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Eu não tenho poder divino, faço da
honestidade meu poder divino.
Eu não tenho espada, faço da
perseverança minha espada.
Eu não sou o que sou, sou o que quero ser.
Bushido
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Lutas Sinceras
Desarmado
3
A Quarta Noite
É mais uma noite como tantas outras ultimamente. Escura
apesar das estrelas. Apesar de vê-las por um instante, ele baixa a
cabeça e continua como sempre. Talvez um ou dois graus mais
para baixo que o normal. A rua de sempre estava mais longa, as
curvas pesavam mais. Mas não pode deixar de sentir que menos
do que nas noites anteriores.
Antes pensara que se sentiria mal. Mas não sentia. Apenas
sentia demais. Mais do que o normal. E pensar deixava o caminho
longo. Lento. Pesado.
Era assim que se sentia sempre, e mais naqueles dias.
Pesado. Olhava para baixo e via o volume sob seu peito. Seu peito
não lhe parecia mal, mas aquele volume, mesmo que parecendo
pequeno naquele momento, lhe lembrava de quão grande lhe
parecia ser normalmente e de quão mal aquilo podia lhe fazer
sentir.
Ele não era notívago. Ele via alguma beleza nas luzes em
meio à escuridão, mas naquele momento, como sempre, ele se
sentia melhor em casa. Seu quarto era sua fortaleza. Não por se
sentir mais forte ou mais seguro. Talvez apenas por estar mais
acostumado.
Era uma criatura de hábitos. Usava sempre as mesmas
calças jeans e os mesmos tênis. Uma das mesmas camisas de
sempre. Sua mochila de sempre e, como único traço variável, seu
longo guarda-chuva. Andava no mesmo passo de sempre. Era
como sempre fora, ainda que notasse mais os detalhes.
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Por um momento, pensar que pensava mais o distraiu.
Mas logo voltava a prestar atenção aos seus arredores com o
aumento das luzes. Como sempre, lhe chamava atenção estar
chegando à rua dos bares. Aquele mar de pessoas em pé sem
motivo, sentados sem motivo, bebendo sem motivo... Inquietavalhe. Passou rápido, como sempre, prestando atenção no caminho
que precisaria fazer para desviar, como sempre.
Mesmo que não viesse completamente à tona em sua
mente, porém, um motivo para aquela atenção redobrada não era
a rua, mas o que se seguia. Naquela esquina, as luzes baixam.
Após meio quarteirão de iluminação normal e alto tráfego, ele
sobe as escadas e atravessa a linha do trem, chegando ao parque
mal iluminado.
Lá começava o vazio. Os que lá ficavam não interagiam,
senão em pequenos grupos junto ao hospital, junto a um
vendedor de churrasco, perto da iluminação mais fraca. Se lá o
mundo parece incerto, o parque parecia um porto-seguro pelo
resto do caminho.
Ele deixou as cores fracas das plantas e grades verdes
pelos cinzas, como sempre, sabendo não haver perigos maiores,
mas oportunidades maiores para os mesmos perigos. Teria,
porém, de andar pouco, e em uma noite sem movimento, as
chances de ser atacado sempre seriam poucas. Assim pensava
sempre.
Seus olhos se adaptaram após entrar entre os cinzas da
noite, ao chegar à entrada de serviço de um grande prédio
abandonado. Meio quarteirão andado, e ao chegar naquela
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calçada espaçosa, no canto de seu olho surgia um vulto. Estava
distante, sentado com as costas contra a parede.
Quase não acreditava ser uma pessoa pela camada de
escuridão que o encobria. As formas magras e envelhecidas,
porém, eram humanas, sob um casaco velho e seu capuz. Apenas
algo longo do chão ao seu ombro direito não lhe fazia sentido.
Pensou que deveria continuar. Ignorar. Ao dar um passo a
frente, porém, notou uma mudança. O branco do olho esquerdo
se levantou largo. A pupila fixa nele. A mão esquerda pegou
aquele longo objeto encostado em seu ombro.
Uma sensação lhe veio forte. Algo que não lhe era comum.
Diferente do que sentira até a pouco, esta sensação não lhe
pesava, mas trazia-lhe uma profunda seriedade.
Instintivamente, ele se vira para o vulto segurando seu
longo guarda-chuva em punho, carregado da seriedade que
aquele momento lhe trazia.
O mendigo começou a gargalhar alto.
Acordando de sua seriedade pelo alto riso, ele começou a
andar para sua casa, passando envergonhado e de cabeça baixa
pelas pessoas que saiam da academia próxima, enquanto ouvia o
ecoar da risada diminuindo em volume e aumentando em
distância.
Andou fechado, como sempre. Sério como sempre.
Tentando passar a mesma imagem de sempre. Mas
envergonhado. Teve uma noite como sempre. Comeu como
sempre. Viu tv como sempre. Foi para cama como sempre. Mas,
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de quando em quando, se lembrava da cena e se sentia ruborizar
e se perguntava por que agira de tal forma.
Fora infantil.
Fez-se esquecer e dormiu.
O próximo dia correu de forma similar. Sua manhã
começava tarde. Sua tarde terminava cedo com sua saída para o
trabalho. Viu seus colegas de trabalho, inclusive ela, passou as três
horas em que deve pensar diferente o fazendo, despediu-se e foi
para casa como sempre. Durante todo o dia, porém, não pode
deixar de pensar naquele homem rindo. Aquilo o deixava tenso
por um instante, e então se fazia esquecer.
As mesmas ruas, as mesmas luzes, mas os pensamentos
variaram. Enquanto se sentia mais leve, se lembrava daquele
homem e se envergonhava, sem ter certeza de como se fazer
parar de pensar no que ocorrera. Finalmente, porém, começava a
fazer o que sabia ser sua única chance de conseguir não pensar
mais naquilo: pensar no que ocorrera.
Passando sob as luzes sem as perceber bem, ele se
perguntava sobre os detalhes. Quem era aquele homem não lhe
incomodava. Mas sua postura, sim. Por que dormia sentado? O
que tinha sobre o ombro que pegou naquele momento? Aquilo
lhe era familiar, mas estranho.
Sua própria postura passou por sua mente, mas apenas por
um instante. Não o incomodava tanto. Era um momento infantil.
Tivera muitos assim ao longo de sua vida em que brincara ter
capacidades que não tinha ou poderes que desejava ter.
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Continuava querendo não ter tais momentos, mas já tinha se
acostumado a eles há muito tempo. Até a noite anterior.
As luzes aumentaram. Era hora de não pensar mais. Pensar
apenas em não pensar. Ter a mente tranquila, mas fixa. Andar
fechado. Sabia que assim andava mais fechado, mais ameaçador.
Mais estranho. Menos parecido com o alvo fácil que temia ser.
Afastou os pensamentos rapidamente, e se fez esquecer de si, de
tudo, a não ser de seu objetivo.
As luzes diminuíram e ele chegava a seu medo sem pensar
nele. No mesmo local com os mesmos cinzas, ele reconheceu o
mesmo vulto, na mesma posição. Os olhos do homem se abriram.
O efeito, porém, não fora o mesmo. Sem reação, ele
simplesmente continuou olhando atentamente para aquele vulto,
e o viu sorrir e deixar sua cabeça pender ainda segurando o objeto
sobre seu ombro.
Virou-se para continuar, mas não o fez antes de tentar
identificar o objeto. Era comprido, longo. Olhava atentamente,
mas não conseguia identifica-lo. Em um susto, viu a mão do vulto
descer o segurando e viu o objeto virar.
Fez-se seguir rapidamente. Mas logo andava devagar,
pensando no que vira. Era um objeto de seção retangular, onde
vira um estreitamento sutil ao longo de metade mais baixa de seu
corpo.
Sua curiosidade crescera por aquela noite e o fizera
esquecer de sua postura na noite anterior. Mesmo quando veio a
sua mente, não mais lhe parecia interessante. Tudo aquilo era
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muito familiar, mas não conseguia entender de onde vinham tais
pensamentos.
A noite seguinte, ele fez o mesmo da anterior. Andou
pensando nele, não como um mendigo ou como um vulto, mas
agora como mais que uma combinação dos dois. Não pode deixar
de pensar naquele ser que via como, de alguma forma, superior,
dono de um conhecimento que ele ainda não tinha.
As luzes aumentaram, as luzes diminuíram, e as ruas se
passaram sem que ele percebesse sequer que as cruzara ou se
tinha ou não olhado para os lados antes de fazê-lo. Pela primeira
vez, chegava a aquele pátio de calçada sem vê-lo como um beco.
Quando chegou, entretanto, o viu como estacionamento.
Como não era incomum, alguns quatro carros se valiam daquele
espaço para estacionar. Sob as antes fracas lâmpadas agora sem
luz, o local era tomado por sombras.
Não via o vulto. Lentamente, ele andou em direção a sua
casa, tentando encontra-lo entre os carros. Chegando ao muro
que delimitava o local, o vulto estava lá olhando para ele. Sentado
como sempre, apenas junto à parede. Seus olhos o
surpreenderam por debaixo do capuz.
Ele riu como antes ao sentir seu susto. Finalmente, ele
levantou sua cabeça e falou com o rapaz:
 Você se assusta fácil para alguém que anda tão fechado...
 Bem, eu...
 ...É normal... –O vulto diz baixando o rosto –É só um garoto.
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 Eu não sou só um garoto.
 Eu sei. –O vulto levantou seu rosto sorrindo de lado –Eu vi
quando empunhou sua espada. Aquilo foi realmente cômico. –O
mendigo gargalhou. O rapaz enrubesceu e baixou seu rosto.
 E o que você faria se fosse você!? –O garoto falou alta e
revoltadamente. O mendigo parou de gargalhar lentamente,
passando a mão em sua cabeça e puxando para trás o seu capuz
para sentir o ar da noite em seu cabelo.
 Provavelmente o mesmo... –Ele disse com uma voz sincera.
Olhando fixamente, o mendigo continuou. –O mais interessante é
que você não questione mais sua postura. A vergonha é normal
nos dias de hoje, é claro. Mas superá-la, infelizmente não. É bom
saber que não estou perdendo meu tempo com você.
 Como assim?
 Talvez eu esteja enganado. –Ele disse cobrindo novamente a
cabeça com seu capuz. –Mas me parece que encontrei alguém
com quem posso ser naturalmente amigável. –O rapaz achou
aquilo estranho, mas não pode deixar de sentir o mesmo.
 Qual o seu nome?
 Vulto é um bom nome. –O garoto se sentiu estranho. A palavra
que usara para descrever para si mesmo aquele homem era a
mesma. Pensou ser apenas uma estranha coincidência, mas não
pode deixar de pensá-la notável. Boquiaberto, ele ouviu Vulto
terminar a conversa ajeitando aquele objeto no ombro e dizendo.
 Também gostei de conhecê-lo,... –Ele disse bocejando e
baixando a cabeça para dormir. –Boa noite, Cândido.
 Ei, mas como sabe...
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Dando um passo a frente para continuar a perguntar, o
rapaz foi parado pelo ronco alto do mendigo. Ele ficou parado por
alguns instantes ali, sem saber o que pensar. Não poderia ser uma
mera coincidência. Finalmente, sem ter mais o que fazer, ele
andou até sua casa, passando pelos que saiam da academia
naquele horário como sempre.
Naquela noite não conseguia fazer nada. Quem poderia ser
o Vulto? Como sabia seu nome? Aquelas perguntas tomaram sua
noite e sua atenção. Dormiu tarde e apenas por estar exausto.
A luz do sol aumentou e diminuiu. Ele fez seu caminho ao
trabalho e dele para sua casa tal como sempre. Diferente dos
últimos dias, porém, percebia tudo ao seu redor, apesar de não
querer pensar em tais coisas. Dava real atenção somente para
confirmar o que via que poderia lhe atrapalhar.
Sabia que não passaria de hoje. Hoje entenderia o que
ocorrera. Não se fazia perguntas. Apenas aguardava as respostas e
sentia as luzes passarem por ele, subirem e descerem, até aquele
local de escuridão.
Alguns carros estavam lá. O Vulto não. Era o pátio pequeno
de cinza escuro pelo qual sempre passava rápido, sem qualquer
marca daquele homem, como se nunca o tivesse conhecido.
Pensou que poderia simplesmente ir para casa e fingir ter sido
tudo apenas uma ilusão. Um interim de sonho estranho em sua
vida.
Naquela quarta noite, porém, ele não tinha as dúvidas de
antes. Confiava plenamente que haviam explicações para todas as
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coisas que ainda não entendia. Não queria esperar mais então
ficaria ali o tempo necessário.
Encostando-se em pé na parede onde vira o Vulto na noite
anterior, pensou que poderia se valer da escuridão para não ser
notado. Poucas pessoas passavam. Não se mover em tal lugar o
deixava aflito. Mas não podia se deixar ir.
Distraía-se olhando para os detalhes que surgiam
conforme seus olhos se adaptavam mais e menos com a luz dos
faróis e a escuridão entre eles: as rachaduras diversas e as
pequenas poças na calçada; As pedras quadradas que eram
chutadas para longe ou perto dos buracos que deveriam tapar no
chão;
Um som o assusta. No extremo oposto da parede onde
estava, um amontoado pequeno de lixo prendia um saco rasgado
de plástico que fazia papel de biruta. Com uma brisa mais forte,
ele voltava a chicotear.
Baixando a cabeça, Cândido falou consigo mesmo que
deveria se acalmar. Em voz baixa, ele dizia não haver porque ter
medo. Nada poderia lhe acontecer em uma rua sem outras
pessoas. Sem outras pessoas, não há assaltantes.
Levantando a cabeça, ele finalmente viu a sua frente uma
forma familiar. Na penumbra formada pela curta marquise do
prédio, em pé apoiado na parede oposta, aquela negra forma fez
em sua mente estalar o porquê de lhe ser tão familiar. Mesmo em
tão escuro local, com o passar de faróis pensou poder ver a linha
transversal que separava o cabo do restante. Ficou feliz.
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Entendera finalmente, ainda que apenas uma parte. Não pôde
deixar de sorrir.
O chicotear do plástico volta a lhe surpreender. Fechou
seus olhos rapidamente com raiva de si mesmo por se deixar
assustar com tão pouco.
Um novo chicotear. Seu rosto se enraivece ligeiramente
pelo novo susto, mas não chegou a esboçar grande reação.
Apenas riu de lado e disse a si mesmo que deveria ignorar.
“Qual é a graça?”. Ele se assustou e virou o rosto em
direção ao saco de plástico rasgado, atrás do qual via a presença
de dois homens familiares. Eram os mesmo dois pelos quais
passara nos dias anteriores.
Eram dois homens fortes, um loiro um pouco mais alto, o
outro de cabelo castanho e com ombros um pouco mais largos.
Ambos eram musculosos, mas o loiro passava a impressão de que
entrava em brigas como que por passatempo.
Pensava consigo que os tinha visto bastante ultimamente.
Lembrou-se de ter passado por eles naqueles dias, e, como uma
lembrança mais incerta, tinha para consigo que eles tentaram
falar com ele no dia anterior. Ele, entretanto, não respondera ou
não se dera conta de ter sido questionado sobre algo até aquele
momento.
Eles estavam sob a luz da continuação da rua. Seus rostos,
porém, lhe pareciam sombrios. “O que houve? Por que tá aqui,
maluco!?”. Sem saber o que dizer, ele assistia o rosto do jovem
homem a sua frente fechado de raiva.
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Cândido, que era um homem abaixo da estatura média e
acima do peso, sem músculos, e se assustou. O loiro, mais a frente
e mais mal-encarado, dera um passo a frente e agarrara o plástico
que esboçava uma tremulação. Puxando-o do amontoado e o
jogando ao vento, o homem gritou: “Tô falando com você,
muleque! O que tá fazendo aqui?”
Ele deixou seu silêncio de lado, talvez por medo de deixar
aquele homem mais irritado.
 Eu... Estou esperando um amigo...
 Hum... –O loiro cruzou os braços e perguntou em voz mais
calma. –...Aquele mendigo que tava andando por aqui?
 Eu não conheço... –Antes que pudesse completar sua
explicação, o loiro o interrompeu.
 Olha moleque. Não vô nem esperar você falar nada... O José
aqui te viu falando com ele outro dia –Ele diz apontando com o
polegar sobre o ombro para o homem atrás dele. –Eu sei que um
monte de gente tem pena desses cara, mas ficar por aí de noite
não é uma boa ideia. Ele não trabalha, ninguém sabe donde veio,
e nem se bate bem da cabeça, porque fica aí falando coisas que
ninguém entende... E a gente não gosta dele ficar por aqui.
 Bem...
 Se você ficar dando sopa pra ele, ele vai achar que tem gente
otária por aqui e não vai embora, e vai ser pior pra gente,
entendeu?
 Bem, eu entendo, mas... –A visão do loiro dando mais dois
passos para frente o interrompeu. Se a meia-luz ele parecia um
homem enraivecido, agora ele mostrava fúria. Havia um vermelho
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em seus olhos. Colocando o punho direito na mão esquerda, ele ri
de lado e estala os ossos enquanto continua.
 Então por que você não vai pra casa agora e para de passar por
aqui? –Ele diz olhando Cândido com ar de superioridade. Parecia
ter certeza que conseguiria o que quisesse dele. Cândido sentiu
esse ar, e começou a se sentir mais atento. Olhando diretamente
nos olhos do loiro, ele lhe responde:
 Eu vou esperar mais um pouco. –O sorriso do loiro se desfaz
em desagrado e sua face se enfurece. Seu colega se aproximou
colocando a mão sobre seu ombro.
 Calma, Marcus. Deixa pra lá. Depois a gente...
 Que deixa pra lá, Zé! Aquele mendigo fica aqui assustando as
pessoas e agora esse babaca vai querer defender ele!? – O loiro se
volta novamente para Cândido, agora com uma postura firme
encarando-o –Olh’aqui, muleque! Ou vai embora agora, ou eu
começo a te encher de porrada.
Cândido pensou consigo no que fazer enquanto olhava os
seus arredores. Tinha para si um plano, que pensava que
funcionaria, enquanto ouvia em sua mente diversas vozes
similares lhe dizendo as chances de não conseguir.
Não se moveu. Decidiu que, se ele o atacasse, seguiria seu
plano. Não antes. E não se moveu.
Ouvindo seu colega dizer que deveriam deixá-lo de lado, o
Loiro grita e corre em direção a Cândido, pronto para esmurrá-lo.
Cândido se move para sua direita, vendo o homenzarrão socar a
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parede. Abaixou-se então e passou por baixo de seu braço
enquanto a parede recebia um soco de sua mão esquerda.
O homenzarrão se vira para o lado, mas imediatamente
recebe o impacto das duas mãos entrelaçadas onde Cândido
pusera toda força que tinha.
Ele cai desorientado. Seu colega correu para socorrê-lo
enquanto Cândido corria para a parede oposta, na qual vira
apoiado o objeto que o mendigo tinha consigo nos dias anteriores.
José se ajoelhou, ouvindo o balbuciar de palavras
incoerentes do colega. Nunca o vira assim antes. Olhou para
Cândido, fora de forma e respirando mais pesado, e pensou que
só poderia ter sido sorte.
José tinha Marcus como um real amigo, que o defendera
anteriormente e o ajudara a se tornar mais forte. O ver caído o
enfurecia. Levantando-se com uma cara fechada, naquela
escuridão, ele mostrava uma raiva que antes não se via nele. Não
tão sombria quanto a do loiro, mas talvez mais forte.
Sabendo não ter outra alternativa, seguiu seu plano. José
correu em sua direção. Cândido tomou com sua mão esquerda o
objeto. Ele se assusta, pois não era o que ele pensara. Mas,
rapidamente decidiu que não havia outra alternativa. Passou a
guiar o longo objeto com a mão direita, preparou a esquerda para
colocar toda força que pudesse juntamente e o empunhou, e em
um movimento veloz, ele se impulsionou para frente e
descarregou toda a força que podia de cima para baixo, atingindo
seu oponente.
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José moveu sua cabeça, mas recebeu a força no ombro a
ponto de cair para trás e perder a noção de seus arredores por
alguns instantes.
Alguns instantes depois, uma voz familiar o chamava.
 José? José!
 Hã?
 Aquele muleque pegou a gente! –José percebeu se tratar de
Marcus, que se levantava lentamente junto à parede.
 Sorte de principiante... Dessa vez, a gente pega ele!
 Ele acabou de me derrubar... Ele ainda deve tá por aqui!
 Tem certeza? –José pergunta ainda um pouco desorientado.
 Sim, ele não passou por mim...
Olhando para o beco formado pelos carros, José vê que os
pedaços de madeira do objeto que o acertou estavam todos em
uma mesma área. Se aproximando, ele nota haver algo diferente
na parede, escondido pela falta de luminosidade. Uma porta
pesada de metal vermelho envelhecido.
Dentro do prédio abandonado, Cândido olhava para os
lados na escuridão um tanto desesperado em busca de outra
saída. Evitar aqueles dois era tudo o que queria.
Ele começou a andar para dentro da escuridão. Tateando
até o fim da parede a sua direita, ele viu uma fraca iluminação
próxima e seguiu em sua direção. Uma voz ligeiramente alta e um
tanto alegre o recebeu.
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 Ah, que bom! Você viu! –disse o Vulto, sentado de pernas
cruzadas ao lado de uma pequena fogueira feita dentro de um
grande tonel vermelho e velho.
 Vi o que?
 Aquele pedaço de madeira preta que eu deixei pra você ver a
porta! –Os dois trocam olhares, enquanto tentavam compreender
um ao outro. –Ué, você não viu? –Cândido se sentiu tolo pelo que
pensara sobre aquele objeto. –Calma... Não é como se você
estivesse de todo errado...
 Hã?
 Aquele objeto que você descobriu ser um pedaço de madeira...
 Mas, como você...?
 ...Sabe o que você está pensando? Há há há há! –O Vulto
gargalhou desembaraçadamente, enquanto Cândido se
envergonhava com a situação –Eu pensei que você já tinha
entendido! –Cândido baixou um pouco a cabeça, se sentindo
ainda mais tolo. –Não, não... Não fique com vergonha. O que
acontece é o seguinte: eu sei da mesma forma que eu soube o seu
nome ontem, Cândido!
 Mas como você soube o meu nome!?
 Oras, da mesma forma que você soube me chamar de Vulto! –
Cândido riu de lado. Não poderia ser o que estava pensando.
 Você quer dizer...
 Sim...
 ...Que nós...
 ...Continue...
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 ...Lemos a mente um do outro? –Cândido finalmente olhava
para o mendigo, descrente de poder estar certo, mas sentindo
estar, após finalmente conseguir falar o que pensara.
 Mais ou menos. Na verdade, nós ouvimos o que estamos
colocando pra fora.
 HÃ? –Cândido se deixa ficar boquiaberto, enquanto buscava
entender do que se falava.
 Seu nome lhe cabe bem, Cândido. Você é um real sincero...
Você naturalmente deixa fluir de si o que pensa e sente. E,
enquanto estiver desarmado, vai ser mais difícil de você se treinar
para que isso não aconteça...
 Desarmado?
 Sim. –Disse o Vulto enquanto se levantava.
 Sim, eu... –Cândido olhou para trás e se lembrou dos dois
homens que poderiam ainda estar do lado de fora.
 Eu sei, eu sei... Eu estava ouvindo.
 Daqui?
 Sim! –Diz ele enquanto se vira de costas para Cândido e
caminha em direção a um canto. –...Não ouvindo com as orelhas!
Ouvindo seus pensamentos e os pensamentos deles que você
ouvia...
 O que é isso? –Ele diz observando enquanto o homem pega
algo com cuidado naquele canto. Se virando, o Vulto lhe
responde.
 Ah, isto... –Ele mostra um objeto como o que Cândido antes
vira sobre seu ombro. –...É minha espada.
 Espada? –Ele observa ser o objeto que vira antes sobre seu
ombro.
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 Sim. É claro que, nesta velha bainha de fuligem ela não parece
muito, mas... –Dizia o Vulto enquanto empunhava aquele objeto
para cima e o olhava com orgulho. –Esta fuligem vem do mesmo
lugar que muitas boas espadas. E, se você quiser, dela virá a sua
também.
Sua conversa é interrompida pelo som de metal sendo
atingido. Olhando para trás, Cândido se desespera. Enquanto as
batidas se tornam mais frequentes e mais violentas, ele se vira
novamente para o Vulto.
 Mas, eu preciso de uma arma agora! Eu não posso esperar até
você forjar uma.
 E você acha que eu estou falando de uma espada normal?
 Não...?
 Onde você acharia um pedaço de metal que pode ajudar
alguém a ser mais sincero?
 Eu não estou entendendo mais nada! –Cândido diz, coçando o
cabelo de forma desesperada enquanto deixava sua cabeça baixar
por seu peso.
 Olhe para mim, meu amigo! –Diz o Vulto colocando a mão
esquerda sobre o ombro direito de Cândido, que levanta o rosto.
–É mais simples do que parece... As pessoas acham que precisam
ser honestas consigo mesmas, quando chegam a esse ponto. Mas
você, como eu, sabe que há algo mais que isso.
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A atenção de Cândido se desviou para um som metálico
mais forte e violento que antes. A porta pela qual entrara. Um dos
homens que o perseguiam lançava todo o seu peso contra ela. O
som do metal se retorcendo ecoa estrondoso pelo velho prédio
abandonado.
 Preste atenção. –O Vulto fala de forma direta e seca. –O
mundo é cheio de mentiras. As mentiras se dão simplesmente
porque as pessoas têm medo de ser como são. É esta a diferença.
Um alto som ecoa, como se uma tora de madeira tivesse
atingido um velho e enferrujado sino.
 Nós sabemos que não há necessidade para tentarmos ser algo
que não somos. Mais do que sermos honestos e dizermos aquilo
de que temos certeza, nós somos sinceros, com nossos
sentimentos, com nossas emoções. E, por isso, temos uma chance
que os outros não costumam ter...
Dando um passo para trás, ele vira seu rosto para o objeto
que empunhava e fala com uma voz segura e forte:
 Aufwachen1, Schmied2! Temos trabalho a fazer!
1
2
Aufwachen: Acorde, em Alemão.
Schmied: Ferreiro, em Alemão.
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O objeto em suas mãos começa a se tornar mais claro
lentamente, absorvendo a fuligem e se mostrando uma espada
cuja lâmina se acende cada vez mais.
Cândido estava sem palavras. Não compreendia como tal
coisa era possível. Seu silêncio boquiaberto foi interrompido por
um comando. “Agora fique quieto, que eu tenho trabalho a fazer.
Feche os olhos... Imagine seu maior inimigo, e se imagine capaz de
se defender dele.”
O jovem fez o que o velho lhe ordenara. Havia uma
estranha paz naquela situação. Ouvia o ecoar violento da porta
sendo derrubada, mas era ainda assim um som distante. Na
mente de Cândido, as palavras do Vulto eram nítidas, mas
pareciam mínimas, quase inaudíveis em volume, mas
perfeitamente compreensíveis.
A compreensão lhe chega finalmente. Em sua mente,
aquele comando era insano, irreal, mas imediatamente a mente
de Cândido se viu batalhando um ser que lhe era familiar, mas
desconhecido. E, por mais que houvesse medo, havia nele aquela
atenção que lhe permitira vencer a batalha de alguns minutos
antes.
 Agora que a gente entrou já era! Você tá perdi... –A voz de
Marcus se interrompe em um tom de incompreensão. O
homenzarrão fica sem ação.
 Eu sabia! Ele tava atrás de alguém pra fazer esses rituais de
magia negra. –Cândido se sentiu irrequieto após ouvir isso, mas
pensou ser normal ver uma espada incandescente e achar ser
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magia negra. Por um instante, se perguntou por que estava
aceitando tão bem aquelas coisas tão improváveis. Seus
pensamentos foram interrompidos, porém, pela voz do Vulto.
 Abra seus olhos e puxe a espada de seu peito...
Cândido arregala seus olhos aterrorizado. Olhando para
baixo, ele vê que cravada na altura de seu coração estava uma
lâmina de uma espada similar a Schmied. Deixando sair de si uma
leve luz que se apagava lentamente, a lâmina exalava um cheiro
tal qual o vapor de uma sopa que começa a se tornar espessa
demais. Imediatamente soube se tratar de seu sangue.
Cândido olha apavorado para o Vulto, em busca de
explicações, vendo-o ajoelhado, de cabeça baixa, ofegante.
 Por que está me olhando assim? Vai me dizer que sente dor? –
Surpreso, Cândido percebe que realmente não sentia qualquer
incômodo. O Vulto levantou sua cabeça em direção a Cândido
com um olho ainda fechado pelo cansaço. –Essa espada não é a
minha! –Cândido percebeu que aquela espada incandescente
estava caída no chão junto à mão direita do Vulto. –Pare de tentar
entender pelos seus arredores. Se acalme e sinta!
Tranquilizando a mente, Cândido sentiu que estava bem.
Aquilo que via não o fazia se sentir mal. Era apenas uma sensação
nova. Cândido decidiu por usar aquilo para si, e, com seu
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tranquilizar, lágrimas verteram de seus olhos, caindo sobre a
lâmina e tornando-se vapor.
Colocando as duas mãos ao seu redor, ele puxou a lâmina
de si. A luz era quase nula, mas suficiente para que visse seu
sangue terminando de sumir. Sentia-se bem. Pensou nunca ter se
sentido assim antes. Mas logo notou estar errado. Era como se
sentia quando era criança e brincava de algo que lhe era
realmente divertido.
Com o mesmo sorriso de quando era criança, ele olhou na
direção dos dois empunhando sua espada, mas não os viu mais.
Os sons da porta se abrindo violentamente foram ouvidos ao
longe.
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Chama na Escuridão
Ele baixou a cabeça fechando os olhos e sorriu de lado.
Pensou na ironia da atitude dos dois. Começou a rir. O Vulto o
acompanhou, rindo mais alto. Um ria mais alto que o outro, até
que o magro homem vestido de sombras jogou sua cabeça para
trás e gargalhou como na primeira vez em que o viu.
Cândido parou de rir e olhou atentamente para o Vulto.
Aquela imagem estalou em sua mente, e foi seguida de tudo o
que ocorrera desde que conheceu o homem.
Em um rápido movimento, Cândido se jogou para frente e
agarrou o colarinho do Vulto com a mão direita, tentando-o
levantar. Não pôde. Ele era um pouco mais alto e Cândido não
tinha força para tanto.
 O que? –O homem pergunta surpreso, olhando para Cândido.
 O que...? –Cândido baixa a cabeça e diz em voz baixa, confuso.
Levantando a cabeça em um movimento rápido, ele grita
enfurecido. –O QUE DIABOS TÁ ACONTECENDO AQUI!?
O Vulto olha para ele surpreso, sem ação. Enquanto uma
lágrima reluziu o amarelo do fogo ao escorrer do olho do jovem
rapaz, o Vulto sorriu ligeiramente.
25
 Acho que eu fiquei tão confuso quanto você quando aconteceu
o mesmo comigo. –Ele disse colocando a mão sobre o ombro de
Cândido. –Respire fundo e sente-se... Eu vou explicar...
Cândido se sentou ainda confuso enquanto e limpou as
lágrimas dos olhos enquanto o Vulto começava sua explicação.
 Como você sabe, muitos anos atrás uma classe guerreira teve
uma grande ascensão. Depois de batalharem por muitos anos
como nada mais que guerreiros treinados, a estabilidade que em
que se encontraram com o fim das guerras os levou a treinar-se
para o acaso de serem necessários. Enquanto estudavam as
armas, eles começaram a estudar o porquê das armas, e o porquê
de se armar. O valor de defender a vida e de se lutar pela vida. De
se viver...
 ...Samurais.
 Sim... Junto com as guerras civis e a necessidade de se proteger
cada vez melhor as terras, a arte de manipular as espadas se
desenvolveu de forma rápida, assim como a produção de espadas
aumentou. Com o fim das batalhas, a arte começou a ser
estudada para ser melhor compreendida, tanto no campo da
produção de espadas quanto no seu uso em batalhas. Bem
diferente das ideias que se tem hoje em dia por esses desenhos e
mangás que você tanto viu. –O sorriso que saia naturalmente de
Cândido enquanto ouvia sumiu e deixou em seu lugar um rosto
enrubescido. –Calma,... Muitos dos que estudaram toda a história
26
do Japão me veriam três noites atrás e não perceberiam o que
você percebeu.
 Então, você é um samurai? –Cândido perguntou como uma
criança excitada e atenta, se inclinando para frente.
 Calma, deixa eu continuar...
 Sim, claro... –Ele voltou a sua posição anterior, um pouco
envergonhado por sua atitude.
 Ninguém podia deixar de sentir quando um guerreiro
conseguia manejar sua espada de forma particularmente boa.
Assim, quando começaram os estudos sobre a forma de criar
espadas e a forma de utilizá-las, logo surgiu a noção de que seria
algo espiritual.
 “A espada é a alma do samurai”.
 Tokugawa Ieyasu... A estória que contam é que ele teria sido o
primeiro a perceber essa ligação entre a alma e a espada.
 Então, desde aquela época já haviam espadas assim? –O Vulto
o olhou com uma cara séria e impaciente. –Desculpe... –Ele
respira fundo e deixa o ar sair antes de continuar.
 Até onde se sabe, não... –Ele diz fechando os olhos e se
acalmando. –...As espadas como a minha são bastante raras e
gerações podem passar sem que uma nova apareça.
 Então... –Cândido se inclina para frente ligeiramente, se
parando ao ver o rosto impaciente a sua frente. Ele retorna a sua
posição anterior.
 Eu sei que isso tudo é confuso, mas um dia descobriram que
existe uma forma de ligar sua alma ao mundo e alterá-lo...
 ...
 Pode perguntar... –Diz o Vulto, cruzando os braços de olhos
fechados.
27
 O que é a alma?
 Essa não é a melhor das perguntas... –Ele diz colocando a mão
direita na nuca, um tanto desconcertado. –Eu sei que parece algo
imprescindível de se entender para que tudo isso faça sentido,
mas ninguém realmente sabe o que é. De fato, nem mesmo este
nome é o único dado para o que estou falando...
 Então... –Diz ele confuso, sendo interrompido pela explicação.
 Olha, nós só sabemos de três coisas: 1) A alma muda. A alma
de um adulto não é igual a quando ela era criança... Ela, de certa
forma, se abre mais conforme nós nos desenvolvemos.
Supostamente, nenhuma alma se desenvolve da mesma forma
que outra. Todas seriam únicas; 2) A alma não é maior ou menor,
ou mais poderosa, ou menos poderosa. Ela parece ser uma réplica
do universo com o qual você tem contato. Ou, pelo menos, a alma
que lhe é alcançável é. Alguns dizem que a alma seria, sim, uma
réplica do universo e os limites são nossos em perceber as partes
que ainda não alcançamos. E terceiro...
 ...Sinceridade?
 Já te disseram que você é muito irritante?
 Desculpe é que...
 ...É normal. Tudo isso é muito excitante, não é? Imagine
quando você começar a usá-la.
 Usar?
 Sua espada.
 Minha espada!
28
Cândido olha desesperado para a palma de sua mão, para
o chão perto dele, mas não encontra sua espada. De fato, não se
lembrava de quando a largara.
 Acalme-se. –O Vulto abanava a mão direita de cima para baixo
enquanto tentava acalmá-lo.
 Como vou me acalmar? Ela sumiu! Depois daquilo!?
 Depois do que?
 Depois de você encravar ela no meu peito!
 Incrível... – O Vulto ficou boquiaberto. –Então você se lembra?
 Claro! –Cândido diz irritado pelas palavras do Vulto. –Acabou
de acontecer!
 Sim, mas... A maioria das pessoas não consegue se lembrar da
experiência por ser muito traumática. Do que você lembra?
 Bem... –Cândido parou de procurar e se acalmou um pouco
enquanto explicava. –Você me disse para ficar parado e fechar os
olhos...
 Sim... E depois?
 E aí, quando eu abri os olhos, uma espada brilhando fraco
estava encravada no meu peito. Eu fiquei desesperado por um
instante, mas, aí você disse que eu não deveria estar sentindo dor,
e eu notei que realmente não estava...
 Incrível... Eu nunca conheci ninguém que se lembrasse de toda
a experiência... Ainda mais logo depois dela. Normalmente levamse anos para que a mente se recupere a esse ponto!
29
Por um instante, o Vulto não pode deixar de pensar em
quão incomum era aquilo. Ele nunca encontrara alguém cuja
mente passasse por aquilo e se recuperasse em menos de um
mês.
Aquela era sua marca. Por toda sua vida, sentira certo
orgulho de ter levado tão pouco tempo, tal qual de ter conseguido
em menos de um ano não ter mais os pesadelos. Chegara a ser
reconhecido por isto.
 Ei! Você está bem? –A voz de Cândido o acorda.
 Hã? Ah, sim. Claro...
 E... –Cândido tenta voltar ao assunto anterior enquanto o Vulto
voltava a si. –Qual era a terceira coisa?
 Hã?
 Você disse que sabiam três coisas, que a terceira era a
sinceridade, mas parou no meio...
 Ah, sim... –Ele tosse colocando o punho direito na frente da
boca, como que para reorganizar os pensamentos. –A terceira é a
questão que falei desde o início... A sua espada, por exemplo.
 O que tem minha espada?
 Logo antes de vê-la pela primeira vez, o que você pensou?
 Bem, eu... –Ele olhou para a palma da mão direita e tentou se
lembrar. –Eu queria ter como me defen...
 Não! –O Vulto corta o que ele dizia. – Isso foi o que você sabia
que precisava. Mas, o que exatamente você queria?
30
Cândido fechou os olhos fazendo força para se lembrar.
Imagens do Vulto com sua espada surgiram em sua mente. Em um
estalo, ele se lembrou de algo que pensava querer ter naquele
momento em que estava em frente à lâmina incandescente que o
Vulto empunhava.
 Uma espada.
 Exato. E quando a luta acabou, você ainda queria ter sua
espada?
 Não, eu nem pensei nela mais. Eu só queria entender.
 Pois é... Então sua mente parou de sustentar a espada para se
focar em entender o que aconteceu. –Cândido parecia ainda
confuso, mas compreendendo até certo ponto o que ocorrera. –
Ao longo do caminho para melhor compreender o que ocorre
entre as almas e as espadas, foram percebidas diversas
capacidades da alma. A primeira foi a aura, que nos permitia agir
como sempre, mas superando nossos limites. Era basicamente o
que os samurais e guerreiros que primeiro notaram essa ligação
faziam. O mesmo que todos, só que mais rápido, com mais força,
etc...
 Hum... –Cândido consentiu, tentando se lembrar se sentira algo
diferente enquanto brigava com os dois homens que o
perseguiram.
 Isso mesmo... Você não achou que um garoto gordinho e
baixinho conseguiria derrotar alguém mais alto e mais forte tão
facilmente, achou? –Cândido parou para pensar em quão bemsucedido tinha sido. –Não me entenda mal... A estratégia foi boa...
Mas ela só funcionou porque você planejou sentindo o que
31
poderia fazer com a sua aura. É por causa dela que às vezes você
consegue fazer coisas improváveis, que só consegue fazer se se
concentrar. –Cândido começou a se lembrar de diversos
momentos em sua vida em que fizera coisas que o
impressionaram, que pensara não poder conseguir, mas teve a
sensação de que conseguiria. –Eventualmente se chegou na
técnica que eu usei para produzir a sua espada... Mas, indiferente
de qual seja a técnica, tudo depende da sinceridade.
 Mas,...
 Sinceridade é bem mais do que não mentir. Sabe como dizem
que “a honestidade é a melhor política”?
 Uhum
 Bem, pois é. É ainda assim só uma política. Uma pessoa
honesta não conta mentiras, apenas fala o que sabe ser verdade.
E isso já é bem difícil, mas não impede uma pessoa de esconder
informações. Se a pessoa pensa em não esconder nunca
informações, ela então diz diversas informações consideradas
verdadeiras, mas que complicam a compreensão, ou sugerem algo
que se sabe não ser necessariamente verdadeiro.
 Hum...
 Mas nós, meu caro, nós somos sinceros.
 Como assim?
 Nós não paramos naquilo que temos certeza. Damos as
informações que sabemos serem relevantes. Não temos como
fingir que não estamos errados. Sentimos cada alto e baixo de
nossas vidas completamente, mesmo quando não queremos.
Somos abertos para com o mundo.
 Mas o que isso tem a ver com as espadas?
32
 Todas as técnicas que te falei requerem o uso da alma. E, para
usar a alma, temos que estar ligados com o mundo. Apenas uma
pessoa que está sendo sincera consigo mesma pode ligar-se com
sua alma e ao mundo.
 Mas... Eu não entendo...
 Olhe bem para a palma de sua mão, Cândido. –Cândido baixa o
rosto e vira a palma de sua mão direita para cima. –Agora, tente
se sentir como naquele momento.
Cândido olha para a palma de sua mão, vazia. Não via sua
espada. Lembrando-se do homem a sua frente e do momento em
que empunhava a espada, entretanto, ele questionava o porquê
de não haver uma espada. Deveria haver uma espada em algum
lugar ali.
Em seu íntimo, ele sentia que deveria haver uma espada
sua. Que havia uma espada dentro dele. E, em um estalo, lhe veio
o pensamento de que, tudo o que precisava fazer era querer que
ela saísse. E assim ele quis.
Ele notou uma gota de suor escorrendo de entre seu
indicador e médio até o meio de sua palma e lá parando. Não
notava mais nada.
Irritou-se consigo mesmo enquanto mais uma gota rolava
de entre o mínimo e o anelar ao encontro da outra. Deveria ser
simples, ser fácil e comum. Se já o fizera uma vez, deveria o fazer
mais uma vez sem problemas. Ao invés disso, apenas via as gotas
se acumulando. Suspirando, pensou que talvez fosse impossível.
33
Talvez fosse tolice sua. Não podia produzir senão aquela pequena
poça no meio de sua mão.
O Vulto que observava atentamente, deixou-se cair para
trás, conformando-se. Pensou que tudo aquilo já tinha levado
bem menos tempo do que deveria. “Talvez devamos deixar para
amanhã”.
Cândido, desapontado, ficou olhando para o reflexo do
fogo naquela pequena quantidade de água enquanto mais uma
gota escorria ao longo de seu braço em sua direção.
Sua boca se abriu. Um som gutural de espanto se fez soar.
“O que foi?”. Sem resposta. Ao levantar a cabeça, ele apenas via
Cândido olhando para sua mão sem entender.
Sentando-se logo a frente dele, o Vulto perguntou o
porquê daquele espanto. Cândido aponta para uma gota de água
em seu braço, que lentamente subia até seu pulso.
A gota foi observada subindo do pulso para a poça,
enquanto outras gotas mais se juntavam. Uma pequena esfera
líquida se formou da poça. Cândido observava sem entender,
boquiaberto, até ouvir o Vulto. “E então? O que está esperando?”.
Cândido tentava entender o que ocorria. “Você não está
querendo que ela faça nada!”
Engoliu seco. Mas, sentiu que não precisava entender.
Sentiu que aquela era sua espada, e que ela faria o que ele
quisesse.
Seu rosto fica sério. Seus olhos ficam fixos. Da pele de todo
seu braço direito, novas gotas saiam em direção à esfera, se
34
juntando a ela, e, quando a viu do tamanho de seu punho, ele a
agarrou de cima para baixo. Aquela água se tornou um cabo e
uma longa lâmina curva saiu dele. Uma katana de água
acinzentada.
 Essa é minha espada? –Cândido tinha em seu rosto uma
expressão de admiração, que finalmente substituíra seu olhar
confuso.
 Uhum... E você tem que começar a usá-la se quiser entende-la.
–Cândido voltou a olhar para o Vulto confuso. –Ela é parte de
você. Tudo o que você quiser fazer com ela, você vai poder, desde
que queira que ocorra sinceramente e pense em uma forma de
fazê-lo. Mas, se você não acreditar que pode fazer, não vai ter
como querer com toda intensidade.
 Mas eu quis...
 Só quando você viu que aquelas gotas não eram coincidência
que você começou a se permitir querer que mais delas viessem e
que sua espada se formasse delas.
Por alguns instantes, Cândido olhou fascinado para sua
espada. Sorria de boca aberta. Sentando para trás onde estava, o
Vulto não conseguia deixar de sorrir junto com ele. Sua felicidade
era sincera.
Ele o deixou observar e marcar os detalhes de sua espada
bem, o que sabia que facilitaria a próxima vez que precisasse dela.
Então, após alguns minutos, o Vulto se levantou.
35
 Bem, chega de babar pela sua espada. Está na hora de começar
a treinar.
 Hum...?
 Olha, se você quiser poder usá-la, você deve praticar com ela,
para se acostumar com a sensação de tê-la nas mãos, de usar suas
capacidades.
 Então, o que devo fazer?
 Bem, já que estamos em um supermercado abandonado,
podemos achar algumas coisas para atacar.
 Isso era um supermercado?
 É, eu descobri na primeira vez que procurei abrigo por aqui.
Todos os mendigos precisam ficar do lado de fora por causa dos
cadeados, mas eu tinha a Schmied comigo... Me levou algum
tempo para descobrir o que eram alguns dos produtos, mas
alguns dos enlatados ainda estão na validade.
 Precisou de tempo para entender?
 Cândido... Tem um motivo pra aqueles caras terem medo de
mim... E para eu ter agarrado a minha espada quando você parou
na minha frente dias atrás?
 E qual é?
 Você está ouvindo minha voz?
 Sim...
 Olhe para minha boca... – O mendigo diz, apontando para seu
maxilar imóvel. –...Você vê algum movimento?
 Não. Mas, então como...?
 Como já lhe disse, somos reais sinceros. Jogamos a informação
para fora para todos que possam pegá-la. Na melhor das
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hipóteses, para aqueles caras eu sou só um homem falando uma
língua que não entendem.
O mendigo se levantou, pegando sua espada já
enclausurada em uma nova camada de negro e seguiu mais para
dentro do prédio. Quando Cândido pensou que não deveria
prosseguir por não mais enxergar, o Vulto levantou sua espada e a
fez acender.
Pequenos animais correram para buracos e cantos não tão
iluminados. O vasto andar tinha escombros de degradação por
todo lado. Prateleiras de enlatados ainda em boas condições
ficavam nas mesmas paredes que acúmulos de madeira podre e
metal enferrujado.
Dentre os vários móveis quebrados, o homem disse a ele
que atacasse como quisesse a um deles. Cândido não se pensava
capaz de causar qualquer dano, até que o Vulto deu-lhe um
empurrão para frente e disse “Eu sei que é difícil daqui. Pode ir lá
pra frente dele”.
Em frente a uma estante de madeira cuja prateleira mais
alta já não existia e a segunda mais alta tinha sido comida até a
metade pela podridão, ele segurou sua espada com as duas mãos
e fez um rápido movimento de cima para baixo.
Cândido sentiu água espirrar sobre seu rosto. A sua frente,
via pequenas poças no móvel. “Não! Você tem que querer
destruir, cortar, causar dano! Se pensar na sua espada como água,
ela vai agir como água!”
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Com um rosto mais decidido, Cândido sentiu a água de seu
rosto escorrer para sua espada, assim como a que ficara nas
prateleiras. Repetiu para si mesmo que iria cortar a madeira. Iria
cortar a madeira.
Em um movimento mais rápido, ele levantou a espada e
cortou para baixo. Sem sentir qualquer impacto, ele pensou que
não tinha conseguido. Antes que pudesse tentar de novo,
entretanto, ele viu a metade da segunda prateleira cair sobre a
terceira. A terceira, com o peso, quebrou-se do lado oposto ao
corte feito também nela e caiu sobre a última, que caiu no chão. A
lateral do móvel caiu sobre tudo.
 Viu? É fácil... É só querer. –Disse de longe o Vulto, com uma
cadeira de escritório a sua frente. –Vamos tentar agora com um
pouco de movimento!
O homem puxou uma cadeira para si com o pé direito e a
empurrou em direção a Cândido, que ficou surpreso. Por um
instante, ele não sabia o que fazer, e então se lembrou da espada.
A seriedade subitamente tomou o seu rosto e ele fez um
movimento da esquerda para a direita, gritando “voe!”.
A cadeira foi arremessada para o canto oposto do andar,
batendo contra a parede e causando a queda de um pedaço de
teto sobre o canto. “Nada mal”, diz o homem virando seu rosto de
volta para Cândido, que sorria feliz por ter conseguido. O Vulto
disse que talvez devesse encerrar por aquela noite, pois já tinham
passado muito tempo ali.
38
O líquido que formava a espada de Cândido voltou a ser
uma esfera em sua mão, que foi absorvida por sua pele. O homem
não conseguia deixar de se sentir impressionado com a velocidade
com que Cândido conseguia ampliar suas capacidades.
 Então tá... Vamos treinar mais amanhã? –Perguntava Cândido
enquanto começava a andar na direção da porta.
 Espere... Eu tenho que falar uma coisa com você.
 Sim, diga. –Cândido parecia confortável, como se nada de novo
houvesse acontecido naquela noite. Isso fazia com que o homem
pensasse que ele poderia não estar entendendo a situação.
 Duas coisas, na verdade. A primeira é que nós dois não somos
os únicos reais sinceros no mundo. Muitas pessoas desenvolvem
até certo ponto essas capacidades naturalmente. Agora que você
tem uma espada, ela vai te ajudar a não lançar ao vento todas as
suas emoções e pensamentos para que qualquer um entenda o
que você pretende antes que faça.
 Hum, tá...
 Conforme você abra mais sua alma para a utilização da espada,
mais sua espada será capaz de fazer. Então, você vai imaginar
naturalmente coisas que poderia fazer com ela. Se acreditar que
pode fazê-las, você vai conseguir.
 Então tenho que continuar treinando para descobrir o que mais
posso fazer...
 Exato! Você também precisa aprender a se comunicar com sua
espada cada vez melhor, para que seja mais fácil que ela entenda
o que você quer.
 Como assim?
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 Bem, sinceridade tem níveis, por assim dizer. Parte de ser
sincero sobre algo é acreditar, então acreditar mais leva a um
nível mais profundo de sinceridade, e mais sinceridade leva a
maior facilidade para conseguir usar sua espada...
 Hum...?
 Bem, isso vem com prática... Mas, você precisa pensar em um
nome para ela.
 Um nome?
 Sim... Ela pode atender por mais de um nome, mas, como você
deve saber, chamar alguém por seu sobrenome mais
naturalmente costuma ser menos problemático para uma
conversa do que chamar alguém por um apelido de forma
forçada, não é?
 Sim, eu entendo. –Com uma cara de más recordações, Cândido
se lembrou de como queria ser chamado por seu sobrenome no
segundo grau e nunca fora. –Você não poderia dar um nome a
ela?
 Não. Definitivamente não! –Uma expressão de absoluto pesar
toma a face do Vulto.
 Tudo bem, tudo bem... Algo mais?
 Sim. A segunda coisa é que você deve ter cuidado redobrado.
 Sim, claro. Não posso deixar que alguém me veja por aí com
uma espada.
 Não, não é disso que estou falando.
 Você tem medo que vejam seu “esconderijo secreto”?
 Claro que não! Você acha o quê, que somos personagens que
nunca vão morrer, e que se morrêssemos seríamos trazidos de
volta à vida de alguma forma? –O homem gritou impaciente com
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as imagens de histórias em quadrinhos que via vindas da mente
de Cândido. Acalmando-se, ele continuou. –Você tem que ter
cuidado com a sua espada e com a sua alma,... Eu nunca vi uma
parecida com a sua.
 Como assim? Líquida? Aliás, por que ela virou líquida?
 É normal... Chamam isso de reflexo de idealização. Como a sua
espada depende de sua ideia de como ela deveria ser, é comum
que ela seja parecida com alguma que você tenha visto antes num
primeiro momento. Conforme você precise usá-la, é normal que
ela se adapte até tomar a forma que terá indefinidamente.
 Então, espadas líquidas são comuns?
 Não. Eu mesmo só me lembro de ter ouvido falar de uma
antes. Mas você é bem incomum...
 Algo mais que eu deva saber? –Cândido pergunta um tanto
receoso.
 Naquele momento em que você fechou os olhos para que eu
criasse a sua espada, eu peguei a Schmied e aumentei a
concentração de energia nela para ativar a conexão da sua alma
com o mundo externo, como manda a técnica. Eu mandei você
fechar os olhos porque evita parte do nervosismo de ver uma
lâmina brilhante sendo mirada em sua direção.
 Sim, eu tinha certeza de que era isso que estava fazendo...
 É mesmo?
 Sim... O que mais você poderia fazer com uma espada?
 Na verdade, a técnica usa um pouco da energia da Schmied em
uma forma bem concentrada, para ressoar na sua alma e fazer
com que ela se conecte pela Schmied com o mundo externo. A
conexão artificial costuma facilitar a formação de uma real em
seguida.
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 Entendo...
 Mas, para isso, se precisa achar o ponto do corpo com o qual a
alma está mais diretamente ligada. A luz lançada normalmente
reflete nessa parte do corpo com facilidade... Para pessoas com
habilidade manual, costuma ser a mão com que se escreve; Para
corredores e atletas, muitas vezes é o pé da perna de apoio;
Pessoas com maior resistência em algum órgão podem ter uma
ligação forte ali...
 E eu?
 Nenhuma...
 Mas como...?
 Eu também não entendi... Todo o seu corpo parecia refletir
igualmente a luz da Schmied. Por um instante eu não soube o que
fazer.
 Então...?
 Sim, eu arrisquei... –Cândido não conseguiu evitar se mostrar
desconfortável. O homem baixou a cabeça, em uma mistura de
preocupação e arrependimento. –...Não me entenda mal. Não foi
um mero chute. Nas raras ocasiões em que existe mais de um
ponto mais reluzente, existe uma saída. Atira-se a mesma
quantidade de energia em todos os pontos ao mesmo tempo.
Então, teoricamente, eu sabia que não poderia causar algum mal,
mas...
 ...Mas, você não tinha certeza. –Cândido completou olhando
para ele.
 Exato. –O homem tinha olhos de sincero pesar ao responder. –
Eu não pude deixar de pensar que, se não fizesse aquilo naquela
hora, teria de fazer mais cedo ou mais tarde.
42
Cândido fechou os olhos e suspirou. O Vulto fechou os
olhos pensando que poderia ter perdido sua ligação com ele.
Subitamente, o Vulto sentiu seu ombro ser tocado. Abrindo os
olhos surpreso, ele vê Cândido com a mão direita sobre seu
ombro esquerdo, sorrindo e dizendo “Bem... Não é como se eu
não tivesse escolhido por fazer isso...”
O Vulto sorriu e colocou sua mão direita no ombro
esquerdo de Cândido, e deixou um baixo “obrigado” sair.
Cândido deixou o lugar observado pelo homem, enquanto
ouvia em sua mente o seu alívio, sentindo também que ele tinha
algum receio em lutar.
43
O Rato e o Bebê
O dia seguinte começou tarde para Cândido. Duas horas
mais tarde até do que lhe era de costume. Entretanto, pela
primeira vez em muito tempo, ele se sentiu diferente.
Em inúmeras manhas antes daquela, ele acordou com o
despertador de seu celular e o colocou para tocar novamente.
Algumas vezes, colocava-o para dali a quinze minutos ou meiahora. Na maioria das vezes, porém, querendo acordar apesar de
não conseguir, apertava a opção de espera, e voltava a fazê-lo
cinco minutos depois. E cinco minutos depois de então, repetindo
o ciclo.
Naquela manhã, porém, tinha-se mais acordado. Demorou
alguns minutos para perceber que não sentia seu corpo pesado
como de costume. Diversas possibilidades passaram por sua
mente. A mais forte seria a de que ter sido capaz de usar sua
espada o tornara mais confiante. Um sorriso de lado tomou seu
rosto ao pensar na noite anterior, mas não podia ter certeza.
Ao longo do dia, a qualquer momento em que o que fazia
lhe era tedioso, parava para fazer sair sua espada. Então ficava a
observá-la, e a perceber os detalhes. Aquela textura lhe parecia
única. O cinza claro transparente lhe parecia uma cor como
nenhuma outra.
A observar os detalhes da lâmina, porém, se deteve no fim
do cabo. Aquela curvatura lhe indicava ser definitivamente uma
katana, similar às espadas japonesas que vira antes. Mas não
possuía o círculo que tradicionalmente delimita a lâmina e o cabo.
44
Não tinha certeza do que pensar. Já havia visto espadas
japonesas sem eles, mas com pouca frequência. Pensou que
poderia ser uma marca de produção ou uma tradição sem motivo,
abandonada. Talvez um símbolo social de superioridade.
Depois de rápida pesquisa, descobriu sua utilidade. O
tsuba serve para delimitar a área das mãos, para impedir que o
espadachim as corte enquanto força a espada para frente em um
ataque. Eram muito decorados, havendo dinastias de artesãos
dedicados apenas a eles no passado. Muitos se tornaram heranças
e foram passados de geração a geração.
A história lhe era impressionante. Por um instante pensou
que sua espada deveria ter um tsuba. Formou sua espada em sua
mão direita para observá-la e, ao imaginar sua espada com um,
quis que o tivesse. Sem que houvesse um comando, parte do
líquido que formava a lâmina escorreu por ela e se juntou sobre a
mão de Cândido. Fez-se então uma guarda oval e nela ele viu
emergirem pequenos desenhos: um triângulo sob a lâmina e um
losango sobre ela. Imediatamente sentiu nestes desenhos uma
beleza simples.
Entretanto, estalou em sua mente que não haveria porque
haver uma guarda para suas mãos. Tinha para si uma espada por
assim querer sinceramente, e tinha que ela cortasse um alvo por
assim desejar sinceramente. Nunca iria sinceramente querer se
cortar, pensou. A tsuba, de um rígido disco, se tornou líquido e se
deixou escorrer, as gotas então voltando para a espada.
Naquela dúvida, passara-se quase toda a tarde. Recolheu
sua espada e se arrumou para o trabalho. Partiu-se então a tarde,
o trabalho, e a noite se iniciara quando ele voltava.
45
Naquela noite o mendigo não esperava por ele encostado
na parede como sempre. “Está dentro do prédio”, pensou. Ele
passou pela porta e sentiu que o prédio estava mais frio e mais
escuro do que na noite anterior. Seguindo a pouca luz, chegou ao
tonel que antes abrigava uma forte fogueira, agora abrigando uma
chama menor.
Olhando para os lados, ele não percebeu a presença do
homem ou de sua espada, embora pensasse que ela poderia estar
ali se estivesse em seu invólucro escuro.
Lembrando-se de como era o prédio pelo lado de fora,
sabia que deveria haver um segundo andar ao menos. Voltou
procurando para a porta e encontrou uma larga escada perto
dela.
Pegou seu celular do bolso e o acendeu, virando-o então
para sua frente para iluminar o caminho. “Degraus altos”, ele
pensou. Andando por entre os pedaços de lixo não identificável
pelo chão, ele subiu se assustando com os movimentos súbitos e
sutis que pensava ver, sem nunca ter certeza de tê-los visto ou
não no momento seguinte.
O segundo andar era um breu quase absoluto, senão pelo
Vulto. Em pé de costas, Cândido o viu com sua espada em mãos,
liberando um pequeno brilho, suficiente apenas para iluminar seu
espadachim e um pouco de chão e lixo ao seu redor.
Dando o primeiro passo da escada para o chão do segundo
andar, Cândido esboçou chamar a atenção do homem, chegando
a levantar a mão e abrir sua boca. Seus movimentos, porém,
pararam.
46
Uma silhueta passa entre ele e o parapeito da escada,
seguindo pelos degraus.
Cândido se vira rapidamente em busca do que teria sido
aquilo, no exato momento em que o celular se apagou. Voltando a
liga-lo, Cândido o direciona para os degraus, não encontrando
nada, e então para os seus arredores.
Teria imaginado? Não, tinha certeza demais para acreditar
que tinha imaginado. Também tinha em mente o que vira. Não
poderia ser um animal, mesmo que maior que as baratas e ratos
que vira ali. O formato era de uma perna humana.
Sente uma gota de suor escorrer pelo seu rosto, se
surpreendendo por uma voz vinda de trás de si.
 Cândido! –Ele se vira rapidamente, assustado. O homem
acendia sua espada incandescendo uma luz um pouco mais forte
enquanto andava lentamente na direção dele. –Você me achou.
Que bom!
 Do que está falando?
 Normalmente você sentiria a minha presença desde lá de
fora,... Mas não sentiu, não é?
 Bem... Não. Eu estava achando estranho, na verdade... Pensei
que poderia ter ido pra algum outro lugar, se não conseguia sentir
nenhum pensamento.
 Desculpe, desculpe... –Ele fala com um sorriso e os olhos
fechados. –...Era um teste.
 Um teste?
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 Sim. Como eu já disse, você tem que praticar se quiser
entender como usar sua alma. Então, eu usei a Schmied para
ocultar meus pensamentos. Quanto mais eu ocultasse meus
pensamentos, mais você teria de se concentrar em querer lê-los. E
como você não quis ocultar seus pensamentos, quando eu
percebia que você queria encontrar meus pensamentos mais, eu
me concentrava para que a Schmied os ocultasse mais.
 Hum...
 Além, é claro, de você precisar manter uma mente viva...
 Hã?
 Bem... Muitos de nós começam a confiar demais na sua
capacidade de ler os pensamentos e querer que suas espadas
funcionem. Mas, em uma luta entre sinceros e a realidade, você
nem sempre vai poder querer o suficiente para conseguir seu
objetivo.
 Então, há limites?
 Claro. Eu já te disse. Existem níveis de sinceridade. E se você
quiser cortar a espada de outro real sincero? Quem vai ganhar?
 Quem quiser de forma mais sincera...
 Bem, sim... –Diz o Vulto, um pouco incerto de como explicar. –
E não...
 ...
 É assim: a sua força de vontade também conta. Aliás, ela conta
muito. Na sinceridade é uma forma de tornar a sua força de
vontade mais capaz de agir... Entende?
 Então, se eu tiver força de vontade suficiente e for sincero o
suficiente, eu consigo o que estiver querendo...?
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 Sim... E quanto mais sincero você for, menos força de vontade
precisa. Quanto mais força de vontade tiver, menos sincero
precisa ser.
 Acho que entendi. –Cândido tomou um momento, lembrandose então do que ocorrera logo antes. –Escuta, Vulto...Tem mais
alguém aqui com você?
 Por quê?
 Quando eu estava chegando aqui em cima, eu vi várias coisas
se mexendo no escuro.
 Ratos? –O Vulto diz se afastando de Cândido enquanto olhava
para o chão.
 Não... Ratos e baratas me dão uma sensação ruim, mas não me
passam essa estranheza.
 Então você não mata ratos e baratas? –O homem perguntou de
longe, virando-se um pouco na direção de Cândido.
 Não... Eles só estão tentando sobreviver.
 Hum... –O Vulto baixa a cabeça para frente e ri de lado
fechando seus olhos.
 O que foi?
 Era o que eu esperava de você... A inocência que eu sinto vindo
de você é um dos motivos que me faz saber que você merecia ter
sua própria espada, meu caro. –Cândido enrubesceu. Sua
vergonha foi sentida imediatamente pelo Vulto. –Não é motivo
para se envergonhar. A inocência é um dos motivos mais nobres
pelos quais se pode lutar... –Depois de um momento, o Vulto
abriu os olhos e olhou para Cândido tomado de seriedade. –O que
me preocupa é a sua ingenuidade...
 Ingenuidade?
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 Sim. Existe um motivo para que você não queira matar um
rato.
 Ele não me fez nada.
 Exato. –O Vulto diz forte, levantando sua mão direita com o
indicador levantado enquanto continua segurando a espada baixa
com a mão esquerda. –Mas, e todos os ratos que já fizeram algo
contra alguém?
 Hã?
 Existe também um motivo para se matarem ratos e baratas,
meu caro... E você sabe qual é...–O vulto aponta para Cândido,
continuando. –Eles causam doenças. Um terço das pessoas de
todo um continente chegaram a morrer por causa de ratos.
 Porque deixaram os ratos se reproduzir entre eles sem parar...
 Muito bem... –O homem diz baixando seu braço direito e
voltando a olhar para frente, começando a falar mais
rapidamente. –Então, você mataria os ratos que causavam a
peste?
 Sim, claro.
 Mas não mataria os ratos antes da epidemia?
 Não, claro que não!
 Então quando você mataria os ratos, se tudo o que fizeram
contra você foi viver?
 Quando não houvesse outra saída! –Cândido gritou em um
misto de sofreguidão e pena. O acelerado inquérito foi
interrompido pelo grito. Naquele momento, o Vulto viu em sua
mente a imagem de ratos sendo mortos.
 Empatia. –O Vulto baixa a cabeça, mostrando uma expressão
segura. –Mesmo quando não está usando sua espada, você se liga
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aos seres ao seu redor. Eu sabia que tinha feito a escolha certa em
lhe ajudar, meu amigo.
 Brigado,... Eu acho... –Cândido respondeu sem ter entendido
completamente o porquê daquela conversa.
 Bem, esse era o ponto a que eu queria chegar... –Diz o homem
depois de virar para Cândido, apoiando sua espada no chão e
colocando sobre ela as duas mãos. –Esta é uma das questões mais
importantes de qualquer pessoa que tenha uma arma em mãos...
Então, esta será a lição de hoje. –A luz da espada fica mais forte,
revelando o chão ao redor do Vulto, assim como duas figuras
humanoides de cor bastante escura próximas a ele.
 O... O que são essas coisas? –Os olhos de Cândido se
esbugalharam, pensando que pareciam com aquilo que tinha
passado por ele.
 Estes? – O Vulto olha para um deles. –Eles são o motivo do
meu apelido... –O Vulto volta seu rosto para frente e ligeiramente
para baixo. –Schmied...!
A espada do Vulto se ilumina por um instante, tendo então
sua luz rapidamente obscurecida por pedaços de fuligem que se
formam sobre sua lâmina. A voz firme do Vulto ecoa enquanto a
escuridão toma todo o andar com o desaparecimento da luz da
espada.
 Ruβ Golem!3
3
Ruβ Golem: Golem de fuligem em alemão.
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Eu não tenho poder divino, faço da honestidade meu poder