Revista Eletrônica Novo Enfoque, ano 2013, v. 17, n. 17, p. 61 –66
Multiculturalismo na Educação Básica: problematizando relações de gênero a partir da
interação e do discurso um evento de Letramento.
Alexandre José Cadilhe1
Alessandra de Oliveira Pereira2
1. Caracterização do Problema
Esta pesquisa situa-se no âmbito de uma mudança educacional iniciada com a implantação da
Lei de Diretrizes e Bases nº 9496, em 1996, a qual acarretou a configuração dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), em nível macropolítico. Passados quase 15 anos de sua
implantação, os PCNs ainda representam desafios a serem praticados nas instituições
educacionais, não somente no que se refere à seleção de conteúdos curriculares, mas
principalmente na perspectiva de um trabalho educacional inovador, interdisciplinar e que
abarque a construção do conhecimento através de temáticas transversais.
Contudo, após 15 anos desta implantação, com efeitos inclusive no ensino da língua materna,
perguntamos: como tal perspectiva tem se configurado no aspecto micropolítico da escola, no
que tange ao tratamento dado à temática transversal da multiculturalidade, em suas diversas
possibilidades de manifestação?
Situado neste âmbito, propomos, com esta pesquisa, investigar o tratamento dado às relações
multiculturais estabelecidas na interação e no discurso a partir de um encontro voluntário da
pesquisadora de iniciação científica da UCB com grupos de quatro estudantes do CAP-UCB
para discussão de dois textos, do gênero discursivo “letra de música”, que problematizam a
relação do gênero masculino nas práticas sociais.
O multiculturalismo, conceito relativamente amplo o qual abarca diversos posicionamentos, é
aqui compreendido, no âmbito educacional, como uma “mediação reflexiva daquelas
influencias plurais que diferentes culturas exercem de forma permanente sobre as novas
gerações” (CANDAU, 2008, p.15). É aqui considerado dispositivo cultural a própria relação
de gêneros, além de etnia, classe econômica etc.
1
2
Pesquisador e professor da UCB, doutor em Estudos da Linguagem pela UFF.
Estudante de graduação em Letras da UCB, pesquisadora em iniciação científica pelo PIBICT/UCB.
2. Objetivos
Neste estudo, temos, como objetivo geral, compreender de que modo a temática da
multiculturalidade – com foco na problematização nas relações de gênero – emerge em
discussões com turmas de educação básica do CAP da UCB.
Como objetivo específico, pretendemos analisar os discursos produzidos na interação
pesquisadora-estudantes, de modo a explicitar posicionamentos dos participantes sobre as
relações de gênero, com ênfase na masculinidade nas relações sociais.
3. Justificativa
Esta pesquisa justifica-se pela emergência dos desafios colocados à educação para o trato com
a diversidade cultural e a necessidade de espaços de formação continuada em escolas de
forma a implantar os PCNs de modo articulado com a macropolítica estabelecida em tais
documentos. No âmbito da gestão da mudança educacional, compreende-se que tal
empreendimento ocorre não somente com o estabelecimento de normas, e sim com a mudança
nas relações construídas pelos sujeitos protagonistas das mudanças (cf. FULLAN, 2009).
Além disso, é mister que tal relação perpasse a relação ação-reflexão-ação: “todos os
processos bem-sucedidos de mudança têm ‘um viés para a ação’. Existe uma razão para tanto,
a qual está envolvida em várias visões afins. Dewey mencionou-a quando disse que as pessoas
não aprendem fazendo, mas pensando sobre o que estão fazendo” (FULLAN, 2009, p.48,
grifo do autor).
Deste modo, a necessidade de reflexão sobre relações multiculturais de gênero coloca-se
como uma justificativa fundamental para a realização deste estudo, de modo a atingir o
objetivo geral de compreensão dos discursos multiculturais que podem emergir no espaço
escolar.
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4. Metodologia e Estratégia de Ação
Esta pesquisa foi desenvolvida em perspectiva qualitativa, tendo como instrumento de
geração de dados a entrevista em grupo, também chamada de grupo focal 3 (cf. GASKELL,
2008). Foram constituídos dois grupos de quatro estudantes cada, convidados a participar da
pesquisa voluntariamente. Cada grupo foi composto por dois participantes do sexo feminino e
dois do sexo masculino, estudantes do 2º ano do ensino médio do CAP-UCB. A pesquisadora
de iniciação científica encontrou-se com os grupos e apresentou-lhes duas letras de música,
para cada um, onde a questão multicultural de gênero é emergente: Homem não chora (Frejat)
e Homem-Aranha (Jorge Vercillo). Ambas encontram-se anexadas ao final deste trabalho.
Após a apresentação das letras a cada um dos grupos, solicitou que falassem a respeito de suas
considerações sobre tais textos. Tal discussão em grupo foi gravada oralmente. Por constituir
um evento cujo tópico parte da leitura de um texto, este evento pode ser compreendido como
uma prática de Letramento.
Após o registro dos dados, estes foram transcritos de acordo com as orientações da Análise da
Fala-em-Interação (LODER & JUNG, 2008), o qual se tornou, portanto, objeto de análise a
partir dos pressupostos da Análise do Discurso de linha Anglo-Americana, notadamente a
Sociolinguística Interacional (RIBEIRO & GARCEZ, 2002).
5. Análise dos dados
A partir das transcrições, foi possível observar que, no evento em discussão, um fenômeno
interacional bastante recorrente foi o account, ou explicabilidade: ação exercida através da
fala, em que o interagente busca constantemente justificar sua fala e, por consequência, seu
posicionamento, a partir do seu turno de fala (cf. GARCEZ, 2008). Portanto, elencamos os
principais posicionamentos e suas justificativas a partir de dois grupos:
3
No projeto original, a proposta consistia em acompanhar e gravar aulas, as quais foram realizadas após longo
tempo de negociação de entrada em sala e assinatura de termos de consentimento. Contudo, no decorrer da
pesquisa, pelo tema da multiculturalidade pouco se fazer nas aulas, optamos pelo grupo focal.
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Grupo 14:
Estudante
Taís
Fábio
Raquel
João
Explicabilidade
Declara-se não preconceituosa e destaca que o preconceito parte do próprio grupo em questão, pois
se isolam, é como se criassem seu grupo e vivessem nele, excluindo os demais deste. Coloca que
muitos não se assumem e tomam uma postura para não serem tachados pela sociedade, pois nem
todos foram educados para respeitar as opções dos outros.
Também compartilha da mesma opinião da Taís, quando afirma que muitos não se assumem nos
próprios grupos para que não sejam intitulados, tachados, enquanto outros já utilizam desse artifício
para se aproximar e "pegar" garotas. Enfoca que a escola não dá margem para inclusão.
Coloca uma divisão de grupos (homo versus hetero) e enfoca nas discussões de direitos e deveres,
acredita que muitas das atitudes consideradas exageradas se dão por defesa, pois “a melhor defesa é
o ataque”, segundo a sua opinião.
Não é preconceituoso em relação a nenhum grupo (homo/hetero), apenas destaca que o preconceito
se mostra muito maior quando, além de se assumirem, se transvertem, alterando seus órgãos,
cabelos, roupas e usam ambientes destinados ao sexo literalmente feminino.
Grupo 2:
Estudante
Mariana
Júlio
Eduarda
Kauã
Explicabilidade
Demonstra que o texto se contradiz, pois ao mesmo tempo em que fala que o homem não chora,
apresenta um trecho em que demonstra que está chorando. Parte do princípio de que homem chora,
sim, pois tem sentimentos, não chora à toa, mas com motivos, seja por amor, dor etc.
Homossexual assumido, embora discreto, afirma que o homem não assume que chora, para não
demonstrar fraqueza, pra não ser chamado de “veadinho”, para parecer frio, resistente, por
satisfação a sociedade, mas que em seu caso, chora, principalmente pelas coisas ou pessoas que
para ele são importantes.
Enfatiza que esse tabu vem de berço, que desde criança já é implantada essa cultura de que homem
não chora. Concorda com Júlio quando diz que muitos se escondem para não serem tachados e
compartilha da opinião de que homem chora, sim, pois não é super-herói e tem sentimentos.
Pouco participa, mas concorda que isso é uma imposição da sociedade e que o homem não chora na
frente dos outros, mas que em um lugar reservado desmonta, sem que seja necessário mostrar suas
fraquezas para ninguém.
6. Considerações finais
De acordo com a participação dos estudantes nos grupos focais, foi possível observar
discursos dissonantes: ao mesmo tempo em que observam a composição de grupos e indicam
discordar isso, também compreendem que se trata de algo “naturalizado”, ou seja, instituído,
imposto, com poucas possibilidades de mudanças. Há uma grande divisão homens versus
mulheres, heterossexuais versus homossexuais, sendo considerado estranho o que fugir a essa
4
No âmbito de uma pesquisa qualitativa, cujo objeto em análise é o discurso, torna-se fundamental apresentá-lo
para justificar o posicionamento do analista; contudo, considerando que as transcrições geraram quase 15
páginas de dados a serem analisados, e considerando ainda o espaço do resumo expandido, optamos pela
apresentação semente de parte de nossa análise. Os dados, contudo, estão disponíveis para consulta.
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dualidade – ainda que reconhecendo a grande presença de “outros” inclusive no ambiente
escolar.
Isso sinaliza a pouca efetividade das propostas dos PCNs no que concerne à consideração
das múltiplas relações culturais, incluindo as de gênero. Em outros termos, a escola estaria
deixando de problematizar as relações de masculinidade (e, por seu turno, também de
feminilidade), de forma a diminuir preconceitos e desfazer uma visão antagônica sobre as
possibilidades de viver gênero e sexualidade no mundo contemporâneo.
7. Referências Bibliográficas
BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua
Portuguesa (3º e 4º ciclos). Brasília: MEC, 1998.
CANDAU, V.M. “Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica”. In:
MOREIRA, A.F. & CANDAU, V.M. (org.). Multiculturalismo: diferenças culturais e
práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008.
ERICKSON, F. Etnographic microanalysis. In MCKAY, S.L. (ed.). Sociolinguistics and
language teaching. 1996.
FULLAN, M. O significado da mudança educacional. Porto Alegre: Artmed, 2009.
GARCEZ, P.M. “A perspectiva da Análise da Conversa Etnometodológica sobre o uso da
linguagem em interação social”. In LODER, L.L. & JUNG, N.M. Fala-em-interação social:
introdução à Análise da Conversa Etnometodológica. Campinas: Mercado de Letras, 2008.
GASKELL, G. “Entrevistas individuais e grupais”. In: BAUER, M. & GASKELL, G. (org.).
Pesquisa Qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes, 2008.
LODER, L.L. & JUNG, N.M. Fala-em-interação social: introdução à Análise da Conversa
Etnometodológica. Campinas: Mercado de Letras, 2008.
RIBEIRO, B.T. & GARCEZ, P. Sociolingüística Interacional. São Paulo: Edições Loyola,
[1964] 2002.
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Anexos
Homem Aranha
Homem não chora
Jorge Vercillo
Frejat
Eu adoro andar no abismo
Numa noite viril de perseguição
Saltando entre os edifícios
Vi você!...
Homem não chora
Nem por dor
Nem por amor
E antes que eu me esqueça
Nunca me passou pela cabeça
Lhe pedir perdão
E só porque eu estou aqui
Ajoelhado no chão
Com o coração na mão
Não quer dizer
Que tudo mudou
Que o tempo parou
Que você ganhou
Em poder de um fugitivo
Que cercado pela polícia
Te fez refém
Lá nos precipícios
Foi paixão à primeira vista...
Me joguei de onde o céu arranha
Te salvando com a minha teia
Prazer!
Me chamam de Homem-Aranha
Seu herói!...
Hoje o herói aguenta o peso
Das compras do mês
No telhado, ajeitando
A antena da tevê
Acordado a noite inteira
Pra ninar bebê...
Chega de bandido pra prender
De bala perdida pra deter
Eu tenho uma ideia:
Você na minha teia...
Chega de assalto pra impedir
Seja em Brasília ou aqui
Eu tive a grande ideia:
Você na minha teia...
Hoje eu estou nas suas mãos
Nessa sua ingênua sedução
Que me pegou na veia
Eu tô na tua teia...
Meu rosto vermelho e molhado
É só dos olhos pra fora
Todo mundo sabe
Que homem não chora
Esse meu rosto vermelho e molhado
É só dos olhos pra fora
Todo mundo sabe
Que homem não chora
Homem não chora
Nem por ter
Nem por perder
Lágrimas são água
Caem do meu queixo
E secam sem tocar o chão
E só porque você me viu
Cair em contradição
Dormindo em sua mão
Não vai fazer
A chuva passar
O mundo ficar
No mesmo lugar
Meu rosto vermelho e molhado...
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