Número 9 - 2ª série
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CRÓNICA *
Ano 2 - Fevereiro / Março 2014
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ESCRITURALIDADES
“Para que o mal triunfe,
basta que os bons não façam nada” 1
Considerações em torno do Holocausto (Shoah) e da condição humana
1
José Carlos Venâncio
Expressão de Denis Avey (2013)
[email protected]
N
os últimos tempos, vários têm sido os títulos
surgidos no mercado livreiro português sobre
a 2ª Guerra Mundial, mormente sobre a Shoah
(Holocausto em hebraico). A maioria deles são traduções de outras línguas, com clara preponderância da
língua inglesa, o que indicia que o hipotético interesse, por parte dos leitores, por tais temáticas é também
do mercado livreiro europeu. Várias são as explicações
que, a propósito, poderão ser aventadas. Os tempos
difíceis por que a Europa passa devido, por um lado, à
crise do Euro (vivida com maior acuidade nos países do
Sul) e, por outro, ao impasse, enquanto projecto político, em que a União Europeia parece estar mergulhada,
são possíveis explicações. Quando me refiro ao impasse do projecto político em questão, tenho em conta ,
por um lado, o protagonismo (eventualmente não desejado) que a Alemanha, face à crise, assumiu, desmerecendo as instituições e mecanismos democráticos
da União e, por outro, os fantasmas e os medos que tal
protagonismo suscita nos cidadãos europeus. No que
se refere a Portugal, tecem-se, a soldo desse medo, as
mais díspares insinuações sobre a hegemonia alemã e
sobre a incompreensão e as exigências dos seus governantes (mormente da chancelarina Merkel) em relação
às dívidas públicas dos países integrantes da moeda
única com economias mais frágeis.
Evidentemente que a Alemanha unificada, por razões que estarão mais plasmadas na obra de Max Weber do que na de Karl Marx, foi, de meados do século
XIX (com a Guerra Franco-Prussiana) até ao fim da 2ª
Guerra Mundial, em 1945, um factor de desequilíbrio
político na Europa e no mundo. Esteve, por disputa de
hegemonias e mercados, no centro das duas guerras
mundiais. Não me parece, contudo, ser actualmente o
caso. A conjuntura mundial é outra e a Alemanha, mormente o seu sector financeiro, que tão diabolizado tem
sido, acaba por estar, também ele, refém das dinâmicas
mundiais, da vigência de um paradigma neo-liberal
que, se por um lado, é criticável, não nos esqueçamos,
por outro lado, que, por ironia do destino ou não, tem
sido ao abrigo do mesmo que a velha dicotomia entre
países ricos, do Norte, e países pobres, do Sul, se tem (ligeiramente) esbatido com a emergência de economias
até há pouco tempo estigmatizadas como economias
subdesenvolvidas.
Estas considerações vêm a propósito da leitura de algumas obras referentes ao holocausto, mormente do
livro A última testemunha de Auschwitz , de Denis Avey,
com o apoio do jornalista da BBC Rob Broomby. Tra-
ta-se de um livro de teor autobiográfico, escrito muitos
anos após a vivência dos acontecimentos nele relatados. Tudo se inicia com o alistamento voluntário do autor, pela aventura que esse acto, o da participação na 2ª
Guerra Mundial, poderia representar. É enviado para o
Norte de África, mais propriamente para o Egipto, onde
reforça o contingente militar britânico na luta que, então, travava contra as tropas de Mussolini em Cirinaica
(parte oriental da actual Líbia). Num primeiro momento, a disputa parecia tender favoravelmente para os britânicos, o que se altera com a chegada do contingente
alemão, o famoso Afrika Korps, comandado pelo não
menos famoso marechal Erwin Rommel, a Raposa do
Deserto. Acaba como prisioneiro dos alemães em condições humanas de modo algum comparáveis às que
irá experienciar em Auschwitz, o que vem corroborar
a imagem de Rommel, que, sendo de uma grande eficácia militar, é também de alguém que não perdeu a
sua humanidade. Aliás, associado, no fim da guerra, ao
atentado contra Hitler liderado pelo Conde de Stauffenberg, terá sido levado a suicidar-se pelos nazis com o
compromisso de nada acontecer à sua família.
Do Norte de África, Denis Avey é enviado para a Itália
num cargueiro que é torpedeado por um submarino
aliado e que se afunda. Consegue salvar-se, indo dar à
costa grega. Em terra, no caminho para norte, em direcção à Inglaterra, é preso e “levado para um campo apinhado de prisioneiros aliados” (p.118), donde é levado
para a Itália, para um campo de prisioneiros do qual
consegue fugir. Não vai longe. É apanhado e enviado,
de comboio, para Oswiecim, o nome polaco para Auschwitz. Fica alojado no campo destinado a prisioneiros
de guerra, com condições não tão más como as dos
campos de Auschwitz 1 e de Auschwitz-Birkenau, destinados aos judeus, aos “listinhas”, como são designados
no livro. Trabalham, contudo, todos juntos na construção de uma fábrica da empresa IG Farben, então um
dos expoentes máximos da indústria química alemã
que, depois da guerra, é, devido à associação com o regime nazi, desmantelada e dividida em três empresas:
a da Hoechst, a da Bayer e a da BASF, empresa esta que,
por sua vez, estivera na origem da IG Farben.
Os relatos que faz das atrocidades cometidas aos judeus, não trazendo nada de novo em relação aos inúmeros relatos que, desde o fim da guerra, foram produzidos, não deixam de ser confrangedores. Conhece, no
local de trabalho, um judeu holandês, Hans, cuja irmã
conseguira fugir para a Grã-Bretanha e que vivia em
Birmingham. Troca duas vezes com Hans a roupa e o
campo de concentração por uma noite e pede, numa
das cartas que, através da Cruz Vermelha, troca com a
mãe, que esta procure entrar em contacto com a irmã
de Hans para lhe dar notícias dele. O que, na verdade,
acaba por acontecer. Finda a guerra e depois de muito
tempo, após ter-se curado do stress de guerra (doença
então ainda não identificada), procura, com a ajuda
do jornalista que o apoiou na escrita do livro, a irmã de
Hans e consegue saber que este sobrevivera à guerra e
que emigrara para os Estados Unidos, mas que infelizmente, nessa altura, já havia falecido.
Este e outros relatos, em que se descreve a crueza e a
maldade que os homens supostamente racionais e
cultos são levados a cometer, levam-nos a pensar e a
repensar a condição humana, a suposta superioridade da civilização ocidental e o papel que a educação, a
chamada alta cultura, durante muito tempo tida como
apanágio desta civilização, desempenhou, e desempenha, na moldagem do ser humano. Os que protagonizaram o Holocausto não eram, na verdade, incultos.
Era gente saída de boas universidades que, por incorporação das ideias racistas e racialistas, por défice de
ética, subverteram o que de bom essas universidades
supostamente lhes haviam ensinado. Mais intrigante
ainda é pensar que grandes nomes das Ciências Sociais e Humanas da Alemanha apoiaram, pelo menos
a dado momento, o regime hitleriano. Como diz, e
bem, Esther Mucznik (2012), a “sofisticação, o requinte
e a eficácia da máquina de morte nazi (…) nunca seriam possíveis numa sociedade atrasada sem os meios
científicos e tecnológicos capazes de atingir tal ‘perfeição’ do mal” (p. 216). Esta constatação é, no mínimo,
intrigante. Como é possível que homens cultos (e também não cultos, claro!) tivessem sido capazes de tamanha crueldade, exercitando-a ao ponto de negarem a
sua própria humanidade? É uma pergunta que este e
muitos outros livros, as inúmeras explicações teóricas
produzidas a propósito, devidas algumas a pensadores da têmpera de Hannah Arendt, continuam a não
dar a devida resposta. É uma pergunta que fica no ar,
para utilizar palavras de um verso do poema de Luandino Vieira, “Canção para Luanda”, escrito, também ele,
num campo de concentração.
Referências bibliográficas:
AVEY, Denis, 2013 [2011], A última testemunha de Auschwitz,
Lisboa: Clube do Autor
MUCZNIK, Esther, 2012, Portugueses no Holocausto, Lisboa:
A Esfera dos Livros
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“Para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada” 1