ERIC METAXAS
BONHOEFFER
PASTOR, MÁRTIR, PROFETA, ESPIÃO
Traduzido por Daniel Faria
Bonhoeffer_final.indb 3
23/05/2011 11:33:57
Bonhoeffer_final.indb 6
23/05/2011 11:33:58
Capítulo 1
Família e infância
O mundo valioso de seus antepassados definiu os padrões de vida de Dietrich Bonhoeffer. Legaram-lhe os costumes e o bom senso que não podem ser
adquiridos em uma única geração. Ele cresceu com indivíduos que acreditavam na essência do saber, não por meio de uma educação formal, mas fundamentada no compromisso familiar de manter, como guardiões, a tradição
intelectual e um grandioso patrimônio histórico.
Eberhard Bethge
No inverno de 1896, antes do mencionado casal de idosos se conhecer, ambos foram convidados para uma reunião social na casa do físico Oscar Meyer.
“Ali”, escreveu Karl Bonhoeffer anos depois, “encontrei uma jovem loira, olhos
azuis, de postura tão espontânea e natural, de uma expressão tão aberta e confiante, que, logo ao entrar na sala, deixou-me encantado. O momento em que
meus olhos viram minha futura esposa pela primeira vez permanece em minha
memória com uma força quase mística”.1
Karl Bonhoeffer chegara a Breslávia — hoje Wroclaw, na Polônia — três
anos antes para trabalhar como assistente de Karl Wernicke, professor de psiquiatria de renome internacional. A vida consistia em trabalhar na clínica e
socializar com alguns poucos amigos de Tübingen, a charmosa cidade universitária onde ele crescera. Mas, após aquela memorável noite de inverno,
1
Eberhard Bethge, Dietrich Bonhoeffer: A Biography, p. 8.
Bonhoeffer_final.indb 13
23/05/2011 11:33:58
14 BONHOEFFER
as coisas mudariam dramaticamente: para começar, ele passou a frequentar
canais congelados, de manhã, para praticar patinação no gelo, com a esperança de encontrar — o que acontecia quase sempre — a encantadora moça de
olhos azuis. Ela era professora, e seu nome, Paula von Hase. Eles se casaram
em 5 de março de 1898, três semanas antes do trigésimo aniversário do noivo.
A noiva tinha 22 anos.
Ambos — o doutor e a professora — vinham de cenários ilustres. Os pais
e a família de Paula Bonhoeffer possuíam ligações estreitas com a corte do
imperador em Potsdam. Sua tia Pauline era dama de companhia da princesa
Vitória, esposa de Frederico III. O pai, Karl Alfred von Hase, fora um capelão
militar, e em 1889 se tornou capelão de Guilherme II, mas renunciou após
criticar a declaração do imperador sobre a classe operária, descrita como “um
bando de cachorros”.2
O avô de Paula, Karl August von Hase, teve grande importância na família
e foi um famoso teólogo em Jena, onde lecionou por sessenta anos — na cidade, há uma estátua em sua homenagem. Ele fora chamado para o cargo pelo
próprio Goethe — então ministro do duque de Weimar — e teve encontros
particulares com o mestre alemão de oitenta anos, na época compondo a segunda parte de Fausto. O livro de Karl August a respeito da história do dogma
ainda era utilizado pelos estudantes de teologia no século 20. Perto do fim da
vida, o grão-duque de Weimar e o rei de Württemberg premiaram-no com
diversos títulos de nobreza.
O lado materno da família de Paula incluía artistas e músicos. A mãe, Clara von Hase, née condessa Kalkreuth (1851-1930), recebeu lições de piano
de Franz Liszt e Clara Schumann. Legou à filha o amor pela música e pelo
canto, amor que exerceria papel vital na história dos Bonhoeffer. O pai de
Clara, conde Stanislaus Kalkreuth (1820-1894), foi um pintor conhecido por
desenhar amplas paisagens alpinas. Embora tivesse vindo de uma família de
nobres e aristocratas militares, o conde casou-se com uma Cauer, conhecida
família de escultores, e tornou-se diretor da escola de artes do grão-ducado
de Weimar. Seu filho, conde Leopold Kalkreuth, aperfeiçoou o sucesso do
pai como pintor, e seus quadros de realismo poético estão hoje expostos em
2
Idem, p. 7.
Bonhoeffer_final.indb 14
23/05/2011 11:33:58
Família e infância 15
museus de toda a Alemanha. Os Von Hase também mantinham relações sociais e intelectuais com os notáveis Yorck von Wartenburg. O conde Hans
Ludwig Yorck von Wartenburg3 era um filósofo cuja famosa correspondência
com Wilhelm Dilthey desenvolveria uma filosofia hermenêutica da História,
influenciando, entre outros, Martin Heidegger.
A linhagem de Karl Bonhoeffer não era menos impressionante. A família
se inscrevera em 1403 nos registros de Nymwegen, no rio Waal, na Holanda,
próximo à fronteira com a Alemanha. Em 1513, Caspar van den Boenhoff
deixou a Holanda para se estabelecer na cidade alemã de Schwäbisch Hall.
Mais tarde, a família passou a se chamar Bonhöffer, mantendo o trema até meados de 1800. Bonhöffer significa “agricultor de feijão”, e no brasão da família,
bem evidente em alguns prédios ao redor de Schwäbisch Hall,4 há um leão,
à frente de um cenário azul, segurando um pé de feijão. Eberhard Bethge nos
diz que Dietrich Bonhoeffer costumava usar um anel de sinete com o brasão
da família.
Por três séculos, os Bonhoeffer estiveram entre as principais famílias de
Schwäbisch Hall. No início, trabalhavam como ourives; nas gerações posteriores, havia doutores, pastores, juízes, professores e advogados. Ao longo dos séculos, 78 membros do conselho municipal e três prefeitos de
Schwäbisch Hall eram Bonhöeffer. Sua importância e influência podem ser
visualizadas no memorial de mármore da família em Michaelskirche (Igreja de
São Miguel), onde foram imortalizados nos epitáfios e esculturas barrocas
e rococós.
Em 1797, veio ao mundo o avô de Karl, Sophonias Bonhoeffer, o último da
família a nascer ali. A invasão de Napoleão em 1806 acabou com a condição de
cidade independente de Schwäbisch Hall e dispersou a família, ainda que ali se
tornasse uma espécie de santuário que as gerações posteriores, já sem o trema,
tentaram restaurar. O pai de Karl Bonhoeffer levou o filho para visitar aquela
cidade medieval diversas vezes e apresentava-lhe detalhes de sua história aristocrática, desde a “famosa escadaria de orvalho negro da casa dos Bonhoeffer na
Seu neto, Yorck Peter von Wartenburg (1904-1944), foi primo do coronel Claus von
Stauffenberg e desempenhou papel fundamental na conspiração para assassinar Hitler no
dia 20 de julho de 1944.
4
É possível visualizar um desses brasões na Klosterstrasse no 7.
3
Bonhoeffer_final.indb 15
23/05/2011 11:33:58
16 BONHOEFFER
Herrengasse” até o retrato da “bela mulher de Bonhoeffer”5 pendurada na igreja,
com uma cópia na casa que pertencera à família de Dietrich durante sua infância. Karl Bonhoeffer, aliás, fazia a mesma coisa com os filhos.
O pai de Karl Bonhoeffer, Friedrich Ernst Philipp Tobias Bonhoeffer (18281907), foi autoridade jurídica de alto escalão em Württemberg e terminou a
carreira como presidente da corte provincial de Ulm. Quando se retirou para Tübingen, o rei o premiou com um título de nobreza. Seu pai tinha sido “um pároco
de bom coração, que dirigia por todo o distrito em sua própria carruagem”. 6
A mãe de Karl Bonhoeffer, avó Bonhoeffer, nascida Tafel (1842-1936),
veio de uma família da Suábia devotadamente liberal que desempenhou papel
fundamental no movimento democrático do século 19. A respeito do pai de
sua mãe, Karl Bonhoeffer escreveu: “Nitidamente, meu avô e os três irmãos
dele não eram homens medíocres. Cada um tinha uma característica especial,
mas, em comum, todos possuíam uma verve idealista, dispostos a lutar sem
medo por suas convicções”.7 Por culpa de suas tendências democráticas, dois
deles foram banidos temporariamente de Württemberg. E, coincidência notável, um deles, Gottlob Tafel, tio-avô de Karl, ficou preso na fortaleza de Hohenasperg na mesma época que o bisavô de Dietrich, Karl August von Hase.
O último, antes de embarcar na carreira teológica, passara por um período de
ativismo político na juventude. No período em que estiveram presos, os dois
antepassados de Dietrich Bonhoeffer chegaram a se conhecer. A mãe de Karl
Bonhoeffer viveu até os 93 anos e tinha uma relação próxima com o bisneto
Dietrich, que declamou uma oração no funeral dela em 1936, e a conservava
na memória feito um elo vivo com a grandiosidade daquela geração.
As árvores genealógicas de Karl e Paula Bonhoeffer são tão carregadas de
realizações valorosas que alguém talvez suspeitasse que as gerações futuras
pudessem se sentir de algum modo pressionadas com aquilo tudo. Mas a profusão de maravilhas legada por tal herança parece ter sido uma bênção tão
grande que, a cada criança nascida, buscava-se não apenas rivalizar com os
gigantes do passado, mas também superá-los, ir além deles.
E assim, em 1898, essas duas linhagens extraordinárias se entrelaçaram no casamento de Karl e Paula Bonhoeffer e trouxeram ao mundo oito filhos no
Mary Bosanquet, The Life and Death of Dietrich Bonhoeffer, p. 18.
Idem.
7
Idem, p. 19.
5
6
Bonhoeffer_final.indb 16
23/05/2011 11:33:58
Família e infância 17
espaço de uma década. No mesmo ano, nasceram os dois primeiros: KarlFriedrich, no dia 13 de janeiro de 1899, e Walter — prematuro de dois meses
—, em 10 de dezembro. O terceiro filho, Klaus, nasceu em 1901, seguido de
duas meninas, Ursula, em 1902, e Christine, em 1903. No dia 4 de fevereiro
de 1906, o quarto filho, Dietrich, nasceu quatro minutos antes de sua irmã
gêmea Sabine, e a vida toda ele fez graça com essa vantagem sobre ela. O excapelão do imperador, o avô Karl Alfred von Hase, que vivia a uma distância
de sete minutos de caminhada, batizou os gêmeos. Susanne, a última criança,
nasceu em 1909.
Todas as crianças da família nasceram em Breslávia, onde Karl Bonhoeffer
era titular da cadeira de psiquiatria e neurologia da universidade e diretor do
hospital para doenças nervosas. No réveillon do ano em que nasceu Susanne,
ele escreveu em seu diário: “Apesar de termos oito crianças — o que parece
um número enorme em tempos como este —, temos a impressão de que não
há tantos assim! A casa é espaçosa, as crianças se desenvolvem normalmente, e nos esforçamos para não mimá-las demais, mas tornar a infância delas
agradável”.8
A casa da família, na Birkenwäldchen no 7, ficava próxima da clínica. Era
uma mansão gigantesca de três andares, com telhado inclinado, diversas chaminés, um alpendre e uma ampla varanda com vista para o espaçoso jardim
onde as crianças se divertiam. Elas gostavam de brincar na terra, subir em árvores e montar barracas. As crianças sempre visitavam o avô Hase, que morava do outro lado de um braço do rio Óder. Sua esposa morreu em 1903, e sua
outra filha, Elisabeth, cuidava dele. Ela também se tornaria parte importante
na vida das crianças.
Apesar das ocupações profissionais, Karl Bonhoeffer conseguia arrumar
tempo para se alegrar com os filhos. “No inverno”, escreveu, “nós jogávamos
baldes d’água numa velha quadra de tênis de superfície asfáltica, de modo que
os dois meninos mais velhos pudessem tentar patinar pela primeira vez. Não
tínhamos uma carruagem com cavalos, mas usávamos o estábulo para manter
todo tipo de animais”.9 Também havia animais dentro de casa. Um quarto, por
exemplo, se tornou um pequeno zoológico para os animaizinhos de estimação das crianças, e incluía coelhos, porquinhos-da-índia, pombas, esquilos,
8
9
Bethge, Dietrich Bonhoeffer: A Biography, p. 16.
Renate Bethge e Christian Gremmels, ed., Dietrich Bonhoeffer: A Life in Pictures, p. 22.
Bonhoeffer_final.indb 17
23/05/2011 11:33:58
18 BONHOEFFER
lagartixas e cobras, além de um museu de história natural para as coleções
de ovos de pássaros e molduras de insetos e borboletas. As duas meninas de
mais idade utilizavam outro quarto para montar sua casinha de bonecas, e no
primeiro andar os três meninos mais velhos tinham uma oficina completa de
carpintaria.
A mãe presidia a casa, que contava com um bom quadro de funcionários:
uma governanta, uma babá, uma empregada para a casa e outra para o salão,
e uma cozinheira. No andar de cima, existia uma sala onde Paula dava aulas
aos filhos. Na época, foi algo chocante o fato de Paula Bonhoeffer, quando
solteira, ter se formado professora,10 mas, depois de casada, fez uso do que
tinha aprendido com grande êxito. Ela desconfiava abertamente das escolas
públicas alemãs e dos métodos de educação prussianos. Paula acreditava no
ditado que dizia que os alemães são esmagados duas vezes na vida, a primeira
na escola e a segunda no exército. Não estava disposta a entregar os filhos,
em seus primeiros anos, aos cuidados de outros com sensibilidade menor que
a sua. Quando ficaram um pouco mais velhas, as crianças se matricularam em
escolas públicas locais, onde, invariavelmente, se destacavam. Mas, até que
cada uma completasse sete ou oito anos de idade, ela seria a única educadora.
Paula Bonhoeffer memorizara um repertório impressionante de poemas,
hinos e canções populares, e repassou-o aos filhos, que jamais esqueceriam.
As crianças gostavam de se fantasiar e encenar peças para os adultos. Havia
um teatro de fantoches na família, e todo dia 30 de dezembro, data de seu
aniversário, Paula apresentava uma performance de “O chapeuzinho vermelho”.
Continuou a apresentá-la para os netinhos até a velhice. Uma das netas, Renate Bethge, disse que “ela era a alma e o espírito da casa”. Em 1910, os Bonhoeffer decidiram procurar um local para passar as férias e
escolheram um idílio remoto nas florestas das montanhas Glatz, próximo à
fronteira com a Boêmia. Era uma viagem de duas horas de trem ao sul de
Breslávia. Karl Bonhoeffer descreveu o lugar como “um pequeno vale aos pés
do monte Urnitz, à beira da floresta, com um pasto, um pequeno riacho, um
celeiro velho e uma árvore onde as crianças amarraram um banquinho em
seus galhos mais altos e criaram um balanço”.11 O nome desse paraíso rústico
10
11
Ela recebeu o diploma do Colégio da Província Real de Breslávia, em abril de 1896.
Bethge e Gremmels, A Life in Pictures, p. 24.
Bonhoeffer_final.indb 18
23/05/2011 11:33:58
Família e infância 19
era Wolfesgründ. Ficava tão distante da estrada que a família nunca via pessoa
alguma, com exceção de um personagem singular, o “fanático oficial da floresta” que perambulava por ali vez ou outra. Anos depois, Bonhoeffer o recriaria
como o personagem fictício Gelbstiefel (Botas Amarelas).
Temos nossas primeiras impressões a respeito de Dietrich nessa época,
quando ele tinha quatro anos de idade. Vieram a nós através de sua irmã gêmea, Sabine:
Minhas primeiras memórias remontam a 1910. Vejo Dietrich com seu
roupão, acariciando a seda azul com sua mãozinha pequena. Depois,
eu o vejo ao lado de nosso avô, que está sentado perto da janela com
nossa irmã Susanne em seu colo, enquanto o sol da tarde emite sua luz
dourada. A partir daqui, a memória se obscurece, e apenas mais uma
cena se formará em minha mente: as primeiras brincadeiras no jardim,
em 1911, Dietrich com o cabelo loiro-cinzento em volta de seu rosto
bronzeado, queimado pelo sol quente, correndo para dentro de casa
para fugir dos mosquitos, à procura de um lugar com sombra, e obedecendo assim, muito sem querer, já que a brincadeira ainda não havia
terminado, ao pedido da babá para que entrássemos. A intensidade da
diversão era tanta que esquecíamos o calor e a sede.12
Dietrich foi o único dos filhos a herdar a pele e os cabelos claros da mãe.13
Os três irmãos mais velhos eram morenos como o pai. Klaus, o mais jovem
dos irmãos de Dietrich, era cinco anos mais velho do que ele. Assim, os três
irmãos e as duas irmãs mais velhas formavam, naturalmente, um quinteto,
enquanto Dietrich uniu-se com Sabine e a pequena Susi no grupo dos “três
pequeninos”. Nesse trio, Dietrich desempenhava o papel do protetor forte e
cortês. “Jamais esquecerei a delicadeza do caráter de Dietrich”, escreveu Sabine, “quando, certa vez, colhíamos framboesas durante o verão. Ele encheria
meu cântaro com as framboesas que havia colhido, caso eu tivesse menos que
ele, ou então dividiria sua bebida comigo”. Quando os dois liam juntos, “ele
colocava o livro à minha frente [...] ainda que isso atrapalhasse a sua leitura e,
caso solicitado para qualquer coisa, era sempre gentil e prestativo”.14
Bosanquet, Life and Death of Bonhoeffer, p. 24.
Wolf-Dieter Zimmermann e Ronald G. Smith, I Knew Dietrich Bonhoeffer, p. 25.
14
Idem, p. 27.
12
13
Bonhoeffer_final.indb 19
23/05/2011 11:33:58
20 BONHOEFFER
Tanto cavalheirismo não se restringia às irmãs. Ele adorava a srta. Käthe
van Horn, sua governanta desde a infância, e “por livre e espontânea vontade, ele assumia o papel dela com bom humor e passava a ajudá-la e servila, e quando o prato favorito dela era posto sobre a mesa, ele chorava, dizia
que já tinha comido o suficiente e a forçava a comer a parte dele. Ele falava
para ela: ‘Quando eu crescer, nós iremos nos casar, assim você irá sempre ficar
conosco’”.15
Sabine lembra-se também de quando ele, aos seis anos, ficou maravilhado
com a visão de uma libélula que pairava acima de um riacho. De olhos arregalados, sussurrou para a mãe: “Veja! Há uma criatura sobre a água! Mas não
tenha medo; eu vou proteger você!”.16
Quando Dietrich e Sabine tinham idade suficiente para ir à escola, Paula
transferiu suas responsabilidades para a srta. Käthe, embora ela ainda presidisse a instrução religiosa das crianças. As primeiras indagações teológicas de
Dietrich surgiram em torno dos quatro anos de idade. Ele perguntou à mãe:
“O bom Deus ama o limpador de chaminés também?” e “Deus também se senta para almoçar?”.17
As irmãs Käthe e Maria van Horn vieram para a casa dos Bonhoeffer seis
meses após o nascimento dos gêmeos, e por duas décadas exerceram papel essencial na vida da família. A srta. Käthe era normalmente a responsável pelos
três pequeninos. As duas irmãs eram cristãs devotas escoladas na comunidade
de Herrnhut, que significa “torre de vigília do Senhor”, e tiveram uma influência decisiva na formação espiritual das crianças. Fundada pelo conde Zinzendorf no século 18, Herrnhut dava prosseguimento à tradição pietista da
Irmandade Morávia. Quando menina, Paula Bonhoeffer frequentou Herrnhut
por um tempo.
O conde Zinzendorf defendia a ideia de um relacionamento pessoal com
Deus em vez da ida formal à igreja do luteranismo. Zinzendorf usava o termo
“fé viva”, o qual contrastava desfavoravelmente com o nominalismo em vigor
da maçante ortodoxia protestante. Para ele, a fé era menos a respeito de um assentimento intelectual a doutrinas e mais um encontro pessoal e transformador
Idem, p. 24.
Bosanquet, Life and Death of Bonhoeffer, p. 24.
17
Sabine Leibholz-Bonhoeffer, The Bonhoeffers: Portrait of a Family, p. 37.
15
16
Bonhoeffer_final.indb 20
23/05/2011 11:33:58
Família e infância 21
com Deus. Os Herrnhütter, portanto, enfatizavam a leitura bíblica e a devoção no lar. Suas ideias influenciaram John Wesley, que visitou Herrnhut em
1738, ano de sua famosa conversão.
O papel da religião na casa dos Bonhoeffer estava distante do pietismo,
mas seguia alguma das tradições de Herrnhut. Eles raramente iam à igreja;
para batismos e funerais, voltavam-se ao pai ou ao irmão de Paula. A família
não era anticlerical — as crianças, na verdade, adoravam “brincar” de batizar
umas às outras —, mas o cristianismo deles se desenvolveu principalmente
dentro de casa. Todos os dias, liam a Bíblia e cantavam hinos, conduzidos
pela senhora Bonhoeffer. Sua reverência para com as Escrituras era tanta que
ela lia histórias bíblicas para os filhos usando o texto tradicional, e não versões simplificadas para crianças. Ainda assim, às vezes utilizava uma Bíblia
ilustrada, mostrando as imagens ao decorrer da história.18
A fé de Paula Bonhoeffer se evidencia nos valores que ela e o marido ensinaram aos filhos. A exposição do altruísmo, a expressão da generosidade e
a ajuda ao próximo eram fundamentais para a cultura familiar. A srta. Käthe
lembra-se que as três crianças gostavam de surpreendê-la ao fazer coisas que a
agradassem: “Por exemplo, elas poriam a mesa para a ceia antes que eu pudesse fazê-lo. Se Dietrich encorajava as irmãs a isso, eu não sei dizer, mas é de se
suspeitar”.19 As irmãs van Horn descrevem as crianças como “bem-humoradas”,
mas nunca, absolutamente, “rudes ou mal-educadas”. O bom comportamento,
porém, nem sempre aparecia de forma natural. A srta. Käthe recorda:
Dietrich era muitas vezes arteiro e fazia brincadeiras em momentos
inapropriados. Lembro-me que Dietrich gostava de fazer isso especialmente quando as crianças deveriam tomar banho e se vestir com pressa
porque nós havíamos sido convidados para ir a algum lugar. Então, um
Bonhoeffer conhecia bem os perigos do pietismo, mas se baseou na tradição teológica
conservadora de Herrnhut durante toda a vida, sempre usando os Lemas diários dos morávios para suas devoções particulares. A cada dia, um versículo do Antigo Testamento e
um versículo do Novo Testamento. Publicado anualmente desde o tempo de Zinzendorf,
eles eram conhecidos por Bonhoeffer como Losungen (“palavras de vigília”), ainda que às
vezes os chamasse simplesmente de “os textos”. Essas Losungen tiveram papel fundamental
em sua decisão de retornar à Alemanha em 1939. Ele prosseguiu com essas devoções até o
fim da vida e introduziu à prática sua noiva e muitos outros.
19
Bosanquet, Life and Death of Bonhoeffer, p. 29.
18
Bonhoeffer_final.indb 21
23/05/2011 11:33:58
22 BONHOEFFER
dia lá estava ele, dançando na sala, cantando, enfim, um verdadeiro incômodo. De repente a porta se abriu, sua mãe foi para cima dele, deulhe tapas na orelha e foi embora. Assim terminou aquela tolice. Sem
derramar uma única lágrima, ele obedeceu e fez o que devia fazer.20
A mudança para Berlim
Em 1912,21 o pai de Dietrich aceitou a nomeação para a cadeira de psiquiatria
e neurologia de Berlim. Tornava-se a maior autoridade de sua área em toda a
Alemanha, posição que ocuparia até a morte, em 1948. É difícil mensurar o
prestígio de Karl Bonhoeffer. Bethge diz que a mera presença dele em Berlim
“transformou a cidade num bastião contra a invasão da psicanálise de Freud e
Jung. Não que ele tivesse a mente fechada para teorias heterodoxas, ou negasse, por princípios, a validade de esforços para estudar áreas inexploradas da
mente”. Karl Bonhoeffer nunca rejeitou em público as teorias de Freud, Jung
ou Adler, mas as mantinha a distância por meio de um elevado grau de ceticismo e de sua devoção a ciência empírica. Como médico e cientista, tinha uma
visão negativa quanto ao excesso de especulação dentro do reino desconhecido da chamada psique. Bethge transcreve a citação de um amigo de Karl,
Robert Gaupp, psiquiatra de Heidelberg:
Não havia ninguém superior a Bonhoeffer na psicologia intuitiva e na
observação escrupulosa. Mas ele veio da escola de Wernickle, preocupada apenas com o cérebro, e não aceitava nenhuma orientação de
pensamento em termos de patologia cerebral. [...] Ele não tinha vontade alguma de avançar no reino da sombria, indemonstrável, atrevida e
imaginativa interpretação, onde há muito a se supor e pouco a se provar. [...] Manteve-se dentro das fronteiras que lhe eram acessíveis no
mundo empírico.22
Karl Bonhoeffer desconfiava de qualquer coisa além do que era observável
com os sentidos ou dedutível de tais observações. No que diz respeito à psicanálise e à religião, poderia ser definido como agnóstico.
Idem.
Bethge, Dietrich Bonhoeffer: A Biography, p. 21.
22
Idem, p. 22.
20
21
Bonhoeffer_final.indb 22
23/05/2011 11:33:58
Download

BONHOEFFER - Viverpontocom