporta o corpo, mantendo as partes que o constituem nos seus devidos lugares. Limita e, ao fornecer limite, contribui para aumentar a força muscular. Orienta e molda. Sem essa função os ossos quebrados não poderiam consolidar-se de novo nos seus limites pertinentes. Contém e comparte, canalizando os líquidos corporais e ajudando a impedir que infecções se disseminem pelo corpo. Estrutura sistemas ramificados, suportando capilares, vasos do sistema circulatório e linfático, os ramos do sistema nervoso. Cicatriza, isto é, forma o novo tecido conjuntivo, ajudando a reparar tendões e ligamentos. Esta última função, no entanto, pode trazer problemas quando altera a estrutura interna dos músculos com aderências e fibroses que doem e limitam o movimento. A fáscia possui, portanto, muitas características interessantes. Ela é plástica e adaptativa, permitindo a existência de uma unidade anatômica que partilha recorrentemente todas as tensões. Sua viscosidade pode mudar em função do movimento interno que produz calor tornando-a flexível e maleável. Ela é reativa a problemas psíquicos e quando isso ocorre se retrai, como defesa para que o sujeito não sofra. Ela é uma espécie de “arquivo” que guarda os registros das experiências vividas. 11 A gente diz que a fáscia é uma matéria de memória. Quando ela recebe um choque, se retrai e perde sua elasticidade e a dinâmica do movimento. Também de uma maneira passiva, ela reage na segunda experiência, guardando a primeira em memória; seria “inteligente” (Apostila do Curso de Formação em Fasciaterapia, n.1, 2006, p. 19). Na terapia manual trabalhamos o corpo e o espírito por meio de uma ação simultânea no pré-tônus e no psíco-tônus. O pré-tônus está relacionado à modulação do reflexo miotático8, durante a preparação do gesto, ou seja, antes da contração motora, justificando a observação de Hasbroucq, de que o sensorial antecede o motor (Idem, p. 25). Dessa forma, interagimos com a fonte de sensação do movimento, que independe do movimento objetivo, mas é um movimento real. Por exemplo, o sujeito tocado pode revelar que sente a perna numa flexão, quando objetivamente não existe tal movimento. No psico-tônus, sentimos a reação tônica ao nosso toque, isto é, o tônus muscular do paciente se adapta e apresenta certa intensidade de resposta. Essa intensidade, que depende da força interna mobilizada e da participação psíquica do sujeito tocado, nos revela se está crescente ou estagnada. Lemos, portanto, a extensão da resposta (é local? global? qual o seu limite máximo?). O relaxamento que se segue é a solução própria do cliente, que vai dar uma orientação nova ao seu próprio movimento interno. Quanto mais rápida a regulação tônica maior será a viagem espontânea do movimento interno. 2.5 O gesto terapêutico em fasciaterapia O fasciaterapeuta trabalha geralmente de olhos fechados, para melhor perceber os efeitos que induz no cliente pelo toque táctil cinestésico. Esse toque é acompanhado de uma participação global do seu próprio corpo. O terapeuta todo se implica nesse gesto, o que permite globalizar seu toque e ter acesso às fáscias mais profundas de quem está sendo tocado. A pressão manual é adaptada ao pedido do corpo e varia durante o tratamento que inclui, como já foi dito, tempos bem marcados: o do deslocamento lento da mão, nas diversas pegadas, para solicitar a resistência elástica da fáscia e a pausa, ou ponto de apoio (momento de silêncio cinético), que permite perceber a tensão regeneradora do tecido e a sua modificação (Courraud, 2003). A concentração exponencial da pausa torna-se uma modulação psicotônica, na qual há uma reação no processo de autocura e no psiquismo do indivíduo. 8 O reflexo miotático é um episódio complexo da fisiologia motora dos fusos neuromusculares, que recebem uma inervação sensorial e motora e cuja motricidade é administrada pelos neurônios fusimotores (neurônios gama) localizados nas extremidades do fuso. Estes neurônios tornam-se ativos quando os fusos neuromusculares estão silenciosos, isto é, contraídos. Esses fusos supervisionam a fibra muscular justamente pelo reflexo citado quando o músculo passa pelo alongamento. Se esse alongamento for demasiado o fuso dialoga com seu motoneurônio e desencadeia, por segurança, uma reação de contração que interrompe o alongamento. Isso ocorre não apenas em casos limites, mas em circuitos complexos, como o da cooperação entre músculos agonistas e antagonistas. Além da função de segurança, o fuso neuro muscular e o reflexo miotático têm papel importante no movimento lento, ou seja, ele se modula, preparando o músculo para o gesto que vai ser feito antes que ele se realize (Apostila citada, 2006, p. 25). 12 A dinâmica do deslocamento pode ser espontânea, quando está presente o movimento interno. Neste caso nós simplesmente o seguimos, isto é, deslizamos e empurramos na mesma direção. Ou a dinâmica pode ser provocada, isto é, provocamos o movimento interno quando ele não emerge. Neste caso, empurramos numa direção, observando a lentidão. O que ocorre na terapia manual é uma espécie de diálogo tônicopsíquico, no qual existe uma confrontação psicotônica e uma resolução psicotônica, de acordo com o esquema que se segue: FIGURA 4 Esquema do Diálogo tônico-psíquico O conceito principal, orientador do trabalho terapêutico manual é o Biorritmo Sensorial (BRS), variação fisiológica contínua que ocorre duas vezes por minuto, pode ser percebido e sentido profundamente e se expressa pela lentidão sensorial num gesto organizado. É uma força de auto-regulação corporal e de mescla recorrente de líquidos. Essa organização dinâmica, invisível e constante segue a lei da convergência e da divergência, segundo o esquema que se segue. Sem dúvida, o BRS, “relógio interno”, é o primeiro a ser atingido em caso de estresse nocivo. LEIS DO BIORRÍTIMO SENSORIAL Convergência Divergência Movimento de linearidade para trás Movimento de linearidade para baixo Movimento circular para a frente Rotação interna dos membros Expiração pulmonar Absorção para os líquidos Movimento de linearidade para frente Movimento de linearidade para cima Movimento circular para trás Rotação externa dos membros Inspiração pulmonar Dilatação, aspiração, distribuição para os líquidos9 QUADRO 1 Leis do Biorritmo Sensorial Fonte: O Biorritmo sensorial, s/n/t . 9 Os componentes de absorção e dilatação são importantes para fazer circular os líquidos corporais. 13 A lei da convergência e divergência anima a Biomecânica Sensorial (BS), que associa sempre um componente circular a um componente linear realizado no sentido oposto ao movimento anterior. Os movimentos lineares estão sempre presentes, mas não estão conscientizados. Ao ganhar consciência desses movimentos no nosso gesto, nós o tornamos sensorial. Ganhamos uma qualidade de presença que dá novos sentidos à nossa vida. A seguir comparamos, em esquema, a Biomecânica Clássica com a Biomecânica Sensorial: BIOMECÂNICA CLÁSSICA Movimentos Circulares Flexão e Extensão Inclinação à direita e esquerda Rotação à direita e esquerda Eixos Transversal Sagital Vertical Planos Sagital Frontal Transversal QUADRO 2 Biomecânica Clássica Fonte: Apostila do Curso de Formação em Fasciaterapia, outubro de 2006, p. 8. BIOMECÂNICA SENSORIAL Movimentos Circulares Eixos Planos Componentes Lineares Flexão Circularidade Anterior Extensão Circularidade Posterior Inclinação direita Circularidade lateral direita Inclinação esquerda Circularidade lateral esquerda Rotação direita Circularidade lateral esquerda Rotação esquerda Circularidade horizontal esquerda Transversal Sagital Posterior e verticalidade baixa Transversal Sagital Anterior e verticalidade alta Sagital Frontal Transversal esquerda Sagital Frontal Transversal direita Vertical Transversal Verticalidade alta Vertical Transversal Verticalidade baixa QUADRO 3 Biomecânica Sensorial Fonte: Apostila do Curso de Formação em Fasciaterapia, outubro de 2006, p. 9. Para conduzir de forma atenta e sensível o seu gesto, a fasciaterapia apresenta algumas ferramentas úteis ao terapeuta. Ao trazê-las nesse texto minha pretensão é tornar explícito o meu entendimento de como as ferramentas da introspecção, da terapia gestual e da somato-psíco-pedagogia colaboram para apurar a escuta atenta do outro na seção manual de fasciaterapia. 2.5.1 A introspecção sensorial Quem pratica introspecção volta-se para si mesmo, para os seus estados interiores. Está, portanto, em relação com seus pensamentos, suas emoções, seus estados fisiológicos. É uma atitude ativa e demanda concentração para que o sujeito se 14 apreenda em sua profundidade. Ela desenvolve uma consciência que se enraíza na percepção do próprio corpo. É uma ferramenta não só para o terapeuta, que ao praticá-la desenvolve uma escuta atenta de si mesmo e da corporeidade do outro, como também para o paciente. Este, conduzido pelo terapeuta, vai relatar o que experienciou apenas fechando os olhos e mantendo o silencio numa seção de aproximadamente 20 minutos, na qual segue-se um protocolo, no qual se solicita que o paciente leve sua atenção para o silencio, para a luminosidade interna, para os pensamentos que se impõem à sua consciência, etc.... É um trabalho que mobiliza a pessoa a mergulhar em seus aspectos internos dando-lhes a mesma importância que geralmente dá aos aspectos externos, só que a partir do corpo e do movimento10. Segundo o criador do método, sua busca terapêutica se deu no sentido de criar uma metodologia que ligasse o sentimento à palavra. Durante uma sessão de terapia manual, Danis Bois solicita o paciente em três níveis de introspecção. No primeiro nível, ele procura levar a atenção do paciente para as suas manifestações internas com o objetivo de que ele tenha acesso às informações que até então escapam à sua percepção. No segundo nível, ele solicita – após o tratamento – que o paciente explicite seus sentimentos e ele o faz de modo a pedir relatos cada vez mais detalhados num testemunho que os articule às percepções. No terceiro nível, também após o tratamento, ele solicita o relato dos pensamentos que espontaneamente emergiram durante a seção manual e que podem conter aspectos totalmente novos para a vida do paciente. A conversa que se estabelece, então, já um componente da somato-psíco-pedagogia, tem o propósito de que o paciente extraia da experiência vivida na seção manual uma significação clara11. Essa intervenção do terapeuta na interação com o paciente é denominada, no método, de diretividade informativa. 2.5.2 A terapia gestual Para Danis Bois, um gesto realizado pelo paciente não é suficiente para criar um reencontro consigo mesmo porque, geralmente, o movimento perdeu sua função expressiva e perceptiva em prol de uma execução gestual mecânica, eficaz, mas esvaziada de sabedoria. Para reconectar o que se fragmentou na experiência vivida, o método apresenta seqüência de movimentos realizados em posição sentada e, posteriormente, em pé com o objetivo de restaurar a coerência dos diferentes segmentos corporais na intimidade de uma globalidade gestual. O terapeuta trabalha, portanto, com os esquemas associativos e a ginástica sensorial que seguem os princípios da lei da convergência e divergência expressa no Biorritmo Sensorial (BS). A abordagem terapêutica privilegia, como salienta seu criador, a percepção ligada ao movimento, que é diferente daquela relacionada aos cinco sentidos habituais que nos conectam com as informações do universo externo. O movimento permite que nos relacionemos conosco mesmos e com nossa existência no mundo, no espaço (2006). 10 11 Cf. L´accordage introspectif, in Danis Bois, op. cit., 2006, pp. 106-110. Cf. Trois niveaux d´introspection, idem, pp. 93-95. 15 O diálogo verbal A terapia corporal, seja ela manual e/ou gestual ocorre em condições específicas de escuta e de acolhimento daquilo que o paciente diz, do que está implícito no que diz e ainda do que não diz. Geralmente ocorre uma defasagem entre o que o paciente diz e o que seu corpo solicita. Cabe ao terapeuta ouvir o paciente sem interrompê-lo. Mais ainda, exige-se uma atitude em que o terapeuta ao ouvir não pense no que vai responder, mas entre num estado de suspensão, criando um ponto de apoio ou uma pausa com o intuito de realmente receber o que está sendo dito. O terapeuta escuta percebendo os gestos, os tons, os ritmos, os silêncios. Ele é, sobretudo, sensível à qualidade de empatia que se instala entre ambos e pode pedir para que o outro fale lentamente. A preocupação é menos com o conteúdo informativo do que ouve e mais com seu aspecto performativo, ou seja, algo que produza qualquer coisa de novo na pessoa enquanto ela mesma cria essa novidade. Como lembra Danis Bois, o enunciado performativo informa ao terapeuta como aquela pessoa a quem ouve analisa as vivências da sua vida cotidiana e desenvolve uma relação com os eventos que vive (2006). MÉTODO DANIS BOIS EM PRÁTICA: REFLEXÕES SOBRE UM ESTUDO DE CASO Ser é ser percebido O caráter de contingência e singularidade de um caso terapêutico não pode ignorar o fato de que há em toda a contingência algo que ultrapassa o sujeito em busca da terapia. Não podemos esquecer que este paciente se insere em determinados grupos, vive num certo tempo e espaço, partilhando num nível mais ou menos consciente problemas que são comuns. Nenhum sentimento humano, como os antropólogos nos mostram, é inteiramente espontâneo. A alegria, a raiva, a tristeza e até o desgosto que sentimos são eventos fisiológicos, psicológicos e sócio-culturais. Vivemos numa sociedade que valoriza a aparência do corpo em detrimento da sua vida interior. Nesse sentido, podemos compreender porque alguém que busca ajuda terapêutica vê o seu corpo apenas como um objeto que lhe cause desconforto em algum sentido. O voluntário que concordou em se submeter à terapia fascial, Paulo, 59 anos, engenheiro eletrônico aposentado, mas ainda ativo no trabalho dentro de uma organização não governamental de energia alternativa, apresentou uma única queixa, estresse, que atribui aos problemas comuns da vida num grande centro urbano: as dificuldades encontradas cotidianamente no trânsito, problemas “corriqueiros” de relacionamento no trabalho, a violência que paira sempre como ameaça explícita ou implícita numa cidade transtornada por crimes de diversa ordem. Num primeiro momento, o paciente não se implica de modo responsável pelo que vive. Apresenta-se como “vítima” das circunstâncias externas, das quais sente absolutamente que não tem controle. O que aparece em primeiro plano para alguém ainda aprisionado na concepção cartesiana de corpo é que este lhe causa dor física. A solicitação ao terapeuta é, portanto, que “elimine a dor”, se possível de modo imediato. No livro já citado de Danis 16 Bois há uma passagem, e cito de memória, aonde ele narra uma atitude bastante comum aos pacientes que se dirigem a uma seção de terapia corporal. Eles comparecem como se levassem o seu próprio corpo, depositando-o sobre a maca e aguardando o trabalho do terapeuta sobre “esse objeto”. No entanto, continua ele, se esses mesmos pacientes fossem a um psicólogo levariam o seu lado “psi”. Essa fragmentação na percepção de si mesmo não é exclusiva deste paciente. Muitos de nós vivemos essa fragmentação intensamente, sofremos por isso e desconhecemos que ela é um dos fatores do nosso sofrimento. O primeiro obstáculo, portanto, que se evidencia na ajuda terapêutica, é o de uma concepção rigidamente ancorada na representação dual entre mente e corpo. O impasse está aí: como mudar essa representação? Os freqüentes episódios de inflamações nas amígdalas da garganta e, sobretudo, o crupe ou difteria, foram manifestações de importância na infância de Paulo. O crupe chama atenção porque provoca dificuldade respiratória devido à infecção, inflamação e inchaço das vias respiratórias superiores (laringe, traquéia e brônquios). É caracterizado por tosse que se assemelha ao latido do cachorro, rouquidão (laringite) e sons pulmonares agudos durante a inspiração. Também há dificuldade respiratória progressiva. Geralmente é provocado por infecção viral, mas pode também ser desencadeado pela invasão de um corpo estranho no organismo. Se a inflamação for provocada pelo vírus Haemophilus Influenza a epiglote é atingida e pode ser fatal pela parada respiratória. Costuma acometer crianças de 6 meses a 3 anos de idade. A criança não consegue descansar em virtude do aumento do esforço respiratório, o que se evidencia pela dilatação das narinas durante a inspiração e pelo uso excessivo da musculatura do peito e pescoço (retrações intercostais). Em casos graves, pode ocorrer cianose nos lábios e dedos, indicando fornecimento insuficiente de oxigênio, o que indica que a hospitalização deve ser imediata12. Os registros dessa experiência traumática ainda estão presentes na musculatura do pescoço e costas, áreas para as quais Paulo sempre chama atenção, afirmando que estão doloridas, quando chega para as seções de fasciaterapia. Paulo vê o episódio do crupe como um fato do passado distante, que nada tem a ver com o que vivencia no presente. No entanto, resquícios dessa tensão ainda aparecem hoje quando relata que se engasga com freqüência. A fáscia guarda, como um arquivo, a memória dos episódios traumáticos. Numa seção com outra “paciente”, Clara, focalizada sobre seus MMII, senti que havia um pedido insistente para trabalhar o pé direito, sobretudo a articulação do tornozelo. Ao final da seção, ela me revelou que quando foi tocada nessa região começou a sentir um desconforto, uma dor em ardor. Lembrou-se, então, de um tombo que levara num passeio em Angra dos Reis há muitos anos atrás, no qual prendera o pé direito num vão de escada, o que provocou uma queda e a torção do tornozelo. Era um episódio já esquecido e que foi revivido, no plano das sensações, na seção terapêutica. As manifestações de pressão alta em Paulo já na idade adulta constituem indicação de um trabalho específico com a pulsologia, conteúdo do próximo módulo formativo. Solicitam a atenção do terapeuta já que emocionalmente contam da intensidade de impulsos bombeados para seguir o fluxo da vida e que não encontram expressão no mundo objetivo, o que repercute na vida arterial. A supressão da expressão de si, a dificuldade com a troca nas relações humanas, também tem uma relação com a pele tensionada. A pele não só recebe os sinais que vem de fora para dentro e de dentro para fora, mas projeta as variações psico-fisiológicas das emoções que experimentamos (Imbassaí, 2003). É como se fosse nosso sistema nervoso central exposto. Se tensionamos a pele como um tambor rompemos o acesso às nossas sensações. 12 Informação retirada do site answers.yahoo.com/question/index?qid=20070620095354AApZ1PG, em 20 de março de 2008, 14:47 hs. 17 A falta de flexibilidade da pele denuncia um enrigecimento no contato com o outro como possível defesa para proteger-se da dor, da decepção, do desconforto de experiências vividas. É como se o sujeito se “trancasse em sua pele”, se dessensibilizasse “para não sofrer” e, com isso, provocasse um sentimento de distanciamento da sua existência no próprio corpo, amortizando sua sensorialidade proprioceptiva. A propriocepção, que Sherrignton considera um sexto sentido, participa do sentimento de existência, isto é, do sujeito sentir que existe pelo corpo. O tônus corporal também vai ao encontro da unidade corpo/espírito. Ele é, como adverte Courraud (2004), a testemunha das tensões psíquicas conscientes ou inconscientes encarnadas. Um sujeito fixado num tônus rígido tem grande dificuldade de conseguir uma aproximação empática com o outro. A liberação das fixações do tônus trará benefícios não apenas numa forma mais leve e prazerosa de experimentar a vida, mas também na forma de se relacionar com os demais, na atitude social (Alexander, 1991). A pequena mobilidade das articulações de Paulo mostra que não são usadas em toda sua possibilidade de extensão e amplitude. Sem o seu adequado uso o corpo funciona em bloco, perdendo a riqueza das suas próprias possibilidades e do entorno, colocando entraves ao bem estar consigo. Emerge, na introspecção de Paulo, a imagem do seu próprio corpo como uma “estátua” depositada sobre a poltrona, sinal de que ele anda descuidando do cuidado com a sua “casa”. Cuidar do corpo é, pois, como a manutenção de uma casa. É bom abrir as janelas de vez em quando, deixar o ar circular, dar uma arejada. As dobradiças da janela quando rangem, indicam que está com pouco uso. As nossas dobradiças, também, rangem com pouco ou mau uso. São as articulações, responsáveis diretas pelo bom funcionamento de nossa estrutura básica (as paredes e o teto), o esqueleto. Sabe porquê? Porque as articulações possuem sensores, receptores sensíveis que “informam” ao cérebro como está agindo e o que é preciso fazer para mover ossos, músculos e tecidos (os tais receptores proprioceptivos) (...). É preciso por óleo nessas dobradiças de vez em quando, para restituir-lhes a flexibilidade. Não, não é preciso tomar lubrificantes. Basta mover-se (VIANNA, 2002, pp. 20 e 21). Paulo afirma que “tem um corpo” e com isso evidencia uma relação de distanciamento, quase indiferença ao seu corpo objeto. Esse corpo é considerado, como afirmam Bois e Austry (s/d), como: uma máquina, utilitário, um simples executador submisso ao comando voluntário da pessoa. Nesta situação, a relação com o corpo define na realidade uma ausência de relação, pois o “proprietário” não faz em sua direção nenhum esforço perceptivo e apenas solicita para ele uma atenção de baixo nível. Nas três últimas seções começam a aparecer indícios da ressonância subjetiva que acompanha toda a informação que o corpo recebe, isto é, o paciente inicia seu processo de reunir a organicidade à subjetividade. De um lado ganha consciência da sua imobilidade corporal [estátua], da sua fragmentação [não consegue unir a cabeça ao tórax] mas, simultaneamente, suas mãos se derretem nas coxas, seus pés afundam no chão. Percebe a existência de espaços internos entre as vísceras torácicas e cria a abertura de espaços externos na sua moradia. Seu relato ganha vida e já está – diante do ponto de partida – um pouco mais enriquecido. Foram ficando mais claros os pontos de resistência nas suas representações: a concepção dual de corpo, a associação entre 18 relaxamento, sono e abandono de si, a fixação na repetição das experiências. O que mais me impressionou nesse processo não foi propriamente a fragmentação e a dualidade existentes, ou a própria dessensibilização, mas o fato do paciente não notar esses aspectos como obstáculos a uma vida plena. Trata-se de alguém que instalou um círculo vicioso, no qual, como observa Danis Bois (2006), separado de seu movimento interno permanece privado da única coisa que poderia retirá-lo da indiferença para consigo mesmo e com os outros, que poderia ressensibilizá-lo. Essa volta à ressensorialização é possível, embora precise ser conduzida de forma cautelosa pelo terapeuta. Essa cautela tem a ver com a aceitação do ponto possível no qual o paciente está e a atitude de promover perguntas e situações que representem uma oportunidade para a pessoa se descobrir diferente, de aprender com ela mesma e valorizar as informações que seu corpo oferece. Durante as seções iniciais me surpreendi comigo em atitudes internas (não verbalizadas evidentemente) de auto-crítica com relação à correção das pegadas e fui notando que essa atitude me impedia de ver com objetividade a situação terapêutica, o paciente e suas respostas. À medida que renunciei à autocrítica, sem abdicar da necessidade real de apropriação mais profunda dos conteúdos com os quais entrei em contato, comecei a aprender como conduzir as seções. Se não sou capaz de observar sem preconceito o que ocorre comigo no papel de facilitador, não crio também para o outro uma atmosfera que propicie a autoobservação sem julgamento. Começo a perceber melhor o que significa conduzir um trabalho terapêutico. Não se trata apenas de seguir rigorosamente um programa, mas exercitar-se na condução de um movimento que vai acontecendo a partir dos pedidos não formulados que vamos percebendo e que nada tem a ver com improvisação rasteira. A questão que se colocou para mim foi, portanto, como transferir a aprendizagem vivida no meu corpo, com meu ser, como estudante de fasciaterapia, na condução de uma seção terapêutica. Estou ainda aprendendo o que Danis Bois e Didier Austry (s/n/t) denominam de neutralidade ativa, efeito de um equilíbrio delicado entre a neutralidade e a atividade. A neutralidade implica numa escuta neutra, em “deixar vir” os fenômenos ligados ao movimento interno sem qualquer julgamento, o que implica em saber esperar, em permitir que a pausa aconteça no trabalho terapêutico, seja no nível tissular, no nível da percepção de si em movimento e na introspecção sensorial. A atenção ativa consiste em trabalhar nos ajustes perceptivos provenientes de uma reciprocidade sensível. Percebi que quando identifiquei algumas crenças equivocadas, como a que, em Paulo, associa relaxamento com sono e inconsciência, algo em mim se moveu na direção de proporcionar-lhe uma situação em que pudesse fazer uma nova experiência e, consequentemente, uma nova associação: relaxamento, atividade e consciência. Esse ajuste veio não apenas da minha vontade racional, mas da apreensão global do movimento do paciente que me redirecionou. Não foi uma atividade planejada no sentido comum do termo. Foi autorizada a partir da qualidade de presença que consegui manter na relação terapêutica. Essa qualidade de presença exige do terapeuta sua plena implicação no ato de percepção. Ela se constrói num processo dinâmico e contínuo, em que novos sentidos são liberados a partir do gesto terapêutico. Nesse sentido, entendo que o movimento interno do paciente conduz o seu processo. O terapeuta escutando esse movimento conduz o paciente ao reencontro consciente com essa parte esquecida de si mesmo, que pede, mas não encontra resposta porque, no círculo vicioso do automatismo instalado, o paciente se tornou surdo aos apelos mais profundos do seu ser. Vivi, recentemente, uma situação interessante com Ana que chegou com queixas de dores na cervical e nos quadris. Ao final da seção afirmou que sua dor na cervical desaparecera. A dor nos quadris já era uma queixa ocasional, mas nessa seção 19 em particular estava acentuada. Ana gemia ao deitar e realizar pequenos movimentos na maca, queixando-se de que esta dor insuportável estava lhe atormentando há três dias. Estimulei-a, então, a conhecer a dor. E fomos juntas investigando essa dor. Aonde, de fato, doía? Era em todo o quadril? Em alguma parte dele? Como era essa dor? Revelouse como dor em fisgada que a acometia repentinamente, apenas quando movia os MMII, o que lhe assustava. Segurando todo o seu Membro Inferior Esquerdo e, em seguida, o Membro Inferior Direito fui fazendo micromovimentos lentos, delicados para descobrir em quais deles a dor se manifestava. Descobrimos que era nos movimentos divergentes e não nos convergentes. O movimento circular à frente parecia distensionar a área. Chamei a atenção para esse fato e levei-a a realizar movimentos pequenos e lentos para sair da maca já ao final da seção. Essa experiência me sinalizou, de um modo vivo, que o corpo tem seu lugar no processo de conhecimento. Ele é capaz de se voltar para si mesmo e de se tornar, além da origem, a finalidade da sua própria exploração. Conversamos ainda um pouco ao final da seção, sobre seus receios em relação à dor. Revelou, então, que temia “ficar entrevada”. Sugeri que, com base na experiência vivida, se movesse com cuidado, mais lentamente, respeitando o processo que estava vivendo. Perguntei se havia se relacionado ou se relacionava com pessoas que haviam “ficado entrevadas” e que se queixavam de dores parecidas. Revelou que não só lidava com pessoas assim, como afirmava em conversas ocasionais que ela “estava ficando igual” fulano, sicrano, etc... Essa percepção apenas se tornou consciente quando procurou responder à pergunta que fizera. No dia seguinte fiquei surpresa ao saber, por telefone, que “a melhora havia sido espantosa”. Estava trabalhando normalmente, sem sentir qualquer dor. Fiquei contente, mas mantenho a cautela, aguardando a evolução dos acontecimentos. Começo a vislumbrar que o trabalho reeducativo no processo terapêutico está ancorado na concepção de potencialidade, como possibilidade de crescimento, de superação das próprias dificuldades, de visita a lugares novos e não explorados. No caso de Paulo, a introspecção sensorial está se mostrando instrumento indispensável. Para além das sensações de calor, está descobrindo tonalidades, graus diferentes de densidade interna (como um dos seus pulmões é macio!), a possibilidade de passar do estado de tensão, de agitação ao relaxamento. Na quinta seção Paulo entrou em contato com uma sensação que denominou totalmente nova. Sentia o ar atravessar o seu corpo. A surpresa que sentiu pode ser explicada pelo fato de que trouxe ao seu campo representacional um conteúdo próprio do Sensível, da sua globalidade em movimento. Essa vivência foi totalmente inédita para ele. Teve o gosto de primeira vez, que ele não antecipou de modo algum. Esse é um modo possível de viver a novidade, mas a novidade pode ser também vivida a partir de uma outra relação com objetos conhecidos, por exemplo, dando um tratamento lentíssimo a um gesto cotidiano. Pode vir ainda do contato com algo implícito nas estruturas proprioceptivas, mas apenas revelada à consciência quando as estruturas cognitivas são capazes de acolhimento (Bois e Austry, s/n/t). Na sexta seção pode usufruir em estado consciente do relaxamento que tanto busca, percebendo com mais detalhes o que ocorria no seu corpo na seção de toque manual. É interessante perceber, portanto, que com o desenrolar das seções os conteúdos da experiência mudam ao mesmo tempo em que vai mudando a relação de Paulo consigo mesmo. É óbvio, no entanto, que apenas com seis seções estamos apenas no início de um processo. Mas considero um início promissor! 20 4. CONCLUSÃO Em sua paciência está o Ser Intitulei este trabalho Terapia do Ser: um estudo introdutório ao toque das fáscias corporais porque, de fato, fui convidada, através da obra de Danis Bois, a repensar as finalidades e os meios da ação pedagógica e reeducativa do terapeuta em seu metiê. Afinal, mais do que “manipular músculos motores, [manipulamos] igualmente informações sensoriais, da percepção, da consciência e da inteligência” (Roll, apud Courraud, 2004, p. 2). Creio que, para o terapeuta, a maior aprendizagem é a do respeito ao ponto onde ele está, o que ajuda na clareza do seu próprio papel e dos limites e possibilidades da sua atuação na relação de ajuda terapêutica e, sobretudo, a aceitação de onde o paciente está, procurando localizar através da sinalização que o seu corpo dá as possíveis aberturas para reativar o contato com o Ser, o que implica contato consigo, implicação no que percebe e relação de significação (Bois e Austry s/n/t). O grande desafio é, portanto, ressignificar o corpo através de uma linguagem que permita a um número crescente de pessoas internalizar o conhecimento de suas estruturas corpóreas e assumir responsabilidade crescente pelos seus processos de cura. Como adverte Bertazzo (s/d, p. 10): (...) Todos somos proprietários de um corpo que senta, levanta, sobe e desce escadas, se tensiona, deita, relaxa, dorme, acorda, etc... Evidentemente, esse corpo está sempre muito disponível à nossa compreensão, mas ainda é preciso fazer com que as informações a seu respeito se transportem e funcionem também em nível sensorial profundo. Já possuímos muitas noções sobre uma ética social, sabemos quais os limites de nosso poder sobre o outro ou sobre uma comunidade, mas pouco sabemos da ética do funcionamento do corpo humano. Tratando-o como subproduto da consciência não o valorizamos e não oferecemos leis e espaço para a manutenção de sua integridade. Além de respeitar a integridade social e política de cada indivíduo, é preciso começar urgentemente a observar o respeito à integridade do corpo. Para atingir esse objetivo, do qual nos fala Ivaldo Bertazzo, é preciso superar o modo automático com que lidamos com nosso corpo, provocando uma alteração na qualidade com que nos relacionamos com o próprio movimento, dotando essa relação de graça, presença e conforto. O que me animou na elaboração desta monografia foi ver que a metodologia a que tive acesso funciona na prática, permitindo integrar o que na minha formação como terapeuta estava ainda fragmentado: a vivência corporal na relação com o movimento, a compreensão do vivido através de aspectos cognitivos e um processo de reeducação pela experiência que promove um intenso processo de ressignificação do que se vive. 21 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXANDER, G. (1991). Eutonia. Um caminho para a percepção corporal. São Paulo: Martins Fontes. BERTAZZO, I. (s/d). Cidadão corpo. Identidade e autonomia do movimento. São Paulo: Summus Editorial. BOIS, D. (2006). Apostila 1 – Princípios do Método Danis Bois. Primeiro Ciclo de Fascioterapia e Somato-Psicopedagogia. Curso do Rio de Janeiro, outubro. BOIS, D. (2006). Lê moi renouvelé. Introduction à la somato-psychopédagogie. Paris: Point D´appui. BOIS, D. A paixão pelo movimento. A via do movimento. Matéria obtida por Manikoth Vongmany com fotos de Jean-Marc Lefèvre, s/n/.t. BOIS, D. e AUSTRY, D. (s/n/t). A emergência do paradigma do sensível. Tradução de Maria do Carmo Monteiro Pagano. Download do site http://www.cerap.org/pt publications.php, em 3/03/2008, 14 hs. CLAY, James H. e POUNDS, David M. (2003). Massoterapia clínica. Integrando anatomia e tratamento. São Paulo: Manole. COURRAUD, C. (2004). A fasciaterapia somatologia. O toque psicotônico. Tradução de Catarina Santos. Correio dos aderentes SNKG, jul/ago/set . Download do site http://www.cerap.org/pt - publications.php, em 3/03/2008, 14 hs. ______________ (2003). As fáscias e a sua terapêutica em prática desportiva. Tradução de Catarina Santos. Fisioterapia Científica n.435, julho. Download do site http://www.cerap.org/pt - publications.php, em 3/03/2008, 14 hs. NUNES, C. (2003). Dança, terapia e educação: caminhos cruzados. In: CALAZANS, J et all. Dança e educação em movimento. São Paulo: Cortez. IMBASSAÍ, M. H. (2003). Conscientização corporal – sensibilidade e consciência no mundo contemporâneo. In: CALAZANS, J et all. Dança e educação em movimento. São Paulo: Cortez. VIANNA, A. e CASTILHO, J. (2002). Percebendo o corpo. In: GARCIA, R. L. (org.). O corpo que fala dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: DP& A. 22 ANEXO 1 - RELATO DE APLICAÇÃO TERAPÊUTICA Rio de Janeiro, 5 de março de 2008. Fasciaterapia - Primeira Seção Dados Gerais Paulo*, 59 anos, engenheiro eletrônico aposentado, trabalha atualmente numa ONG de Energia Alternativa. Casado, com dois filhos já adultos que não moram mais com ele. Vida sedentária. Não pratica qualquer tipo de esporte nem faz exercícios físicos regularmente. Não fuma. Bebe socialmente. Nunca sofreu acidentes. Eventualmente já usufruiu de massagem sueca. Histórico de saúde do paciente O motivo declarado da procura das seções é o relaxamento para lidar com estresse pelo estilo de vida urbana em um grande centro. Manifestações patológicas na infância Teve cachumba, crupe, sarampo. Com acompanhadas de febre. freqüência tinha infecções nas amígdalas da garganta Manifestações patológicas na vida adulta Glaucoma (realizou operação nos dois globos oculares) no início da década de 1980; princípio de descolamento da parte interna do globo ocular em dezembro de 2006. Trata Blefarite nas duas vistas. Há quatro anos sofre de pressão alta. Toma medicação para essa manifestação diariamente. Faz uso de vitaminas. Engasga com certa facilidade. O nível da glicose está levemente acima do recomendado. Às vezes sofre palpitações sem maiores repercussões até o momento. Primeiras impressões ao toque: Articulações demasiado rígidas, com pequeníssima mobilidade, sobretudo nos pés, joelhos e articulação coxofemoral. Tensão acentuada na face. Com articulações pouco móveis há um encurtamento muscular geral. Percebia que o corpo de Paulo pedia, sobretudo, alongamento e abdução de membros inferiores e superiores. Um ponto importante também chamou a atenção: a pequena elasticidade da pele, que se apresenta tencionada como um tambor. A pele demasiado apertada parece “aprisionar” o corpo. Seção Trabalho com MMII. Finalização com trabalho em tórax, braços, crânio e face. Relato do paciente ao final da seção: “Cheguei sentindo latejamento em torno da boca. Percebia grande tensão nessa área. Logo depois que a perna esquerda foi tocada [referindo-se ao Membro Inferior Esquerdo], notei grande diferença entre ela e a perna direita [referindo-se ao Membro Inferior Direito]. Estava mais acomodada na maca [a perna O nome é fictício para resguardar a privacidade do voluntário. 23 esquerda]. [E, de fato, quando terminei, era visível que o Membro Inferior Esquerdo ampliara seu tamanho]. Estava tão acomodado que não sentia mais a perna. Quando havia alongamento sentia grande conforto. Passei a perceber melhor a perna direita [referindo-se ao Membro Inferior Direito]. Percebia o movimento do sangue fluindo na coxa, joelho até a metade da perna. Ao final da seção o latejamento em torno da boca havia passado. Estou mesmo mais descansado”. Comentário do facilitador ao final da seção (não foi verbalizado ao paciente): A percepção da necessidade de alongamento foi comum ao “paciente” e ao terapeuta. Para o paciente foi importante ganhar consciência de quanto esquecidos estão seus MMII, esquecimento denunciado pela “ausência” do MIE e da semi-consciência do MID. Há aí uma pista de trabalho: despertar a consciência de MMII, reeducá-los em sua função proprioceptiva e psicocorporal. 24 Rio de Janeiro, 7 de março de 2008. Fasciaterapia – Segunda Seção Seção: Momento de introspecção. Momento de realização de esquemas associativos com cabeça e tronco. Terapia Manual: trabalho com escápulas, MMSS, cabeça e face. Relato do paciente sobre os dois primeiros momentos “Na introspecção chamou a atenção a sensação de espaço. Sentia mais espaço vazio nas laterais, menor na frente e pouco espaço nas costas. Em certo momento perto do final veio a imagem de um grupo de pessoas ao ar livre com muitas crianças com idades entre 8 e 12 anos, morenas, a maior parte meninas com vestidos coloridos, com predominância das cores branca e vermelha. Foi fácil a realização dos movimentos, entretanto senti vários músculos que doeram, alguns mais fracamente, outros mais intensamente. Músculos do pescoço lados esquerdo e direito e atrás nos movimentos com a cabeça. Músculos das costas na altura do omoplata [escápula] direito. Nos movimentos com os ombros houve um momento em que senti uma espécie de pontada na cabeça, na fronte. Com o avanço dos movimentos senti relaxamento e certa sonolência. Não senti tensões nas pernas e pés, nem em braços e mãos. Em alguns movimentos da cabeça senti o globo ocular direito levemente dolorido”. No final da seção de terapia manual, o cliente relatou que quando o trabalho estava acontecendo através de pegadas na fronte sentiu uma pontada na ponta da tíbia, na face medial do joelho, perto da patela. Comentário do facilitador ao final da seção (não foi verbalizado ao paciente): Na realização dos esquemas associativos percebi que houve um relaxamento grande do ombro direito, mas o esquerdo continuou levantado “em estado de alerta”. A diferença entre os dois foi visível, mas o paciente nada relatou a respeito. Senti que foi oportuna a realização, tanto dos movimentos quanto da introspecção, pois o paciente – com uma atitude muito objetiva, dirigida mais para o externo – necessita reconectar-se com suas emoções e sensações, enfim com sua vida interior, valorizando-a. Considerei bem interessante o resultado para uma primeira experiência. 25 Rio de Janeiro, 10 de março de 2008. Fasciaterapia – Terceira Seção Seção: Momento de realização de esquemas associativos com cabeça e tronco, MMSS e MMII em pé. Terapia Manual: trabalho no tórax, escápulas, MMSS, cabeça e face. Relato do paciente sobre os dois momentos: “Os movimentos causaram dores em vários músculos, principalmente nos movimentos do pescoço e nos artelhos. Esperava uma simetria nos movimentos que fizemos, de um lado e de outro, mas não percebi acontecer. No movimento de ombros, braços, punhos e mãos, comecei a sentir certo relaxamento, certa sonolência mesmo. Mas de novo vieram dores nos músculos do pescoço. Nos braços, mãos e punhos não. Quando passei a prestar atenção nos movimentos dos pés e das pernas a sonolência e o relaxamento cresceram. Mas os artelhos hoje estavam muito doloridos”. No final da seção de terapia manual, o cliente relatou que quando o trabalho estava acontecendo no tórax sentiu dores em pontada tanto na virilha esquerda quanto na direita. Ao ser tocado no braço direito sentia a presença da face medial da perna direita, como se estivesse “esticada por dentro”. Apareceram também dores no osso frontal que apareciam e sumiam. Veio a sua mente a preocupação com um trabalho que tinha que fazer, mas a lembrança da tarefa vinha e sumia. Sentiu vontade de cochilar. Sentia que “ia apagando”, mas voltava. Notou que as dores nas costas com as quais chegou, ao final da seção, haviam desaparecido totalmente. Propus a ele quatro frases para que me dissesse com qual (ou quais) se identificava: Eu tenho um corpo; Eu vejo meu corpo; Eu habito meu corpo; Eu sou meu corpo; Eu aprendo do meu corpo. Escolheu sem hesitar ou pestanejar a primeira: Eu tenho um corpo. Para ele seu corpo é apenas matéria. Sua “cabeça” é diferente. Separa, portanto, totalmente a cabeça do corpo. Comentário do facilitador ao final da seção (não foi verbalizado ao paciente). Hoje, Paulo chegou comentando que teve mais uma “prova” da dificuldade de um dos seus colegas de trabalho em dar foco a uma tarefa. Parecia levemente irritado e seus comentários traziam o tom exigente de que “ele tinha foco e que o outro também deveria ter”, “porque seu jeito é o jeito certo”. Está pensando em sair da ONG, basicamente porque não aceita o modo como seus companheiros realizam o trabalho, “não são disciplinados”, “não são produtivos”, “não planejam as tarefas”. Suas sugestões não são acatadas, isto é, sua queixa implícita é a de que “não se sente ouvido”. Induzi da conversa que o sentimento de não se sentir ouvido leva a uma solução de separação já que, se não é aceito e se os outros trabalham tão diferente do seu jeito, eles são o problema. Estava, porém, contente com o fato de que depois de mais de um ano havia conseguido retirar uns armários do seu escritório, na casa atual aonde está morando, e leválos para o “seu lugar”, no quarto de despejo. Ficou com mais espaço no escritório. O escritório vai ficar mais arrumado, bonito. Perguntei porque levou todo esse tempo para tomar essa atitude, se havia algum impedimento para realizar a retirada do móvel. Hesitou um pouco e acabou dizendo que estava até então mais preocupado com seus afazeres. Suas listas se sucedem e não as conclui nunca (como seus companheiros de trabalho?). Reparo que uma providência aparentemente simples de acomodar um móvel em outro local da casa, o que significaria ganho de espaço e bem estar ao trabalhar no seu escritório, levou um tempo considerável. Fiz a ligação com a sensação que relatou de estreitamento de espaço experimentado no primeiro exercício de introspecção (ver seção de 7 de março). O fato de ter realizado uma ação que adiou durante um ano sem qualquer impedimento objetivo, abrindo mais espaço no seu escritório, evidencia que algo se ampliou dentro e, por isso, fora, embora não tenha ainda consciência dessa ligação. 26 Rio de Janeiro, 13 de março de 2008. Fasciaterapia – Quarta Seção Seção: Momento de introspecção e trabalho com MMII, tórax, escápulas, cabeça e face. Relato do paciente sobre os dois momentos: “Foi tanta coisa... será que vou lembrar de tudo? Senti tensão e dor nos dois globos oculares. Já quase ao final da introspecção veio uma dor na têmpora direita, uma pontada interna nessa área. Senti as mãos afundarem nas coxas e os pés no chão. Veio a imagem de uma criança com uma chupeta úmida. Já ao final senti que meu corpo estava muito imóvel, como uma estátua sobre a poltrona. Senti o peso do corpo afundando nela. No retorno aconteceram dois pequenos estalos na conexão da cabeça com a coluna vertebral. As plantas das mãos e as solas dos pés foram se aquecendo e permaneceram aquecidas durante todo o tempo”. Perguntei o que a imagem da criança sugeria para ele, o que sentia diante dela. Ficou quieto e, em seguida, afirmou que não sabia porque a imagem havia aparecido. Ao final da seção de terapia manual, o paciente afirmou estar se sentindo bastante, bastante relaxado. De fato, parecia não querer sair da maca. Comentário do facilitador ao final da seção (não foi verbalizado ao paciente). Hoje, Paulo chegou emanando uma atmosfera menos séria e seca, embora ainda reservada. Nada comentou do seu cotidiano. Possivelmente Paulo esqueceu informações que lhe vieram na introspecção. Ao deitar-se na maca ainda estavam presentes sinais visíveis de tensão no rosto. Havia a expressão muscular de um choro iminente que não saía. A boca cerrada tornava os lábios ainda mais finos. Ao toque dos MMII percebi que seus MMSS se descolaram do corpo e se abriram numa abdução que os levava para fora da maca. Essa abertura espontânea foi uma novidade. O rosto desanuviou da crispação, mas ainda havia contração, visível na musculatura orbicular de olhos e boca. Paulo cochilou. Parece identificar relaxamento e sono. Não vislumbra ainda a possibilidade de consciência associada ao estado de relaxamento. Vou tentar encontrar um caminho a partir do ponto onde ele está. Os primeiros sinais de contato com seu movimento interno apareceram na introspecção, através das sensações de calor, do afundamento dos pés no chão, o que é significativo para alguém que se mostra de uma forma bastante “endurecida”. A exigência com os outros revela também grande auto-exigência. Fez um brevíssimo contato com sua criança interna. Foi um relance no qual isolou a imagem e a separou do sentimento que poderia sugerir. Quando, nas nossas conversas, insisto para saber como está se sentindo me responde com o que supostamente está pensando (como se não ouvisse ou não entendesse a pergunta, ele que indiretamente se queixa de não ser ouvido – ver seção anterior). Apenas se autoriza a revelar para mim, neste momento, as sensações de dor ou relaxamento. Ao final da seção sinalizei para ele a abertura espontânea dos MMSS. Apenas ouviu, sem comentar. 27 Rio de Janeiro, 15 de março de 2008. Fasciaterapia – Quinta Seção Seção: Momento de introspecção e de movimento a partir dos esquemas associativos. Observação: Paulo chegou comentando da grande agitação da rua. A rua estava muito cheia, com muitos ruídos dos carros, ônibus e das pessoas que falavam alto. Quando se sentou na poltrona para iniciar a introspecção comentou que estava agitado. Sentia necessidade de se mover. Essa necessidade vinha dos seus músculos. Olhava para os braços. Havia passado muito tempo sentado na frente do computador. Pedi, então, que se levantasse e fizesse os movimentos que precisava. Levantou-se e mexeu os braços, abrindo-os e levando-os para cima. Alongou-os. Espreguiçou-se. Voltou a sentar. Seguindo a inspiração do momento, introduzi a introspecção de um modo diferente. Solicitei ao Paulo que entrasse em contato com sua cabeça, visualizando um fio de luz que a ligava ao coração. Fiz o convite de que iniciasse uma viagem pela paisagem interna do tórax. Fui sugerindo que observasse os detalhes, as cores, os tons. Sugeri também que trouxesse alguém, dentre as pessoas conhecidas, para apreciar a sua paisagem. E estimulei a observar o que ocorria nesse contato, que sentimentos apareciam. Também mudei a forma de convidar aos movimentos via esquemas associativos. Solicitei dele que ao invés de preocupar-se em fazer, apenas se deixasse ser conduzido pelas minhas mãos. Iniciamos os movimentos em pé e, aos poucos, chegamos a um movimento mais livre, sempre com a minha condução. No início senti a preocupação de Paulo com o que fazer, mas foi cedendo, acalmando na lentidão movimentos. De vez em quando sentia que sua preocupação voltava, mas cedia e foi assim até o final. Ele permaneceu de olhos fechados durante todo o tempo, embora não lhe fosse solicitado mantê-los assim. Relato do paciente sobre os dois momentos: Na introspecção: “Não consegui visualizar o fio de luz da cabeça ao coração. Começava na cabeça, num ponto alto dela e ia apenas até o pescoço. Não chegava ao coração. Senti que as batidas do meu coração ficaram mais firmes e mais altas, até de um modo que me incomodava. Essa situação permaneceu até o final da introspecção. Vi minha caixa torácica por dentro: os ossos, as costelas, os órgãos como pulmão, coração. Era engraçado porque entre os órgãos havia muito espaço, o que não ocorre de verdade, mas a paisagem era estreita, pequena. Não havia uma visão de horizonte mais distante. Um pulmão era muito macio. Convidei minha mãe [ já falecida] para apreciar minha paisagem. Estávamos ambos contentes pelo fato de estarmos juntos admirando a paisagem. Ela me dava um livro com o título Saber viver. Veio o pensamento de que era um presente interessante, útil, próprio, mas que poderia ter sido dado há alguns anos atrás. Eu lhe dei as batidas fortes do meu coração, como se fosse uma música. As cores da paisagem foram mudando: os tons vermelhos e rosas se tornaram azuis claros. Meu coração batia e sentia correr o sangue até as pernas e pés, até braços e mãos”. No movimento a partir dos esquemas associativos: “Não pensei que fosse tão agradável e prazeroso. Eu descansei [ prazer e relaxamento com movimento e consciência]. Descansei. Estou ótimo! Vivi uma sensação nova. Sentia o ar entre os meus braços e, a partir de certo momento, era como se o ar atravessasse todo o meu corpo. Era isso! O ar, quem diria, atravessava o meu corpo”. Quando comentei que poderia viver outras novas experiências comentou: “_ Ah! não sei! Quando a gente já passou por uma, a seguinte pode não causar o mesmo efeito”[fixado na repetição do prazer]. Retruquei que poderia, de fato, ocorrer isso, mas que o “estoque” de novas experiências com seu corpo é sempre renovável. É infinito. Apenas sorriu. Comentário do facilitador ao final da seção (não foi verbalizado para o paciente): Foi uma seção interessante, animadora. Paulo começa a abrir-se à perspectiva de enriquecer suas percepções. Foi mais palpável o contato sensorial consigo mesmo. Há uma diferença gritante deste relato para os anteriores. Realmente a reconexão passa pelo silêncio e pela lentidão. A mudança na forma de apresentar a proposta 28 também pode ter ajudado na mudança do paciente que se permitiu experimentar outro lugar. Sinto que Paulo pode beneficiar-se muito da introspecção. É por aí. 29 Rio de Janeiro, 22 de março de 2008. Fasciaterapia – Sexta Seção Seção: Terapia Manual: Tórax, MMSS, Cabeça e face. Observação: Iniciei a seção solicitando que Paulo levasse a atenção ao seu corpo na maca e relatasse em voz alta o que percebia. Ele mencionou que seu corpo estava quente, sobretudo braços e peito. Estava acomodado. Percebia o seu peso e também uma dor nas costas, do lado direito, na altura do omoplata [escápula]. Comentários do facilitador (não verbalizados ao paciente): Em todas as seções anteriores de toque manual tive dificuldade em perceber o movimento interno. Era como se “preferisse estar calado”. As “viagens manuais” tinham mais um caráter de movimento provocado. Percebia melhor o movimento tímido nas costas. Na seção de hoje pude distinguir mais nitidamente as áreas nas quais se concentra a tensão da pele: rosto, couro cabeludo, pernas, pés e tornozelos. Na pegada do tórax o lado esquerdo respondia mais depressa do que o lado direito. Notei que era ainda uma resposta tímida, mas aconteceu finalmente. As articulações de cotovelos, coxo-femorais estão presas, mas há uma imobilidade maior ainda nas articulações de tornozelos e pés. Nas costas senti uma resposta mais vigorosa. Realmente os tecidos empurraram a minha mão. Os braços de Paulo estavam muito mais disponíveis para a abertura. Com muito cuidado toquei nas áreas de pescoço e face e realmente elas se distensionaram muito. Relato do paciente sobre a terapia manual: “Senti, hoje, um nível muito maior de relaxamento do que nas seções anteriores. Não senti aquela sensação de ausência das pernas [MMII]. Quando você tocou minhas costas senti uma dor em pontada debaixo da patela esquerda. Apareceu e sumiu. Notei que em minhas mãos todas as articulações dos dedos estavam doloridas. Ah! ainda quando me tocou as costas sentia uma pressão localizada no centro da cabeça. Desapareceu. A tensão no omoplata [escápula] desapareceu. O toque na base do crânio foi o que mais relaxava... Senti meu braço esquerdo mais volumoso do que o direito e mesmo depois do toque no direito ele ganhou volume, mas ainda ficou menor que o esquerdo “. Perguntei a Paulo se notava alguma diferença nesta seção em relação às anteriores. Sua resposta foi afirmativa em termos de: “maior relaxamento, mais folga nas articulações... as pernas não sumiram”. Destaquei, para ele, então, que era possível relaxar de forma consciente, e em movimento, como também fora o caso da seção anterior. 30