Para que não sejamos apenas bons professores José Heleno Ferreira1 RESUMO: Análise de uma experiência da Rede Municipal de Ensino de Divinópolis, envolvendo crianças e professoras(es) de várias unidades escolares. Reflexão, a partir de Laraia (2001,) acerca do etnocentrismo e de sua presença no processo de ensino-aprendizagem. Afirmação, considerando Saviani (1999), Rios (2001) e outros, da necessidade de uma formação que concilie o desenvolvimento da competência técnica e da competência ética para a realização de um processo educativo emancipatório. PALAVRAS-CHAVE: cultura – etnocentrismo – competência – ética – engajamento social INTRODUÇÃO A bondade desarmada,incauta, inexperiente e sem sagacidade nem sequer é bondade, é ingenuidade estulta e apenas provoca desastres. Antônio Gramsci O ETNOCENTRISMO O presente texto analisa uma experiência que envolveu crianças e professores(as) da rede municipal de ensino de Divinópolis (MG), buscando, para isso, conceituar etnocentrismo, a partir da leitura de Laraia (2001) e compreender as raízes da manifestação desse fenômeno na história do povo brasileiro. Para pontuar a necessidade de vencer as barreiras que a ideologia dominante impõe aos sujeitos envolvidos no processo edu- 1 cativo, recorre-se a Rios (2001) e à discussão quanto à competência técnica e ética necessárias ao(à) educador(a) e a Saviani (1999), que defende o engajamento de professores e professoras nas lutas pela justiça social. O dicionário da Língua Portuguesa organizado por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira define etnocentrismo como “tendência para considerar a cultura de seu próprio povo como a medida de todas as demais” (FERREIRA, 1986, p. 733). Pode-se dizer que a dificuldade para compreensão do significado do termo é proporcional à abundância com que se percebe a ocorrência do fenômeno ao longo da história da humanidade. Professor Mestre do ISED/ISEC Professores em Formação ISEC/ISED Nº 1 2º semestre de 2010 A história oficial do Brasil, marcada no seu início pelo eurocentrismo, é pródiga em exemplos etnocêntricos: a cultura indígena desconsiderada pelos portugueses que fizeram deles escravos, quando não optaram pelo assassinato como forma de se verem livres daqueles seres que até pareciam humanos, mas representavam um empecilho ao processo de colonização; a história das missões jesuíticas que, para salvar os indígenas da gana escravagista optaram por encurralá-los nos territórios das Missões, onde estariam livres da escravidão e também livres de morrerem pagãos, uma vez que deveriam se converter ao catolicismo... O negro, tratado como mercadoria que se trazia da África e que deveria ser utilizada de acordo com os interesses da colonização – embora, estranhamente, grande número deles se revoltasse e não aceitasse a escravidão e teimasse em ser gente, ser humano. Mais tarde, os imigrantes europeus seriam também vítimas desse sentimento que os qualificava como estranhos, como sujos ou como rebeldes, no caso dos operários e operárias que organizaram as primeiras greves brasileiras no século XX e foram vítimas de uma legislação que levou vários deles às prisões ou à expulsão do país, além da escravidão branca, principalmente no caso das mulheres polonesas, como denuncia Largman (1993), através de um belo e comovente romance intitulado “Jovens Polacas”. Enfim, o etnocentrismo tem justificado os mais bárbaros conflitos históricos e tem sido responsável pelas mais sangrentas e angustiantes páginas da história da humanidade, como, por exemplo, a Inquisição Católica ou os horrores praticados pelos nazistas em nome de uma raça pura. Infelizmente, muitos outros fatos que poderiam aqui ser citados comprovam o que afirmou, ainda no século XVI, o pensador francês Michel Montaigne: “Na verdade, cada qual con- sidera bárbaro o que não se pratica em sua terra.” (MONTAIGNE apud LARAIA, 2001, p. 13) O antropólogo Laraia também afirma que O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como conseqüência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais. (LARAIA, 2001, p. 72-73) Todos os exemplos até então mencionados dizem respeito a questões macroestruturais e que envolvem conflitos entre povos, entre nações e que dizem respeito a políticas estatais. Isso revela que a forma como vêm sendo governadas as sociedades ocidentais (embora não seja possível afirmar que no mundo oriental isso seja diferente) é marcada continuamente pelo desrespeito a culturas diferentes daquela considerada padrão, portanto, correta. Mas faz-se necessário também perceber que o etnocentrismo, além de orientar a organização política, o mundo do trabalho, as manifestações religiosas... está presente também no cotidiano dos homens e mulheres. Grosso modo, pode-se afirmar que só se sustenta uma política etnocêntrica – capaz de levar à morte, à prisão ou à marginalidade milhares de seres humanos – porque o sentimento etnocêntrico está fortemente instaurado na mente do indivíduo, ou seja, faz parte do senso comum. Não seria possível ao Estado alemão manter as orientações racistas do nazismo, se não houvesse a concordância de boa parte da população daquele país, assim como não seria possível manter quase quatrocentos anos de escravidão negra no Brasil, se não houvesse um forte sentimento de que o africano, o negro (a cultura negra, por extensão) é inferior ao europeu, ao branco. Assim, no campo da microestrutura, nas Professores em Formação ISEC/ISED Nº 1 2º semestre de 2010 relações comunitárias e familiares, nas conversas de bares e nas esquinas, nos atos rotineiros que perfazem a vida de todos, faz-se presente, de uma forma ou outra, esse sentimento de que o outro é bárbaro... UMA EXPERIÊNCIA ESCOLAR No dia 06 de junho de 2003, as escolas da rede municipal de ensino de Divinópolis organizaram uma grande manifestação em defesa do Itapecerica, rio que corta a cidade e que, outrora majestoso, vem se tornando, a cada ano, menos volumoso e com visíveis sinais de uma morte anunciada. Aproximadamente quinhentos adolescentes e crianças, portando cartazes, balões coloridos e faixas, fizeram uma passeata pelo centro da cidade e terminaram a manifestação às margens do rio, na Praça Candidés. No ato de encerramento da atividade, foi apresentado um teatro que buscava despertar nos estudantes a consciência de que é preciso preservar o rio, recuperar as matas ciliares, lutar pela construção de estações de tratamento de esgoto, ter os necessários cuidados com o lixo doméstico... O teatro foi muito bem ensaiado e os atores mirins se esforçaram para representar as coreografias: em cima do caminhão transformado em palco, cinco crianças representavam o rio, a árvore, o Sol, um pássaro que fazia a interlocução entre os diversos personagens e ainda uma menina que, às margens do rio, conversava com os elementos da natureza. Os cinco personagens tinham participação ativa na história que se contava, vestiam roupas alegres e coloridas e demonstravam desenvoltura para cumprir os papéis que lhe cabiam. Ao fundo, quatro crianças representavam o lixo doméstico, o esgoto, o lixo atômico, o desmatamento. As quatro personagens tinham uma participação passiva e não falavam durante a peça teatral. Vestiam uma roupa escura e moProfessores em Formação ISEC/ISED Nº 1 vimentavam-se poucas vezes durante o desenrolar do trabalho. Algo chamava a atenção: as cinco primeiras crianças, aquelas que representavam os elementos da natureza, eram brancas e vestiam roupas coloridas. As quatro últimas, eram negras e vestiam roupas escuras... DA COMPETÊNCIA É desnecessário dizer que as professoras que prepararam o teatro, que ensaiaram as crianças não agiram intencionalmente, não premeditaram aquela situação, não tinham, conscientemente, a intenção de vincular o negro à sujeira, ao esgoto, à morte, à destruição – ou seja, aos aspectos negativos – e nem quiseram, repita-se, intencionalmente, vincular o branco à limpeza, à vida, à beleza – ou seja, aos aspectos positivos. No entanto, foi exatamente o que aconteceu. Mais assustador ainda é o fato de, após o encerramento da atividade, cinco das professoras presentes, ao serem questionadas, afirmaram não terem percebido que as crianças brancas, no teatro, representavam os aspectos positivos, enquanto as crianças negras representavam os aspectos negativos, embora, quando lembradas, confirmassem a situação. Ou seja: viram as crianças brancas e negras representando, respectivamente, a natureza e a sua destruição, lembravam-se do fato, mas não haviam – até que alguém lhes alertasse para isso – notado qualquer estranheza... O fato de essas cinco professoras – e supõese que o mesmo aconteceu com as autoridades e com as centenas de crianças e adolescentes presentes – não terem percebido o grotesco da situação demonstra o quanto se aceita com naturalidade os papéis que séculos de atitude etnocêntrica em relação aos negros reservaram a essa etnia. Logicamente, esse fato só foi possível porque a escola, assim como qualquer outra insti- 2º semestre de 2010 tuição, é influenciada pelos valores e pela ideologia dominante da sociedade em que está inserida. Em outras palavras: a escola, enquanto (um dos) espaço de transmissão da cultura, transmite aquilo que é dominante em determinada cultura. E, em se tratando de uma instituição inserida numa cultura etnocêntrica, ela, a unidade escolar, também o será... Porém, seria demasiadamente desalentador acreditar que a escola nada mais pode fazer do que transmitir a cultura. Por mais que não se possa ter a ilusão de que a escola poderá ser uma ilha em que se preze e se valorize a diversidade cultural, um espaço em que a solidariedade e o respeito sejam os valores primordiais, é preciso, para aqueles que exercem a educação como ofício, acreditar na possibilidade de, na escola e através dela, buscar alternativas que proponham um rompimento com a lógica dominante na sociedade. Rios, em seu livro “Ética e Competência”, é uma das autoras que permite afirmar isso: professora, ser bonzinho, ou não ser racista, sexista, machista... A bondade ingênua, nem sequer é bondade, muitas vezes, é estupidez, como o afirma o pensador italiano Antonio Gramsci. Para enfrentar e denunciar séculos de preconceitos e de uma organização social que torna alguns seres humanos, alguns grupos sociais melhores que outros, é preciso competência política, aqui entendida como capacidade de análise da realidade, capacidade de compreensão do processo histórico e de reflexão sobre o saber sistematizado que a humanidade vem acumulando ao longo do tempo. Novamente, recorre-se a Rios: “É a reflexão que nos fará ver a consistência até de nossa própria conceituação, e que, articulada a nossa ação, estará permanentemente transformando o processo social, o processo educativo, em busca de uma significação mais profunda para a vida e para o trabalho.” (2001, p. 67) À GUISA DE CONCLUSÃO A escola não está nem fora da sociedade, com uma autonomia absoluta diante dos fatores que estimulam as mudanças sociais, nem muito menos numa relação de subordinação absoluta, que a converte em mera reprodutora do que ocorre em nível mais amplo na sociedade. A escola é parte da sociedade e tem com o todo uma relação dialética – há uma interferência recíproca que atravessa todas as instituições que constituem o social. Além disso, podemos verificar que a escola tem uma função contraditória – ao mesmo tempo em que é fator de manutenção, ela transforma a cultura. (RIOS, 2001, p. 38). Mas para que se torne possível sonhar com uma escola, com um processo educacional que denuncie o etnocentrismo, que o negue, que promova atividades que reforcem o respeito à diversidade cultural é preciso que se vá além da boa vontade. Nesse sentido, retoma-se a epígrafe desse texto. Não basta ao professor, à Assim, conclui-se este texto buscando afirmar a necessidade de que professores e professoras tenham um processo de formação inicial e continuada cada vez mais exigente. Uma formação que vá além das técnicas de como ensinar (que também são necessárias), mas que passe pela reflexão filosófica, sociológica, antropológica... Uma formação que permita aos educadores e às educadoras pensar sobre o conceito de hominalidade, para que seja possível pensar no processo de formação necessário a crianças e adolescentes para que os(as) mesmos(as) possam viver, hoje, mais felizes, mais autônomos(as) e, ao mesmo tempo, preparar um mundo melhor para as gerações futuras. Salienta-se ainda que esse processo de formação não pode se restringir à teoria, mas é mister que educadores e educadoras que querem contribuir para amenizar a exploração e o Professores em Formação ISEC/ISED Nº 1 2º semestre de 2010 desrespeito a que são submetidos os grupos sociais e as minorias que, de alguma forma, seja ela qual for, contradizem a ideologia dominante, engajem-se num processo de resistência ativa, como bem afirma o educador brasileiro Saviani (1999). Um processo de formação em que a dedicação à educação esteja mesclada ao constante envolvimento com as lutas pela justiça e pela igualdade. Nesse sentido, afirmase que a formação de professores precisa assumir um viés político em que a análise dos problemas sociais tenha espaço considerável. Afinal, somente quando o(a) educador(a) estiver minimamente envolvido com os movimentos sociais terá legitimidade para se posicionar quanto aos mesmos, bem como somente o envolvimento com as lutas pela justiça social dará aos(às) educadores(as) condições de lutarem, num plano macro, por uma política educacional que se baseie em princípios igualitários e, num plano micro, no cotidiano da instituição escolar, por uma educação emancipatória. REFERÊNCIAS FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2 ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1986. 1838 p. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 14 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. 117 p. LARGMAN, Esther. Jovens Polacas. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1993. 184 p. RIOS, Terezinha Azerêdo. Ética e Competência. 10 ed. São Paulo: Cortez, 2001. 86 p. SAVIANI, Dermeval. Da Nova LDB ao Novo Plano Nacional de Educação: Por uma Outra Política Educacional. 2 ed. rev. Campinas, SP: Autores Associados, 1999. 169 p. Professores em Formação ISEC/ISED Nº 1 2º semestre de 2010