QUAL O LUGAR QUE A EMPREGADA DOMÉSTICA OCUPA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DA FAMÍLIA, DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE? Heidi Maria Camargo No. de inscrição no III CONGRESSO PAULISTA DE DIREITO DA FAMÍLIA: 10186 Psicóloga, Mestre em Psicologia Social com a dissertação: Empregada é a Mãe: das dinâmicas da maternagem para uma maternagem dinâmica. Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise, Integrante do grupo de estudos Psicanálise e Direito, coord. Giselle Groeninga; Docente da disciplina Direito e Psicologia. Rua dos Tamanás, 72 05444-010 São Paulo, SP fone:11 3032-2558/3032-7411 fax :11 3812-2314 Cel. 11 9288-611 0 QUAL O LUGAR QUE A EMPREGADA DOMÉSTICA OCUPA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DA FAMÍLIA, DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE?1 1. PALAVRAS INICIAIS 2. REPRESENTAÇÃO DE MÃE, REPRESENTAÇÃO DE EMPREGADA 3. EMPREGADA E ESTIGMA 4.CRIADAS E CRIANÇAS 5. A DESCONFIANÇA DA TRAIÇÃO 6. EMPREGADA-MÃE 7. PLAVRAS FINAIS. 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. A mão que balança o berço é a mão que conduz o destino 1. Palavras Iniciais O perfil da família brasileira se nos apresenta cada vez mais plural e diversificado: aumento e diminuição de casamentos, separações, recasamentos, enfim, novas formas de constituição da família. As crianças, porém continuam as mesmas, com as mesmas demandas para que ocorra seu desenvolvimento, o desenvolvimento de um registro psíquico de filiação. Tais modificações engendraram novas práticas especialmente com relação ao casal parental, independentemente de constituir-se como casal conjugal: os filhos sempre olham os pais – casados ou não – como um par. Por vezes um par ímpar. Vivermos em um mundo que dispõe de uma grande variedade de práticas de reprodução. Partimos do que se entende como produção independente – a maternidade sem atribuição de um pai – para o extremo da possibilidade, biológica, de procriar sem que a mãe tenha qualquer intercurso sexual, os chamados ‘filhos de mães virgens’2, sem contar as incessantes pesquisas com o propósito de clonar um ser biológico da espécie humana. 1 As notas de rodapé são em sua maior parte, fruto de minhas associações e da preocupação que tenho em interagir com o leitor / interlocutor: coisas miúdas que surgem no meio de uma idéia, pequenos acepipes servidos no meio da festa, saborosos, ardidos, doces, salgados, por vezes indigestos. Mas tal como livros, dentre tantos aperitivos, sempre há uma nota de canapé, expressão tão interessante de Rubens Alves, onde se encontre uma coisa boa que agrade o paladar e a alma. Assim, o que um não come, o outro pelo mesmo se perde, e isto é Plínio, o Velho, que falava de livros, não de canapés. Alves, Rubens. O livro sem fim. São Paulo, Loyola, 2002. 2 Lowenkron, Aurea Maria. Maternidades: novas configurações? 1 Talvez tenhamos que fazer uma diferenciação entre o que seja televisão – organismo biológico, com suas determinações genéticas – e novela – a estruturação psíquica, determinada pela convivência e pelo exercício da função materna e da função paterna. É assim que ocorre o registro de uma filiação: na fundação de um sujeito, sujeito do desejo. E o desejo, cadeia aberta, não tem objeto3. E quando a gente pensa que está satisfeita, lá vem uma outra demanda! De forma diversa, o instinto é uma cadeia fechada. Alguém já viu um animal faminto recusar alimento porque o feijão está encostado no arroz? Comida é pasto. Os humanos são muito diferentes, têm vida psíquica. Tão distante da biologia, a gente não quer só comida.4 Lembro-me de uma ‘uma dura’ de Caeiro, a quem Pessoa designava como meu mestre, a Álvaro de Campos, – que tinha por característica escrever em um português descuidado –: Se concebo o quê? Uma coisa sem limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser limitada. O que é que custa 3 Menina Moça Martinho da Vila - Definitivo (2002). Menina moça vai passear / vai passear iá, iá / quer rapaizinho pra acompanhar / pra acompanhar, iá, iá / tá passeando já quer flertar / já quer flertar iá, iá / quem tá flertando quer namorar / quer namorar iá, iá / tá namorando já quer noivar / já quer noivar iá, iá / moça esta noiva quer se casar/ quer se casar iá, iá / se está casada só quer brigar / só quer brigar iá, iá / quem tá brigando quer desquitar / quer desquitar iá, iá / tá desquitada quer se amigar / quer se amigar iá, iá / tá amigada quer separar / quer separar iá, iá / tá separada não quer amar / não quer amar iá, iá / não tá amando só quer chorar / só quer chorar iá, iá / só quer chorar, chorar. Esta música foi apresentada no 2o Festival da Música Popular Brasileira, Record, 1966: diretor Paulo Machado, produtor Solano Ribeiro. Em janeiro de 1966, a TV Record anunciou o 2o Festival da Música Popular Brasileira – conhecido como ao Festival dos Festivais –, previsto para acontecer em setembro daquele ano. A primeira edição, embora pouca gente se lembrasse, havia ocorrido em 1960, transmitida somente pelo rádio e sem grande repercussão. Por Maria Dolores, Revista BRAVO!, Julho / 2009. http://bravonline.abril.com.br/conteudo/musica/festival-festivais-480902.shtml Acesso: 17/07/2009. 4 Comida Arnaldo Antunes, Sergio Brito, Marcelo Frommer. Bebida é água / comida é pasto / Você tem sede de que? / Você tem fome de que? / A gente não quer só comida, / A gente comida, diversão e arte / A gente não quer só comida, / A gente quer saída para qualquer parte. / A gente não quer só comida, / A gente quer bebida, diversão, balé / A gente não quer só comida, / A gente quer a vida como a vida quer / Bebida é água / comida é pasto / Você tem sede de que? / Você tem fome de que? / A gente não quer só comer, / A gente quer comer e quer fazer amor / A gente não quer só comer, / A gente quer prazer pra aliviar a dor / A gente não quer só dinheiro, / A gente quer dinheiro e felicidade / A gente não quer só dinheiro, / A gente quer inteiro e não pela metade. 2 conceber que uma coisa é uma coisa, e não está sempre a ser outra coisa que está mais adiante?5 É curioso observarmos que conhecemos Laio e Jocasta, os pais biológicos de Édipo que o abandonaram ao léu. Você sabe o nome dos pais que acolheram Édipo, que cuidaram de seus machucados e que o criaram a vida inteira? Há um certo desinteresse por esta outra coisa: eles permanecem desconhecidos, em contraste com os pais biológicos. Chamavam-se Polibo e Merope, reis de Corinto6. Do ponto de vista da psicanálise, a família é uma estruturação psíquica, e, enquanto tal, sempre estará na dependência do exercício da função materna e da função paterna, assim como sob a lei (funda) mental da proibição do incesto7, que dará àquele escasso pedacinho de carne que se mexe, chora, mama, chora, evacua, chora, respira, chora, sorri, chora, 5 Pessoa, F. Obras em Prosa. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1986. Em Carta a Adolfo Casais Monteiro, Pessoa escreve: “Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo de Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis). Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro - de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui”. Pessoa conta que em 8 de Março de 1914, quando já desistira da empreitada, acercou-se de uma cômoda alta, um papel e começou a escrever, de pé, uns trinta e tantos poemas a fio, reunidos em "O guardador de Rebanhos", numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguia definir. Aquele foi o dia triunfal da sua vida, e o que se seguiu foi o aparecimento de alguém: ‘aparecera em mim o meu mestre’, Alberto Caeiro. Uma vez estabelecido o quatro heterônimo, Pessoa foi atrás de encontrar-lhe uns discípulos: retirou Ricardo Reis de seu falso paganismo, descobriu-lhe o nome e ajusto-o a si mesmo, sim ele já podia vê-lo! Mas, o oposto de Caieiro e também de Pessoa, surgiu de forma impetuosa: “Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a "Ode Triunfal" de Álvaro de Campos - a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.” Então, com a singela palavra coterie, criou um bando inexistente de indivíduos infames que defende conjuntamente seus interesses: [...] “Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Guardei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão entre Ricardo Reis a Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.” Pessoa, Fernando. Carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a gênese dos heterônimos. 6 Sófocles. Édipo Rei. Lisboa, Editorial Verbo, sd. Versão portuguesa de Antonio Manuel Couto Viana. 7 No cap. II, Tabu e ambivalência emocional, Freud dizia que onde existe uma proibição tem de haver um desejo subjacente. Afinal, para que proibir algo pelo qual ninguém se interessa? A proibição do incesto, em suas diferentes configurações, remete à estrutura triangular edípica, onde temos um sujeito do desejo, um objeto do desejo e uma interdição. Freud, Sigmund. Totem e tabu (1913). 3 dorme, chora, acorda chora, o lugar de sujeito. O maior desafio é transformar aquele organismo biológico em um sujeito, um sujeito com filiação. A relação afetiva decorrente da convivência pautada no desenvolvimento infantil apoia-se inicialmente nas funções materna e paterna. Convém esclarecer que estas funções não estão submetidas a uma questão de gênero, mas (funda) mentalmente de recursos internos que cada um possui. O pai pode ninar o bebê, aconchegá-lo em seu colo, sentir seu cheirinho, ficar hipnotizado enquanto vela seu sono; e a mãe, ou o outro pai ou o mesmo pai8, pode, perfeitamente, esclarecer as leis da casa – aqui não se senta à mesa sem camisa, não se grita depois das 10 e não se xinga o vizinho – zelando por elas, e isso é o principal. Di Loretto, em seu belíssimo artigo Da adoção (e dos erros de pensar) ou Dos erros de pensar (e da adoção), inclui mais duas questões (funda) mentais: primeiro a necessidade de um vínculo entre o casal parental, que não permita que o(s) filho(s) desrespeite(m) um ou outro, que um não faça a caveira do outro para o(s) filho(s)9, que desfrutem de alguma satisfação intelectual um pelo outro, quer dizer, que um não designe o outro por estúpido ou fracassado. Segundo, o apego à realidade: Aconteceu um fato prazeroso, chama-se o fato pelo seu nome e todos nos alegramos. Aconteceu um fato doloroso, chama-se o fato pelo seu nome e todos choramos. Fabricamos ou adotamos um filho: a vida mudou, a realidade é outra e há que se aceitar perdas no trabalho, no lazer e em mil outros interesses legítimos10. Encontramos casais que não formam uma parelha para nada – um dos pais está de acordo com o projeto de ter um filho, o outro é contrário; mantêm, há anos, desavenças abertas em relação ao dinheiro, ao trabalho da mulher, ao programa de férias e demais decisões compartilhadas (uma parelha infértil?) –; mães que seduzem os filhos para dormir no leito conjugal na tentativa de que o filho ocupe o lugar do marido; casais que mentem sistematicamente um para o outro: as coisas mais óbvias não são ditas, apenas insinuadas; casais cuja violência vira caso de polícia; casais que vivem às turras. Alguém acredita que apenas os filhos de pais separados são submetidos a estas dinâmicas? 8 No caso de famílias homoafetivas, ou monoparentais. Esta questão ficou tão intensa em nossa sociedade atual que já temos que prestar atenção no Fenômeno de Groeninga, Giselle. Alienação Parental. Publicado em Direito de Família. 10 di Loretto, Oswaldo Dante Milton. Da adoção (e dos erros do pensar) ou Dos erros do pensar (e da adoção). 9 4 Infelizmente nem a concepção, nem a gestação e nem tampouco o parto e a amamentação são suficientes para transformar uma mulher ou um homem em mãe e/ou pai, ou seja, capazes de exercer a função materna, primeira demanda do recém nascido. Não podemos (con) fundir a mãe humana e seus filhos com a fêmea animal e suas crias. Ao colarmos o conceito de maternidade ao exercício da função materna, corremos o risco de criar uma nova categoria de mãe, da mãe desnaturada, que perdeu a natureza de mãe – uma vez que ela não dispõe de recursos para maternar seu(s) bebê(s). Longe de ser uma apologia da ausência de amor materno instintivo – próprio dos animais –, esta discussão problematiza sua ausência ao mesmo tempo em que explicita a existência de um lugar de exercício de função materna – que pode ser ocupado pela mãe biológica, pelo pai, pela empregada doméstica ou pelos pais adotivos, para citar alguns. Separar a maternidade da função materna implica levar em conta que existe o papel social que a lei (apoiada, por convenção, na biologia) oferece às mães, que se defronta com as infinitas possibilidades – econômicas, sociais, históricas, mas principalmente, emocionais – de desempenhar a maternagem. Aliás, nos dias de hoje, devemos nos perguntar: por que a mãe biológica é a única responsável pelos primeiros momentos de cuidados para com seu(s) bebê(s)? Muitas vezes o ato biológico de ter filhos fica desvinculado do desejo inconsciente de materná-los. Isso sugere um aspecto da vida mental que queremos esquecer: fomos bebês exigentes e incansáveis em nossas demandas. A angústia que o contato com o bebê gera pode ser um motivo suficiente para o homem, ou a mulher, fazer qualquer coisa, menos ficar junto com a criança. Vocês sabem que existe um grande número de mães que não amam seus próprios bebês quando dão à luz? Elas sentem-se horríveis, exatamente como a madrasta. Procuram fingir que amam, mas simplesmente não conseguem. Seria tão mais fácil para elas se lhes tivessem dito de antemão que o amor é uma coisa que pode chegar, mas não é um botão que se liga... Os pais têm, por vezes, o mesmo problema. Talvez isso seja mais facilmente 5 aceito razão pela qual há menos necessidade de fingimento por parte de um pai e seu amor pode chegar naturalmente e no seu tempo próprio11. Este é um convite para examinarmos algumas raridades que permeiam as relações familiares levando em conta a peculiaridade da contratação de uma empregada doméstica para cuidar de nossa casa e de nossa prole. 2. Representações de mãe, representações de empregada Mãe é aquela pessoa que ocupa um lugar que inclui a representação de bruxa malvada, fada madrinha, prostituta, mentora, ladra, rainha do lar. O lugar de mãe implica ser considerada boa e má a maior parte do tempo. A empregada ocupa o lugar de repositório de detritos mentais da família – alguém ameaçador e vingativo que veio para nos roubar a criança ou o marido ou nossa intimidade. Através do preconceito e da rivalidade entre feminilidades, atualizada no relacionamento patrões/empregada, ela é levada a um estado extremo de despojamento de sua especificidade. A empregada doméstica ocupa o lugar da mãe má, uma mãe de segunda categoria, a própria madrasta. Afinal, nenhum conto de fadas12 ou, a bem dizer, nenhum filme ou história de terror, mito ou coisa parecida, pode ter um atrativo universal se não se relacionasse com algo inerente a cada indivíduo, adulto ou criança. O que motiva tais criações é que elas servem como metáforas para captar e explorar algo que é verdadeiro, assustador e inaceitável, algo que precisa ser simbolizado. 11 Winnicott, Donald Woods. Madrastas e Padrastos, (pág. 9-17), publicado em Conversando com os Pais. Tradução Álvaro Cabral. Título original: Talking to Parents. Edição organizada por Winnicott, Clare; Bollas, Christopher; Davis Dadeleine; Sheperd, Ray, (orgs.). São Paulo, Martins Fontes, 1993. Winnicott, Clare; Bollas, Christopher; Davis Dadeleine; Sheperd, Ray (orgs.), em Prefácio dos Organizadores, informam ao leitor que Donald Winnicott realizou cerca de 50 palestras radiofônicas para a BBC, entre 1939 e 1962, em sua maioria, dirigidas aos pais “Transcritas, revelam conter alguns de seus mais lúcidos e convincentes textos” (pág. XIII). A partir destas palestras, vários trabalhos foram publicados em diversas ocasiões, organizados por diferentes autores. Conversando com os Pais reúne a totalidade dos programas radiofônicos feitos depois de 1955, nesta mesma edição, foram incluídos dois artigos que não foram escritos para o rádio: Educação para a saúde através do rádio (pág. 1-7) e O desenvolvimento da segurança. (pág. 139-152). 12 O verbo fadar significa vaticinar, prognosticar; beneficiar, dotar; dar, conceder (um roteiro inexorável que não podemos controlar ou alterar). As fadas concedem o encantamento, os contos de fada não deixam dúvidas: o encantamento é algo parado, estanque, nunca muda, nunca cresce nunca se transforma. 6 O assunto empregada doméstica nos desagrada e nos encanta. Cada vez que surge o tema, invariavelmente alguém tem um comentário a fazer: seja sobre sua própria empregada ou sobre outra pessoa muito conhecida que tem uma empregada – um assunto ao mesmo tempo íntimo e familiar. O relacionamento com a empregada doméstica constitui um tema que atrai a atenção das pessoas levando-as a contar casos, histórias e atrocidades sobre o assunto. No relacionamento empregada e patroa, aspectos trabalhistas se transformam em assunto pessoal, íntimo e privado, onde existe uma grande carga de sentimento em jogo – nossa epígrafe não deixa dúvidas. Segundo representantes da categoria, esta demanda das empregadas – de serem bem tratadas, respeitadas e valorizadas – constitui um dos maiores entraves para suas conquistas trabalhistas. Por outro lado, aspectos pessoais se transformam em demandas trabalhistas: a empregada espera ter uma estreita relação afetiva com a patroa, e com os membros da casa, em geral. Temos uma relação de trabalho muito especial: dentro/fora. Existe uma ambigüidade em sua posição: a empregada está simultaneamente integrada e excluída da família. Mesmo que em alguns momentos seja considerada como tal, empregada não é parente. Ao mesmo tempo, se a parentalidade socioafetiva se dá através da convivência, dos laços afetivos e do exercício das quatro funções examinadas: função materna, função paterna, vínculo entre o casal parental e apego à realidade, como o Direito de Família vai tratar esta questão? Ou melhor: a questão precisa ser levada em conta pelo Direito de Família? Antiprofissionalizante, levar em conta apenas o aspecto emocional que se estabelece como elo (funda) mental entre empregada doméstica e patroa, em detrimento de aspectos trabalhistas, traz à lembrança a velha e atual oligarquia da família brasileira: basta que a patroa trate bem a empregada como se fosse sua filha. Esta prática representa o retorno da ‘mocinha que trabalha em casa de família, ganha comida e roupinha de vez em quando’. Ela é a menina criada e explorada pela patroa que se afeiçoou a ela. Chega a lembrar aqueles agregados dos contos de Machado de Assis no século XIX: um primo, um cunhado, a madrinha, a sogra... 7 Como considerar as ligações familiares presentes nos relacionamentos com a empregada doméstica? Por que a vida profissional da empregada inclui uma grande dose de vida pessoal e familiar tanto de sua parte quanto da parte dos patrões – adultos e crianças –? Será que a experiência das relações primárias, (funda) antes das relações familiares, que faz parte do cotidiano da empregada doméstica que mora, trabalha e tem o seu lazer no seio da família de seus patrões, tem alguma relação com o lugar que ela ocupa na proteção jurídica da família, da criança e do adolescente? Levar em conta apenas o aspecto emocional que se estabelece como elo (funda) mental entre empregada doméstica e patroa, em detrimento de aspectos trabalhistas, é, no mínimo um reducionismo. Ao mesmo tempo, as patroas supõem que tudo que se refira à empregada doméstica seja um assunto que deva ser tratado em conversas informais. Mesmo quando sua intenção parece delicada e generosa, a suposição para tamanha franqueza, para um número tão grande de detalhes, é de que a empregada doméstica não é considerada uma pessoa digna da privacidade que a patroa ou o patrão reservam a outras pessoas de seu relacionamento. Chamo a atenção do leitor para a idéia presente no senso comum de que a mulher deve ser resguardada. Não basta ser direita, é preciso parecer direita. É significativo que a antítese da categoria de “menina direita”, seja “menina falada”, o que quer dizer que é preciso não dar oportunidade a que se levante suspeitas sobre suas virtudes.13. Existe um momento, portanto, em que a identidade da empregada doméstica é posta à prova, é atacada. É quando a empregada doméstica é mulher falada, falada até a exaustão. Seu recato fica maculado, sua intimidade torna-se pública, ela é moça mal-falada. Goffman14 introduz o conceito de instituição total: um lugar onde os três aspectos da vida: trabalho, lazer e moradia ocorrem no mesmo lugar e sob a mesma autoridade. Os três aspectos da vida se confundem na instituição total como uma dança que só tem começo. 13 Oliveira e Silva, Alice Inês de. Rendas, Babados, Bilros e Croches: A Construção Social da Mulher de Prendas Domésticas, 1985. 14 Goffman, Erving. Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada, 1980. 8 Assim, o lazer da empregada doméstica se confunde com o trabalho, o trabalho com o lazer, o lazer se confunde com o descanso e vice-versa, ao mesmo tempo que o descanso também transforma-se em trabalho. Assim, a empregada doméstica sai para levar a criança para tomar sol e aproveita para namorar o porteiro do prédio; ou vai comprar cigarros e aproveita para levar as crianças para dar uma volta até a padaria. É assim também que a patroa aproveita o fato de que a empregada não saiu em seu dia de folga e deixa as crianças assistindo televisão com ela, “descansando” juntas; ou lhe pede que passe um cafezinho, já tarde da noite, enquanto combinam o cardápio do dia seguinte. E assim por diante. Detentores de maior ou menor autoridade e influência sobre a empregada doméstica, todos os moradores da casa têm uma inserção comum e distinta da empregada: são os patrões. Única, a empregada doméstica recebe ordens, que deve executar, de todos os membros da família. É interessante notar como freqüentemente as crianças da casa argumentam que não é sua tarefa guardar os brinquedos. Isso é serviço para a empregada. É preciso ressaltar que a empregada doméstica que mora na casa de família onde trabalha tem pontos de semelhança com os participantes das instituições totais sem, contudo, compartilhar de todos os atributos inerentes a elas. A dança dos aspectos de trabalho, lazer e descanso, presentes na definição de instituição total, mantém a idéia de uma disponibilidade sem paralelo entre as pessoas envolvidas – empregada doméstica e patrões – e serve de (amor) (tece) (dor) para o desenvolvimento das crianças. E não é que a convivência e o exercício das quatro funções examinadas anteriormente, são exatamente aquilo que estabelece a parentalidade socioafetiva? Ah, se for com vínculo empregatício não conta? Teremos que explicar esta questão para o inconsciente, ou, ao menos nos deter sobre as contradições aqui examinadas. Na minha clínica, assisto a torto e a direito uma infinidade de justificativas de zelo e apreço dos pais pela sua prole. Quando os pais querem que seus filhos conquistem, o quanto antes, uma autonomia – que os livre da incumbência de exercer as funções inerentes à filiação – 9 ocorre um paradoxo, e eles demoram ainda mais para crescer. Mas a maior parte sempre sobra para empregada, o grosso da convivência, quem cuida é ela. Assim, pais instalam computador, televisão e dvd, oferecem caríssimos videogames na esperança que seus filhos recorram àquelas máquinas, e não a eles, em busca de informação e convivência. Outro dia visitei uma criança de dois anos que adormecia assistindo a um desenho num laptop que cabia em seu berço! Cadê a empregada? Não tinha, os pais preferiam a interferência das máquinas à interferência de humanos, muito mais complexos e contraditórios. 3. Empregadas e estigma No ambiente de trabalho a empregada doméstica enfrenta contatos mistos, em que ambos os lados – patrões e empregada – enfrentarão diretamente as causas e os efeitos de seu estigma 15. Uma série de características são atribuídas à empregada mesmo quando ela está fora de seu ambiente de trabalho: tem perfume de gucha – diminutivo depreciativo de um termo também depreciativo: empregucha –, baile das guchas, música de gucha, programas de gucha etc. O cuidado que as empregadas têm para não serem identificadas como tais visa preservar aspectos de sua identidade que não se referem à sua profissão. Ao mesmo tempo, estas características que lhes são atribuídas sugerem que a empregada está confinada a um lugar específico e, deste lugar, deve ver o mundo. Este aspecto representa a primeira fase de uma longa trajetória – a carreira moral – desse processo de socialização "no qual a pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de vista dos normais, adquirindo, portanto, as crenças da sociedade mais ampla em relação à identidade e uma idéia geral do que significa possuir um estigma particular"16. O conceito de estigma oferece uma compreensão inicial dos preconceitos que a empregada doméstica sofre cada vez que se expõe ao mundo. O melhor a fazer é esconder sua condição – recebendo e aceitando relações baseadas em falsas suposições a seu respeito. 15 16 Goffman, Op. Cit. Goffman, Op. Cit. 10 4. Criadas e Crianças Crianças e empregadas domésticas são muitas vezes desprezadas do ponto de vista emocional e intelectual. Constituem as maiores vítimas de ironias e eufemismos dos adultos/pais/patrões, são tratadas como “café com leite”: alguém incapaz de seguir as regras do jogo, mas que não deve ser comunicado disso. Com o argumento de que ainda não entendem completamente os mistérios da vida, estabelecemos o costume de nos outorgarmos uma sabedoria que contrasta com a ignorância depreciativa atribuída à criança e à empregada doméstica: elas devem reconhecer seu lugar. Crianças e empregada doméstica estabelecem entre si uma relação de muita proximidade afetiva: assistem aos mesmos programas, gostam das mesmas músicas, falam do mesmo jeito – errado –, compartilham da mesma gororoba. Para horror dos pais, muitas vezes ocorre uma forte identificação entre a criança e a empregada: através de um relacionamento estreito, com grande envolvimento de parte a parte, a criança passa a assimilar hábitos da empregada doméstica tais como o jeito de comer, de dançar, de falar, e assim por diante. Esta questão não nos remete novamente ao (amor) (tece) (dor) exercido pela empregada doméstica nas relações de convivência e no exercício das quatro funções – materna, paterna, vínculo do casal parental e apego à realidade – examinadas neste ensaio? Ensaio sim, se tivesse certeza, não me ensaiaria, como dizia Montaigne. A influência que a empregada doméstica exerce na casa, especialmente com as crianças, não pode ser desprezada. Não podemos imaginar uma empregada que não mande, não decida, não estabeleça suas marcas pessoais no desempenho da maternagem. E não é que a questão do exercício das funções e a convivência estão presentes de novo? Ouvi de uma menina de nove anos: Quando eu crescer quero ser empregada porque mãe fica tão pouco em casa, vive viajando, né? É certo também que a empregada está submetida a um ritmo, aos hábitos e ao clima da casa de família onde se instala, bem como à autoridade da patroa. A margem de liberdade que a empregada desfruta, especialmente na ausência da patroa – mas nem sempre à revelia da 11 patroa –, também problematiza a questão da parentalidade socioafetiva pautada na convivência e no exercício das quatro funções acima examinadas. A empregada que cuida de crianças detém uma autoridade que precisa, sem dúvida, ser reiterada pela patroa em todas as oportunidades, sem o que sua tarefa de maternagem se inviabilizaria. A empregada pode orgulhar-se e desfrutar da maternagem que exerce. É comum encontrarmos empregadas domésticas que desenvolvem uma capacidade de resistir ao estigma através da relação que estabelecem com “suas crianças”, “sua cozinha”, “seu tempero”, “seus quitutes”. Cada vez mais comum está o fato da antiga empregada de famílias cujos cônjuges não mais vivem juntos, acompanhar as crianças nos fins de semana, nas viagens de férias, mesmo em situações de guarda compartilhada, Esta prática vem instalando-se, o que serve de (amor) (tece) (dor) amortecedor tanto para a(s) criança(s) como para pais que não querem ou não podem mudar sua rotina – seja de trabalho ou de lazer – mas, ainda assim, têm alguma convivência com sua prole, sob o mesmo teto, cada qual com suas diferenças. Esta questão tem alguma relação com a proteção jurídica da família, da criança, do adolescente? Quantas pessoas não perderiam a guarda do filho não fosse a presença diuturna da empregada doméstica? Outro dia uma orientadora de escola infantil comentou que um dos pais, não importa quem, esqueceu de buscar a filha na escola. A empregada, atenta, quando viu o passar da hora pegou um táxi e foi buscar a menina. Nem precisou a escola ligar. Pagou com o dinheiro de seu salário. Só sei até esse pedaço. Esta questão tem alguma relação com (amor) (tecedor), a dor do abandono? Reproduzo o comentário de uma empregada doméstica: “Elas se vestem toda, se arrumam, se maquiam, passam perfume e ficam fumando, tomando e falando de nós. Talvez não seja à toa que se diz que as mulheres têm papos“cri-cri”, que versam sobre criadas e crianças. Curioso par! 5. A desconfiança da traição 12 Empregada doméstica é uma pessoa desconhecida que vem para nossa casa compartilhar de uma intimidade que, não fosse sua inserção profissional, lhe seria totalmente vedada. A empregada doméstica cumpre tarefas, exerce funções que constituem a própria condição de dona de casa – cozinhar, cuidar da roupa, maternar as crianças. “A empregada doméstica, entretanto, não pode ser alguém, deve exercer o papel, executar as funções como se fosse um reflexo perfeito da patroa para que, num plano superficial, não seja muito culposa a ausência da titular e, num plano mais profundo, para que a patroa não seja esvaziada de sua condição feminina17”. A empregada aparece para ocupar não um lugar qualquer, mas o lugar onde a função materna é exercida, antes reservado apenas à avó, a mãe da mãe – da mãe daquele que materna. Esta afirmação aponta para uma relação simbiótica com a mãe, e por extensão, com a empregada–mãe18. (Lima. 1976) Este pode ser um dos motivos da importância que o assunto empregada doméstica tem em nossas mentes mobilizando poderosos aspectos de natureza psíquica. Assuntos proibidos, que induzem um sentimento de vergonha e culpa, levam as crianças a procurarem informações junto a outras crianças, bem como junto a pessoas de posições sociais inferiores, como os empregados. Frente a inúmeras curiosidades, as crianças vão atrás daqueles que não têm vergonha e de quem não esperam sofrer sansões por curiosidades que podem ser convencionalmente anátemas por padrões de sala de visitas. A empregada doméstica é vista como aquela pessoa que inicia os rapazes da família na vida sexual, um misto de prostituta e mãe: uma facilitadora das fantasias infantis, o que muitas vezes só contribui para a deterioração da sua identidade. A articulação de diversos atributos depreciativos transforma a empregada doméstica em alguém que ela não é e não quer ser: de segunda categoria. À empregada é atribuída a pecha19 de iniciar sexualmente os meninos, bem como de seduzir o patrão. Quem não conhece aquela história da criança que pergunta para a mãe: 17 Lima, Amazonas A. “Kürche, (Kirche), Kinder”, 1976. LIMA, Amazonas A. Op. Cit. 19 Do espanhol antigo pechar 'pagar uma multa, assumir um encargo ou prejuízo'. Houaiss, A. Dicionário da língua portuguesa. 18 13 ‘Coração tem pernas?’ e, diante da perplexidade da mãe, completa: ‘É que eu ouvi papai falando no quarto da empregada, abre as pernas, coração’20. Assistimos a um número cada vez maior de mulheres que ficam desesperadas quando se vêem diante do fato de que perderam a empregada. Ora, se perdeu, é só substituí-la. Nunca é tão simples assim. As famílias se desorganizam, nós nos desorganizamos. Sem ter quem cuide de nós, nos perdemos em dramas intensos: quem vai ficar com as crianças para eu trabalhar?, quem vai lavar a louça?, quem vai, quem vai, quem vai? A experiência catastrófica de perder a empregada é ilustrativa do sentimento de simbiose que se instala nesta relação. Muitas vezes cuidados corriqueiros são dispensados – verificação de referências, contatos com antigas patroas – na contratação de uma nova empregada tamanho o desespero que se instala na vida da família. Além de ocupar um lugar privilegiado no imaginário erótico na nossa cultura, ela tem acesso aos vestígios mais íntimos da família: sujeiras, secreções, excreções, restos do amor, sangue, suor21, cerveja e pinga22. Como mora na casa, presencia, e às vezes participa de reuniões de família, tal como a música de Vanzolini contempla a figuralidade23. Nem tudo é só alegria, situações 20 Este é um exemplo do que Freud denominou chiste ingênuo. Freud, Sigmund. Os Chistes (1905). Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud, versão 2.0 21 Não vou na sua casa Paulo Vanzolini21 Não vou na sua casa e não é à toa / Eu ando ressabiado com sua patroa / Não sei se ela achou graça / Nós entrarmos na cachaça / Em companhia da empregada / Você diz que não é nada, mas acho capaz / De ela estar zangada./ Demos risada de eu rolando pela escada / Rimos bastante com você em cima da estante/ E a Balbina, subindo pela cortina, / Estava coisa muito fina, / Estava mesmo um amor. / Mas sua patroa, apesar de boa pessoa, / Inda não sei se ela tem senso de humor. / Você de cinta e sutiã estava uma uva / E o maiô dela me caiu como uma luva / E a Balbina, toda cheia de fricote / Como Vênus Hotentote pôs Brigite no chinelo / Mas sua senhora, estou pensando até agora / Se ela estava rindo branco ou amarelo. 22 No meio do almoço de domingo, com a família toda reunida, a patroa grita para a empregada: Maria, essa comida está horrível! O marido fica constrangido e tenta acalmá-la, mas ela insiste: - Acho que até eu sou melhor do que você na cozinha! - Pode ser - concorda a empregada, mas a senhora fique sabendo que eu sou bem melhor do que a senhora na cama! - O quê? - assusta-se a mulher, Roberto, seu cachorro! Não acredito que você... - Calma, madame - interrompe a empregada - Quem me disse isso foi o motorista! 23 Vênus Hotentote: http://pt.wikipedia.org/wiki/Saartjie_Baartman Acesso em 19/07/2009. 14 constrangedoras: brigas de família, a incluir ou não as crianças, crises de ciúmes, nada é censurado à empregada. Ela não conta. Uma cisão ocorre quando a empregada é encarada como repositório dos detritos mentais da patroa, bem como de toda a família. Esse lugar garante para a empregada doméstica um papel de suma importância – o que seria de nós se não tivéssemos a quem atribuir nossa infelicidade? –, ao mesmo tempo em que evidencia sua inadequação. Os mitos, as músicas, as piadas e outras expressões aqui oferecidas são grandes auxiliares na tarefa de transformar em pensamento e em linguagem sentimentos poderosos que são mobilizados a partir do relacionamento com a empregada doméstica. O primeiro passo para que a empregada seja considerada uma pessoa inteira é trazer os preconceitos e a degradação inerentes a sua pessoa à tona: submetida a uma privacidade precária, a empregada doméstica tem pouco controle da obtenção ou perda de consideração que supostamente mereceria. “O fato de ter os erros passados e o progresso presente sob revisão moral constante, parece provocar uma adaptação especial, formada por uma atitude não moral com relação aos ideais do ego.24” Dispomos de mecanismos que zelam para que os aspectos trabalhistas acompanhem o desenvolvimento da sociedade. As empregadas domésticas, entretanto, enfatizam a importância dos cuidados invisíveis – atenção, respeito, afeto, consideração – para considerar suas relações trabalhistas, e pessoais, satisfeitas, especialmente através da patroa. A particular inserção da empregada doméstica pode dar a impressão de que existe um lado bom e outro mau. Por culpa da patroa, a empregada usufrui mais do que merece, ou viceversa. As situações que permeiam o cotidiano da empregada com a patroa não são de mão única. O intercâmbio de lugares caracterizado pela combinação de áreas de influência e autonomia, nos oferece uma oportunidade de observar que o papel de algoz e de vítima, do bem e do mal, ocupados ora por uma, ora por outra das protagonistas desta dança. 24 Goffman, Op. Cit. 15 Falar do relacionamento empregada/patroa é falar intensamente de ganhos e perdas. No cotidiano, empregada e patroa disputam palmo a palmo seja lá o que for. Existe uma discussão infinita, muitas vezes não explicitada, para estabelecer quem ganhou e quem foi a boba da dupla. Erros menores ou pequenos incidentes, como salgar demais a comida, anotar o número do telefone com um dígito a menos, ou queimar a roupa na hora de passá-la, podem ser interpretados como mais um aspecto que justifique a depreciação de sua pessoa. Raramente a empregada, como a maioria dos seres humanos, é boa em tudo o que faz: se cozinha bem não limpa direito os banheiros, se passa roupa com esmero não tira pó de trás dos livros. É como se uma qualidade ficasse anulada por um defeito. Ao mesmo tempo em que a empregada se responsabiliza pela limpeza da casa, ela é considerada suja. Várias são as práticas que apontam para a necessidade de macularmos a identidade da empregada. Até pouquíssimo tempo atrás, a ela era destinado um elevador específico, o de serviço, com o argumento de que, exercendo um trabalho braçal, está sempre suada. O que dizer, então quando a empregada saía para passear de banho tomado, arrumadinha e continuava tendo que usar o elevador de serviço? Que elevador utilizar quando estivesse acompanhada pelas crianças, seus patrões? 5. Empregada-mãe O estigma que a empregada doméstica carrega é um facilitador para que ela seja considerada suja, um repositório dos detritos mentais da família. Ela veio para nos roubar o marido, o que sugere a prostituição, ou para nos levar nossas as crianças, o que encerra uma ameaça de roubo, seqüestro ou homicídio. Assim, uma contextualização a princípio sociológica, histórica e econômica cede lugar para a observação de conteúdos mentais poderosos presentes na elaboração deste tema. As demandas que a empregada mantém de relacionamento com a patroa sugerem uma relação filial: a patroa é considerada uma segunda mãe, uma protetora, uma madrinha. Talvez ela também precise de um (amor) (tecedor). 16 Por outro lado, a empregada que cuida da casa, da roupa das crianças, da comida e da patroa desempenha atividades muito próximas daquelas que desempenha a mãe frente à criança. Ocupando ora o lugar de mãe disponível, acolhedora e boa, ou o lugar de mãe má, perversa e ameaçadora, a empregada representa, para a patroa, a possibilidade de ter uma empregada-mãe. É preciso, então, vigiá-la e negá-la. Sabemos por experiência que empregada boa é aquela que não aparece, aquela que não percebemos sequer que está em casa. Empregada boa é invisível, é não-empregada, não-pessoa, não-trabalho, não-salário, não-conflito, não-lugar na proteção jurídica da família, da criança e do adolescente, não-(amor) (tecedor). Este texto não se coloca como defensor das empregadas. Sem dúvida que há empregadas preguiçosas, hostis e muito comprometidas psiquicamente. Existem empregadas que não se prestam a simbolizações das mais diversas conotações atribuídas à elas, elas o são de fato. Se formos discutir casos concretamente escabrosos e patológicos, perderemos a oportunidade de investigar o imaginário que permeia a relação com a empregada doméstica e suas relações com a proteção jurídica da família, da criança e do adolescente. Teríamos, então, de abandonar uma investigação das práticas que têm lugar no relacionamento com a empregada doméstica e entrar o campo do Direito Criminal, que se distancia dos objetivos deste texto. Ao observar algumas práticas que têm lugar no relacionamento patroa/empregada doméstica, o que realmente me intriga é: se a empregada é tão ruim assim, por que mantê-la no emprego? Uma resposta muito corriqueira é: ruim com elas, pior sem elas. Com a empregada, as relações de trabalho são matizadas através de relacionamentos pessoais onde emoções representam um papel decisivo. 6. Pontos de identificação Talvez seja útil observar agora algumas práticas que ilustram esta complexa combinação de áreas de influência e autonomia que começam a partir de emoções e demandas tanto da patroa como da empregada. 17 Não só o aviltamento, o escárnio, a desconsideração ou a hostilidade estão presentes no relacionamento entre empregada e patroa. Existe uma grande dose de identificação entre elas. Podemos observar com que intensidade empregadas se identificam com a patroa através do jeito que atendem ao telefone: elas repetem as mesmas palavras, têm o mesmo timbre de voz, o mesmo jeito. Pelo menos ao telefone, a empregada é sempre (con)fundida com a patroa. Demos mais um passo na compreensão das dificuldades da empregada se identificar como tal ou de ser identificada por seu interlocutor como empregada: seria como as doze badaladas da meia-noite, quando Cinderela perde todos os encantos que lhe foram oferecidos por sua madrinha. Existem outras formas de identificação: empregadas que trabalham com patroas que sofrem de alguma doença – enxaqueca, por exemplo, passam a ter crises daquele mal –; ou vício – como o tabagismo, ou cafeína, passam a fumar e tomar café desmesuradamente. Empregadas que vivem com famílias de outras regiões, ou mesmo com famílias estrangeiras, assimilam seus hábitos. Do outro lado, os patrões tendem a sentir-se superiores e corretos – e é neste ponto que reside a graça da piada da nota 6 (a patroa jamais imaginaria ter seu caso com o motorista revelado). Daí que muitas vezes, a importância da empregada só pode ser sentida na sua ausência. Existem práticas, entretanto, que ilustram a poderosa identificação dos patrões com a empregada. A mais importante delas é quando a patroa contrata uma empregada para fazer todo o serviço doméstico, incluindo os cuidados com as crianças da casa. É neste momento que emergem as mais intensas fantasias tanto de uma identificação que as aproxima quanto dos temores que as afastam: a patroa passa a usar com a criança os mesmos jargões regionalistas que a empregada utiliza, a patroa se esmera para fazer a papinha igual à da empregada na esperança de que seu bebê coma tão bem consigo quanto com ela. Tenho observado, não sem surpresa, que as identificações de crianças, criadas desde bebês por empregadas, é de tal magnitude que elas acabam assumindo a expressão facial de seu primeiro objeto de amor, tornando-se parecidas com a empregada. É o caso de um casal de 18 brasileiros de ascendência européia – alvos, de olhos claros – que trouxe seu filho biológico – cuidado desde o nascimento por uma empregada mexicana – para um estudo de caso: a pele do rosto da criança era esticada ao máximo, e sua expressão..., ela parecia uma índia mexicana! Quando a empregada ocupa o papel de mãe, a patroa-mãe biológica se sente ameaçada, enciumada, extorquida de seu valor mais caro, depreciada em suas funções maternas. Neste momento, suas fantasias de roubo, homicídio, seqüestro, sedução, estão, para ela, mais do que justificadas. 7. Considerações Finais Dada a inserção profissional da empregada-mãe, alguém cuja origem e formação sugerem uma posição de inferioridade social diante da patroa, a empregada ocupa um lugar muito importante e também de pouco valor, possibilitando, assim, que sentimentos hostis com relação à própria mãe da patroa possam, finalmente, ser atribuídos a alguém. A rivalidade escamoteada, o ódio reprimido, as críticas jamais reveladas, que nem quando adultos ousamos manifestar para com a nossa própria mãe, podem agora ser descarregados na pessoa da empregada doméstica, numa reedição de nossa infância. Esta reedição nos permite realizar um velho sonho infantil: trocar os papéis. Nossos sentimentos de amor e ódio com relação à empregada-mãe podem ser finalmente postos às claras. A empregada porca, bagunceira e desorganizada apresenta-se, finalmente, como uma oportunidade de vingança. O sofrimento que experimentamos com a obediência e a dependência da nossa mãe podemos fazê-lo experimentar agora à empregada doméstica. Repositório de conteúdos mentais arcaicos e poderosos, a empregada é alguém que nos causa medo. Diante de nosso ódio passamos a acreditar que ela, de fato, possa cometer as atrocidades que lhe são atribuídas. Termino este pequeno ensaio com uma idéia de Winnicott: Em particular, as empregadas exerceram um papel vital no desenvolvimento do Donald Winnicott. Anos mais tarde, ele recomendaria a alguns de seus pacientes que passassem mais tempo ‘no andar de baixo’, 19 como parte do tratamento. Presumivelmente, ele sabia que os empregados muitas vezes têm mais tempo e sensibilidade para com as crianças que os pais biológicos.25 8. Referências Bibliográficas Alves, Rubens. O livro sem fim. São Paulo, Loyola, 2002. Antunes Arnaldo; Brito, Sergio; Frommer, Marcelo. Comida. Titãs 84 – 94, vol. 1. (1994). di Loretto, Oswaldo Dante Milton. Da adoção (e dos erros do pensar) ou Dos erros do pensar (e da adoção). Este texto foi distribuído em disquete, juntamente com outros 5 textos, sd, por ocasião da conferência intitulada Posições Tardias proferida pelo autor na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 10 de Set. de 1997. Freud, Sigmund. Os Chistes (1905). Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud, versão 2.0 Freud, Sigmund. Totem e tabu (1913). Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud, versão 2.0. Goffman, Erving. Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada, 3a ed, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1980. Houaiss, A. Dicionário Huaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro. Objetiva. 2001. Lima, Amazonas A. “Kürche, (Kirche), Kinder” in Ide, 2(3): 46-61, 1976. Lowenkron, Aurea Maria. Maternidades: novas configurações? In Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 35, no 3, pág. 823-841 (2001) Martinho da Vila - Definitivo (2002). Oliveira e Silva, Alice Inês de. Rendas, Babados, Bilros e Croches: A Construção Social da Mulher de Prendas Domésticas. (dissertação de mestrado), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1985. Pessoa, F. Obras em Prosa. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1986. Pessoa, Fernando. Carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a gênese dos heterônimos in: Textos de Crítica e intervenção, Lisboa, Ática, 1980. Publicado em Direito de Família – Processo, Teoria e Prática. Rolf Madaleno e Rodrigo da Cunha Pereira (coords.) Rio de Janeiro: Forense, 2008. Winnicott, Clare; Bollas, Christopher; Davis Dadeleine; Sheperd, Ray, (orgs.). Conversando com os Pais. Tradução Álvaro Cabral. Título original: Talking to Parents São Paulo, Martins Fontes, 1993. 25 Kahr, B. D.W. Winnicott: um retrato biográfico. 20