Robert-Vincent Joule Jean-Léon Beauvois Como Manipular Pessoas Para uso exclusivo de pessoas de bem Tradução: Marly Peres Prefácio Conheci Jean-Léon e Robert-Vincent – que me permito, aqui, chamar pelo primeiro nome, pois hoje são meus amigos – em meados dos anos de 1980, se não me engano em 1985, em Dolmos. Quando eles decidiram me transformar na personagem principal de seu próximo livro, não hesitei muito, apesar de ter que manter o anonimato. Que mulher não sonhou encarnar uma heroína de romance? No caso, não tratava-se de um romance, mas de uma obra científica sobre tudo aquilo que está por de trás das nossas atitudes mais corriqueiras. O projeto me encantou na hora. Eu só precisaria contar coisas que aconteceram comigo na rua, em família ou entre amigos, enquanto eles explicariam o que havia determinado cada um desses acontecimentos. De um lado, a ardente dimensão do vivenciado; de outro o rigor da análise científica. Compreender como eu tinha conseguido me posicionar, de modo a impedir a ação de um ladrão, no terraço de um restaurante, como eu consegui assistir até o fim à projeção de um filme completamente débil, como eu tinha comprado um conjunto estofado de couro cor-de-rosa nas Galerias Cordès, como eu tinha..., me encantava. Nem por um minuto cheguei a duvidar de que no fundo da caixa de Pandora estivessem as chaves da manipulação. Passado o desencanto, não lamento ter aberto essa caixa. É preciso dizer que as chaves que ela continha me têm sido muito úteis, desde então. Elas me ajudaram a tomar consciência das armadilhas colocadas para cada um de nós, aqui ou ali, para nos levar aonde nem sempre queremos ir. 11 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem Em todo caso, prefiro acreditar que hoje em dia sou menos manipulada do que antes. Essas chaves também me serviram – por que não admitir? – para conseguir dos outros, coisas que, sem elas, seguramente não teria conseguido. Mas sobre esse último ponto, prefiro manter a discrição... Possam as leitoras e leitores tirar desse livro os mesmos proveitos que eu. Madame O. 12 Capítulo I As armadilhas da decisão Pega ladrão À s quintas-feiras, em geral Madame O. está sozinha. Quando acaba o inverno, costuma aproveitar de suas horas livres para ir à praia de San Valentino. Depois de ficar bastante tempo dentro da água, ela gosta de saborear frutos do mar no terraço de um pequeno restaurante à beiramar. Assim, naquela quinta-feira de junho, se dispunha a cumprir seu pequeno cerimonial. O dia se anunciava dos mais agradáveis: pouca gente na praia, uma leve brisa, a água deliciosamente clara. Perto dela, uma garota ouvia música, com a orelha colada ao rádio. Madame O. sentiu então vontade de se refrescar. Quando voltou, depois de algumas braçadas na água, se deparou com uma cena mais do que frequente nas praias dólmatas. Sua vizinha, que seguramente também tinha ido se refrescar, deixara o rádio, descuidadamente, e um desconhecido estava mexendo nele, aparentemente tentando sintonizar outra estação. O sujeito aparentava uns 30 anos, e demonstrava estar muito seguro de si mesmo. Deu uma 27 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem olhadela em volta, e pronto – se afastou com o objeto de desejo embaixo do braço. Madame O. observou a cena toda, e talvez outros banhistas também tivessem se dado conta do que acabara de acontecer. Mas ninguém reagiu, nem ela nem os outros. Madame O. deu de ombros e acendeu nervosamente um cigarro: “Positivamente, disse consigo mesma, já não se pode entrar em paz na água!” Sete da noite. Madame O. chegou cedo o bastante ao restaurante, para poder escolher uma das mesas mais bem localizadas, de onde se pode jantar com vista para o mar. O terraço do restaurante começava a ficar cheio. “Com licença!” A garota se dirigiu a Madame O., com um forte sotaque estrangeiro. — Eu preciso telefonar, será que a senhora poderia dar uma olhada na minha bolsa, por favor? Evidentemente, Madame O. não tinha como recusar. — Claro, sem problema, respondeu ela automaticamente, sem quase tirar o nariz das ostras. Mal tinham se passado cinco minutos, Madame O. começou a ficar preocupada com a atitude de um indivíduo que se sentou ao lado da bolsa. Sua preocupação tinha razão de ser. Apesar de exibir um ar inocente, já estava em pé, com a bolsa na mão! — Prendam-no, não conseguiu deixar de gritar, levantando e indo atrás do ladrão. Talvez surpreenda o fato de que a mesma pessoa, em duas situações diferentes, envolvendo dois delitos do mesmo tipo e tão próximos no tempo, pudesse reagir de modo tão 28 As armadilhas da decisão diferente, assistindo passivamente à cena no primeiro caso, e intervindo com vigor e determinação no segundo. De duas uma: ou Madame O. age de maneira inconsistente, ou a história que acabamos de contar não tem nenhuma credibilidade. Na verdade, preferimos pensar que, apesar das circunstâncias, as pessoas em geral têm o que chamamos de um comportamento consistente, ou estável. Para nos convencermos, basta recorrermos à definição dada pelos psicólogos para a noção de personalidade: a personalidade é, por definição, o que permite compreender por que as pessoas se comportam de maneiras distintas umas das outras, em uma mesma situação (por exemplo, intervindo ou não, para interceptar um ladrão), e por que tendem a se comportar do mesmo modo em situações semelhantes.1 Assim, depois de ter visto Madame O. assistir passivamente ao furto na praia, já imaginávamos que ela agiria tão passivamente quanto, no restaurante. Inversamente, alguém que tivesse visto a viva reação de Madame O. no restaurante ficaria sem dúvida surpreso ao descobrir que essa mesma pessoa tinha assistido com tranquila indiferença ao roubo de um rádio na praia, algumas horas antes. É verdade que essa noção de consistência comportamental simplifica enormemente a vida. Afinal, não é ela que permite que, sabendo como as pessoas se comportaram no passado, 1 Eis, a título de exemplo, uma definição das mais clássicas. A personalidade é definida por Child (1968, p. 83) como “um conjunto de fatores internos mais ou menos estáveis, que fazem com que os comportamentos de um indivíduo sejam constantes no tempo e diferentes dos comportamentos que outras pessoas poderiam manifestar em situações semelhantes”. 29 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem sejam feitas, previsões úteis sobre suas futuras condutas? Não pensaremos duas vezes em recorrer aos préstimos do vizinho de apartamento, que tão gentilmente tomou conta do cachorro na semana passada, mas evitaremos pedir seja lá o que for ao locatário do primeiro andar, que alegando uma cólica renal, se recusou a nos ajudar a descer a máquina de lavar até a garagem. Aliás, é nessa noção de consistência comportamental que se baseiam inúmeras práticas, entre as quais as de recrutamento. Se um empregador toma o cuidado de se informar sobre a conduta profissional passada de um candidato a um cargo de direção, não é por acaso. É para iluminar o futuro à luz do passado. Da mesma forma, quando em uma agência de seleção, um psicólogo observa o modo como um candidato está sentado na cadeira, ou responde às questões que lhe são feitas durante a entrevista de recrutamento, mais uma vez é para prever suas reações em situações concretas de trabalho. Esses exemplos, cuja carga social não escapa a ninguém, ilustram até que ponto o recurso ao princípio de consistência comportamental é útil para quem quiser prever, ou simplesmente compreender, a conduta humana. Dessa forma, é mais fácil entender nossa perturbação, ao constatar a facilidade com a qual Madame O. pôde contrariar esse princípio de consistência, ou estabilidade. Mas sua inconsistência não deve ser considerada como sintoma de uma personalidade à parte, de alguém cujas atitudes não seriam as de todo mundo. Atualmente, são incontáveis os estudos que mostram as dificuldades de prever o comportamento de uma pessoa em uma determinada situação, a partir de seu comportamento em uma situação anterior ou a partir de sua personalidade 30 As armadilhas da decisão ou de suas atitudes. Por exemplo, se for o caso de prever se o dono de um restaurante americano aceitará ou recusará servir clientes negros, se as pessoas fossem “consistentes”, deveríamos poder nos basear pelo menos em três tipos de informações: — informações que dizem respeito a seus comportamentos anteriores (ele não cedeu seu lugar no ônibus a uma chinesa grávida); — informações sobre suas atitudes (ele defende teses racistas); — por último, informações sobre sua personalidade (ele é autoritário e intransigente). Ora, de inúmeras observações e experimentos, deduz-se claramente que por mais que desconsideremos o contexto, o aspecto pontual, a validade das previsões que podem ser feitas com base nesses três tipos de informações se aproxima da validade das previsões que faríamos se não soubéssemos nada.2 Os pesquisadores envolvidos nesses experimentos e observações nos revelam o quanto era arriscado tentar prever o comportamento de Madame O. às 19h, no terraço 2 Sugerimos ao leitor interessado consultar Mischel (1968) e Wicker (1969). O leitor especializado seguramente nos lembrará que, desde os anos 1960, a constatação estabelecida por autores como Mischel e Wicker fez com a que o problema fosse “levantado de outra forma”. E terá razão. Responderíamos que “levantar um problema de outra forma” não significa que estão ultrapassados nem a constatação que tinha levado ao questionamento, nem o próprio problema. 31 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem do restaurante, se levarmos em conta o modo como ela tinha reagido às 16h na praia, no momento do furto. Isso não quer dizer que eles recusam necessariamente a ideia de consistência comportamental – que é tenaz –, nem mesmo que a ponham em causa. Eles poderiam argumentar que essa consistência é real, mas que não pode ser apreendida a não ser em vastos conjuntos comportamentais. Ela poderia, sobretudo, manifestar-se caso soubéssemos como Madame O. comportou-se em dezenas de situações semelhantes. Só então poderíamos constatar que Madame O. tem tendência para intervir, em caso de roubo, com mais frequência do que certas pessoas, mas um pouco menos do que outras. Contudo, o que aconteceu é que Madame O. teve dois comportamentos inconsistentes, no intervalo de poucas horas. Como é possível que ela tenha reagido no restaurante, se não tinha esboçado qualquer reação na praia? Sabemos que, para explicar esse tipo de inconsistência, alguns psicólogos recorrem de bom grado à noção de especificidade comportamental, noção que traduz a dependência de um comportamento relativamente a uma determinada situação. Mas a fim de que tal noção seja útil, para o desenvolvimento desse raciocínio, ainda é preciso poder dar conta dessa especificidade. No caso do qual estamos tratando, é evidente que ao menos uma das duas reações de Madame O. tem origem na situação na qual ela se encontrava. E nós sabemos qual: se Madame O. interveio no restaurante, não foi porque seu temperamento ou escala de valores a tenham levado a agir daquela maneira – se assim fosse, não teria ela simplesmente agido também à tarde? –, mas simplesmente porque ela tinha sido instada a fazê-lo. 32 As armadilhas da decisão Por mais que à primeira vista essa explicação seja fácil, ela não é tão simplista como pode parecer. Se examinarmos atentamente as duas situações que Madame O. precisou enfrentar sucessivamente, na praia e no restaurante, constataremos que a única diferença entre elas foi um simples “sim”, dado em resposta a um pedido que dificilmente ela poderia recusar. Ou seja, não foi porque Madame O. é uma pessoa por natureza amável que aceitou tomar conta da bolsa por alguns instantes, mas porque não podia agir de outra forma. Em tais circunstâncias, quem, a não ser alguém dono de um mau humor insuportável, teria podido recusar o pedido? É assim que um simples “sim”, arrancado de nós incidentalmente, pode nos levar a nos comportarmos de modo completamente diferente daquele que teríamos se agíssemos espontaneamente. É importante insistir nas características concretas dessa situação e, principalmente, estabelecer uma nítida diferença entre o que diz respeito à forma e o que concerne à lógica das relações interpessoais. Do ponto de vista formal, o pedido feito a Madame O. se assemelha a uma pergunta (“Você poderia dar uma olhada na minha bolsa, por favor?”) à qual ela poderia responder com um sim ou com um não.Vendo por esse ângulo. Madame O. está em uma situação de escolha: como a forma foi de uma pergunta, ela poderia aceitar ou recusar atender ao pedido que lhe foi feito. Vendo por esse ângulo da lógica interpessoal, o pedido feito a Madame O. não era uma pergunta, mas um pedido, um desses que não podemos recusar de modo algum, dentro de uma relação social ordinária, comum. Essa conjunção particular de um nível formal que parece exigir a atividade de decisão (responder “sim” ou “não”), e de um nível social que torna 33 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem necessário aceitar o pedido é característica de uma situação que encontraremos ao longo de todo livro, e que se refere à submissão livremente consentida. Se Madame O. pode ter o sentimento de ter decidido livremente tomar conta da bolsa na ausência da vizinha, ela não tinha contudo escolha, pois em seu lugar qualquer pessoa teria feito a mesma coisa. Mas antes de continuar, tentaremos demonstrar que o exemplo de Madame O. não é fruto de nossa imaginação. A fonte de nossa inspiração está no trabalho de um pesquisador americano (Moriarty, 1975), que não hesitou em pôr os envolvidos em suas experiências em situações bastante semelhantes a essas que acabamos de mencionar. Em um primeiro tipo de experiência, o experimentador se instalava com um rádio, como que por acaso, ao lado de banhistas nova-iorquinos estendidos na praia. Antes de se afastar, deixando o rádio na areia, assumia duas atitudes diferentes, relativamente ao vizinho de toalha. Em um caso (condição de comprometimento), ele dizia: “Com licença, preciso me afastar por alguns minutos, você pode dar uma olhada nas minhas coisas?” Como se imagina, todo mundo respondeu afirmativamente a essa pergunta. Em outro caso (situação de controle), ele dizia: “Com licença, estou sozinho e sem fósforos... você pode me dar fogo?” Mal o experimentador saía de perto, um colega3 furtava o rádio. Na condição de comprometimento, 95% dos banhistas intervinham, para impedir o ladrão, mas na situação de controle só 20% deles faziam isso. Em uma experiência idêntica, mas feita dessa 3 Ou seja, um assistente de experimentador. 34 As armadilhas da decisão vez em um restaurante, o rádio era substituído por uma elegante pasta de couro, e os efeitos obtidos foram ainda mais contrastantes, pois 100% das pessoas envolvidas na situação de comprometimento intervieram, contra meros 12,5%, na situação de controle. Para avaliar o alcance desses resultados, convém eliminar algumas hipóteses cômodas que poderiam nos atrapalhar. Em primeiro lugar, convém notar que, nas duas condições — tanto na de comprometimento quanto na de controle —, a pessoa cujas reações estão sendo estudadas e o próprio experimentador fazendo o papel de vítima potencial tiveram oportunidade de trocar algumas palavras. Portanto, não foi porque seu vizinho de toalha conversou com elas que as pessoas envolvidas ficaram inclinadas a impedir o ladrão. E não podemos explicar os resultados supondo que, na condição de controle, as pessoas não tenham interferido porque não sabiam que a pessoa que se aproximava sub-repticiamente do rádio ou da pasta era um ladrão. As poucas palavras trocadas com cada pessoa possibilitaram que o experimentador passasse a informação de que estava sozinho. O que fazia com que, para todas as pessoas, a situação parecesse um roubo. Por fim, e sobretudo, não se pode de modo algum pensar que as pessoas envolvidas na condição de comprometimento eram mais inclinadas a se comprometer, nesse tipo de intervenção, do que as pessoas na condição de controle — e isso por um motivo já explicado: todas as pessoas a quem o experimentador pediu para tomar conta de suas coisas (quer fosse o rádio, quer fosse a pasta) aceitaram fazer isso, sem exceção. Consequentemente, é difícil considerar que as pessoas que aceitaram vigiar os objetos do experimentador tinham personalidades menos passivas, e, 35 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem portanto, mais chances de intervir do que as outras, desde o início. Como não concluir, então, que foi porque as pessoas envolvidas na condição de comprometimento foram levadas a responder “sim” a uma pergunta à qual não poderiam responder “não”, que elas se comportaram, afinal, de modo tão diferente das outras, envolvidas na situação de controle, às quais o experimentador não pedira que vigiasse seus objetos? Ainda, os resultados apresentados por Moriarty em meados dos anos de 1970 vão muito além do que essa apressada análise permite deduzir. Voltando à Madame O. e a sua inconstância comportamental, admitiremos portanto que, no restaurante, o simples fato de ter sido levada a responder afirmativamente a uma pergunta ingênua, cuja resposta era evidente, é que constituiu um fator de comprometimento que a levou a intervir, na situação citada. Aqui, o que os psicólogos chamam de especificidade comportamental está, afinal, ligado a um puro concurso de circunstâncias: estar sentada ao lado da estrangeira no terraço do restaurante, ter sido objeto de um pedido que poderia ter sido feito a qualquer outra pessoa etc. — circunstâncias que levaram Madame O. a se submeter ao pedido que lhe foi feito, sem por isso experimentar o menor sentimento de pressão ou de obrigação. No restaurante, Madame O. esteve sob a influência dessas circunstâncias, e sua prontidão para agir, antes que o ladrão desaparecesse com o objeto roubado, diz diretamente respeito a essa influência. Com certeza, se a estrangeira não lhe tivesse pedido explicitamente que desse uma olhada em sua bagagem, ela teria acabado tranquilamente de comer suas ostras, sem dar a menor atenção, não mais do que na praia, ao ato do irreverente ladrão, exibindo então passivamente a 36 As armadilhas da decisão mais perfeita consistência comportamental. Mas, no fundo, por que as pessoas dariam prova de consistência, na ausência de qualquer pressão situacional? O efeito de congelamento Ao mesmo tempo, é essa submissão, ditada pela lógica das relações sociais, que a apresentação formal do pedido, na forma de pergunta — que aparentemente implica no exercício de uma decisão ou de uma escolha —, que caracteriza a aquiescência de Madame O., no terraço do restaurante, e das pessoas testadas por Moriarty, a quem era pedido que vigiassem os objetos de alguém por alguns minutos. Na discussão anterior, propusemos que tal aquiescência levava necessariamente ao ato que consiste em intervir para evitar o furto. Assim, admitimos implicitamente que, na medida em que tinham aceitado vigiar os objetos de alguém durante sua ausência, a exemplo de Madame O., diante da situação, os banhistas nova-iorquinos e os clientes do restaurante não poderiam senão intervir. Ora, esse pressuposto não é nada óbvio. Poderíamos pensar que, precisamente porque a aceitação de tomar conta do rádio ou da pasta era de certa forma pouco coercitiva — sendo as normas sociais de ajuda mútua o que são —, que as pessoas testadas por Moriarty só prestariam pouca atenção aos objetos que lhes tinham sido confiados. Estaríamos enganados, pois é justamente do comportamento de aceitação que decorre o comportamento de intervenção. Por quê? Uma hipótese simples e ao mesmo tempo geral merece ser considerada: as pessoas tendem a aderir ao que lhes parece serem decisões delas próprias, e a se comportar de acordo com elas. 37 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem Devemos reconhecer o mérito de Kurt Lewin (1947) por ter sido o primeiro a insistir em tais consequências da atividade de decisão. Inútil lembrar os detalhes de suas experiências, agora famosas, nas quais ele comparava a eficácia das duas estratégias, visando modificar os hábitos de consumo das donas de casa americanas (comprar carne de segunda, em vez de primeira; leite em pó, em vez de leite fresco etc.). Lembramos que a primeira dessas estratégias era persuasiva, na qual as donas de casa eram levadas a assistir a conferências que louvavam as qualidades e os benefícios dos novos produtos. A segunda estratégia consistia, por ocasião de um trabalho em grupo, em incentivar as donas de casa a tomar a decisão de consumir esses mesmos novos produtos. A nítida superioridade da segunda estratégia pode ser compreendida no mínimo de dois modos. Primeiro, podemos supor que o trabalho em grupo é uma máquina de persuasão mais eficaz do que as conferências. Se no fim da sessão as donas de casa que trabalharam em grupo estiverem mais convencidas do que as outras das qualidades nutritivas dos alimentos, podemos evidentemente deduzir que depois disso elas consumiriam carne de segunda e leite em pó. Mas essa suposição não é a preferida de Lewin, que faz uma interpretação completamente diferente, com base na noção de efeito de congelamento: a superioridade das sessões em grupo seria explicada apenas pelas virtudes da tomada de decisão. Dito de outra forma, se as donas de casa postas em situação de grupo forem as que compram mais carne de segunda ou leite em pó, não é porque estavam mais convencidas do valor desses alimentos, mas porque foram levadas a pensar dessa maneira. 38 As armadilhas da decisão É evidente que os resultados apresentados por Moriarty comprovaram o que Lewin intuía. Na verdade, podemos procurar em várias direções o que diferencia as pessoas da condição de comprometimento, que intervêm, das pessoas da situação de controle, que não interferem. Podemos procurar, mas não encontraremos nada que permita dizer que as pessoas envolvidas na primeira situação já dispunham inicialmente de melhores razões do que as outras, para prestar mais atenção aos objetos de alguém e, sobretudo, de intervir, em caso de necessidade. Um único elemento as distingue: a decisão, à qual podem ter sido levadas, de vigiar um rádio ou uma pasta, na ausência de seu proprietário. Uma vez tomada a decisão, aderem a ela, e se comportam de acordo, assim que a ocasião se apresentar. É precisamente essa ideia de aderência à decisão tomada que a noção de efeito de congelamento traduz. Tudo se passa, efetivamente, como se a decisão — especialmente quando é tomada em situação de grupo — congelasse o sistema de escolhas possíveis, fazendo o indivíduo focar no comportamento mais diretamente ligado à sua decisão. Talvez esse efeito de congelamento possa parecer extremamente comum, ou tão natural, e mesmo fundamentalmente positivo, a ponto de as pessoas agirem como se assim tivessem decidido. O que seria do mundo, se depois de ter tomado a decisão de se comportar de uma determinada maneira as pessoas se comportassem de outra? Não costumamos dizer de alguém que se mantém firme, fazendo efetivamente o que decidiu fazer, que essa pessoa é segura de si e confiável? Mas aqui estamos falando de aderência ao próprio comportamento de decisão e não de adesão às boas ou más razões que supostamente orientam esse comportamento — o 39 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem que já é menos comum. Aliás, não deveríamos ver somente o lado positivo do efeito de congelamento, já que ele pode levar a comportamentos inegavelmente disfuncionais, a verdadeiras perversões comportamentais. O universo empresarial nos ajudará a traçar um primeiro quadro desses desvios de atitude. Um caso de gerenciamento absurdo Foi no sisudo quadro da Business School (escola de negócios) americana, que forma executivos, que Staw fez uma experiência perturbadora, em 1976. Pediu-se a alguns alunos da Business School que se imaginassem no lugar de um alto executivo que precisasse tomar uma importante decisão financeira: atribuir a uma das duas filiais da empresa um fundo excepcional de desenvolvimento. Com essa finalidade, eles receberam um dossiê sobre a empresa e seu panorama econômico. Depois de tomar essa primeira decisão, os alunos eram instados a imaginar que precisavam tomar uma segunda, vários anos depois. Dessa vez, tratava-se de dividir uma nova quantia de dinheiro entre as duas filiais da empresa. Mas antes de tomar essa segunda decisão, os alunos eram informados de que a primeira não tinha conseguido promover os resultados esperados. Na verdade, um novo dossiê revelava claramente que os resultados econômicos da filial que havia se beneficiado do fundo excepcional de desenvolvimento não tinham melhorado, muito pelo contrário! Staw constatou que curiosamente, apesar das eloquentes informações que lhes foram fornecidas, os alunos managers tendiam a privilegiar 40 As armadilhas da decisão a filial à qual tinham atribuído o primeiro investimento, aderindo à sua primeira decisão financeira. Evidentemente, podemos objetar que esses alunos não são tão pouco razoáveis como pode parecer. Todos sabem que nunca é aconselhável fechar brutalmente a “torneira”, depois de se registrar os primeiros resultados negativos. Mas essa objeção não tem fundamento. Para nos convencer disso, Staw fez outra experiência. Ela mostra claramente que a segunda decisão dos alunos era efetivamente o resultado da estrita aderência à primeira, e não fruto de discernimento. Nessa segunda condição, os alunos deveriam então imaginar que precisariam substituir de improviso o diretor da escola, supostamente morto em recente acidente de avião. Esse diretor é quem tinha decidido, alguns anos antes, atribuir o fundo especial de desenvolvimento a uma das duas filiais da empresa. Consequentemente, os alunos só precisariam tomar a segunda decisão financeira, que consistia, como anteriormente, em dividir uma nova importância entre as duas filiais. A exemplo dos alunos da primeira condição, eles eram informados de que o desempenho da filial que havia se beneficiado do fundo excepcional de desenvolvimento era decepcionante. Como sugerimos, Staw constatou que de forma alguma os alunos aderiram à decisão tomada por seu ex-diretor: dando prova de bom-senso, destinaram menos dinheiro à filial privilegiada na primeira atribuição de verba. Ou seja, contrariamente aos alunos da primeira condição, esses foram capazes de utilizar de modo racional as informações recebidas, dispondo-se a voltar atrás em uma decisão financeira anterior, apesar de essa ter sido tomada por outra pessoa. 41 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem Sem dúvida, os resultados obtidos com essa experiência ajudam a compreender a interpretação, em termos de efeito de congelamento, à qual recorremos para falar sobre o comportamento de pessoas envolvidas na experiência de Moriarty. Eles mostram, na verdade, que depois de tomar uma decisão — seja ela justificada ou não, aqui isso não vem ao caso — as pessoas tendem a mantê-la e a reproduzi-la, mesmo que não produza os efeitos esperados. Isso demonstra a que ponto o efeito de congelamento é tributário do mesmo ato decisório, e não das razões que tenham podido motivar esse ato. A esse respeito, é extremamente sintomático que os alunos da primeira condição experimental de Staw tenham mantido uma decisão financeira anterior, apesar das informações que a questionavam. A demonstração é ainda mais significativa por se tratar de estudantes de economia de uma grande Business School americana. Estamos, aqui, diante de um processo relativamente específico, que consiste em se engajar antecipadamente em um rumo de conduta que se revelou até então infrutífero. Depois dos experimentos de Staw, costumamos chamar de escalada de comprometimento essa tendência que as pessoas manifestam, de “se agarrar” a uma decisão inicial, mesmo que seja claramente posta em xeque pelos fatos. Desde os estudos originais de Staw, ela tem sido objeto de especial atenção, por parte de quem estuda o management e o comportamento das pessoas em empresas. Observamos essa tendência em diferentes níveis — no das pessoas, mas também no de grupos e organizações (Bazerman et al. 1984; Ross e Staw, 1993). Se nos referimos aqui ao efeito de congelamento, uma análise de natureza essencialmente psicológica, erraríamos se não 42 As armadilhas da decisão levássemos em consideração outros fatores que podem tornar essas escaladas de comprometimento mais prováveis, quer se trate de fatores organizacionais, sociais ou culturais, de política geral etc. (Staw e Ross, 1989; Drummond, 1994; Geiger et al. 1998). Quando se sabe que a escalada de comprometimento provoca com frequência decisões disfuncionais, pode parecer curioso que Moon tenha conseguido mostrar, recentemente, que uma orientação dos tomadores de decisão voltada para o desempenho e, mais do que isso, para o desempenho pessoal, os predispõe ainda mais a esse tipo de aderência às decisões (Moon, 2001). É preciso saber dizer chega O fenômeno de escalada de comprometimento nos mostrou que as decisões econômicas, mesmo que tomadas por futuros executivos americanos, podem se revelar muito pouco racionais. A psicologia social experimental nos descreve outros fenômenos que também apontam para esse tipo de aderência às decisões, que, é preciso dizer, não são feitas para reabilitar a noção de racionalidade, apesar de ser limitada. Nós nos deteremos em dois deles: a despesa (ou investimento, ou despesa) irreversível e a armadilha. Esses fenômenos devem nos ajudar a entender alguns probleminhas de nossa vida cotidiana. As peripécias de uma noite que ficará por muito tempo gravada na memória de Madame O. nos convencerão disso. O jantar já tinha começado há bastante tempo e Madame O. e sua cunhada se preocupavam com o que fariam em seguida — enfim, como terminariam a noite. Como seus maridos estavam fora, poderiam decidir sozinhas e não queriam desperdiçar a 43 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem chance. Ficaram entre uma importante reunião de seu partido político e o último filme de um cineasta que estava na moda. O interesse pela reunião se devia à fala do senhor Michel Brède, por volta das 22h, que fixaria a estratégia e os objetivos da futura campanha eleitoral do MUL (Movimento de União Liberal da Dolmácia). Também, e talvez com a mesma dose de importância, na forte probabilidade de ali estarem presentes Alphonse e Antonin, os dois jovens bon-vivants em companhia cuja jamais alguém se aborrecia. Quanto ao filme Au nom de la robe, tratava das reais dificuldades de inserção das jovens enfermeiras nas estruturas hospitalares dólmatas. Cruel alternativa! Se elas se decidiram pela sessão de cinema, não foi de modo algum porque a cunhada de Madame O. tinha uma entrada gratuita para aquela noite. E ei-las então assistindo a um dos filmes mais chatos dos últimos dez anos: roteiro fraco, diálogos insípidos, sem falar do som, perfeitamente inaudível! Rapidamente, a cunhada de Madame O. ponderou que era ridículo continuar perdendo tempo, e que o discurso do senhor Brède começaria em pouco tempo, mas Madame O., que tinha comprado sua entrada, respondeu que a decisão era um pouco prematura, e que, segundo sua opinião, o filme não demoraria a começar a ter alguma ação. Foi assim, que, depois de muitas ponderações, Madame O. assistiu sozinha ao resto do filme, até o fim — ainda mais decepcionante do que se poderia esperar. Eram 23h30 e Madame O. esperava pelo último ônibus, que já estava atrasado — se o relógio da igreja de Santa Lúcia estivesse certo. Ela não quis parar o primeiro táxi 44 As armadilhas da decisão disponível que passou na frente da estação. “Ele vai acabar chegando”, disse ela, com um suspiro. Os faróis de outro táxi iluminaram lentamente as primeiras gotas de chuva. Já passava de meia-noite, e Madame O. perguntou-se não seria mais razoável pegar um táxi. “Não, pensou ela, o ônibus estará aqui em dois ou três minutos, ele deve estar parado no cruzamento das Epinettes.” O relógio marcava uma hora, ou quase, quando, abatida, molhada e com os nervos à flor da pele, Madame O. chegou finalmente em casa. Afinal, ela tinha sido obrigada a voltar a pé. Cúmulo da ironia: sua cunhada, Alphonse e Antonin estavam lá, em uma animada e deliciosa noitada. Evidentemente, para Madame O. foi uma noite perdida. Primeiro, ela se obrigou a ver até o fim um filme sem pé nem cabeça, quando poderia estar participando de uma reunião que prometia ser apaixonante. Depois, se forçou, involuntariamente, e sem o menor propósito, a uma longa caminhada embaixo de chuva, em vez de voltar confortavelmente de táxi, como teria preferido. O primeiro erro nos mostra o que é uma despesa irreversível, e o segundo, como funciona uma armadilha. Devemos a Arkes e Blumer (1985) a ilustração experimental da despesa, ou gasto irreversível. Estudantes deveriam imaginar a seguinte situação: depois de gastar 100 dólares em um final de semana de esqui em Michigan, e 50 dólares em um final de semana de esqui, a priori mais promissor, em Wisconsin, eles se deram conta, estupefatos, de que ambos coincidiam no mesmo fim de semana. Como não seriam reembolsados em nenhum dos casos, precisavam escolher. 45 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem Esquiariam em Michigan (final de semana a 100 dólares) ou em Wisconsin (final de semana a 50 dólares), sabendo que a estada em Wisconsin era mais atraente? Com certeza um consumidor racional escolheria Wisconsin. Como, de qualquer forma, o dinheiro dos dois finais de semana já estava gasto, o consumidor se via na situação de alguém que precisava escolher entre duas possibilidades que teriam o mesmo custo: 100 dólares + 50 dólares, ou seja, 150 dólares. O bomsenso ditaria que a situação escolhida fosse a mais vantajosa. Aliás, é a isso que dizem respeito as teorias econômicas. Na verdade, essas teorias pressupõem um decisor racional que, conhecendo todos os custos e vantagens de cada ação possível, não deixará de optar pela que for mais útil e interessante. Seguindo o mesmo raciocínio, percebendo que o filme ao qual assistia a aborrecia e que de qualquer modo não conseguiria o dinheiro da entrada de volta, a exemplo da cunhada, Madame O. deveria decidir ao menos aproveitar o último encontro político organizado pelo MUL, e a eventual “esticada” com os dois bon-vivants, para não perder completamente a noite. Inúmeros alunos interrogados por Arkes e Blumer não se mostraram mais racionais do que Madame O., pois, contra toda e qualquer lógica, a maioria deles (54%) optou por ir a Michigan, ou seja, pelo fim de semana mais caro, e não por ir a Wisconsin, o fim de semana mais promissor. Definiremos o fenômeno da despesa irreversível como um fenômeno que acontece cada vez que um indivíduo persiste em uma estratégia ou linha de conduta na qual já tinha investido anteriormente (em dinheiro, tempo, energia), em detrimento de outras estratégias ou linhas de conduta mais 46 As armadilhas da decisão vantajosas. É esse o caso quando você se esforça para beber até o fim um Pommard 1962 que já não é o que deveria ser, em vez de abrir uma garrafa de qualquer vinho mais modesto, desses que fazem a delícia de seus domingos. Nesse caso, tudo acontece como se nos obrigássemos a prosseguir em um rumo de conduta que se transformou em investimento importante — um Pommard 1949! — seguindo dessa forma uma decisão anterior dispendiosa, desprezando assim oportunidades mais satisfatórias. A armadilha não é fundamentalmente diferente da despesa irreversível. Como ela, e como a escalada de comprometimento, ela decorre dessa tendência que as pessoas têm, de persistir em um rumo de conduta mesmo que essa se torne excessivamente despendiosa, ou que já não permita atingir os objetivos fixados. Imaginemos o seguinte: você tem 400 euros sobrando e surge uma ocasião de ganhar mais 200 euros de um jackpot, em um jogo. Como? Na sua frente, um contador graduado, que chamávamos de marcador, avança ao ritmo de um algarismo por segundo, começando em 1 e chegando a 500. Você ganha os 200 euros se deixar o marcador rodar até um número X, fixado antecipadamente, mas que evidentemente você não conhece. Em contrapartida, você sabe que cada unidade tem para você o custo de um euro, de modo que, se por acaso o número X for superior a 400, não só você não ganha os 200 euros, como ainda perde os 400 que tinha no início. Claro que você tem a possibilidade de parar o marcador quando quiser, e o saldo será seu. Ou seja, o princípio do jogo é simples: suas chances de ganhar o jackpot aumentam com as perdas que você 47 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem aceitar sofrer, ficando subentendido que essas podem não ser suficientes, a ponto de você ser obrigado a comprometer todo o dinheiro de que dispunha. Foi no quadro dessa inteligente experiência que Brockner, Shaw e Rubin (1979) pediram a determinadas pessoas que jogassem esse jogo. Mas providenciaram para que elas nunca conseguissem ganhar o jackpot, podendo assim estudar até onde estariam dispostas a ir, em suas perdas. Nesse tipo de jogo, o jogador está na verdade diante de uma situação bastante semelhante à de Madame O. à espera do ônibus. Cada algarismo que gira, como cada minuto que passa, se não aumenta em nada a probabilidade objetiva4 de atingir o objetivo, dá a impressão subjetiva de se estar aproximando dele. Tudo se passa como se o indivíduo estivesse em uma armadilha, na qual a dificuldade que experimenta, de deixar de lado o que já investiu em dinheiro ou em tempo, é acentuada pelo sentimento que ele tem, de estar próximo de atingir o objetivo. Dois fatores tornam essa armadilha particularmente temível. O primeiro deles diz respeito ao fato de o indivíduo poder ser envolvido em um processo que continuará por si só, até que ele decida energicamente interrompê-lo — se chegar a fazer isso. Na experiência de Brockner, Shaw e Rubin, o marcador para por alguns segundos a cada 40 números. Em 4 Evidentemente, essa é definida a priori pela quantia de dinheiro que a pessoa está disposta a arriscar (se estiver disposta a arriscar 100 euros, ela tem 1 chance em 5 de conseguir o jackpot) e não depende da posição do marcador em determinado momento. 48 As armadilhas da decisão uma primeira condição, os jogadores deveriam dizer “chega” quando não quisessem continuar. Em outra condição, deveriam, ao contrário, dizer “segue” depois de cada pausa, se quisessem prosseguir. Na primeira condição, o marcador continuava automaticamente, se a pessoa não dissesse nada, enquanto na segunda ele só continuava se a pessoa desse expressamente a ordem. Os resultados não deixam dúvida: as perdas são muito mais importantes na primeira condição do que na segunda, ou seja, quando os jogadores que “estão na armadilha” são confrontados com um processo que eles decidiram iniciar e que, uma vez tomada essa decisão, vai continuar inexoravelmente, salvo interrupção da parte deles. Os jogadores que mais perdem são os que deveriam dizer “chega” e não conseguem. Inversamente, os que perdem menos dinheiro são os jogadores que deveriam dizer ”segue”, como sinal de que querem continuar, e que, assim, a intervalos regulares, são levados a decidir continuar ou não o jogo. Em resumo, o indivíduo que se pôs em uma situação de armadilha, ao tomar a decisão inicial, só pode sair dela se tomar uma nova decisão. Mas é preciso que a oportunidade lhe seja dada. Desse ponto de vista, o dispositivo menos “armadilha” é aquele que obriga o jogador a analisar regularmente o estado de suas perdas e ganhos e, em vista disso, a decidir se continua ou para. O segundo fator que contribui para dar à armadilha toda sua eficácia diz respeito ao fato de que o indivíduo pode não ser levado a fixar a priori limites para seus investimentos, por exemplo, decidir de maneira definitiva que quantia comprometer em um jogo, ou quanto tempo vai esperar em um ponto de ônibus, ou por quanto tempo vai esperar por 49 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem Madeleine5 etc. No mesmo experimento, Brockner, Shaw e Rubin puderam constatar que as pessoas às quais pediram, desde o início do processo, que dissessem qual soma queriam jogar, tinham perdido menos dinheiro do que aquelas às quais essa pergunta não tinha sido feita. Portanto, é provável que se, ao chegar ao ponto de ônibus Madame O. tivesse fixado um limite para sua paciência (por exemplo, se tivesse decidido só aguardar até meia-noite), tivesse considerado razoável fazer sinal para o segundo táxi. Assim, a melhor maneira de evitar cair em uma armadilha consiste em estabelecer desde o início um limite a não ser ultrapassado. Pois nesse caso, mas só nesse caso, o limite pode ser fixado com base em uma análise racional dos riscos corridos, comparativamente às vantagens esperadas, sem que essa análise seja balizada pelo sentimento de já ter investido demais, para não continuar. Vemos agora desenharem-se os contornos de uma boa armadilha: 1. O indivíduo decidiu se envolver em um processo de gasto (de dinheiro, tempo ou energia), para atingir um objetivo dado. 2. Quer o indivíduo seja consciente ou não, não existe certeza de alcançar o objetivo. 3. A situação é tal que o indivíduo pode ter a impressão de que cada despesa o aproxima do objetivo. 5 Quando Jacques Brel escreveu sua famosa canção, este livro ainda não tinha sido publicado. 50 As armadilhas da decisão 4. O processo continua, a não ser que o indivíduo decida energicamente interrompê-lo. 5. O indivíduo não fixou desde o início um limite de investimento. Assim, pode perder 400 euros tentando ganhar 200. Ou passar mais tempo esperando um ônibus do que se voltasse tranquilamente a pé para casa. Do atoleiro militar no Vietnã à conta do mecânico Uma vez mais, nos enganaríamos se só encarássemos Madame O. como uma mulher tola e perfeitamente incapaz de evitar as emboscadas mais vis que a vida nos tece. Mas nós a conhecemos, e sabemos que não é esse o caso. Também nos enganaríamos se acreditássemos que os fenômenos de escalada de comprometimento, de despesa irreversível ou outras armadilhas nunca acontecem, a não ser em obscuros laboratórios, promovidos por pesquisadores de espírito cientifico tão torturado quanto tortuoso. Mas não nos enganemos — esses fenômenos são observados corriqueiramente, tanto na esfera empresarial quanto no domínio mais rotineiro da vida cotidiana. Eis alguns exemplos, a título de argumentos. Em 1965, o subsecretário de Estado dos Estados Unidos, George Ball, apresentou ao presidente Johnson um relatório dedicado ao que viria a ser a guerra do Vietnã. Em especial, desse relatório constava o seguinte: “Assim que um grande número de tropas americanas estiver envolvido em combates diretos, elas começarão a registrar pesadas perdas, pois não 51 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem estão equipadas para a luta em um país inóspito, para não dizer francamente hostil. Depois de sofrer grandes perdas, teremos entrado em um processo praticamente irreversível. Nosso envolvimento será tão grande que não poderemos parar antes de atingir completamente nossos objetivos, a não ser que aceitemos uma humilhação nacional. Entre essas duas possibilidades, acredito que seja mais provável a humilhação do que alcançarmos nossos objetivos, mesmo depois de termos sofrido pesadas perdas.” (Mem. from George Ball to President Lyndon Johnson, July 1965, Pentagon Papers, 1971.) Como se vê, não só o relatório de George Ball antecipava como terminaria a Guerra do Vietnã, como ainda prevenia o presidente dos Estados Unidos, com surpreendente clarividência, contra os riscos de uma escalada militar. O processo dessa escalada não é muito diferente daquele que descrevemos acima, quando queríamos mostrar que o efeito de congelamento pode levar a verdadeiras perversões de comportamento se não tomarmos cuidado. A exemplo dos alunos da Business School, de Staw, o presidente Johnson, longe de revisar uma estratégia que se revelava arriscada, ao longo do tempo, via em cada revés novas e boas razões para mantê-la. Não somos tão ingênuos a ponto de considerar que o fenômeno de escalada de comprometimento basta, por si só, para explicar as decisões de um presidente, seja ele ou não americano. Mas de qualquer forma, é surpreendente que tenha sido preciso esperar pela chegada de um novo presidente para que as forças militares fossem retiradas do Vietnã. Tanto em questões militares quanto em políticas, não faltam exemplos de escaladas de comprometimento. Todos nós ainda 52 As armadilhas da decisão nos lembramos dos problemas eleitorais do MUL, presidido pelo senhor Brède. Desde que se envolveu na estratégia fixada pelo 13° congresso, o MUL perdeu — por que tapar o sol com a peneira? — eleição após eleição, além da metade de seu eleitorado. Um desastre eleitoral dessa magnitude não é indiferente aos incontáveis militantes da base, que gostariam de ver uma profunda renovação no partido. Mas as agitações da base não afetam em absoluto a equipe dirigente do MUL, que, como o presidente Johnson e como os alunos de Staw, parece encontrar nos repetidos fracassos de sua estratégia política um sem-número de argumentos que comprovam a alegação: “Se o eleitorado abandona regularmente o MUL, não é porque seus dirigentes estão errados, mas em razão das inverdades diariamente divulgadas pela imprensa estatal, por meio de seus 13 canais de televisão. Sendo assim, por que mudar? A animosidade reinante não prova que afinal de contas o MUL está no caminho certo?”. Apesar de não sermos especialistas na matéria, podemos prever que a linha de obstinação do MUL será do mesmo tipo da americana no Vietnã. Nesse caso, também acredita-se que será preciso esperar por uma nova equipe dirigente, para que os efeitos de escalada de comprometimento possam ser interrompidos de modo eficaz. Seria errôneo acreditar que o colegiado seja suficiente para prevenir uma instância de decisão contra esse tipo de efeitos perversos, e que esses efeitos sejam o apanágio do exercício solitário do poder. Como vimos, a partir de Staw os pesquisadores têm se dedicado a classificar as escaladas, tanto no nível de grupos quanto no de organizações. A psicologia social experimental nos incentiva inclusive 53 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem a contar com um aumento do fenômeno de escalada de comprometimento nos grupos. Os experimentos continuam demonstrando que esses últimos tendem a decisões extremas, por menos que elas impliquem em assumir riscos, e que não possam ser associadas à resolução de problemas aritméticos ou lógicos. Fala-se de polarização coletiva,6 a respeito dessa tendência que inúmeros pesquisadores explicam pela diluição da responsabilidade por meio do grupo. Também é tentador considerar que uma equipe será mais tributária dos efeitos de escalada de comprometimento do que um decisor solitário. Essa consideração não deve, contudo, dar a entender que o exercício solitário do poder é uma panaceia, muito pelo contrário. São incontáveis os exemplos de distorção da atividade decisória solitária, e seria fácil encontrar alguns deles, muitos significativos, nos diferentes setores da vida social e política. Além disso, atualmente é bastante difícil admitir que a tomada de decisão coletiva enquanto tal permite evitar essas distorções de atitude, que lamentamos pontualmente. Quanto a nós, estamos firmemente convencidos de que a solução está muito mais na prática de determinados dispositivos que requerem a intervenção de vários decisores em um mesmo rumo de conduta. Acreditamos principalmente que é preferível que não seja a mesma pessoa, ou o mesmo grupo de pessoas, a tomar uma decisão e avaliar os efeitos, com vistas a sua eventual redefinição. Imaginemos que Pierre tenha tomado 6 O leitor que se interessar por esse fenômeno gostará de ler o texto de Doise e Moscovici (1984), ou a obra de Moscovici e Doise (1992), ou ainda uma edição mais recente em Brauer e Judd (1996). 54 As armadilhas da decisão a decisão de abrir um setor de roupas masculinas em um supermercado de periferia. Deveria ser Jacques, e não Pierre, o encarregado de analisar os resultados dessa operação, a fim de decidir se convém dar prosseguimento a ela ou abandoná-la. Dentro da mesma lógica, imaginemos que Pierre tenha prescrito um tratamento médico. Mais uma vez, Jacques é quem deveria julgar os efeitos desse tratamento e se é oportuno que ele se prolongue etc. Apesar de elementar, essa sugestão implica em profundas mudanças de hábitos, e talvez mesmo em autênticas revoluções estruturais. Mas sendo a inércia organizacional o que ela é, e as práticas profissionais o que são, tememos que, apesar de sua eficácia virtual, esses dispositivos não sejam postos em funcionamento de imediato, nas instituições políticas, econômicas ou militares. Saberá o leitor, mais do que os dirigentes, chefes, em suma, decisores profissionais, tirar proveito dos conhecimentos que acaba de adquirir, em matéria de escalada de comprometimento, de despesa irreversível e de armadilha? Se pensarmos bem, a vida cotidiana é feita de decisões, menores ou importantes, que podem nos levar a ir além do razoável, em determinado rumo de conduta. É assim que pequenas ou grandes adversidades causadas por armadilhas puderam ser descritas em setores tão diversos, como a continuidade de uma carreira insatisfatória que mina a pessoa (Drummond e Chell, 2001), ou a submissão à violência doméstica que a destrói (Eisenstat e Bancroft, 1999), e até mesmo na persistência de fenômenos alucinatórios perturbadores (Birchwood, Meaden, Trower, Gilbert, e Plaistow, 2000). 55 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem Pensamos em certos alunos matriculados em um dado curso universitário que, desde o primeiro ano, se dão conta de que o curso não corresponde a suas expectativas, ou não lhes trará os resultados esperados. Será que, como ditaria o bom-senso, eles decidirão interromper os estudos iniciados, ou continuarão até o fim, para depois se decidirem por outra orientação? Infelizmente, não são raros os estudantes que, munidos de um mestrado em psicologia, se veem, um ou dois anos depois, em uma escola de enfermagem ou em algum curso técnico etc., sem nunca terem, efetivamente, procurado um emprego que correspondesse a sua formação de “psicólogo”. Se lhes perguntarmos por que eles continuaram — apesar de tudo — o curso de psicologia até o mestrado, alguns responderão convencidos de que com a resposta estão passando uma imagem positiva de si mesmos: “Eu, quando começo alguma coisa, vou até o fim. ”Talvez você pense, como nós: “Mais um que caiu com dignidade e lindamente, de cabeça em uma autêntica armadilha.” Sem falar dos velhos casais que, por terem tido as melhores razões do mundo para se separar, continuaram juntos, felizes por apagarem a dois as velinhas das bodas de prata. É verdade que as razões para continuar morando juntos, e para manter o casamento foram muitas. Primeiro, os amigos comuns, depois a educação dos filhos e o financiamento da casa, até que só sobrou a mais pesada de todas: a incapacidade de viver outra situação. Para não admitir essa razão, eles evitam admitir que as anteriores não eram senão elementos de uma armadilha ou de uma escalada de comprometimento e, depois de verem sua existência como um longo cortejo de despesas irreversíveis, eles podem, enfim, ser felizes juntos. 56 As armadilhas da decisão Sem esquecer, também, aqueles cuja cura psicanalítica não acaba nunca. Pois, queiramos ou não, a psicanálise tem todas as propriedades de uma excelente armadilha (ver supra): 1. O paciente decide se envolver em um longo processo de gasto (de dinheiro, tempo e energia). 2. Quer o paciente tenha ou não consciência, a expectativa do objetivo não é certa, isso quando o próprio psicanalista não considera esse objetivo uma fantasia ou um “plus” (sic). 3. A situação é tal, que o paciente pode ter a impressão de que cada gasto o aproxima do objetivo. 4. O processo prossegue, a não ser que o paciente decida interrompê-lo, de modo enérgico. 5. O paciente não fixou, desde o início, um limite para seus investimentos. Sem comentários! Agora, se você conseguiu evitar a armadilha da psicanálise, ou até mesmo a da vida conjugal, não vai ser fácil evitar a armadilha propiciada pela agonia de ter um automóvel de estimação. Os que já tiveram um sabem a que ponto é preciso violentar a si próprio para aceitar vender, a preço abaixo da cotação de mercado, um velho veículo que acabou de ter a embreagem trocada. Mas se ele não for vendido nesse exato momento, os freios é que vão estourar, ou os amortecedores, ou a direção, a menos que tudo resolva deixar de funcionar ao mesmo tempo. Já não dá mais. 57 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem Várias variantes de um fenômeno geral que Teger (1979) resumiu em uma expressão na qual muitos se reconhecerão: “muito investimento para ser deixado para trás”. Da automanipulação à manipulação A escalada de comprometimento, a despesa irreversível e a armadilha se referem a um mesmo processo, bastante próximo do que Lewin chamou de efeito de congelamento, e que, afinal de contas, diz respeito tão somente a uma forma de aderência das pessoas a suas decisões.7 Em um caso, elas decidem atribuir um fundo especial de desenvolvimento a determinada filial, em outro decidem gastar 100 dólares para esquiar em Michigan, em um terceiro decidem ganhar dinheiro no cassino. Quando tomadas, essas decisões orientarão o comportamento no sentido de uma preservação8 que, como vimos, pode se revelar perversa. Como explicar esse fenômeno? Infelizmente, aqui somos obrigados a lamentar uma certa defasagem entre o caráter por vezes espetacular — qualitativa e quantitativamente —dos efeitos experimentais e da pobreza das interpretações teóricas existentes a respeito. Preferimos nos ater unicamente à mais comum delas. Segundo essa interpretação, que se baseia 7 Aliás, esses fenômenos substituem uns aos outros, mesmo que nos ocupemos aqui de distingui-los, por razões analíticas. Assim, a despesa irreversível é muitas vezes entendida como um aspecto da escalada de comprometimento (Moon, 2001 idem). 8 Empregamos esse termo em psicopatologia. 58 As armadilhas da decisão na noção de autojustificação (Aronson, 1972), mesmo as mais disfuncionais das persistências se explicariam pela preocupação, ou necessidade, que o indivíduo teria, de afirmar o caráter racional de sua primeira decisão. Assim, continuar a investir em uma filial que se revela não merecedora de tal, teria a função de confirmar a fundamentação da primeira decisão financeira. Tudo se passa como se a pessoa preferisse “afundar”, em vez de reconhecer um erro inicial de análise, de julgamento ou de apreciação. Em outro texto, demonstramos como o indivíduo (Beauvois e Joule, 1981, 1996) racionalizava seus comportamentos, adotando posteriormente ideias que pudessem justificá-los. Aliás, a partir de Festinger (1957) sabemos que uma pessoa levada pelas circunstâncias a manter um discurso contrário às suas opiniões modifica a posteriori as opiniões, no sentido de melhor combiná-las com o discurso. Com os fenômenos de escalada de comprometimento, de despesa irreversível ou de armadilha, nos encontramos diante de uma nova forma de racionalização, na qual o indivíduo justifica uma decisão anterior por novas decisões, um ato anterior por novos atos. Um de nós (Joule, 1996) chamou de racionalização em ato essa forma particular de racionalização.9 Assim, por exemplo, ao escolher esquiar em Michigan, ao passo que o final de semana em Wisconsin parecia ser mais promissor, as pessoas testadas por Arkes e Blumer racionalizavam, por meio desse novo comportamento, a escolha anterior de um fim de semana muito mais caro. 9 Encontraremos um bom exemplo de racionalização em ato no Capítulo VII. 59 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem Em todas as situações mencionadas neste capítulo, podemos considerar que de certa forma o indivíduo fica preso na armadilha de uma decisão inicial; todavia, se encararmos essas situações em seu conjunto, perceberemos que existe uma diferença importante entre a situação na qual se encontrava Madame O. no restaurante, e as situações nas quais estava no cinema ou no ponto de ônibus. Essa diferença diz respeito à formação da primeira decisão. Em situações de escalada de comprometimento, de despesa irreversível ou de armadilha, o indivíduo pode ser considerado o autor principal da primeira decisão: Madame O. foi quem decidiu ir ao cinema, e também foi quem decidiu pegar o ônibus para voltar para casa. Essa diferença diz respeito à formação da primeira decisão. Além disso, os efeitos disfuncionais dessas decisões não beneficiaram ninguém: sua única consequência foi envenenar a vida de Madame O., que de certa forma caiu na própria armadilha. Uma situação de demanda, como aquela na qual ela estava no restaurante, quando foi instada a vigiar a bagagem da estrangeira, é completamente diferente, pois a decisão inicial (vigiar a bagagem) lhe foi pura e simplesmente imposta.10 Se ninguém tivesse feito expressamente o pedido, Madame O. não teria se incumbido de vigiar os objetos de outrem em sua ausência — o que aliás não fez, na praia. 10 Cumpre lembrar que todas as pessoas da experiência de Moriarty (1975) aceitaram, sem exceção, vigiar os objetos do experimentador, o que mostra claramente que, nesse tipo de situação, não se consegue recusar fazer o favor pedido. 60 As armadilhas da decisão Ou seja, estamos aqui no ponto de partida daquilo que devemos efetivamente chamar de manipulação. Imaginemos que um sujeito sinistro arranque de você uma decisão, a priori inofensiva e sem consequência, com o único objetivo de colocar os efeitos de perseverança dessa decisão a serviço de seus interesses. Todos concordarão que se trata de manipulação, e até mesmo de uma manipulação relativamente sofisticada, pois implica que o manipulador faça um desvio. Esse desvio consiste em obter antes de tudo um comportamento ou uma decisão cujo único interesse é preparar outras manipulações. Assim, essa manipulação não pode ser senão deliberada. A linguagem coloquial permite falar de manipulação a respeito de comportamentos de influência (tentar convencer alguém a fazer alguma coisa que não teria feito espontaneamente), que às vezes o manipulador faz de boa-fé, por menos egocêntrico que seja, por estar convencido da existência de interesses comuns entre ele e a pessoa que quer cativar. Nada a ver com as manipulações que são objeto deste livro. Essas não se baseiam na atividade persuasiva, mas pressupõem que recorra a uma tecnologia comportamental, e esse recurso só pode ser deliberado. Assim, se o manipulador tem clara consciência do sentido de seus atos, quanto ao manipulado, ele terá menos possibilidade de se dar conta da manobra da qual é objeto, nessa situação, do que se tivesse que enfrentar alguma estratégia persuasiva. O que é fácil de entender. Temos tanta certeza – muitas vezes indevidamente (cf. Beauvois, 1984; Dubois, 1994) – que nossos atos dependem de nossas intenções, e a fortiori de nossas opiniões ou de 61 Como Manipular Pessoas - Para uso exclusivo de pessoas de bem nossa personalidade, que somos extremamente sensíveis a qualquer tentativa manipulatória que possa agir diretamente sobre nossas intenções ou sobre nossas opiniões. De resto, sabemos nos defender desse tipo de tentativas manipulatórias baseadas na persuasão, mesmo que seja fingindo não estar percebendo absolutamente nada, quando não somos capazes de contra-argumentar, ou quando não queremos ter de fazer isso. Ao mesmo tempo, desprezamos facilmente esses pequenos comportamentos insignificantes que aceitamos em nosso dia a dia, por eles nos parecerem naturais. Sejamos claros: as formas de manipulação que serão descritas nos capítulos a seguir não procedem de estratégias persuasivas. A maioria põe em funcionamento estratégias que podemos qualificar de comportamentais, na medida em que a obtenção do comportamento esperado no tempo T2 passa pela extorsão de um comportamento “preparatório” no tempo T1 e, portanto, pela extorsão de um primeiro comportamento. Lembremo-nos que para conseguir 20 centavos de um passante é melhor começar perguntando as horas. É óbvio que quem usar esse estratagema para atingir seus objetivos não estará minimamente interessado em saber que horas são (eventualmente, essa pessoa terá inclusive o cuidado de tirar o relógio do pulso, anteriormente, em benefício da credibilidade da cena). Ela só perguntará as horas para conseguir do passante que ele lhe preste um primeiro favor, predispondo-o a lhe fazer outro, em seguida — na verdade o único útil. Quanto ao passante, convenhamos que assim ele terá menos consciência de ter sido forçado em sua decisão 62 As armadilhas da decisão de ajudar alguém com um problema, do que se essa pessoa o tivesse acompanhado até o fim do bulevar Paul VaillantCouturier para tentar convencê-lo. Além disso, nada prova que essa insistência seria bem-sucedida. 63