Documento padrão para submissão de trabalhos ao I Congresso Baiano de Pesquisador@s Negr@s PASÁRGADA: Unindo o sentimento de êxodo entre Brasil e Cabo Verde 1 Alan Fernandes de Souza 2 Programa de Pós Graduação em Letras, aluno do mestrado em Literatura e cultura, da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Palavras-chave Literatura; crítica literária; relações raciais; estudos culturais. 1 Trabalho apresentado no I Congresso Baiano de Pesquisadores Negros – GT Gênero e raça: desafios e representações. 2 Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) mestrando do Programa de Pós Graduação em Letras, Literatura e Cultura, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Orientado pela professora Dra. Liane Schneider. E-mail: [email protected]. Introdução A crítica literária brasileira ao longo de sua existência tem se constituído como um poderoso instrumento de inclusão (ou de exclusão) de uma vasta gama de produções literárias no que se convencionou chamar de cânone literário. Inúmeras foram as vertentes para discutir e avaliar o objeto literário. Tais vertentes vão desde abordagens históricas, filosóficas, estruturalistas, genéticas, sociológicas, até psicológicas, semióticas, etc, oscilando entre historicista, impressionista até a contemporaneidade, com a sofisticada crítica acadêmica. Nesta, podemos acompanhar uma verdadeira “guerra” entre duas vertentes, dois enfoques teóricos diferentes para análise de seu objeto de pesquisa: o dos culturalistas e o dos esteticistas. Estes creditam seus estudos a uma análise imanente da obra; neste sentido, tanto o sujeito quanto o objeto de investigação devem estar atrelados à própria obra literária (a obra pela obra) e não utilizar outros campos do conhecimento, a saber, a Sociologia, a Psicologia, a História, a Filosofia, a Antropologia, entre outros. Já o enfoque que norteia os estudos culturais parte da premissa de que é preciso questionar os pressupostos teóricos que orientam o pensamento europeu, o qual se constrói por binarismos ou bipolaridades que acabam por hierarquizar as diferenças, legitimando, dessa forma, a opressão, a dominação simbólica e material e a exclusão dos culturalmente marcados por territórios fronteiriços ao discurso europeu. No rastro desse diagnóstico, os estudos culturais questionam, também, as relações de poder que são construídas entre as diferentes culturas. Infelizmente, as duas correntes teóricas não caminham para um consenso ou, no mínimo, para a tolerância em relação as suas diferenças de perspectivas e metodologias. Ocorre que, em meio a este cenário belicoso, os “calouros” dos cursos de Letras e os consumidores de crítica literária vivem um dilema, pois não sabem no que se ancorar, pois percebem que ao se aproximarem de uma dessas vertentes são praticamente expulsos da outra. Esta conjuntura tem sido uma grande vitrine para professores e críticos literários expressarem suas grandes performances de erudição; entretanto, por vezes, essas não passam de retórica que muito pouco se vinculam a um trabalho crítico criterioso, servindo apenas para alimentar as fogueiras das vaidades acadêmicas, ou talvez o problema vá muito mais além do que isso. Os mais prejudicados em qualquer espécie de batalha são, sem dúvida, os “inocentes”. Parece lúcido apontar que esta “guerra” entre correntes da crítica vai além de simples posições teóricas divergentes. Nesta guerra, “vale tudo” para conquistar novos “recrutas”, inclusive afirmações ou defesas gratuitas da “tradição” que, para leitores mais desatentos ou descuidados, pode parecer carregada de uma “verdade” irrefutável. Além do mais, vale observar o lugar de onde tais discursos são proferidos, ou seja, o lugar ocupado pelo sujeito da elocução. Em meio a esta conjuntura, grande parte dos teóricos da crítica literária têm se dedicado a versar suas obras sobre alguns temas, a saber: o papel da crítica, as definições de cânone literário, a literatura nos currículos escolares, a tradição literária como marcadamente masculina e branca, e, para ficar somente em alguns, as relações de poder no meio acadêmico. O argumento mais utilizado pelos adversários dos estudos culturais é de que os professores que se debruçam sobre este tipo de estudo submetem suas análises literárias a critérios de raça, gênero e classe. Nossa temática neste trabalho é a critica literária e as relações raciais no Brasil com a ambição de construir, ampliar a reflexão e problematizar afirmações que têm merecido análises mais profundas. Discutindo a crítica literária e as relações raciais no Brasil As características mais comuns do modelo de relações raciais, não somente no Brasil mais em toda a América Latina, convergem basicamente, para o modelo pigmentocrático e clientelista (Cf: Carlos Moore, 2005: 326). Este modelo possui sua gênese em sociedades pré-industriais (como no caso do Afeganistão, Índia, Irã, Oriente Médio, Paquistão e Turquia) dominadas por uma hierarquia “determinada pela linhagem e o conceito de nobreza” (Moore, 2005: 326). Neste modelo de sociedade, as demandas sócio-raciais coletivas são pormenorizadas e disfarçadas por uma falsa idéia de inclusão. Aliando-se a tal problema, percebe-se que a integração e a ascensão de sujeitos racialmente subalternizados se dão, na grande maioria das vezes, através de um processo de mestiçagem ou a democracia vai se dar mediante a pigmentação epitelial. Sociedades pigmentocráticas tendem a resistir a mudanças orgânicas principalmente, se tais mudanças, implicarem no comprometimento, na quebra ou na desmontagem da lógica de dominação. Tais lógicas possuem as seguintes características: invisibilidade simbólica e cultural de grandes contingentes humanos, falsa idéia de mobilidade social, conservadorismo, manutenção de privilégios historicamente construídos para um corpo minoritário da sociedade e manutenção de um mito de superioridade dos opressores sobre os oprimidos. Estas características deveriam ter sido aniquiladas na emancipação das antigas colônias, entretanto, não estavam na pauta do projeto das elites republicanas. Neste sentido, tais elites, projetaram no corpo sistêmico que compõem o Estado o mesmo comportamento racializado do período colonial. Sendo assim, a escola e as universidades, como instituições que compõe o corpo do Estado, não ficam imunes a todas as características elencadas acima. Elas como instâncias legitimadoras, têm lançado mão de vários mecanismos de controle do discurso, sendo que a literatura fica à mercê deste comportamento. Para a sobrevivência de qualquer literatura não é necessário somente leitores, mas também uma legitimidade conferida pelo sistema educacional, pelas editoras e, principalmente, pela crítica especializada. Sendo assim, alguns textos sobrevivem, na medida em que tais instâncias legitimadoras os selecionam para seus currículos. Ocorre que estas instituições, por conta de suas características racializadas, acabam escolhendo textos cujos autores e temáticas reforçam ou mascaram as desigualdades. A literatura de temática negra não está excluída totalmente dessas instituições, já que tal apagamento comprometeria ainda outra ideologia que permeia esses espaços, cujo eufêmico nome de batismo é: democracia racial. No entanto, segundo Zilá Bernd, a literatura negra ou afro-brasileira esta excluída dos espaços de consagração por razões ideológicas: interessa que haja obras sobre o negro para provar o caráter multiétnico da nação brasileira, mas não interessa dar voz ao oprimido (BERND, 1987, p.78). É fundamental que se observe qual o tipo de literatura de temática negra que é estudada nos espaços institucionais, pois, possivelmente, o negro aparecerá somente na condição de escravo, sendo que o eu lírico ou os personagens aparecem sempre dissociados de quaisquer núcleos sociais, políticos e intelectuais. É necessário dar visibilidade a poesia com um eu poético que se quer negro e sujeito de um discurso que não engendra estereótipos, e sim, resignifica a figura do sujeito negro e os elementos de sua cultura. A partir de Luiz Gama até a contemporaneidade, há mais do que uma literatura de temática negra, há uma literatura negra ou afro-brasileira na qual o eu lírico se quer negro, representado como sujeito político, provido de uma identidade étnica e que também merece ser estudada e minuciosamente observada por análises críticas. Ora, é justamente nesse aspecto que reside o grande problema da crítica tradicional e suas correntes teóricas que não respaldam, ou até opõe-se aos estudos culturais. Nessa perspectiva, a critica tradicional ou fica em silêncio à cerca da questão, algo típico do racismo à brasileira, ou se posiciona de forma teórica e ideologicamente comprometida com o grupo hegemônico. É possível que, nesse contexto, se crie um campo fértil para o florescimento de afirmações como a que segue: “Mas não se pode mudar a história passada; que a literatura tenha sido, em nossa tradição, uma prática de homens brancos das classes dominantes é um fato histórico documentado” (Perrone-Moisés, 1998: 198). Segundo Antonio Candido (1995) literatura, em seu sentido mais amplo, corresponde a todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. Nesse sentido, ainda segundo Candido, não há povo que possa viver sem a literatura, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Sendo assim, a literatura corresponde a uma necessidade universal e constitui também um fator indispensável de humanização. Abraçando este conceito de Candido e tomando a afirmação de Perrone-Moisés podemos concluir, portanto, que existe algo de etnocêntrico, racista e machista no reino da critica literária. Não quero propor generalizações, nem tão pouco colocar a dicção da autora na condição de metonímia da critica literária. Porém a afirmação da autora me permite flagrar o discurso comprometido em celebrar e reafirmar o comportamento narcisista dos brasileiros de ascendência européia. A afirmação de Perrone-Moisés é um exemplo clássico de reafirmar o mito da superioridade intelectual de um grupo étnico e de um gênero sobre outros, pormenorizando todos os fatores culturais ou até mesmo históricos que implicaram nesta tradição. Segundo Bento, (2002: 31) “ter a si próprio como modelo e projetar no outro as mazelas que não é capaz de assumir” são atitudes, do ponto de vista psicológico, que sob certos prismas específicos, até podem ser observadas como normais. No entanto, afirmações dessa natureza, no campo das relações raciais, visam justificar e legitimar desigualdades, apropriações de bens e manutenção de privilégios. No final do século XIX, no Brasil, as elites tiveram medo de um grande levante negro - a chamada “onda negra” Bento(2002). Neste contexto o ideal de branqueamento se consolida justamente do medo branco, de um país visivelmente não-branco. É possível que este medo branco Azevedo (1987), acompanhado dos resquícios dessas teorias raciais, esteja se reconfigurando (se é que um dia ele deixou de existir) e atuando na contemporaneidade, no campo da crítica literária, através do posicionamento contundente dos opositores aos estudos culturais. Talvez esses temam a “onda culturalista” devido a suas implicações sociais. Percebe-se que, ao advogar o estudo da “literatura por ela mesma”, propõe-se ocultar, silenciar, omitir, pormenorizar todas as práticas excludentes construídas pelos grupos sociais hegemônicos. Nesse sentido, os discursos apocalípticos daqueles que são contra a “onda culturalista”, no fundo, são instrumentos utilizados para frear transformações acadêmicas e sociais que a poesia não hegemônica pode provocar. É inegável que se deva estudar a estética do texto, mas não se pode entronizar este tipo de estudo como sendo o único possível. O Negro e a Literatura Para pensar literatura como prática também de populações negras é necessário, em primeiro lugar, nos desvencilharmos da crítica literária em nossa tradição ocidental. Em segundo lugar, é importante considerar as peculiaridades culturais que afetam o texto. Ver por exemplo, que as sociedades africanas, que são “comunitárias de estrutura oral” (Margarido, 1980: 107) e, conseqüentemente, seus descendentes carregam essa característica. Sendo assim, a memória destas sociedades é “essencialmente biológica” e sua literatura predominantemente oral ou um “verismo probante de um depósito arqueológico 3 ”. Todavia, a crítica literária, em nossa tradição, tende a supervalorizar a literatura escrita, coincidentemente a Ocidental, branca e masculina. No final do século XIX e começo do século XX, após séculos de espoliação das populações colonizadas, começa um processo de descolonização, no qual, os poetas africanos e da diáspora subvertem – transgridem -, no plano literário a concepção de arte negra. Ao utilizar a língua do colonizador, possivelmente a literatura negra 3 Cf. CASCUDO, Câmara. Cultura Popular reproduz as mazelas dos negros, através da mimese documental, fato que implica, para o colonizado, olhar os valores culturais ocidentais por uma ótica. A Literatura, como parte representativa do principalmente no caso da África francófona, aceleração do processo de descolonização, na culturais e espirituais imposta pelo Ocidente literária. (DAMASCENO, 1988, p. 17) processo histórico(...) serviu, de importante instrumento de inversão da escala de valores e na libertação da linguagem Gostaria de destacar que a partir do início do século XX, a arte negra, incluindo aqui, (escultura, pintura, música, dança e culinária), paulatinamente produzida na África ou em antigas colônias européias onde a influência dos sujeitos frutos da diáspora se fez sentir de forma tenaz, vem ganhando destaque. Talvez, o legado cultural dos negros, nestas artes citadas acima, seja mais legitimado que a arte literária. Parece-nos que os seguintes fatores podem estar envolvidos com a questão: a) a literatura possui como matéria prima a língua e esta, como afirma Barthes (1977: 12), é o “objeto em que se inscreve o poder”; b) por que a poesia “amplia nossa consciência ou apura nossa sensibilidade” (Eliot 1991: 29). A deslegitimação artística do negro, no campo da literatura, no Brasil, vai se dá por todas as instâncias que regulamentam a cultura (a escola, a mídia, a universidade, a crítica literária). Cada um cria seu dispositivo para controlar a inserção de um discurso literário que não somente tematiza as problemáticas enfrentadas pelos negros, mas que também denuncia, que sofistica a linguagem, acrescentando, remodelando, exprimindo um ritmo, uma musicalidade na qual as palavras dançam entre as culturas que a marcaram. A mídia televisiva adapta obras do cânone literário. Entretanto, não se vê o mesmo, pelo menos na televisão brasileira, em relação a contos ou romances de Cuti, de Mia Couto, de Toni Morisson, de Geni Guimarães, de Conceição Evaristo, etc. Já a escola e a universidade controlam a inserção das literaturas não-canônicas à medida que elaboram e mantém seus currículos, privilegiando as literaturas tidas como tradicionais, ou seja, priorizando “a literatura do homem branco”. É preciso levar em consideração que é mais fácil para professores que se atêm ao cânone repetir o que ouviram durante toda sua formação. Mas é no campo da crítica que o problema se agrava, pois, o que se encontra na “bolsa de valores” da crítica literária tradicional é uma invisibilidade, uma subrepresentação, uma classificação hierarquizada das literaturas de grupos não- hegemônicos ou, o que é pior, mercado de valores, o silêncio. Segundo Barthes, “(...) o pecado maior, em crítica, não é a ideologia, mas o silêncio com o qual ela é recoberta: esse silêncio culpado tem um nome: é a boa consciência ou, se se preferir, a má-fé”. (BARTHES, 1970: 160) Neste momento, é preciso reafirmar que o “silêncio” ocorre para deslegitimar não somente a poesia afro-brasileira, mas, as produções literárias de grupos nãohegemônicos em geral, pois, há um interesse dos grupos majoritários em promover a invisibilidade de tais produções. Bento (2002) chama a atenção para a questão do silêncio, a omissão, relacionando isto com o lugar que o branco ocupa nas relações raciais brasileiras, indicando seu forte componente narcísico de autopreservação. O que está em jogo é a negação do diferente e o controle do poder. É possível que os negros do Congo, século XVI, já tivessem esta leitura, pois conforme o primeiro dicionarista do Kinkongo, a Bíblia era algo maléfico, um veneno, ou seja, “A Bíblia não é senão a metonímia dos livros, esses objetos de poder dos brancos”. 4 Os grupos hegemônicos têm consciência do poder que se inscreve na língua e também da capacidade que a literatura tem de promover a emancipação dos sujeitos sociais, pois, ainda conforme Barthes, a literatura nos “permite ouvir a língua fora do poder”, “trapacear com a língua”. É deste fato que resulta toda forma de resistência em respeito à literatura negra, ou a qualquer outra literatura de grupos não-hegemônicos. Conforme Eliot, para que haja poesia é preciso dois resultados: o prazer e a “diferença, para além do prazer, que a poesia pode oferecer às nossas vidas”. Se isto acontece, sem dúvida, a literatura educa, ampliando a consciência e apurando a sensibilidade de qualquer nação. Entretanto, isto só ocontece “quando se trata de uma civilização sadia” (Eliot, 1991; 31). Ocorre que em uma sociedade como a brasileira, se levarmos em consideração a sua estruturação pigmentocrática, ou se preferirmos assim dizer, racialmente (des)estruturada, a expressão “civilização sadia”, não pode ser utilizada sem maiores questionamentos para não corrermos o risco de lançarmos mais combustível no fogo que alimenta o mito da democracia racial. Talvez a crítica literária brasileira não seja civilizadamente saudável, seguindo assim, o comportamento crônico de sua sociedade. Se for correto afirmar que, para “legitimar”, é preciso, em primeiro lugar, 4 Cf. (Margarido, 1980: 109). (grifos nossos) “compreender”, isto implica em uma outra questão, a qual pode ser pensada a partir da seguinte afirmação: Observa-se que a poesia difere de qualquer outra arte por ter um valor para o povo da mesma raça e língua do poeta, que não pode ter para nenhum outro. É verdade que até a música e a pintura têm um caráter local e racial; mas decerto as dificuldades de apreciação dessas artes, para um estrangeiro, são muito menores. (Eliot, 1991: 29) A partir dessa citação é possível afirmar que aquele crítico que tem dificuldade de apreciar a afro-brasileira não o faz porque sua raça e\ou sua língua não são as mesmas do poeta. Longe de querer afirmar que para entender poesia afro-brasileira é preciso ser negro, mas, é necessário reafirmar que a poesia afro-brasileira, como qualquer outra, também é “expressão do sentimento e da emoção” (Eliot, 1991: 30). É possível que o crítico mais afinado com as tradições da norma somática, ao se deparar com a poesia afro-brasileira, se comporte como se estivesse caído de pára-quedas num território geográfico, lingüístico, racial e culturalmente, estranho. Possivelmente deriva deste fato a apreciação e a hostilidade que tantas vezes permeia o discurso da crítica tradicional. Se for perguntado: qual é a língua do crítico literário brasileiro, que não consegue apreciar a poesia afro-brasileira? E preferível questionarmos: através de qual língua a poesia afro-brasileira se expressa? A poesia afro-brasileira faz ecoar a língua de seu povo. Neste sentido, a língua é operada tendo em vista o estilo e a tradição cultural de matriz africana, reavaliando, assim, não somente a temática, mas também, o discurso. Isto implica mudanças nos campos semânticos, lexicais, rítmicos, sonoros, além da emergência do eu enunciador que se quer negro que abandona, assim, a condição de objeto e assume a de sujeito. No Brasil, o termo poesia afro-brasileira ou negra não possui um conceito teórico definido. Acreditamos que isto ocorra por conta do estado “pouco saudável” de sua sociedade. Todavia, empregamos o termo aqui por acreditar que poesia afrobrasileira é, basicamente, uma rebelião, através da palavra, não somente contra a opressão racial, mas, em favor de uma legitimação da cultura e da experiência negra. No entanto, este é o grande problema do Brasil, pois expressar cultura e experiência negra é falar através de um código que nos é própria, mas que, ao mesmo tempo, o país “não (re)conhece”. Conclusão Não podemos nos furtar ao debate; se as últimas transformações políticas e culturais influenciaram na produção literária, não seria diferente em relação à própria crítica. Esta precisa acompanhar as “mutações” do seu objeto e, com certeza, o crescimento da área de estudos culturais. Mas por tudo que se pode inferir, podemos concluir que o modelo de relações raciais, pigmentocráticao, da sociedade brasileira e o componente narcísico da norma somática são elementos que permeiam a critica literária brasileira e acabam construindo obstáculos para as literatura de outros grupos. Os estudos culturais dão, no plano da crítica literária, uma visibilidade aos sujeitos anteriormente invisíveis. Neste sentido, talvez seja possível afirmar que os estudos culturais estejam para as ações afirmativas, assim como os adversários que insistem em desqualificá-los estejam para um conservadorismo que deriva da necessidade de manutenção do status quo sócio-racial. No embate contra os estudos culturais o que está em jogo não é somente a dita preservação do objeto literário, mas sim, a manutenção de privilégios institucionais. É preciso ir além, prestar a atenção no que verdadeiramente está sendo defendido ou questionado. É possível que as características sócio-raciais brasileiras também estejam arraigadas nesse embate e marquem a crítica literária canônica. A crítica literária não tem acompanhado com a mesma velocidade as mudanças políticas as concepções artísticas ao longo dos tempos. O fato é que, apesar das teorias raciais, “cientificistas” terem sido refutas desde meados do século XX, essas ainda continuam sendo revisitadas, remodeladas, recauchutadas, e reaparecem na contemporaneidade em livros de autores consagrados. Isto agrava ainda mais o problema que envolve as relações sócio-raciais no Brasil, pois o discurso do senso comum ganha mais uma vez a legitimidade através do discurso acadêmico. Percebe-se com essa postura que parte da crítica contemporânea não tem lutado “contra os estereótipos e seu reino” (BARTHES, 1977: 61) e não tem construído um, “(...) trabalho sutil de desativação dos discursos da arrogância” (BARTHES, 1977: 61). Pelo contrário, o que se tem visto nos desmandos da crítica literária é: autoritarismo, perpetuação de estereótipos, e discursos arrogantes que pouco colaboram com o desenvolvimento do senso crítico. Um estudo sistemático sobre relações raciais na dicção da critica literária brasileira ainda está pro ser feito, portanto, não se pode exaurir a questão nesse ensaio ficando esta pretensão para um outro momento. A falta de um consenso entre as duas vertentes de crítica literária não se deve ao fato de uma teoria anular a outra, mas sim, por que o que está em jogo é uma maior rotatividade do exercício do poder. Uma colisão implicaria em uma maior visibilidade das literaturas de grupos não-hegemônicos e uma democratização do poder institucional acadêmico. Isto, sem dúvida, seria sábio, e o aprendizado, então, “seria com um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível” (BARTHES, 1977:47). Referências bibliográficas AZEVEDO, Celia Maria Marinho de . 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