SÉRGIO D. J. PENA
TELMA S. BIRCHAL
A inexistência
biológica versus
a existência social
de raças
humanas: pode
a ciência instruir
o etos social?
SÉRGIO D. J.
PENA é professor
do Departamento de
Bioquímica e Imunologia
da Universidade Federal
de Minas Gerais.
TELMA S. BIRCHAL
é professora do
Departamento de Filosofia
da Universidade Federal
de Minas Gerais.
N
INTRODUÇÃO
o passado, a crença de que “raças”
humanas possuíam diferenças bio-
lógicas substanciais e bem demarcadas contribuiu para justificar discriminação, exploração e
atrocidades. Recentemente, porém, os avanços
da genética molecular e o seqüenciamento do genoma humano permitiram um exame detalhado
da correlação entre a variação genômica humana, a ancestralidade biogeográfica e a aparência
física das pessoas, e mostraram que os rótulos
previamente usados para distinguir “raças” não
têm significado biológico. Pode parecer fácil
distinguir fenotipicamente um europeu de um
africano ou de um asiático, mas tal facilidade
desaparece completamente quando procuramos
evidências dessas diferenças “raciais” no genoma das pessoas. Apesar disso, o conceito de
“raças” persiste, qua construção social e cultural, como forma de privilegiar culturas, línguas,
crenças e diferenciar grupos com interesses
econômicos diferentes (Azeredo, 1991).
Neste artigo abordaremos aspectos do conflito entre as visões biológica e social de “raça”,
inicialmente mostrando as evidências científicas
que suportam a tese de que, do ponto de vista
biológico, raças humanas não existem (AAA,
1998). Em seguida, examinaremos a situação
peculiar dos brasileiros, nos quais a ampla
mistura de genes entre três diferentes grupos
continentais fundadores – ameríndios, europeus
e africanos – produziu uma fraca correlação de
cor (um correlato de “raça”) com ancestralidade. Conseqüentemente, no Brasil, a cor, socialmente percebida, tem pouca ou nenhuma
relevância biológica. Passaremos, a seguir, à
discussão do relacionamento entre ciência e
ética e à defesa da seguinte tese: embora a
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ciência não seja o campo de origem dos
mandamentos morais, ela tem um papel
importante na instrução da esfera social,
pois, ao mostrar “o que não é”, ela liberta,
ou seja, tem o poder de afastar erros e preconceitos. A seguir, pensaremos o problema
da incorporação, pelo etos da sociedade,
dos ensinamentos da genética. Sobre esse
ponto, argumentaremos a favor da idéia
de que o fato científico da inexistência das
“raças” deve ser absorvido pela sociedade
e incorporado a suas convicções e atitudes
morais, no sentido de reforçar a oposição
às afirmações de diferentes formas de hierarquia entre povos ou grupos humanos.
Terminamos sugerindo que uma postura
coerente e desejável seria a valorização da
singularidade de cada indivíduo em substituição à sua identificação como membro
de grupos “raciais” ou “de cor”.
A INEXISTÊNCIA BIOLÓGICA
DE RAÇAS HUMANAS: FATOS
CIENTÍFICOS
Origem recente do homem
moderno
O homem moderno, Homo sapiens sapiens, é uma espécie muito jovem na Terra.
Duas linhas de evidência genética sugerem
sua origem única e recente, na África, há
menos de 150.000 anos. A primeira é a
observação de que a diversidade genética
humana é maior na África do que em qualquer outro continente. A interpretação deste
achado é que as populações mais antigas
teriam tido mais tempo para acumular variabilidade genética. As análises filogenéticas
fornecem a segunda linha de evidência. A
partir do trabalho seminal de Cann et al.
(1987), praticamente todos os estudos baseados em DNA mitocondrial produziram
uma árvore na qual a primeira bifurcação
separa populações africanas de todas as
outras populações. As árvores filogenéticas
construídas a partir de marcadores autossômicos, marcadores do cromossomo X e
marcadores do cromossomo Y, apresentam
topologias muito semelhantes à do DNA
mitocondrial (Batzer et al., 1994; Bowcock
et al., 1994; Armour et al., 1996; Underhill
et al., 2000; Kaessmann et al., 1999).
Acredita-se que, ao redor de 100.000
anos atrás, alguns grupos humanos emigraram da África para outros continentes,
dizimando e substituindo em seu trajeto
os homens de Neandertal (Homo sapiens
neandertalensis) e outras populações arcaicas de Homo sapiens. Neste cenário, todos
os seres humanos atualmente presentes na
Terra compartilham um ancestral africano
relativamente recente, e as diferenças morfológicas que observamos nos humanos,
hoje, são desenvolvimentos novos, tendo
ocorrido apenas nos últimos 50.000-40.000
anos.
Em 2003, White et al. descreveram
crânios fossilizados de hominídeos encontrados em Herto, na Etiópia, que foram
datados radioisotopicamente entre 160.000
e 154.000 anos atrás. Esses hominídeos de
Herto, denominados Homo sapiens idaltu
(idaltu quer dizer “antigo” na língua afar
da Etiópia), são morfologicamente intermediários entre fósseis africanos arcaicos e
fósseis com morfologia moderna. Por isso,
acredita-se que eles representem o ancestral imediato do Homo sapiens sapiens. A
sua anatomia e antiguidade fornecem uma
poderosa evidência de que o surgimento
do homem moderno é recente e ocorreu
na África.
Variabilidade genômica humana
Subjacente à enorme e facilmente visualizável individualidade morfológica humana, há uma individualidade bioquímica,
molecular e genômica (Pena et al., 1995a).
Até a recente explosão metodológica da genética molecular, a análise da variabilidade
genética humana era limitada ao estudo
de poucos polimorfismos protéicos, hoje
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coletivamente chamados de “marcadores
clássicos”. Entretanto, apenas 3% do
genoma humano é expresso em produtos
gênicos, e só após o desenvolvimento da
capacidade técnica de estudar as variações
(“polimorfismos”) genéticas diretamente
pelo DNA foi possível acessar as variações
genéticas nos outros 97% não-expressos
do genoma. Foi encontrada uma grande
diversidade: dois genomas haplóides humanos diferem em uma base a cada mil
nucleotídeos. Isso significa que, entre dois
indivíduos quaisquer da população, há
pelo menos seis milhões de diferenças na
seqüência genômica. Sabemos hoje que,
com exceção dos gêmeos monozigóticos,
todos os seres humanos possuem um genoma diferente e único.
Em 1972, Richard Lewontin decidiu
fazer a partição da variabilidade humana
para testar, cientificamente, a noção, até
então amplamente aceita, da existência de
raças humanas. Ele compilou da literatura
científica as freqüências alélicas de 17 polimorfismos genéticos clássicos (incluindo
grupos sangüíneos, proteínas séricas e isoenzimas) referentes a diferentes populações.
A partir desses dados, Lewontin agrupou
as diferentes populações em oito “raças”:
africana, ameríndia, aborígine australiana,
mongolóide, indiana, sul-asiática, oceânica
e caucasiana. O resultado foi bastante surpreendente: 85,4% da diversidade alélica
observada nos polimorfismos estudados
ocorria entre indivíduos de uma mesma população, 8,3% entre diferentes populações
de uma mesma “raça” e apenas 6,3% entre
as chamadas “raças”.
Para colocar tais dados em perspectiva,
usemos um exemplo fantasioso: um cataclismo nuclear destruiu toda a população da
Terra, deixando ilesa apenas a população de
uma cidade de Minas Gerais. Nesse caso,
85% da diversidade humana total seria preservada! Os resultados de Lewontin foram
amplamente confirmados por Barbujani et
al. (1997), que estudaram 109 locos autossômicos neutros em populações de todo o
mundo e concluíram que cerca de 85% da
variabilidade genética humana estava concentrada dentro das populações.
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Provavelmente, o maior estudo de variabilidade humana já realizado até o momento
foi o de Rosenberg et al. (2002), que fizeram
a tipagem de 377 microssatélites autossômicos em 1.056 indivíduos de 52 populações definidas pela origem geográfica. Na
amostra eles tinham um total de 4.199 alelos
diferentes, 47% dos quais estavam presentes
em todas as populações – apenas 7% dos
alelos estavam presentes em somente uma
população, que, na quase totalidade das
vezes, era a africana. Esses resultados são
completamente compatíveis com a origem
recente do homem moderno na África. Além
disso, os pesquisadores calcularam que
93-95% da variabilidade genética estava
contida dentro das populações.
Caracteres morfológicos
Assim como no caso de marcadores
genéticos moleculares, é também possível
fazer a partição da variabilidade humana
usando características morfológicas métricas. Por exemplo, Relethford (1994)
mostrou que apenas 11-14% da diversidade
craniométrica humana ocorre entre diferentes regiões geográficas e que 86-89%
ocorrem entre indivíduos de uma mesma
região. Quando esse mesmo autor fez a
partição da variabilidade global da cor
da pele, porém, ele observou um quadro
diferente: 88% da variação ocorria entre
regiões geográficas e apenas 12% dentro
das regiões geográficas (Relethford, 2002)!
A explicação é que a cor da pele é uma
característica genética especial, porque é
muito sujeita à seleção natural. Dois fatores
seletivos contribuem para adaptar a cor da
pele aos níveis de radiação ultravioleta
(UV): a destruição do ácido fólico, quando a radiação ultravioleta é excessiva, e a
deficiência da vitamina D3 (raquitismo),
quando a radiação é insuficiente para a
síntese na pele (Jablonski & Chaplin,
2000; 2002). Inúmeros estudos mostram
que há uma significativa correspondência
geográfica entre os níveis de UV e o grau
de pigmentação da pele das várias populações humanas.
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A cor da pele é determinada pela quantidade do pigmento melanina na derme, que
é controlada por apenas quatro a seis genes,
dos quais o mais importante parece ser o
gene do receptor do hormônio melanotrópico (Sturm et al., 1998; Rees, 2003). Esse
pequeno número de genes é insignificante
no universo dos cerca de 25.000 genes que
existem no genoma humano.
Da mesma maneira que a cor da pele,
algumas outras características físicas externas, como o formato da face, a grossura
dos lábios e a cor e a textura do cabelo, são
traços literalmente “superficiais”. Embora
não conheçamos os fatores geográficos
locais responsáveis pela seleção dessas
características, é razoável inferir que, assim
como a pigmentação da pele, tais caracteres
morfológicos também espelhem adaptações
ao clima e outras variáveis ambientais de
diferentes partes da Terra. Assim como a
cor da pele, as características morfológicas
humanas dependem da expressão de um número pequeno de genes e refletem a variação
em apenas alguns milhares entre os bilhões
de nucleotídeos no genoma humano. Em
resumo, as diferenças icônicas de “raças”
correlacionam-se bem com o continente de
origem (já que são selecionadas), mas não
refletem variações genômicas generalizadas
entre os grupos.
Conclusão: inexistência de raças
do ponto de vista biológico
Como vimos acima, três linhas separadas de pesquisa molecular fornecem evidências científicas sobre a inexistência de
raças humanas. A primeira é a observação
de que a espécie humana é muito jovem e
seus padrões migratórios demasiadamente
amplos para permitir uma diferenciação e
conseqüentemente separação em diferentes
grupos biológicos que pudessem ser chamados de “raças”. A segunda é o fato de
que as chamadas “raças” compartilham a
vasta maioria das suas variantes genéticas.
A terceira é a constatação de que apenas 510% da variação genômica humana ocorre
entre as “raças” putativas. As evidências
levam à conclusão de que raças humanas
não existem do ponto de vista genético ou
biológico.
COR E ANCESTRALIDADE DO
BRASILEIRO
No Brasil, apesar do mito da “democracia racial”, há um preconceito social que
parece estar particularmente conectado
com a aparência física da pessoa (Nogueira, 1955) e que privilegia as características associadas ao continente europeu. A
“cor” no Brasil corresponde ao termo em
inglês race e é baseada em uma avaliação
fenotípica complexa, que leva em conta
a pigmentação da pele e dos olhos, o tipo
de cabelo e a forma do nariz e dos lábios
(Telles, 2003). Aparentemente, a razão
pela qual o termo Cor (com C maiúsculo
para chamar a atenção para a sua natureza
multifatorial) é usado no Brasil ao invés de
“raça” é que ele enfatiza a natureza contínua
dos fenótipos (Telles, 2003). Com base nos
critérios de autoclassificação do censo do
IBGE de 2000, a população brasileira era
composta por 53,4% de brancos, 6,1% de
pretos e 38,9% de pardos. O que representam
estes números em termos de ancestralidade
genética? Esta é a pergunta a que temos
tentado responder, usando as ferramentas
da genética molecular. Apresentaremos aqui
uma breve sinopse dos nossos resultados,
que já foram apresentados em detalhes em
outras publicações (Pena et al., 2000; Alves-Silva et al., 2000; Carvalho-Silva et al.,
2001; Pena, 2002; Parra et al., 2003; Pena
& Bortolini, 2004; Pena, 2005).
Inicialmente, utilizamos marcadores
genômicos de linhagem para mapear, na
população autodeclarada branca do Brasil,
as distribuições geográficas das ancestralidades ameríndia, européia e africana (Pena
et al., 2000). Para isso, amostras de DNA
da população do Norte, Nordeste, Sudeste
e Sul do Brasil foram estudadas com dois
marcadores moleculares uniparentais: o
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cromossomo Y, que estabelece linhagens
paternas (patrilinhagens), e o DNA mitocondrial, que traça linhagens maternas (matrilinhagens). Nosso estudo revelou que a
esmagadora maioria das linhagens paternas
da população branca do país é de origem
européia (Pena et al., 2000; Carvalho-Silva
et al., 2001), mas, surpreendentemente, as
linhagens maternas no Brasil, como um
todo, mostraram uma distribuição bem
equilibrada entre as três origens geográficas: 33% das linhagens eram ameríndias,
28% africanas e 39% européias (Pena et
al., 2000; Alves-Silva et al., 2000). Como
esperado, a freqüência relativa de cada um
desses três grupos filogeográficos variou
consideravelmente entre as quatro regiões
brasileiras analisadas. A maioria das linhagens mitocondriais no Norte é de origem
ameríndia (54%), enquanto a ancestralidade
africana é mais comum no Nordeste (44%)
e a européia no Sul (66%). O Sudeste
apresentou um equilíbrio nas freqüências
encontradas.
De acordo com as freqüências regionais
de haplogrupos genéticos africanos e ameríndios encontrados nos brasileiros brancos
e pelas proporções populacionais das várias
regiões, podemos calcular (com base no
censo de 2000) que, entre os 90.647.461
autoclassificados brancos do país, há aproximadamente 30 milhões de descendentes de
africanos (afrodescendentes) e um número
equivalente de descendentes de ameríndios,
pelo menos pelo lado materno (Pena &
Bortolini, 2004).
Em seguida, exploramos as correlações
moleculares entre cor e ancestralidade em
brasileiros, usando marcadores informativos de ancestralidade (MIAs), também
chamados de “marcadores população-específicos”. Nossos estudos demonstraram
que, na população brasileira analisada,
o alto índice de mistura gênica torna as
características de aparência física, como
cor da pele, olhos, cabelos, formato dos
lábios e do nariz, em pobres indicadores
da origem geográfica dos ancestrais de um
determinado indivíduo.
Em conclusão, os nossos estudos demonstraram claramente que, no Brasil, a
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cor avaliada fenotipicamente com base na
pigmentação da pele e dos olhos, na textura
do cabelo e no formato dos lábios e do nariz,
tem uma correlação muito fraca com o grau
de ancestralidade africana estimada por marcadores genômicos específicos (Parra et al.,
2003). Individualmente, qualquer tentativa
de previsão torna-se muito difícil, já que pela
inspeção da aparência física de um brasileiro
não podemos chegar a nenhuma conclusão
confiável sobre o seu grau de ancestralidade
africana. Em outras palavras, no Brasil, a
cor, como socialmente percebida, tem pouca
ou nenhuma relevância biológica.
A CONTRIBUIÇÃO DA CIÊNCIA
PARA A ÉTICA
Passemos, então, a considerar uma
outra questão: que tipo de ressonância se
pode esperar de semelhantes descobertas
científicas na esfera dos costumes e das
convicções das pessoas? Aqui se coloca,
portanto, o problema da relação entre ciência e ética. Para pensar os termos dessa
relação, tomemos como ponto de partida
uma compreensão de ciência que, mesmo
sendo discutível, nos permite traçar uma
linha de demarcação entre o conhecimento científico e outros tipos de discurso: as
ciências pretendem ser um conhecimento
do que é, elas se ocupam com a pesquisa e
apresentação da realidade. Embora ninguém
mais acredite, como os antigos positivistas,
que a ciência comece com os fatos e seja
simplesmente uma apresentação deles, é
verdade, porém, que os fatos constituem a
referência empírica das teorias científicas.
Assim, podemos afirmar que as ciências se
voltam para a positividade das coisas.
Também numa primeira aproximação,
o campo da ética ou da moral pode ser
definido de duas maneiras: a primeira,
como o domínio dos costumes, dos hábitos
(o vocábulo grego éthos e o latino morus
referem-se ambos aos costumes humanos,
daí falarmos da ética dos romanos ou da
moral vitoriana). A segunda – que mais nos
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interessa – como um trabalho de reflexão
sobre os mesmos hábitos ou costumes.
Neste último sentido, temos a ética como
disciplina filosófica ou filosofia moral, que
pergunta sobre as origens e o fundamento
– a “consistência”, poderíamos dizer – dos
costumes e, sobretudo, das normas que
os regem. A ética articula fatos, normas e
valores, pois a consistência de uma norma
ou prescrição é avaliada, por um lado, em
relação aos fatos conhecidos e, por outro,
em relação aos valores últimos que regem
uma determinada sociedade. Em termos
gerais, podemos compreender a ética como
o domínio que institui o que deve ser, e que
articula três dimensões: os fatos, as normas
e os valores.
Definidos os dois domínios, como, então, pensar a relação entre ética e ciência?
Apresentamos aqui duas teses que pretendemos justificar com o que vem a seguir:
1) A compreensão da diferença de natureza entre ética e ciência é fundamental
para que se estabeleça um diálogo fecundo
entre elas e para a prestação de serviços
mútuos – não se deve confundir o domínio
das convicções éticas (o que deve ser) com
o das proposições científicas (o que é);
2) Embora o conhecimento científico
não fundamente os valores, ele é capaz de
afastar erros e preconceitos, desempenhando assim um papel libertador no exercício
das escolhas morais.
Voltemos um pouco na história para
compreender a diferença entre os domínios
da ciência e da ética. Desde os gregos já
se distinguia a esfera da phýsis – a natureza com suas leis mais ou menos estáveis
– daquela do éthos – os costumes humanos
e sua variabilidade. No entanto, a própria
compreensão que os antigos tinham da natureza – como uma realidade habitada por
uma finalidade, como uma ordem cósmica
na qual o homem encontra o seu lugar
– possibilitava que, de alguma maneira,
natureza e costumes pudessem espelhar-se
reciprocamente. A natureza se torna o solo
do qual se nutre a reflexão ética, isso porque
exigências éticas se encontram, de alguma
forma, realizadas de antemão na imagem
de um cosmo harmônico, tal como repre-
sentado na “filosofia natural”. Portanto, o
imperativo ético dos antigos será resumido
na frase “seguir a natureza”.
A partir do nascimento da ciência moderna, no século XVII, os dois campos se
demarcam com clareza e se distinguem.
Com o advento do mecanicismo, a imagem
da natureza se transforma ao tornar-se objeto
de uma ciência matemática que, pouco a
pouco, substitui a harmonia divina do cosmo
por um conjunto de leis tanto mais objetivas
e seguras quanto menos relacionadas aos
anseios e esperanças do homem. É sobre
esse novo universo que escreve Pascal: “o
silêncio eterno destes espaços infinitos me
apavora”. A natureza não é mais o campo
gerador das normas. É de Galileu uma
frase que sintetiza o espírito de seu tempo, distinguindo os objetivos da religião,
por um lado, dos da ciência, por outro: “a
intenção do Espírito Santo é ensinar-nos
como se vai ao céu e não como vai o céu”.
A última tarefa é delegada à ciência que,
como descrição objetiva das leis da natureza, nada tem a ver com a salvação, com
a busca da felicidade ou com o domínio do
dever ser. Para isso estão aí a religião e a
filosofia moral. Ainda, na frase de Galileu
está implícita a demanda da ciência de
constituir-se como uma esfera autônoma de
investigação, não mais submetida ao saber
filosófico ou religioso.
A separação de campos, no entanto, nem
sempre foi tranqüila, e gerou uma relação
tanto ou quanto conflituosa, com tentativas
de invasões recíprocas e renovada confusão
dos domínios. Além disso, desde os tempos
de Galileu o cenário mudou, o que faz com
que a distinção entre ética e ciência tenha
que ser repensada. Assistimos atualmente
a uma grande expansão das fronteiras da
ciência para domínios antes reservados à
religião ou à filosofia moral. As relações
sociais, as emoções, a linguagem e a própria
consciência são hoje campos de investigação científica. No início foram as ciências
humanas, como a sociologia e a antropologia, que trataram de maneira objetiva, e
segundo métodos próprios, assuntos que
até então estavam fora do domínio das
ciências. Mais recentemente, a biologia
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revela a base radicalmente corporal das
chamadas “funções superiores” do homem;
elas não são, portanto, inacessíveis a um
saber objetivo. Tomemos o exemplo do
neurocientista Jean-Pierre Changeux que,
a partir da perspectiva darwinista, afirma
a possibilidade de localizar, no cérebro, os
sítios das regras morais – sociabilidade,
piedade e inibidores da violência (Changeux
& Ricoeur, 1998).
Tudo isso está em curso em nossos dias,
num grande empreendimento de “objetivação” e naturalização do ser humano, que
pode ser descrito e compreendido – e até
manipulado – como qualquer outro objeto
do mundo. Uma questão que advém da novidade é: podemos fazer do conhecimento
dos fatos, que nos vêm das ciências, a base
para as normas do agir? Ou, de forma mais
radical: podem as ciências fundar a ética?
Alguns responderão afirmativamente,
como Antônio Damásio (1998):
“O conhecimento científico pode constituir
um pilar que ajude os seres humanos a
resistir e a vingar. Escrevi este livro convicto de que o conhecimento em geral e o
conhecimento neurobiológico em particular
têm uma função importante a desempenhar
no destino humano; convicto de que, se
realmente o quisermos, o profundo conhecimento do cérebro e da mente ajudará a
alcançar a felicidade […]. É tentador e encorajador acreditar […] que a neurobiologia
não só pode nos ajudar na compreensão e na
compaixão da condição humana, mas que,
ao fazê-lo, pode nos ajudar a compreender
os conflitos sociais e contribuir para sua
diminuição”.
Se fizermos uma leitura pouco piedosa
desse tipo de posição, diremos que ela
acaba por afirmar que as ciências poderiam
resolver o problema ético, pois gerariam as
normas para a vida humana – agora seguras,
porque baseadas num conhecimento menos
discutível que o das teorias filosóficas. Ou
seja, a ética seria traçada no prolongamento
das ciências: e conhecer o que é se identificaria a conhecer o que deve ser.
Contra a posição acima, assim radical-
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mente colocada, lembremos a mais prudente
afirmação de Galileu de que a ciência não
nos ensina a ganhar os céus e a do filósofo
David Hume que, no século XVIII, insiste
em distinguir fatos e valores, situando os
primeiros no reino do real e do existente,
e os segundos no reino dos desejos e dos
sentimentos. Mais recentemente, um insuspeito nome da sociobiologia, Edward
Wilson, afirma em entrevista:
“A constatação de que, em interação com o
ambiente, nossos genes têm um papel fundamental na natureza humana não significa
que certo comportamento seja bom ou ruim.
Você não pode atribuir valor a um traço
genético simplesmente pelo fato de que ele
é genético. Seria o mesmo que argumentar
que um comportamento é mais ético que
outro só porque ele está mais próximo da
natureza. Seguindo esta premissa, alguém
poderia justificar atrocidades dizendo que
a violência está em nossos genes…”.
Sobre os perigos de se fundar uma ética
a partir de uma verdade científica, alerta-nos
o filósofo contemporâneo Comte-Sponville
(2000):
“Um regime que se apoiasse numa ciência
verdadeira – imaginemos, por exemplo, uma
tirania dos médicos – nem por isto seria
menos totalitário a partir do momento em
que pretendesse governar em nome de suas
verdades, porque a verdade nunca governa,
nem diz o que deve ser feito, nem proibido.
A verdade não obedece […] e é por isso
que ela é livre. Mas tampouco comanda, e
é por isto que nós o somos. É verdade que
morreremos: isso não condena a vida, nem
justifica o assassinato”.
Vejamos, então, o que ocorre no tocante à noção de “raça”. Ela se alimenta
da experiência secular do confronto com
o “outro”, cuja diferença se manifesta de
forma sensível, evidente, digamos, “à flor
da pele”. O encontro com o outro, com o
manifestamente diferente – que deve ser
compreendido, interpretado –, gerou historicamente muitas espécies de etnocentrismo
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e projetos de dominação. No entanto, não
necessariamente: bem antes das descobertas
da genética, um europeu do século XVI,
Michel de Montaigne, escreve o mais belo
elogio dos canibais do Brasil (Montaigne,
2000). Em seus Ensaios, a diferença manifesta entre os povos do Velho e do Novo
Mundo não se traduz como inferioridade dos
últimos, nem como ausência, nos canibais,
de um caráter de humanidade (Birchal,
2004). Os fatos da experiência estão, portanto, abertos a múltiplas interpretações, o
que caracteriza o domínio dos valores.
Num outro nível de discurso, a genética
hoje afirma que o aparente e imediatamente
manifesto – a diferença de cor e de traços
– não é o essencial nem o verdadeiro, exigindo uma reinterpretação da experiência,
da mesma forma que, no século XVI, a
astronomia fez com o aparente movimento
do sol. O que nos leva à segunda tese acima exposta: retomando a frase de ComteSponville, diremos que, se a verdade não
governa, ou seja, se a ciência não é o campo
de origem dos mandamentos morais, ela
liberta, pois tem o poder de afastar erros e
preconceitos. Popperianamente falando, ela
diz “o que não é”, embora não diga o que
deve ser. No caso em questão, a biologia diz
“o que não é”, afastando o equívoco da noção
biológica de raça e proibindo o recurso a
uma fundamentação científica do racismo,
bem ao gosto de alguns. Na medida em que
a ética, como vimos, lida com fatos, normas
e valores, a ciência, entrando nas questões
de fato e fornecendo novos elementos
para a avaliação das normas e costumes,
pode aproximar-se da moral neste plano.
Ela não pode, no entanto, ser confundida
com a origem ou a fonte dos mandamentos
morais: o valor e a dignidade atribuídos aos
seres humanos, enquanto tais, independem
das descobertas científicas, encontrando
sua origem na cultura e na história. Caso
contrário, na hipótese imaginária de as
descobertas científicas apontarem para
uma grande diferença genética no interior
da espécie humana, uma posição racista
estaria justificada. Dito de outra maneira,
embora por si só a ciência não seja capaz
de gerar uma ética, ela traz elementos que
contribuem para a reflexão ética e que ampliam o campo no qual podemos exercer
nossa liberdade.
A VISÃO INDIVIDUAL DO HOMEM
Vimos acima que, do ponto de vista
biológico, estritamente científico, raças
humanas não existem. Vimos também que,
independente de sua cor, a vasta maioria dos
brasileiros tem simultaneamente um grau
significativo de ancestralidade africana,
européia e ameríndia. O genoma de cada
brasileiro é um mosaico altamente variável
e individual, formado por contribuições
das três raízes ancestrais (Suarez-Kurtz &
Pena, 2005). Assim, não faz sentido falar
em afrodescendentes ou eurodescendentes,
porque a maior parte dos brasileiros tem
uma proporção significativa de ascendência africana, européia e ameríndia. Além
disso, por causa da pobre correlação entre
cor e ancestralidade, não faz sentido falar
de “populações” de brasileiros brancos ou
de brasileiros negros. De forma que a única maneira de lidar cientificamente com a
variabilidade genética dos brasileiros é individualmente, como seres humanos únicos
e singulares em seus genomas mosaicos e
em suas histórias de vida. Do ponto de vista
médico, essa conscientização nos levou a
propor que o conceito de “raça” deveria ser
banido da medicina brasileira (Pena, 2005).
Ética e socialmente, isso era o que Martin
Luther King tinha em mente quando disse,
em seu famoso discurso “I have a dream”,
de 28 de agosto de 1963: “I have a dream
that my four children will one day live in
a nation where they will not be judged by
the color of their skin but by the content of
their character”.
Temos aqui um exemplo claro de uma
descoberta científica iluminando a esfera
ética. Devemos ter em mente que o conceito de “raça” é carregado de ideologia e
sempre traz algo não explicitado: a relação
de poder e dominação (Munanga, 2004).
Assim, a idéia social de “raça” é tóxica e
contamina a sociedade (Gilroy, 2000). As
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* Usamos a palavra racialista
para designar quem crê na existência de raças, em distinção ao
racista, que faz julgamentos de
valor e estabelece hierarquias
entre as “raças”.
“raças” existem porque estão nas cabeças
das pessoas, e não estão nas cabeças das
pessoas porque existem (Kaufman, 1999).
Além disso, reenfatizamos que, em especial
no Brasil, a cor não tem um significado
biológico relevante e está, literalmente,
“à flor da pele”. A consciência disso vem
então ao encontro do desejo utópico de uma
sociedade não-racialista*, “cega a cores”,
em que a singularidade do indivíduo seja
valorizada e celebrada.
Em um artigo prévio, discutimos a relevância das considerações da inexistência
de raças humanas e da pobre correlação
entre cor e ancestralidade genômica, para
decidir quem se deveria beneficiar da política de cotas no Brasil, e concluímos que a
genética deveria ter um papel informativo
e não prescritivo (Pena & Bortolini, 2004).
Naquela ocasião não discutimos o mérito
das ações afirmativas nem da política de
cotas. Thomas Sowell (2004) mostrou em
seu livro Affirmative Action Around the
World que a experiência mundial com cotas
tem tido como efeito aumentar o nível de
racialização da sociedade.
Hoje, acreditamos que a ciência contribui efetivamente para uma posição prescritiva atuante em prol de uma sociedade
não-racialista. Que isso é possível foi brilhantemente demonstrado por Paul Gilroy
no seu excelente livro Against Race. É então
nesse sentido que devemos concentrar nossos esforços. Ao implementar bem-intencionados programas de ação afirmativa para
alavancar necessárias mudanças sociais, o
governo precisa cuidar para não fomentar
tensões e divisões artificiais e arbitrárias no
povo do Brasil, país onde, essencialmente,
somos todos igualmente diferentes.
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A inexistência biológica versus a existência social de raças humanas