Não temos tempo a perder1
Ana Martha Wilson Maia
Em entrevista concedida a uma revista brasileira, o filósofo Carl Honoré2 descreve
a pressão exercida sobre os pais para oferecerem uma infância perfeita aos filhos:
Uma série de tendências convergiu ao mesmo tempo para produzir uma cultura da
perfeição. A globalização trouxe mais competição e incertezas sobre o mercado de
trabalho, o que nos deixa mais ansiosos em preparar os filhos para a vida adulta. A cultura
do consumo alcançou a apoteose nos últimos anos. O próximo passo é criar uma cultura
de expectativas elevadas: dentes, cabelos, corpo, férias, casa, tudo deve ter perfeição. E
crianças perfeitas fazem parte desse retrato. É uma cultura do tudo ou nada.
Estimulada pelo trabalho coletivo3 que apresentei na IV Jornada Internacional do
CIEN e pelas atuais conversações no laboratório “A criança entre a mulher e a mãe”,4
proponho levantar uma discussão sobre o precoce e intenso investimento dos pais na
escolaridade dos filhos como um sintoma de nosso tempo, em sua articulação com a
função da família e o gozo feminino.
Numa contextualização histórica, o fracasso escolar surgiu a partir da
escolaridade obrigatória, no final do século XIX. Essa oferta de saber acessível “a todos” é
fundamentada na ideia de que saber é poder. Porém, a escolaridade obrigatória não garante
1
Maia, A.M.W. “Somos tão jovens – Renato Russo e a Geração Coca-Cola”. Em: Opção
Lacaniana, nº 26. São Paulo: Editora Eolia, 1998. Em referência à música “Tempo perdido”, de
Renato Russo, gravada por Legião Urbana (1986), cuja letra diz:
Todos os dias quando acordo
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo.
Todos os dias antes de dormir
Lembro e esqueço como foi o dia
“Sempre em frente
Não temos tempo a perder...” (...) – por lei, deve-se consultar a liberação da citação junto aos detentores
dos direitos autorais.Mas aproveito para indicar também que não entendi a nota. Explica o título por
citação de outro artigo?
2
Honoré, C. “Crianças precisam de liberdade para errar”. Em: Isto é, de 7 de outubro de 2009.
3
Maia, A.M.W.; Ferreira, J.A.; Leite, L.S.; Bianchi, S. “A evasão escolar: o abandono do ser na pressa em
responder”. Em: El apuro en responder. Brochura da IV Jornada Internacional do CIEN. Buenos Aires:
2009.
4
O
Laboratório é realizado no Hospital Maternidade Fernando Magalhães, referência em gestação de alto
risco. Dele participam: Ana Martha Maia (responsável), Giselle Fleury, Jamille Lima, Maria Bernadete
Dabul, Marise Pereira, Monica dos Santos, Sandra Nascimento e Simone Avolio.
1
igualdade nas oportunidades. Dinheiro e sucesso são ideais da sociedade contemporânea
transmitidos por valores familiares, desde a escolha do colégio dos filhos, ainda na préescola, quando pais vislumbram um ensino que garanta uma vaga nas melhores
universidades. “Há colégios hoje que são como fábricas com uma linha de produção”,
aponta Honoré. Nesse sentido, o fracasso é uma oposição ao sucesso, ao ideal.
A função da família
Lacan5 divide a sintomatologia infantil de acordo com o par familiar. No caso
mais complexo e de mais fácil acesso à intervenção do analista, por estar articulado à
metáfora paterna, o sintoma representa a verdade do casal parental. No caso mais simples,
mas de difícil intervenção, temos o sintoma da criança relacionado à fantasia materna, a
criança como objeto a, exposta às capturas fantasísticas da mãe.
De acordo com a clínica lacaniana descontinuísta, diríamos que neste segundo
caso se encontra a psicose, conforme bem localiza Laurent,6 uma vez que a metáfora
paterna não está presente. Todavia, na época do declínio do pai, conforme nos referimos
no Campo Freudiano aos tempos atuais, encontramos estruturas neuróticas em que há a
presença da função paterna, ainda que de forma pouco consistente, ficando a criança mais
aprisionada à fantasia materna.
Pouco depois de inventar dois trocadilhos — homela (hommelle), para situar a
relação do perverso com a falta no Outro, e famiele (famil), para indicar a função
metafórica da família na neurose —, Lacan7 propõe que, no drama familiar, trata-se do
“objeto a como liberto” que se trata. O neurótico busca completar o Outro com a família.
Comentando essa enigmática expressão “objeto a como liberto”, Laurent8
diferencia a abordagem freudiana (a criança como “Sua Majestade o Bebê”, no lugar do
ideal do casal) da leitura pós-freudiana de Ferenczi, Melanie Klein e Winnicott, que
localizam a criança como objeto, para finalmente expor a proposta de Lacan, na qual a
criança é capturada no gozo, como objeto a: “A criança é o objeto a, vem no lugar de um
5
Lacan, J. (1969) “Nota sobre a criança”. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
Laurent, É. “El niño e su madre”. Em: Hay um fin de análisis para los niños? Buenos Aires: Colección
Diva, 1999.
7
Lacan, J. O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
8
Laurent, É. A sociedade do sintoma – a psicanálise hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007, p.45.
6
2
objeto a, e é a partir disso que a família se estrutura. Ela não se assenta na metáfora
paterna, que era a face clássica do complexo de Édipo, e sim na maneira como a criança é
o objeto de gozo da mãe, da família e, para além dela, da civilização. A criança é o ‘objeto
a liberado’, produzido”.
A família passa a ser definida como o aparelhamento do objeto a, condensador de
gozo, cuja função de resíduo é da ordem de uma constituição subjetiva e implica “a relação
com um desejo que não seja anônimo”.9 Mesmo quando as funções materna e paterna se
efetivam, sempre resta um resíduo da mãe, encarnação da falha do cuidado, e do pai,
encarnação da Lei no desejo. Assim, as novas formas de parentalidade podem ser
analisadas para além do Édipo e a função do Nome-do-Pai, sustentada hoje por outro
pessoa, não necessariamente o pai ou um homem.
O gozo feminino e a maternidade
“A sexualidade feminina surge como o esforço de um gozo envolto em sua
própria contiguidade”.10 Em sua relação com o mais além do significante fálico, a mulher
procura, no amor, apaziguamento, o qual o significante não pode lhe dar. O gozo feminino
a coloca entre uma pura ausência e uma pura sensibilidade, numa dispersão ao infinito no
Outro. Por isso, dissemos11 que a mulher é louca por amor.
Uma frase precisa de Miller é uma pérola para abordar a questão do gozo
feminino e o sintoma da criança: “A mãe angustiada é, inicialmente, aquela que não deseja,
ou deseja pouco, ou mal, enquanto mulher”.12 A criança preenche ou divide. A metáfora
paterna opera uma divisão do desejo: uma parte é dirigida ao objeto criança, e o que se
espera é que a outra parte seja dirigida a um homem. Quando a mulher, em seu acesso ao
gozo feminino, declina da posição de objeto causa de desejo na parceria sexual com um
9
Lacan, J. 1969, op. cit., p. 369.
Lacan, J. (1958) “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina”. Em: Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.735.
11
Maia, A.M.W. A loucura histérica – uma afinidade especial entre a mulher e a loucura. Tese de
Doutorado. IP/UFRJ, 2000.
12
Miller, J.A. “criança entre a mulher e a mãe”. Em: Opção Lacaniana, nº 21. São Paulo: Editora Eolia,
1998, p.8.
10
3
homem, por deslocar a fruição do gozo feminino para o amor materno, ela posiciona a
criança como objeto a de sua fantasia.13
Miller reconhece a perversão do lado da mulher: o amor materno pode chegar até
a fetichização do objeto infantil,14 à medida que o filho tem a função de velar a falta do
falo na mulher. O importante é que seja “resguardado o não-todo do desejo feminino e que,
portanto, a metáfora infantil não recalque, na mãe, seu ser mulher”.
Essas referências teóricas servem de instrumento para refletirmos sobre a função
da criança na contemporaneidade, enquanto objeto condensador de gozo, em torno da qual
a família se estrutura. As consequências desastrosas vão desde uma idealização extrema da
vida escolar e a escolha, às vezes induzida ainda na infância, de uma carreira profissional
futura, à eternização da adolescência. Ou de um ideal supremo a um objeto dejeto,
abandonado, caso não corresponda às expectativas dos pais.
Muitas são as notícias na mídia e muitos são os casos de crianças e adolescentes
que usam medicamentos para estudar. Os pais se queixam da dificuldade de concentração
dos filhos e ouvem de “especialistas” na foraclusão do sujeito que se trata de um
transtorno, de um déficit. Como a precoce expectativa do casal parental é de um tratamento
que possibilite o aprendizado e a entrada numa universidade, a medicalização é
introduzida. Entretanto, como fazer quando o sintoma desaparece e o tratamento é dado
por encerrado? Como estudar sem a droga? Ritalina, tarja preta, é vendida pela internet. Os
adolescentes compram, tomam e fazem provas “ligados”, enquanto os pais acreditam ter
alcançado a cura do filho. Laurent aponta que os delírios de classificação oferecem ao
sujeito o acesso a um gozo novo com o qual se pode jogar. Ritalina, Provigil e
betabloqueadores são usados inclusive por cientistas que se preparam para defender uma
tese. “Esses novos gozos, gozos classificatórios, são modelos que se propõem como a
felicidade do discurso do mestre: se alguém aceita essas classificações, tem ‘direito a’”.15
O medicamento é um significante-mestre em nossa civilização. Seu uso está
presente em nosso tempo como um objeto libidinal, “objeto de demandas neuróticas, de
13
Guimarães, L. Mulher-mãe nos tempos do declínio do pai. Conferência promovida pela Oficina da Clínica
do Feminino e pelo Núcleo de Pesquisa e Investigação Clínica da Psicanálise com Crianças – Pandorga.
Seção-Santa Catarina. 2009.
14
Miller, J.A. 1998, op. cit., p.9.
15
Laurent. É. “O delírio de normalidade”. Em: A clínica analítica hoje – o sintoma e o laço social. IV
Encontro Americano de Psicanálise Aplicada da Orientação Lacaniana. Buenos Aires: Grama Ediciones,
2009.
4
exigências psicóticas e de usos perversos”,16 inclusive por parte dos pais. Como
phármakon, é o remédio e é o mal, porque o sujeito o procura para sentir bem-estar e cria
dependência com o aumento das doses. Para Laurent, o medicamento faz “sua casa no
corpo pela falha no organismo atestada pelo inconsciente”. Por sua vez, “a apetência
subjetiva vem alojar-se nele”.17
A escolha do melhor colégio é assunto constante na conversa entre pais, uma vez
que supostamente “garante” uma vaga na universidade. Muitos são os exemplos que
ilustram o que os fazem sustentar esse ideal. Uma jovem convencida pela mãe a mudar de
colégio para passar no vestibular termina a primeira redação no novo colégio,
rigorosíssimo, com a seguinte frase: “Nesta escola não há vida”.
São comuns relatos de jovens que, tentando responder ao ideal dos pais, estudam
arduamente sem saber qual profissão escolher. Muitos desses pais investem em colégios
caríssimos, achando que com isso garantirão o sucesso profissional dos filhos; ainda que
eles mesmos tenham fracassado em suas escolhas. Ocorre de serem profissionais desviados
de sua formação profissional original ou de, apesar de vários diplomas de curso superior,
não serem capazes de se responsabilizar por sua subsistência e a de seus filhos.
Pais perfeitos, filhos perfeitos. É justamente no tempo do declínio do pai que a
globalização se amplia e dela decorre a crescente competitividade no mercado de trabalho.
Como consequência, temos crianças e adolescentes alimentados com Ritalina que terão
atravessado uma drogadição quando forem adultos, como enfatiza Judith Miller18 numa
entrevista; e ainda um excesso de “atividades humanas nas quais a questão ‘quanto?’ está
no centro”,19 como aulas particulares, cursos de línguas, atividades esportivas etc. Não se
pode “perder tempo”. O lazer fica para as férias. Isso me faz lembrar de uma estória em
quadrinhos que li num dia de domingo, publicada no “Globinho” do jornal O Globo. A
estória foi criada por uma menina de oito anos. Em quatro quadrinhos, ela mandou bem
seu recado. No primeiro, uma menina está sentada, estudando. No segundo, fazendo prova.
No terceiro, feliz, levanta as mãos num pulo, está de férias. No quarto, a mãe diz que ela
16
Laurent, É. “Como engolir a pílula?” Em: Ornicar?, n° 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p.32.
Ibid, p.35
18
Miller, J. “A psicanálise hoje, segundo Judith Miller”. Em: El Argentino.com. Edição de 10 de dezembro de
2009.
19
Miller, J-A. Orientação Lacaniana, n° III, 10. 2007-2008. Primeira lição, em 14 de novembro de 2007.
17
5
tem que estudar, ao que a menina comenta alguma coisa mais ou menos assim: “Quando é
que vou ter tempo para brincar?”.
6

Download

Leia mais