VARIÁVEIS OCULTAS NA MECÂNICA QUÂNTICA:
AS VARIÁVEIS CULTURAIS OCULTAS DA SUA REJEIÇÃO
Miguel Montenegro
Setembro de 20061
Esta é uma interpretação do que se me afigura como uma situação estranha na ciência física:
a rejeição, pelas correntes de pensamento dominantes, das interpretações da mecânica quântica
em termos de variáveis ocultas sem que qualquer razão científica sólida o justifique. Os poucos
físicos que prestaram alguma atenção ao tema reconhecem este facto. Outros afastam-no
simplesmente com uma qualquer observação tipicamente breve e hostil. A maior parte prefere não
tocar de todo no assunto.
Não sou um físico. O que se segue foi escrito a partir da perspectiva de um profano
informado. Todavia, a visão do mundo que emerge da física diz-nos respeito a todos. E tenho boas
razões para crer que muitos físicos mainstream são movidos por medos e por premissas culturais
que julgo muito questionáveis e dos quais eles podem estar total ou, pelo menos, parcialmente
inconscientes2.
Porque é que a maioria dos físicos se encerrou numa interpretação hermética da mecânica
quântica, a chamada “interpretação de Copenhaga” ou “interpretação standard,” concebida (e
ferozmente defendida) por Bohr em parceria com Heisenberg? A teoria matemática é boa no
sentido em que as equações permitem boas predições, apesar da falta de articulação com a outra
principal teoria física do século XX: a teoria da relatividade. Todavia, a teoria matemática deve ser
distinguida da interpretação de Copenhaga, a qual é muitas vezes apresentada como sendo a única
viável. Os paradoxos habitualmente associados à mecânica quântica não são directamente derivados
das equações matemáticas mas sim da interpretação de Copenhaga do formalismo matemático.
Se os sucessos da mecânica quântica explicam a adesão dos físicos ao seu cerne matemático,
eles não justificam a sua lealdade histórica à interpretação de Copenhaga nem as mudanças na
atitude e na visão do mundo que esta implica:
1) a renúncia à perspectiva de alguma vez se desenvolver uma apreensão intuitiva da
realidade quântica e a convicção associada de que os fenómenos quânticos apenas podem ser
adequadamente descritos através de fórmulas matemáticas;
1
Traduzido do Inglês pelo autor (01/03/2013). A versão original encontra-se arquivada no seguinte endereço:
http://web.archive.org/web/20110714091827/http://www.miguel-montenegro.com/Hidden_cultural_variables.htm
2
Gostaria de expressar a minha gratidão ao Prof. Basil Hiley do Birckbeck College, co-autor, com o falecido David
Bohm, do The Undivided Universe (1993), pelos seus comentários prestáveis e informativos a uma versão prévia do
presente ensaio. Evidentemente, o autor destas linhas é o único e exclusivo responsável pelas opiniões aqui expressas.
Este ensaio teve a sua última revisão a 8 de Setembro de 2006.
1
2) a aceitação do “facto,” “imposto” pela mecânica quântica (e, mais especificamente,
implicado pelos postulados da interpretação de Copenhaga), de que a camada mais profunda da
realidade é o nível quântico tal qual este está descrito pela teoria quântica corrente e pelos
resultados experimentais presentemente disponíveis;
3) a aceitação da ambiguidade onda-partícula como uma implicação inescapável dos
resultados experimentais tais quais estes são explicados pelas equações da mecânica quântica em
conjugação com a interpretação de Copenhaga standard;
4) a aceitação das predições probabilísticas permitidas pela teoria quântica como sendo a
melhor aproximação possível dos eventos quânticos.
Na subsequente história da física ao longo do século XX, após os anos formativos que
começaram com a fórmula de radiação de Planck (1900) e culminaram com a descrição e a
interpretação standard da teoria quântica por Van Newmann (The Mathematical Foundation of
Quantum Theory, 1932), verificou-se uma oscilação entre, por um lado, uma perspectiva
epistemológica estritamente alinhada com a ortodoxia de Copenhaga, e, por outro lado, abordagens
mais realistas (mas, não obstante, inspiradas por Copenhaga) das duas questões acima apresentadas:
a aceitação da ambiguidade onda/partícula e a aceitação das predições probabilísticas como
aspectos inerentes do mundo quântico. Enquanto a abordagem epistemológica atribui estes dois
aspectos da teoria quântica a limitações intrínsecas das situações experimentais (interpretação
empírica do princípio de incerteza de Heisenberg) e da relação de conhecimento (a
complementaridade de Bohr), a abordagem realística pressupõe que as “coisas” quânticas se
caracterizam elas próprias por um comportamento probabilístico e por uma dualidade ondapartícula, os quais se “resolvem” — o famoso colapso da onda — na, e através da, medição.
(Supõe-se que as partículas são, de algum modo, multi-locais ou difusamente localizadas antes do
momento da medição.)
O ponto de vista realista (mas derivado da interpretação de Copenhaga) tem sido
razoavelmente dominante até agora3 e é o responsável pela maior parte dos paradoxos, dificuldades
e excentricidades associados à mecânica quântica, desde o paradoxo do gato de Schrödinger até à
versão “quântica” do “princípio antrópico” segundo a qual o homem é um desenvolvimento
cósmico necessário na medida em que a observação e consciência humanas permitiram o colapso da
“onda quântica” do universo que assim pôde assumir uma forma definida. Estrangeira e, de certo
modo, contrária à “interpretação standard,” mas ainda assim guiada pelos constrangimentos
impostos pela interpretação de Copenhaga, é a “teoria dos mundos múltiplos,” a qual, em termos
simples e directos, afirma que de cada vez que um físico faz uma medição de um fenómeno
quântico no seu laboratório o universo divide-se em tantos mundos quantos os resultados possíveis
da medição4.
3
Sobretudo porque a perspectiva epistemológica estrita não permite qualquer investigação subsequente e, por isso, não
leva a nenhum lugar.
4
Esta teoria abandona a “presunção had hoc” segundo a qual o acto de medição faz “colapsar” os diferentes “canais”
correspondentes aos vários possíveis resultados da medição num só canal ou resultado da medição, mas conserva
2
Implicada nos dogmas de Copenhaga que moldaram a física do século XX está a recusa em
reconhecer que a teoria quântica e as equações da mecânica quântica podem ser apenas uma
aproximação de validade limitada à realidade subjacente. No cerne desta recusa encontramos a
rejeição daquela que tem sido chamada a “hipótese das variáveis ocultas.” Segundo os que a
defendem, a teoria quântica é apenas uma descrição aproximada de fenómenos atómicos e subatómicos. Ela fornece probabilidades, as quais podem ser comparadas à observação de multidões e
de fenómenos de massa, mas isso não significa que não existem outros níveis mais fundamentais
onde uma abordagem estatística cederia a vez a explicações causais, tal como acontece com o
chamado movimento browniano, o qual apenas pode ser descrito com precisão ao nível
macroscópico33 através de meios estatísticos, ao passo que, ao nível microscópico, se presta a uma
descrição cinética e causal clássica. Evidentemente, no domínio quântico, a não-localidade implica
que a causalidade e o determinismo não nos levariam de volta a nada de parecido com uma visão
clássica do universo.
Acredito que a hipótese das variáveis ocultas é a verdadeira razão, a “ameaça” real à qual a
maior parte da comunidade física reage agarrando-se cegamente e, poderia quase dizer-se,
“religiosamente” a uma interpretação “dura” das equações da mecânica quântica, feita de renúncias
e de remédios amargos, que levou — e ainda leva — às consequências interpretativas mais
abstrusas e arbitrárias.
As razões substantivas habitualmente avançadas para desqualificar a abordagem das variáveis
ocultas parecem frágeis: as interpretações envolvendo variáveis ocultas não implicam
necessariamente mais pressupostos ou constantes “arbitrárias” do que outras teorias mais
“ortodoxas.” E as presentes dificuldades e aparente impossibilidade em avaliar experimentalmente a
validez das teorias envolvendo variáveis ocultas não é tão pouco um argumento válido uma vez que
a mesma objecção pode ser dirigida à interpretação standard. Para além disso, há um bom contraexemplo adicional: a teoria das cordas é geralmente aceite como sendo uma boa aposta pela
comunidade física apesar de não dispor de provas empíricas e experimentais que a sustentem.
Neste ponto, devo também mencionar, muito brevemente, algumas das razões históricas
habitualmente utilizadas para explicar a dominância da interpretação de Copenhaga e a negligência
generalizada a que estão votadas as interpretações envolvendo variáveis ocultas. Uma delas foi o
feroz debate que opôs Bohr, o principal autor e porta-estandarte da interpretação de Copenhaga, e
Einstein, o qual, por princípio, favorecia uma abordagem envolvendo variáveis ocultas. Este
confronto terá empurrado Bohr para as suas posições dogmáticas e anti-realistas. Uma outra razão
terá sido o clima neopositivista na Europa na época em que a física quântica nasceu; o
neopositivismo era anti-realista e, levado aos limites, era instrumentalista: as teorias são
instrumentos que servem para organizar e predizer resultados experimentais. Elas não são
necessariamente um reflexo da realidade. Heisenberg partilhava deste ponto de vista. E, é claro, há
tenazmente a ambiguidade onda/partícula, acabando com tantas partículas quanto os resultados possíveis da medição e,
em consequência, com um número correspondente de mundos ex-machina para conter as partículas!
3
o factor óbvio, embora chocante, que David Bohm, o maior proponente da hipótese das variáveis
ocultas, costumava sublinhar: o facto de que a interpretação de Copenhaga se estabeleceu primeiro.
Não nego o peso de nenhum destes factores. Todavia, julgo que a principal razão pela qual a
mecânica quântica foi envolvida numa interpretação ortodoxa e “dura” erigida contra a
eventualidade de uma interpretação envolvendo variáveis ocultas foi porque esta última suscitava o
espectro do determinismo que era inerente à física newtoniana clássica. Com as suas probabilidades
matematicamente estabelecidas, as equações da mecânica quântica pareciam, se tomadas pelo seu
valor facial — i.e. sem considerar a possibilidade de variáveis ocultas, — apontar para um nível de
realidade fundamental (tanto quanto podia ser experimentalmente inferido) no qual a alea, isto é, o
acaso, parecia ter um papel fundamental, libertando-nos do universo “jogo-de-bilhar” de Newton e
permitindo-nos existir num cosmos no qual as cartas não foram todas dadas no princípio do jogo,
mas onde, ao mesmo tempo, uma certa ordem parece reinar; uma ordem que, pelo menos
localmente, foi suficiente para que a vida e a consciência pudessem desenvolver-se.
Como todo o antropólogo sabe, os diferentes domínios, áreas e temas estão, numa dada
cultura, ligados por diferentes tipos de conexões semânticas e lógicas. Entre as mais importantes
dentre estas conexões está aquela a que eu chamo de ressonância, mas que também pode ser
pensada em como um tipo de ligação “metafórica.” Julgo que a escolha entre instalar a teoria
quântica matemática e experimental numa ortodoxia ou vê-la como uma aproximação aceitável e
considerar a possibilidade de variáveis ocultas (o que não é mais do que admitir que a incerteza e
ambiguidades quânticas podem ser explicadas pelo carácter “telescópico” da mecânica quântica e
pela sua consequente incapacidade em descrever níveis de realidade mais “profundos”) entrava em
“ressonância” com outros dilemas noutros domínios culturais do mundo ocidental do século XX,
nomeadamente nas esferas política e religiosa.
A ortodoxia quântica era uma porta de saída do sufocante modelo newtoniano do universo, o
qual, segundo Allan Watts, que lhe chamava o “modelo totalmente automático do universo,” tinha
já sido uma via de escape (com um preço) do “modelo de barro do universo,” o modelo bíblico no
qual um deus exclusivista e omnisciente fez o cosmos do mesmo modo que nos fez a nós todos. O
modelo totalmente automático foi um refúgio para escapar do modelo de barro com o seu deus
intrusivo que tudo vê.
Naturalmente, o modelo totalmente automático também tinha os seus problemas. Foi o
paradigma do mundo industrial do século XIX, com toda a sua sordidez política e social à qual o
Romantismo reagiu de forma idealista e, como o notou Colin Wilson, auto-derrotista. Mas o seu
principal problema era a total perda de liberdade num mundo frio e mecânico.
O mundo determinista newtoniano estava também intimamente associado a um dos dois
“totalitarismos” que moldaram o século XX: o comunismo, cujo materialismo dialéctico pretendia
alargar a visão causal e determinista do universo da esfera física às esferas social e histórica, onde
substituiu o idealismo determinista hegeliano virando-o de cabeça para baixo.
No espírito dos físicos — e, provavelmente, a um nível mais ou menos subconsciente, —
abrir a porta ao acaso era um golpe nos fundamentos da civilização mecânica com a sua ideologia
4
profética do Progresso (nas esferas social e histórica) e da Evolução (a qual fazia assentar o
Progresso na esfera fundamental da física e da natureza), assim como uma recusa da confirmação
física — ou “ressonância,” poderia dizer-se — do determinismo do materialismo dialéctico, uma
confirmação da qual dependia a validade da visão do mundo e das profecias da ideologia
comunista5.
O facto de o maior proponente da hipótese das variáveis ocultas (depois das propostas iniciais
de De Broglie), David Bohm (1917-1992), ter sido uma vítima do macartismo e publicamente
apontado como um comunista no início da sua carreira (em 1949) não terá provavelmente deixado
de ter consequências no destino das suas opções teóricas na segunda metade do século XX. O
interesse de Bohm pelo comunismo foi breve6, e o facto de ele ter desenvolvido, desde os inícios
dos anos 1950 até à sua morte em 1992, de forma activa e consistente, uma teoria das variáveis
ocultas demonstra que as suas ideias físicas assentavam noutros fundamentos.
Finalmente, devo acrescentar que a teoria quântica standard tinha uma outra vantagem sobre o
“modelo totalmente automático.” Mesmo que este último fosse uma saída do “modelo de barro,” e
mesmo se Deus era, segundo Laplace, uma “hipótese supérflua,” o “modelo totalmente automático”
ainda Lhe concedia algum papel nos bastidores (tal como pôr em funcionamento o mecanismo do
relógio universal no princípio dos tempos). Já a alea quântica era uma coisa totalmente diferente,
uma vez que sugeria que o deus de letra maiúscula estaria a jogar dados! Ora, uma pessoa pode,
com algum esforço, suportar o paradoxo de Job, i.e. o facto de Deus permitir o mal, mas saber que
os seus caminhos misteriosos não são senão um jogo de dados seria ser confrontado com uma
5
Alguns leitores poderão ter dificuldades em entender como é que algum cientista ocidental dos inícios do século XX
poderia alimentar alguma espécie de má-vontade ou até ser hostil aos mitos da Razão, do Progresso e da Evolução que
formaram o eixo estrutural do expansionismo colonialista e industrial europeu. Todavia, se olharmos de perto para as
primeiras décadas do século XX, damo-nos conta de que esses valores se encontravam em declínio. Nietzsche tinha já
assinalado as profundas contradições que afectavam as fundações da alta cultura europeia e a psicanálise estava em vias
de infligir um duro golpe às convenções sociais da burguesia assim como ao modelo ocidental de um Eu autónomo,
fundado na Razão e mestre das suas próprias acções. No entanto, foi a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com o
seu espectáculo de guerra industrial e de mortandade em massa que realmente abalou a confiança europeia na
“civilização” (i.e. nela própria) e nos seus valores de Razão e de Progresso/Evolução, como podemos ver reflectido nos
escritos de Sigmund Freud ou nos de Max Weber, entre muitos outros. Os anos formativos da física quântica foram
também os do Declínio do Ocidente (1923) de Spengler, do primeiro exercício de demolição da metafísica de
Heidegger (Ser e Tempo, 1927) e dos teoremas da incompletude de Gödel (1931), os quais puseram um fim ao sonho
filosófico de construir um sistema lógico completo capaz, entre outras coisas, de conter as fundações de toda a
matemática. Manifestamente, a Razão e o Progresso não eram já tão dignos de confiança como se julgara no século
anterior.
6
Segundo o Professor Basil Hiley, David Bohm “teve uma experiência com o comunismo e, de facto, foi parte do
Partido Comunista durante cerca de nove meses.” Durante a Segunda Guerra Mundial, preocupado com “o flirt inicial
da América com o fascismo Hitleriano” e confrontado com o panorama de uma Europa vencida e de um Reino Unido
ameaçado, o jovem David Bohm viu na União Soviética a última esperança contra os Nazis. Para além das suas
preocupações políticas, David Bohm também se interessava profundamente pela filosofia de Hegel e, com alguma
ingenuidade, “esperava conhecer outras pessoas com quem pudesse discutir os aspectos mais profundos desta filosofia.
Segundo ele, ficou rapidamente desencantado porque ‘as pessoas apenas estavam interessadas em saber quem seria o
secretário geral do partido e quem seria o tesoureiro, e pouco sabiam de Hegel.’ Três reuniões bastaram-lhe e nunca
mais lá voltou.”
5
imagem de Deus absolutamente inconcebível e auto-contraditória. Este facto transformou a
mecânica quântica num método prático, experimental e matematicamente fundado, de O manter
fora de jogo!
Ora bem: de um só golpe víamos-nos livres da rude civilização mecânica do século XIX e da
sua confiança cega no Progresso e na Evolução, do comunismo e dos seus equivalente filosóficos e,
ao mesmo tempo, mantínhamos Deus fora do recinto! E querem eles que desistamos disto? Nem
pensar!
Por agora, pelo menos, algumas das razões fundamentais pelas quais a comunidade física
rejeitou a hipótese das variáveis ocultas são meramente históricas, e duvido que o deus monoteísta
venha a usar essa porta. Julgo que houve uma mudança no último quarto do século XX, em
resultado da qual o principal espectro associado à hipótese das variáveis ocultas já não é Deus, o
comunismo ou um universo mecânico, mas uma outra coisa. Uma outra coisa que também se
manifestou naquele movimento difuso conhecido como “New Age,” uma mistura cambiante de
misticismo oriental, de ocultismo ocidental e de miscelânea multicultural, que herdou alguns dos
seus traços dos Beatniks, da contra-cultura americana e do movimento Flower Power/Hippie.
O itinerário intelectual de David Bohm parece ter seguido o espírito dos tempos, dada a sua
convergência com Krishnamurti e o interesse que veio a manifestar por temas como a
parapsicologia7 e visões do mundo não-ocidentais. Mas o seu trabalho também deixa claro que as
suas posições filosóficas e existenciais eram inseparáveis das suas ideias no domínio da física. Estas
parecem ter-se desenvolvido consideravelmente, mas dentro de uma orientação geral que remonta
às suas primeiras dúvidas sobre a consistência da interpretação standard na sequência da publicação
da sua obra Quantum Theory (1951)8. Por outro lado, Bohm desenvolvera, desde muito cedo, um
profundo interesse na noção de totalidade e, ainda jovem, encontrou na filosofia de Hegel uma
maneira de lidar com a questão. Foi esta mesma mesma noção de totalidade que primeiro o atraiu
na interpretação de Bohr da mecânica quântica onde o fenómeno quântico é inseparável do
instrumento de medida e de todo o acto de observação. Mas esta “indivisibilidade do quantum de
acção” funcionava mais como uma fechadura localizada, impedindo o aprofundamento da
investigação, do que como uma indicação ou antevisão do carácter interligado do universo e do seu
funcionamento. Mais um explorador do que um ideólogo, Bohm não hesitou em abandonar a
7
“O breve flirt de Bohm com a parapsicologia surgiu — segundo o Professor Hiley que cito novamente — quando
estávamos a tentar compreender a não-localidade quântica, outra noção que assustava os físicos. Tínhamos, no Birkbeck
College, um dos primeiros grupos de experimentalistas a tentar descobrir até que distância se podia verificar esta nãolocalidade. A certa altura o nosso grupo chegou a deter o ‘recorde mundial’ ao verificar que efeito se verificava a mais
de 6 metros. A segunda tentativa levou os limites aos 23 metros. Desde então, como é sabido, o limite foi alargado até
aos 41 km e talvez até já mais longe por agora.”
8
Conforme mo explicou o Professor Hiley, imediatamente após ter terminado o seu livro, Quantum Theory, um
trabalho comprometido ainda com a interpretação standard, a qual Bohm “absorveu através do seu treino universitário,”
“ele pressentiu que havia algo de errado com a perspectiva de Copenhaga. Depois disso, quando estava a usar a
aproximação WKB, apercebeu-se subitamente de que podia reter o conceito de uma partícula localizada, mesmo dentro
da própria mecânica quântica! Sim, a filosofia de Hegel e as ramificações políticas do marxismo e do comunismo
estavam em pano de fundo, mas não foram elas a força motriz.”
6
interpretação standard quando se apercebeu de que o formalismo da mecânica quântica autorizava a
imagem mais racional e conceptualmente sólida de partículas localizadas evoluindo numa rede
cambiante de ondas (ver a nota de rodapé 8). Esta apercepção instalou a sua intuição do universo
como um todo numa interpretação muito mais clara e alargada, a qual, ao contrário da interpretação
de Copenhaga, não se encontra fechada ao escrutínio intelectual.
Com efeito, a versão de Bohm da teoria das variáveis oculta — assim como as suas ideias
filosóficas — parecem estar em “ressonância” com as dimensões “holísticas” das filosofias
Orientais. Desse modo, situa-se numa oposição óbvia aos ethos histórico da ciência ocidental, a
qual se baseia na distinção e na separação (a qual foi herdada do Judaismo via Cristianismo). Julgo
que esta “ressonância” constitui, hoje em dia — particularmente desde a publicação do livro de
Capra, O Tao da Física, o qual introduziu publicamente a “conexão oriental” na física, — uma
importante, senão a principal razão subjacente pela qual a hipótese das variáveis ocultas continua
banida das principais correntes da física.
Acredito que não é apenas a “possibilidade determinista” embutida na hipótese das variáveis
ocultas que assusta a comunidade dos físicos, mas a combinação do determinismo9 com a nãolocalidade. Esta combinação gera a visão de um (possível) “todo indiviso,” como lhe chamava
Bohm, o qual priva duplamente os ocidentais em geral e os físicos em particular dos seus egos10
separados e misteriosamente livres, assim como do seu mundo potencialmente controlável,
composto de partes distinguíveis e divisíveis.
***
A evolução da física encontra-se, em larga medida, ligada a factores culturais que os físicos e
as pessoas “orientadas cientificamente” tendem a desqualificar porque contradizem profundamente
a sua auto-imagem. Não estou a dizer que o ambiente cultural determina as escolhas e as ideias dos
físicos independentemente de critérios científicos, da lógica interna da teoria, das provas
experimentais e por aí adiante. Estou antes a dizer que muito embora estes últimos factores
estruturem profundamente aquilo a que poderíamos chamar “o campo de escolhas do físico” e
sejam os principais e, potencialmente, os únicos factores determinantes que eles reconhecem
quando explicam ou dão conta das suas decisões, estas decisões são também influenciadas por
ambientes culturais e históricos e, nomeadamente, por domínios sócio-culturais que, no nosso
mundo cultural reflexivamente compartimentalizado, construímos e percebemos como sendo
essencialmente dissociados da ciência física.
9
Uma indicação adicional da importância do determinismo no nosso tempo e da necessidade de deflecti-lo foi a
reafirmação, por IIya Prigogine, da flecha do tempo, incorporando simplesmente as inevitáveis limitações
observacionais e computacionais na sua descrição da realidade, tornando-a assim última e ontologicamente
irreversível...
10
...cuja consciência é tão sobrevalorizada que alguém como Von Newmann não hesitou em torná-la responsável pelo
“colapso da função de onda” (ou “projecção do vector de estado”) e pela “materialização” de estados quânticos
definidos.
7
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