FACULDADE SETE DE SETEMBRO – FASETE
CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM LETRAS
HABILITAÇÃO EM INGLÊS E PORTUGUÊS
MANOEL CORDEIRO DE OLIVEIRA JUNIOR
A FALSA RELIGIOSIDADE NA OBRA O AUTO DA COMPADECIDA
DE ARIANO SUASSUNA
PAULOAFONSO – BA
JUNHO/2014
MANOEL CORDEIRO DE OLIVEIRA JUNIOR
A FALSA RELIGIOSIDADE NA OBRA O AUTO DA COMPADECIDA
DE ARIANO SUASSUNA
Monografia apresentada ao Curso de Letras –
Habilitação Português / Inglês da FASETE –
Faculdade Sete de Setembro, como requisito
para a avaliação conclusiva, sob a orientação
da prof. Msc.Joranaide Alves Ramos.
PAULO AFONSO – BA
JUNHO/2014
Dedico
essa
monografia
aos
meus
familiares pelo o exemplo de força e
determinação.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço a Deus que na sua infinita bondade me deu forças para
que eu pudesse alcançar meus objetivos e para realização deste trabalho.
A minha Mãe Uiara que sempre me incentivou. A minha orientadora Joranaide, que
acreditou que eu seria capaz e sempre procurou me orientar da melhor forma
possível. Agradeço também a minha namorada Vanessa.
“Auto da Compadecia! O julgamento de
alguns
canalhas,
entre
os
quais
um
sacristão, um padre e um bispo, para
exercício da moralidade”.
(Ariano Suassuna)
RESUMO
O presente trabalho mostra uma análise crítica do Auto Compadecida (2004) de
Ariano Suassuna, tendo como focos principais Autos da Idade Média, a religiosidade
e a falsa religiosidade envolvida na obra. Dividimos, portanto, o estudo em três
capítulos. No primeiro tratamos de alguns Autos relacionados a época medieval,
mas que são retratados nos dias de hoje; no segundo capitulo, abordamos a
biografia do autor e, além de uma leitura sobre as características nordestinas a partir
de seus aspecto sociocultural. No terceiro capitulo, tratamos da religiosidade
retratada através da Compadecida; observamos a falsa religiosidade a partir dos
personagens da igreja.Para fundamentar tais questões, usamos Gil Vicente (1516),
Anchieta (1954) e Albuquerque Junior (2011).
PALAVRAS CHAVES:Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida, Falsa
Religiosidade.
ABSTRACT
The present work shows a critical analysis of the Auto da Compadecida (2004) by
Ariano Suassuna, having as main focuses Acts of the Middle Ages, the religiosity and
false religiosity involved in the work. We divided, therefore, the study in three
chapters. In the first one we dealed with some Acts related to medieval times, but
which are portrayed nowadays; in the second chapter, we focus on the biography of
the author and, in addition to a reading on the northeastern characteristics from its
sociocultural aspect. In the third chapter, we treated the religiosity portrayed through
the Compassionate; we observed the false religiosity from the characters of the
church. To substantiate such issues, we used Gil Vicente (1516), Anchieta (1954)
and Albuquerque Junior (2011)
KEY WORDS:Ariano Suassuna, Auto da Compadecida, False Religiosity.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................9
1.AUTOS:DA IDADE MÉDIA ATÉ OS DIAS DE HOJE ..........................................11
1.2 A RELIGIOSIDADE RETRADA NOS AUTOS.....................................................17
2. ARIANO SUASSUNA ...........................................................................................22
2.1 O AUTO DA COMPADECIDA: UM RECORTE DO NORDESTE........................26
3. A FALSA RELIGIOSIDADE NO AUTO DA COMPADECIDA .............................42
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................58
REFERÊNCIAS..........................................................................................................59
10
INTRODUÇÃO
O presente trabalho mostra uma análise da falsa religiosidade em O Auto da
Compadecida. Nosso objetivo foi rever alguns aspectos religiosos da época
medieval até os dias de hoje através da obra O Auto da Compadecida de Ariano
Suassuna. Percebemos que Ariano resgata o modelo medieval de Gil Vicente e
atribui em sua obra. Percebemos, pois, que na obra em análise, há mais questões
relacionadas a falsa religiosidade do que a própria religiosidade.
Neste sentido podemos verificar que há, entre os eclesiásticos, o outro lado dessa
suposta religiosidade, um lado recheado de falso testemunho, de mentira, de
ganância, de imoralidade, de simonia, de adultério, entre outros. Tais questões são
postas como máscaras que depois são reveladas, na verdade fingiam seguir os
preceitos bíblicos cristãos. Todavia notamos que não é diferente dos dias de hoje,
ou melhor falando, desde de sempre nunca foi diferente, pois sempre existiu
falsidade dentro da religiosidade, máscaras ocultas para esconder seus erros. Ou
seja, percebemos que o narrador relata explicitamente a hipocrisia existente no meio
do povo religioso.
Para cumprir tais objetivos dividimos o trabalho em três capítulos. No primeiro,
tratamos dos “Autos na Idade Média aos dias de hoje”. Observamos alguns Autos da
época medieval e usamos Gil Vicente com O Auto da Barca do Inferno (1516), Auto
da Alma (1508); o Padre José de Anchieta com O Auto da Visitação Universal (1954)
que contribuíram para uma análise com os Autos da Idade Média.
No segundo Capitulo, “Ariano Suassuna”, mostramos a biografia do autor. Em
seguida abordamos as crenças nordestinas, envolvendo a construção cultural do
Nordeste, para isso, usamos Durval Muniz de Albuquerque Junior em A Invenção do
Nordeste e outras artes (2001), partindo para uma análise das características
nordestina envolvidas no Auto da Compadecida
No terceiro capitulo “A falsa religiosidade em O Auto da Compadecida”, tratamos da
religiosidade na Compadecida que, no caso é a virgem Maria, apresentamos a
falsidade existente no bispo, padre, sacristão, o padeiro e sua esposa, são
personagens que supostamente apresentava ser religiosos. Para adquirirmos tal
11
pensamento usamos Jonas Nogueira da Costa em O tribunal de Manuel: Aspectos
teológicos na obra O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (2013). E com
base nisto analisamos a máscara que existia por trás de cada um.
12
1. AUTOS: DA IDADE MÉDIA AOS DIAS DE HOJE
A Idade Média ocorreu entre os séculos V e XV e também foi conhecida como idade
das trevas, porque a sociedade cultural não progredia, a igreja estava disposta a
fazer manifestações para expressar seu pensamento através da literatura.
Durante a Idade Média surgiu um tipo de teatro que foi posto o nome de popular por
todo seu perfil e por abranger temas que envolvem o contexto popular, tanto na
linguagem quanto nos autores. Pode-se dizer que é de origem francesa e iniciou-se
com os mistérios e milagres 1 ; eram apresentações bíblicas ocorridas em datas
festivas, principalmente no natal e na páscoa. Os personagens das peças
apresentavam as encenações dentro das igrejas, nos templos e, com o passar do
tempo, o teatro passou apresentar um caráter não-religioso e passou adquirir
personalidade profana, pois começaram a ser apresentadas fora dos templos.
SegundoMárciaLimaemTeatroMedieval([s.d], p.3):
O profano é a sátira ao divino. Associa-se em grande parte ao
cômico. Não aparece como forma independente antesdo século
XIII,não se sabe de onde provém, aumenta sua influência quando a
encenação sai da igreja. Nas praças e nas feiras, os jograis-mímicos
profissionais exploram a literatura oral, recitam, cantam, executam
monólogos dramáticose mímicas dialogadas, imitando tipos (o louco,
o bêbado, o tolo), tornando-se assim herdeiros e transmissores da
antiga tradição latina. As companhias desta modalidade teatral
buscavam a contravenção não só nos seustemas, mas também com
a presença de mulheres em seu elenco e com maneiras diferentes
de se apresentar: cantando, dançando e, às vezes, até se despindo.
O profano é outra característica atribuída ao teatro medieval, que apresenta fatos
religiosos representados por pessoas que não seguiam de forma correta os
preceitos bíblicos. O profano seria uma forma de mostrar a realidade que ocorre
dentro da igreja. Muitas dessas peças eram apresentadas nas ruas e nas praças,
um lugar bem frequentado e que chamasse a atenção de todos. Como abordamos
anteriormente, o teatro deu-se início na Idade Média que foidividida em três fases.
As primeiras manifestaçõesteatrais começaram na Plena Idade Média:
11
Estas informações foram retiradas do livro Literatura Portuguesa de MassaudMoises, 2004.
13
Na fala de Lima, ([s.d], p. 1):
Alta Idade Média, Plena Idade Média e Baixa Idade Média.
Asprimeiras manifestações teatrais ocorreram na Plena Idade Média,
seguidas de um grande florescimento na Baixa Idade Média feudal,
rigidamente estratificada, compreende uma aristocracia, formada
pela união da nobreza e do clero, e o ‘Terceiro Estado’, representado
por servos e camponeses livres e, posteriormente, pela burguesia.
A citação acima trata das subdivisões da Idade Média, especifica em que período
ocorreu às primeiras apresentações teatrais. De acordo com Lima ([s.d]. p1) “O
teatro medieval deriva do rito religioso (a missa-cristã), do mesmo modo como, na
Antiguidade, a tragédia grega.” O Teatro medieval começou com representações
religiosas submetidas pela igreja católica e, de acordo com tudo que foi abordado,
podemos citar um dos mais antigos autos, Los Reyes Magos que talvez tenha sido
escrito no século XIII, o Monólogo do Vaqueiro e o Auto da Visitação são
considerados um dos mais conhecidos de Gil Vicente e foram usados para retratar o
nascimento do príncipe D. João III filho de D. Maria, esta encenação ficou marcada
na história do teatro português.
O teatro medieval obteve várias contribuições para que se realizasse com sucesso
através da criatividade atribuída aos atores, o cenário também é um fator necessário
para as peças, então deveria estar com iluminação e sonoplastia, e todos deveriam
ter o conhecimento de todas essas técnicas, pois cada cena apresentava um som
diferente para causar suspense nos telespectadores, o figurino e a maquiagem são
elementos essenciais na atuação2. De acordo com o que foi abordado, a farsa é
outra característica que faz parte dos Autos e sempre estava presente em um
personagem que representava traição, mentira e roubos.
De acordo com Jacinto do Prado Coelho em O Tribunal de Manuel: Aspectos
Teológicos na obra O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (apud COSTA,
2013. p. 36)
2
Estas informações foram retiradas do artigo de Marcia lima o teatro medieval, ([s.d], p. 3)
14
Definição de auto:Termo que no século XVI (nomeadamente na
edição do teatro vicentino) se aplicava a peças de teatro ao gosto
tradicional. Os assuntos podiam ser religiosos ou profanos, sérios ou
cômicos. Os autos, ao mesmo tempo que divertiam, moralizavam
pela sátira de costumes e inculcavam de modo vivo e acessível as
verdades da fé.
A citação acima esclarece de uma forma objetiva a definição do Auto e, não
podendo esquecer-se de Gil Vicente, uma figura muito importante na literatura, cuja
história foi marcada pelos seus Autos, escreveu vários, porém poucos foram
publicados como podemos citar O Auto Pastoril Castelhano, Auto da Fé, Auto
Pastoril Português, Auto de Amadis de Gaula, Farsa de Inês Pereira, Auto da Barca
do Inferno, Autoda Barca do Purgatório, Auto da Barca da Glória, Auto da Alma,
entre outros.Estas peças, geralmente, são as que transmitem o caráter religioso e,
pode-se dizer, que eram apresentadas em festas natalinas.3
De acordo comRosângelaDivina Santos Moraes daSilva(2010, p.91)
É justamente no palco palaciano que emerge o teatro popular de Gil
Vicente com seu humor sarcástico, o qual rompe as esferas públicas
e privadas, pois não se destina a apenas divertir os que governam,
mas a despertar no povo a reflexão crítica através de seus
espetáculos.
Com base na citação expressa acima, o objetivo de Gil Vicente era fazer com que as
pessoas refletissem sobre a mentira e o falso testemunho que existia dentro da
religiosidade, mostrando que não viviam o que pregavam. Podemos ressaltar, a
nosso ver, que o estilo Vicentino influenciou o estilo de José de Anchieta.No Brasil, o
Auto foi bastante usado peloJesuítaAnchietaque, carrega em seus Autos, uma forte
característica medieval,usados,geralmente, em seus trabalhos de catequese.
De acordo com Vanessa Campos Mariano, em o Teatro Anchietano enquanto
Instrumento Pedagógico: analise das peças (apud O’MALLEY, [s.d], p.5)
3
Estas informações foram retiradas do artigo Teatro Português Medieval de Rosângela
Divina Santos Moraes da Silva (2010, p.91).
15
(...) os jesuítas não inventaram o “drama escolar”, mas o cultivaram
num nível especialmente alto por um longo período de tempo, numa
vasta rede de colégios quase ao redor do mundo. Envolveram-se
com o drama, poucos anos depois de abrir o colégio de Messina.
As
características
Jesuíticas
estavam
presentes
no
teatro,
tendo
como
objetivo,conformecitamosanteriormente, a catequese e a instrução. Todas as
escolas tinham o teatro como uma boa referência para a educação. Vale ressaltar
que esse instrumento de ensino começou muito antes de Anchieta elaborar seus
Autos, e dessa forma, começar a catequizar. O maior objetivo dele foi trazer para os
colégiosa melhor forma de ensinar os princípios religiosos.
O Auto da Pregação Universal foi o primeiro Auto escrito por Anchieta, na ocasião
que estava sendo escrito comemorava-se o natal em pleno 1561. O uso do
“Universal” posto no título do Auto significa que, a pregação era dirigida tanto aos
brancos quantos aos índios, relacionando a religião indígena e, por conseguinte, a
união entre o povo nativo e Europeu. Nesse autoobservamos três línguas, o
português,o tupi e o espanhol4. Anchieta teve o objetivo de colocar os índios na peça
para mostrar claramente o propósito de ensinamento, pois os padres eram postos no
Auto para ensinar seus costumes e as religiões para o povo indígena e, dessa
maneira, proporcionar a cultura e, ao mesmo tempo, ensinar a doutrina católica.
Vale ressaltar que Anchieta também colocouanjosedemônios para representar a luta
do bem contra o mal, visto que, essa luta é uma característica dos Autos medievais.
Na história há dois demônios que se chamam Guaixará e Aimbiré e, foram postos
em forma indígena. A história apresenta apenas um anjo e, no início aborda, o
mesmo pecado que Adão cometeu. A presença marcante entre o bem e mal é
constante, os demônios invadem a aldeia, nessa parte podemos estabelecer a
cultura indígena em relação a invasão dos demônios. Observamos abaixo um
pequeno trecho do Auto que, mostra um diálogo entre os demônios, bem comoa
língua usada para escrever esse Auto:
De acordo com José de Anchieta em o Teatro de José de Anchieta, arte e
pedagogia no país colônia (apud PAULO HERNANDES, [s.d], p. 3)
4
Esta informações foram retiradas do artigo O teatro Anchieta no enquanto Instrumento
Pedagógico analise das peças de Vanessa Campos Mariano ([s.d],p. 9)
16
Aimbirê:
Jabáixébosaánga
Serekoárajabaeté
Xe mondyia
Guaixará
Abápa e?
Aimbirê
135 Karaibebéporánga
Xeamotareymbárañe
Guaixará:
Osyiñemoxykory
Xerepiákarupibéne
O abá (zinho), para mim
Tenta-los, seu guardião, o
Obá honrado, ele me
Espanta
Pois quem mesmo?
O belo Karaibebé, meu
Inimigo com efeito
Osyi hoje terá medo
Do meu mau olhado
Com base na obra o Auto da Pregação Universal, o trecho acima expõe uma
pequena fala dos demônios,mostrando, assim, a tradição indígena e também a
presença do mal como já era de costume existir, esse cenário do bem e do mal.
Como exemplo disso temos o objeto de nosso estudo, o escritor Ariano Suassuna,
que escreveu O Auto da Compadecida(1955), o qualenvolve todo esse cenário,
resgatando as características medievais, tais como os padrões religiosos
proporcionados através da bíblia, transmitindo para as pessoas como seria a vida
após a morte e, ao mesmo tempo, mostravam através do teatro a realidade,
apresentando a farsa que existia por trás daquela imagem de santidade.O teatro
atraía a atenção de todos para as histórias da bíblia, abordava assuntos
relacionados à religião, mas com uma mistura de comédia, crueldade e simplicidade.
Segundo Suassuna, (2004, p 140):
[...] Padre Quem é?
17
João Grilo :Você ainda pergunta? Desde que cheguei que comecei a
sentir um cheiroruim danado, essa peste deve ser um diabo.
Demônio:Saindo da sombra, severo, Calem-se todos. Chegou a hora
da verdade.
Severino:Da verdade?
Bispo:Da verdade
Padre:Da verdade?
Demônio:Da verdade, sim.
João Grilo:Então já sei que estou desgraçado, porque comigo era na
mentira.
Padre:Mas o que foi que eu fiz...
Demônio:Silêncio! Chegou a hora do silêncio para vocês e do
comando para mim, e calem-se todos, vem chegando agora quem
pode mais do que eu e do que vocês, deitem-se! Ouçam o que estou
dizendo, senão será pior.
A citação acima trata do início do juízo final em O Auto da Compadecida.
Percebemos aspectos religiosos, retratando o julgamento das almas e, de acordo
com o que foi abordado na citação, quem não praticou boas obras,será lançado no
inferno e, os que praticaram o que era correto perante os preceitos bíblicos,herdarão
o céu. Observamos características da bíblia sagrada, tanto na formação do
julgamento, quanto nas características atribuídas ao demônio. Verificamos quando
João Grilo conheceu o demônio pelo o cheiro, pois a bíblia adverte que o inferno
arde como enxofre.
Segundo a Bíblia em Apocalipse (Cap.19:20):
A Besta e o falso profeta: E a besta foi presa, e com ela o falso
profeta, que diante dela fizera os sinais, com que enganou os que
receberam o sinal da besta, e adoraram a sua imagem. Estes dois
foram lançados vivos no lago de fogo que arde com enxofre.
Esse contexto retrata um pequeno trecho da bíblia que, nos mostra, como é o juízo
final e também como é caracterizado o inferno o qual arde como enxofre.
Suponhamos que, de acordo com o que foi citado acima, o demônio tenha de fato o
cheiro enxofre, devido talvez sua habitação possuir fogo.
Partiremos para uma análiseda religiosidade envolvida nos Autos de Gil Vicente e,
aprofundaremos no objeto de nosso estudo, a qual vamos analisar contextos
bíblicos que, de certa forma, faz uma breve intertextualidade com passagens da
18
bíblia. Verificamos a religiosidade popular, apresentando, assim, características de
alguns personagens que deixa transparecer a cultura do nosso nordeste.
1.1
A religiosidade retratada nos Autos
O cristianismo foi seguido por muitos na época medieval, a religião causava medo
em toda população. A igreja fez com que as pessoas tivessem medo de Deus aqui
na terra e depois da morte e, usou esse termo, como arma para tê-las em seu
comando. A igreja exigia obediência de seus fiéis, os quais tinham que seguir as
regras religiosas, não por amor a Deus, mas por medo de ser castigado. De acordo
com esses fatos, a igreja católica encontrou no teatro uma forma facilitadora de
discernimento sobre a obediência da época e, mesmo as peças teatrais, seguindo
as doutrinas religiosas não perdiam a diversão.
Para Robert Cairns em Teatro Português Medieval(apud Rosângela Divina Santos
Moraes da Silva (2010, p. 89),
a Igreja paganiza-se parcialmente na tentativa de solucionar os
problemas advindos da invasão bárbara. Nesse sentido, muitas
práticas ritualistas, padrões de vida e de costumes são incorporados
ao culto cristão. Dessaforma, podemos inferir que, com a afluência
dos bárbaros e o crescimento episcopal, a Igreja altera
significativamente o culto; materializa a liturgia para tornar Deus mais
acessível aos seus fiéis. A veneração de anjos, santos, relíquias,
imagens e estátuas é uma consequência lógica deste procedimento,
como também o surgimento do teatro religioso.
A citação acima expõe as mudanças que a igreja passou obter, 5nesses aspectos, o
teatro religioso revelou-se como entretenimento para toda população. O teatro
passou adquirir os traços do paganismo, dessa forma as pessoas passaram a
compreender a realidade do que ocorria por trás daquela imagem de santidade e
começaram a enxergar a farsa que existia na religiosidade.
5
Estas informações foram retiradas do artigo Teatro Português Medieval de Rosângela
Divina Santos Moraes da Silva (2010. p.89)
19
Toda essa mudança em relação aos cultos da igreja ocorreu devido o estado
“monárquico mudar sua forma democrática simples para uma aristocrática repleta de
liturgias”.6 O teatro medieval reforça a religiosidade da igreja mostrando a verdade
de acordo com a bíblia. Com a criatividade de persuasão, o teatro comove as
pessoas, causando emoções a todos os ouvintes. Nesse caso, “o espetáculo teatral
não pode ser dissociado do lúdico, com isso torna a forma teatral mais atraente
provocando risos incontroláveis”. 7 Não podendo esquecer que a forma engraçada
tinha o intuito de persuadir, mostrando a realidade que existia na religião, como
exemplo disso podemos citar algumas obras de Gil Vicente que retrata
características bíblicas.
O Auto da Barca do Inferno mostra-nos vários elementos simbólicos, pois revela a
hipocrisia cristã nas vidas das pessoas da época medieval e tambémno próprio Gil
Vicente. Vale ressaltar que no período medieval não só Gil Vicente, mas também o
jesuíta Anchieta e o padre Manuel da Nóbrega que, escreveu O Auto do Diálogo
sobre a Conversão dos Gentios, encontraram nos Autos uma forma de expressar a
mentira presente na vida das pessoas que pregam uma coisa e vivem outra,
certoque, também é uma forma de ironizar.
O cenário do Auto da Barca do Inferno é composto pelos cavaleiros de Cristo, posto
de uma forma simbólica que, no caso, são representados pelos anjos que, trata da
salvação das almas no juízo final. O fato do Juízo final ser atribuído a bíblia, adverte
que aqueles que praticarem o bem, conseguirão a salvação e, os que não
conseguirem, serão lançados no inferno.
No Auto da Alma, também escrito por Gil Vicente, presumimos uma forte
característica pagã, pois apresenta um ponto relacionado ao espiritismo, quando
alma fica vagando com o propósito de alcançar o paraíso. Nesse momento, segundo
as
doutrinas
espíritas,essa
alma
está
passando
por
um
processo
de
arrependimento.
Nesse Auto, a alma passa por vários conflitos, estando ela entre o bem e o mal,
quando o anjo se aproximava a alma se sentia pura e livre de todos os pecados,
7
Estas informações foram retiradas do artigo Teatro Português Medieval de Rosângela
Divina Santos Moraes da Silva (2010, p.90)
20
mas quando o diabo aparecia tentando seduzi-la com os prazeres terrenos, ela
começava a sentir-se fraca e sua jornada tornava-se mais longa.
Caracterizamos também a simbologia quando a alma rende-se e, junto com o anjo,
entra na igreja e conhece todos os santos que habitam nela. Suponhamos que, essa
alma não estivesse morta, estaria ali, o anjo e diabo em uma luta constante por
aquela pessoa, na jornada longa da vida esse ser decide seguir o caminho do mal,
passando, assim, a usufruir dos prazeres terrenos e, com o passar do tempo, a dor e
o arrependimento por tudo que cometera vem à tona e, começa a sentir o peso
pelos seus pecados, passando, assim, tanto sofrimento decide se render a Cristo e ir
à igreja.
Percebemosnessecontexto,características relacionadas ao cristianismo seguido dos
princípios bíblicos. Citamos algumas dessas características atribuídas no Auto da
Compadecida. Ariano resgata os princípios do teatro medieval e, apresenta aspectos
religiosos atribuídos à igreja católica, mostra pessoas na peça que cometeram
pecados e, que necessitavam se arrepender de suas transgressões para que
pudessem herdar o paraíso, coloca-os em um purgatório para decidir seu juízo final.
Juízo Final:
O Diabo
Lá vem a compadecida!
Mulher em tudo se mete!
Maria
meu filho, perdoai esta alma,
tenha dela compaixão!
Não se perdoando esta alma,
faz-se é dar mais gosto ao cão:
por isto absolva ela,
lançai a vossa benção.
Jesus
Pois minha mãe, leve a alma,
leve em sua proteção.
diga às outras que a recebam,
faça, com ela união.
fica feito o seu pedido,
dou a ela a salvação.
(SUASSUNA, 2008, p. 08).
Neste pequeno trecho podemos ter uma base do julgamento realizado para que
pudesse conceder à salvação as pobres almas. Segundo Costa, (2013, p.91) “em
21
relação ao juízo estamosnosreferindoà administração da justiça plena, o que não se
limita apenas à declaração de um juiz, mas a um conhecimento amplo e profundo
das pessoas e do contexto em que vivem e o seu veredicto”.Nesse momento,
percebemos que o juiz é um ser que, é consciente de tudo que fazemos e cabe nos
julgar de acordo com os nossos erros perante a lei. No Auto, observamos a parte do
julgamento, na qualManuel que é Jesus julga as pessoas de acordo com os pecados
que elas cometeram na sua vida terrena.
Queremos lançar um olhar especial sobre o juízo de Manuel no Auto, sentando em
um trono, Manuel diz:“Levantem-se todos, pois vão ser julgados” (SUASSUNA, p.
125). E a partir desse momento que começa o julgamento dos personagens, que
depois da morte se encontram com Jesus. O ato de se levantar para iniciar o
julgamento é uma característica atribuída ao tribunal civil 8 .Esse momento de
julgamento, no Auto da compadecida, nos faz recordar de uma passagem bíblica.
Segundo o Evangelho de Mateus (Cap.25, 31-32):
Quando o Filhodo Homem vier em sua glória, acompanhado de todos
os seus anjos, ele se assentará em seu trono glorioso. Todas as
nações da terra serão reunidas diante dele, e ele separará uns dos
outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos.
A citação acima nos mostra essa passagem retirada da própria bíblia, expressando,
assim, como será o juízo final. No Auto da Compadecida, encontramos semelhanças
na parte do julgamento, Cristo como o juiz, sentado em um trono, o poder e a
autoridade estava em suas mãos. Com base nisso, vale ressaltar que, a obra de
Suassuna, segue a religiosidade popular, como citamos, a imagem de Cristo na
obra, apresentou uma breve intertextualidade com a bíblia, numa passagem bíblica
em relação ao juízo final que, apresentava semelhança no Auto da Compadecida.
Cada personagem na obra representa uma característica popular. Como outro
exemplo, temos Severino que, mantinha um enorme desejo de ver padre Cícero.
Seduzido por esse desejo, pediu para que seu cangaceiro atirasse nele, pois
8
Estas informações foram acatadas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na
obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa (2013, p. 53)
22
acreditava que se encontraria com padre Cícero. “Meu Padrinho PadreCícero” ou
maneira falada pelo povo “Meu padim pade Ciço” (SUASSUNA, p. 106).
Essa devoção do padre Cícero continua na maioria dos nordestinos. Outra figura é o
diabo, através desse meio religioso podemos conhecer várias estórias atribuídas ao
diabo e que ganhou vários nomes comomolambudo, pé-preto, chifrudo, bode sujo
etc9. Em todas a estórias apresenta uma fama de perdedor, pois como se trata de
um Auto relacionado aos tempos medievais,sempre mostrava essa luta do bem
contra o mal.
Segundo Costa (2013, p.51):
O Auto da Compadecida reúne, de maneira exemplar, como
podemos ver, um conjunto importante de crenças religiosas típicas
de nosso povo. É um espelho onde se vê refletido o rosto do ser
humano, dentro de uma realidade espacial, cultural e religiosa muito
específica, transformada em literatura por um dos gênios da
dramaturgia brasileira. Diante do exposto, podemos falar que a obra
funciona como um palco, onde tudo isso nos é apresentado,
convidando a teologia para refletir sobre o que a arte representou
entre o abrir e o fechar de cortinas dessa extraordinária peça de
teatro.
Com base no que foi proposto acima, observamos que de um modo geral, Ariano em
O Auto da Compadecida tem o intuito de preservar a cultura nordestina, a nosso ver,
a obra reflete a realidade do que acontece no nordeste e que, de certa forma, essa
cultura merece ser valorizada pelos os próprios nordestinos.
De acordo com nossa perspectiva, percebemos que Ariano valoriza a nossa cultura
e, agora dando continuidade, partiremos para conhecer a trajetóriade Ariano,
verificando sua vida pessoal o que, por sua vez, reflete na sua carreira profissional.
Vamos abordar como deuinício a sua carreira na literatura.
9
Estas informações foram acatadas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na
obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa (2013, p.
108)
23
2. ARIANO SUASSUNA
Ariano Vilar Suassuna, nasceu em 16 de junho de (1927)10e vivenciou uma época de
reformas políticas e tributáriasna cidade que hoje chamamos de João Pessoa, mas
queatéo ano de 1930 se chamava Nossa Senhora das Neves; é o oitavo filho de
João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna e Rita de Cássia Dantas Villar.
Ariano e sua família passaram os primeiros anos em uma fazenda na Paraíba que
se chamava Acauã. Durante esse período, no ano de 1924, o pai de Ariano teve o
privilégio de ser presidente do Estado da Paraíba e, depois desse período, passou
sua posição para João Pessoa.
Segundo Costa (2013, p. 27):
João Pessoa deu início ás reformas políticas e tributárias, afetando
diretamente produtores e comerciantes de algodão, o que contribuiu
com o processo de enfraquecimento do poder político dos “coronéis”.
Umasériede intrigas políticas teve como desfecho o assassinato de
João Pessoa por um representante dos clãs da oposição sertaneja.
Nesta época, João Pessoa, sucessor do pai de Ariano estabeleceu várias mudanças
e,devidoas intrigas políticas, João Pessoa foi assassinado por um representante dos
clãs da oposição sertaneja.Em9 de outubro de 1930 no Rio de Janeiro,João
Suassuna, pai de Ariano também foi assassinado por um pistoleiro 11 .Depois de
vários acontecimentos,em 1933, Ariano junto com sua família decide se mudar para
Taperoá,uma pequena cidade no sertão da Paraíba aonde permaneceu durante 10
anos, sendo que esse período foi essencial para sua carreira literária,com isso,
Taperoá foi considerada o centro de seu universo artístico12.
Com o passar do tempo, Ariano passa a morar em Recife e começa a estudar em
um colégio americano batista, a qualidade de ensino superava às expectativas de
Ariano, pois abordava assuntos relacionados ao cristianismo. Ariano sentia-se ligado
ao protestantismo devido a sua avó materna, dona Afra quese encontrava muito
doente e contou com a assistência de um médico norte americano e protestante
10
Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na
obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa, (2013, p.26)
11
Idem (2013, p. 27)
12
Idem(2013, p.27)
24
Samuel Butler. Com sua melhora, ela decidiseguir o protestantismo junto com sua
filha, mãe de Ariano.13
Percebemos que Ariano sempre esteve em contato com a religião, não só na estória
de sua vida, mas também em suas obras. Ariano já sonhava desde dos 12 anos ser
um escritor, quando criança arrancava pedaços de livros que lia e colocava na boca,
o que levou ele ser um verdadeiro devorador de livros14.
Ariano possuía desejos por apresentações, eleconsiderava o circo como umas das
melhores festasno sertão nordestino, um fato que ficou marcado nainfância de
Ariano. O palhaço Gregório, do circo Stringhini era considerado um dos melhores
artistas para Ariano e esse artista admirado por nosso autor, foi posto no Auto da
Compadecidacomo palhaço narrador. No Início da peça, o Palhaço (ou Suassuna)
(2014,p.23) diz:
o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe,
mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de
insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse
tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente,
porque acredita que esse povo que sofre tem direito a certas
intimidades.
Percebemos que o palhaço foi posto na obra como o apresentador, analisamos que
o termo popular adquirido pelo palhaço lhe permite intimidades e uma ligação com a
religiosidade popular e a forma simples de como a pessoas serviam a Deus 15 .
Portanto não podemos esquecer que o palhaço era uma figura admirada por
Suassuna na sua infância e, de acordo com o nosso ponto de vista, esse
personagem também foi posto como narrador no Auto da Compadecida por ser uma
lembrança predileta do seu passado. Assim verificamos no Auto da Compadecida
(2004, p. 22,23): “Palhaço: Auto da Compadecida! o julgamento de alguns canalhas,
entre os quais um sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade”.
13
Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na
obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa, (2013, p.
27)
14
Idem( 2013, p. 28)
15
Idem (2013, p. 28)
25
Esse pequeno trecho nos mostra o momento em que o palhaço dá a abertura a
peça.
De acordo com Ariano Suassuna em o Tribunal de Manuel:Aspectos Teológicos na
obra o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (apud VICTOR, 2013, p.28)
Depois de assistir aos espetáculos, eu ficava dias e dias repetindo
exatamente tudo o que os palhaços haviam dito, as brincadeiras, as
graças. Minhamãe eminhas irmãs se cansavam da mesma história –
uma delas chorou depois de tanto eu repetir as brincadeiras de
Gregório”, não esquece Ariano.
Além do circo, o teatro marcou os momentos deinfância de Suassuna, como o teatro
dos mamulengos que é conhecido em outros lugares do nosso Brasil como
marionetes.Devido a essas experiências atribuídas na infância como recordação,
escreve em 1959 uma peça teatral que se chama A Pena e a Lei. No primeiro
momento dessa peça os personagens se apresentam iguais aos mamulengos.
De acordo com esses momentos vividos por Ariano, podemos perceber seu talento
que gerou um marco na literatura.No ano de 1946, o autor decidiu entrar na
faculdade de Direito na cidade de Recife e neste mesmo ano, Ariano teve o privilégio
de organizar o teatro de estudantes de Pernambuco (TEP) o qual teve Hermilo
Borba Filho como diretor16. Forma-se em direito e logo após decide abandonar essa
profissão e seguir o seu lado artístico.
Entretanto, notamos que nosso autor teve uma grande carreira de vida e não
podendo esquecer que, logo após abandonar a profissão de direito, ele decidiu se
casar com Zélia deAndrade Lima. O romance entre Zélia e Ariano vem de muitos
anos como era comum em famílias tradicionais, devido à influência de sua esposa
ele optou pelo catolicismo. De acordo com o nosso ponto de vista, Ariano é muito
envolvido
com
religiões,
pois
conheceu
protestantismo
e
logo
após
o
catolicismo,percebemos que devido esse envolvimento com a religiosidade, o
escritor adquiriu conhecimentos para expor em suas obras.
16
Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos Teológicos na
obra o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa, (2013,
p.28)
26
Dando continuidade na carreira do escritor Ariano, sua primeira peça teatral foiUma
Mulher Vestida de Sol, foi sua primeira obra de teatro e, em 1994 teve o privilégio de
ser apresentada pela rede globo.Ariano tinha o desejo de valorizar a nossa cultura
nordestina e, dessa forma, junto com outras pessoas que eram envolvidas com o
lado artístico criaram o MovimentoArmorial 17 . Esse movimento focava na arte
brasileira erudita e na cultura popular. O evento para o lançamento desse
movimento aconteceu em Recife, foi apresentada uma orquestra
18
Armorial de
Câmera com o título:Três Séculos de Música Nordestina: do Barroco ao Armorial.
Esse evento apresentou exposições de gravuras, pinturas e esculturas na igreja de
São Pedro dos Clérigos também em Recife.
De acordo com Suassuna (apud COSTA, 2013, p. 29)
Descobri que o nome ‘Armorial’servia, ainda, para qualificar os
“cantares” do Romanceiro, os toques da viola e rabeca dos
Cantadores – toques ásperos, arcaicos,acelerados como gumes de
faca-de-ponta, lembrando o clavicórdio e a viola-de-arco da nossa
Música Barroca do século XVIII.
O Objetivo do Movimento Armorial é divulgar a cultura nordestina, valorizar a cultura
não apenas pelas pessoas nordestinas, mas também pelo meio artístico. Como
prova da existência dessa cultura, podemos vê-la nos contos populares, nos folhetos
e nas xilogravuras. Com isso foi criado uma arte brasileira erudita tendo como base
a nossa cultura e como prioridade o espaço nordestino, sertanejo e rural. A
armorialidade está composta em três elementos: a literatura popular do nordeste
como modelos poético; os modos de recriação da literatura oral e as relações entre
as artes19.
Depois desse movimento, Ariano teve o privilégio de ser eleito em 09 de agosto de
1990 para Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira número trinta e dois,
17
Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na
obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa, (2013, p.29)
18
Idem(2013, p. 29)
19
Idem (2013, p.30)
27
também foi eleito para academia pernambucana de letras, posto na cadeira número
oito.20
Ariano escreveu várias obras, para conhecermos o talento do nosso autor,podemos
citar algumas obras que foram escritas: 21Uma Mulher Vestida de Sol (1947); O
Desertor de Princesa (Cantam as harpas de Sião) (1948); Os Homens de Barro
(1949); Auto de João da Cruz (1950); Torturas de um Coração ou Boca Fechada
não entra Mosquito (1951); O Arco Desolado (1952); O Castigo da Soberba
(1953); O Rico Avarento (1954); Auto da Compadecida (1955); História de
Amor de Fernando e Isaura (1956); O Casamento Suspeitoso e O santo e a
Porca (1957); O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna (1958); A Pena e a Lei
(1959);
Farsa da Boa Preguiça (1960);
A Caseira e a Catarina
(1962); O
Seguro(1964); O Sedutor do Sertão (1966); Romance d‟A Pedra do Reino e o
Príncipe do Sangue do vai-e-volta
(1971);
História
d‟O
rei
Degolado
nas
Caatingas do sertão: Ao Sol da Onça Caetana (1976); História d‟O Rei
Degolado nas Caatingas do Sertão:As Infâncias de Quaderna (1977).
Ariano teve uma grande carreira de vida como pessoa e como escritor.Observamos
que suas experiências vividas na infância até os dias de hoje foram eficazes diante
do que o autor se tornou. Mostramos acima várias obras de Ariano e, muitas dessas
obras refletem suas experiências de vida, como exemplo disso, iremos tratar do
objeto de nosso estudo o qual vamos analisar as crenças nordestinas na obra o Auto
da Compadecida.
2.1O Auto da Compadecida: um recorte do Nordeste
Na década de 1910, o nordeste não tinha reconhecimento, as pessoas tinham uma
visão de que o nordeste era um lugar de pessoas simples e de miséria.Todavia,
percebemos que o Nordeste foi alvo de muito preconceito que surgiu junto com a
20
Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na
obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa.
21
Estas informações foram retiradas das do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos
na obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa.
28
visão estereotipada dos intelectuais do Sul e Sudeste, entre eles Oswald de
Andradeque preferiu cantar a cidade. Portanto, podemos salientar que o Sul e o
Sudeste, por sua vez,tem sua população formada por pessoas branca e moderna,
por receber influência de imigrantes estrangeiros e possuir uma temperatura
climática favorecida ao seu rápido desenvolvimento e progresso,22 enquanto que o
nordeste traz consigo a imagem de uma região precária, na qual o clima é
desfavorecido, a população é sofrida e devastada pela miséria, pela fome, pela seca
e formada de mestiços.
Segundo Durval Muniz de Albuquerque Jr.(2001, p. 62)
Seja na imprensa do Sul, seja nos trabalhos dos intelectuais que
adotam os paradigmas naturalistas, seja no próprio discurso da seca,
o Norte aparece como uma área inferior do país... A certeza de que o
rápido desenvolvimento do Sul, notadamente São Paulo, se
explicava por ser um Estado de clima temperado e raça branca,
levava a que não tivesse dúvidas do destino desta área, puxar o trem
descarrilhado de uma nação tropical mestiça. O Norte ficaria
naturalmente para trás.
Diante da citação exposta acima, inferimos claramente o quanto o nordeste foi vítima
de uma desvalorização, diga-se de passagem dolosa, pois as pessoas se limitavam
a observar as condições naturais, limitavam-se a examinar o clima que, talvez, fosse
desfavorável ao desenvolvimento e progresso.
Embora o nordeste vivenciasse uma situação climática adversa, essa adversidade
não foi empecilho para o nordeste criar sua própria identidade, pelo contrário,
percebemos que sua construção cultural surge a partir desses infortúnios. Ou seja,
mesmo diante de tantos problemas sociais, o Nordeste buscou sua própria
característica, seu próprio estilo, construiu sua autenticidade.
Segundo, Maria Cristina Jorge de Carvalho em Identidades Culturais e Cultura
Nordestina (2008, p.6):
22
Estas informações foram retiradas do artigo Identidades Culturais e Cultura Nordestina de
Giselle, Marcelle Trindade Bezerra, Maria Cristina Jorge de Carvalho e Rosângela Soares,
(2008, p. 6).
29
A identidade enquanto uma construção simbólica faz-se presente nas
músicas de forró em relação à região, com seus traços culturais
característicos-costumes, crenças e valores morais - que interage
com outros referentes indenitários, como a natureza e seus
componentes especificamente regionais: o solo, o sol, os animais, os
pássaros, o clima quente.
Nessa perspectiva, verificamos que através da música podemos identificar traços
característicos do nordestino, entre eles, as crenças, os costumes e os valores
morais, sendo assim, uma espécie de porta-voz na qual, descreve toda paisagem
natural, entre outros, o solo, o clima, os animais, os pássaros, deixando claro a
referência da região nordestina.
Dando continuidade à construção cultural do nordeste, não podemos esquecer de
Luiz Gonzaga o qual foi contribuinte singular para a divulgação da cultura nordestina
em outras regiões do país. Podemos encontrar nas músicas de Gonzaga,
adescrição climática da paisagem nordestina, as adversidades enfrentadas pelos
nordestinos, bem como seu êxodo.
Assim podemos ver na música de Luiz Gonzaga (1947)
Quando olhei a terra ardendo. Qual a fogueira de São João. Eu
perguntei a Deus do céu, ai. Por que tamanha judiação. Eu perguntei
a Deus do céu, ai. Por que tamanha judiação. Que braseiro, que
fornalha. Nem um pé de prantação. Por falta d'água perdi meu gado.
Morreu de sede meu alazão. Por farta d'água perdi meu gado.
Morreu de sede meu alazão. Inté mesmo a asa branca. Bateu asas
do sertão. Então eu disse, adeus Rosinha.Guarda contigo meu
coração.
De acordo com a citação acima, a nosso ver, podemos observar a precariedade que
os nordestinosenfrentavam em período de seca, que por sua vez, levava muitos a
migrarempara região Sul e Sudeste, deixando de lado sua família e sua terra em
busca de melhores condições de vida, assimsujeitavam-se a trabalhos inferiorizados
e a mão de obra, diga-se de passagem escrava, imaginamos como é difícil deixar
sua cultura para se adaptar a uma outra cultura diferente.
Dando continuidade podemos verificar que o nordeste, segundo Albuquerque Jrem
Dos falares do Brasil ao falar do Nordeste (apud COSTA, 2011, p.4):
30
torna-se tema privilegiado por causa dos seus problemas sociais e
por ser uma área subdesenvolvida, mas é a área mais nacional do
ponto de vista cultural. A região sudeste do país teve muitas
influências de outras culturas, principalmente depois do surgimento
das indústrias, que ocasionou a vinda dos imigrantes. No Nordeste,
houve uma construção da cultura nordestina com os próprios
elementos regionais.
Caracterizamos que a construção cultural do Nordeste é um momento de
transformação da região, é o momento no qual esta região busca sua identidade,
onde as adversidades, as crisessão temáticas discutidas no sul e sudeste. Todavia,
o Nordeste não deve ser lembrado apenas pelas crises do passado, embora que
esse passado também faça parte de sua construção cultural. Portanto depois de
tantos momentos difíceis, a região nordeste consegue ser marcada pela sua
cultura.Porém,vale salientar para que a transformação da região acontecesse,
muitos nordestinos, entre eles Gilberto Freyre,intelectuais, políticos e artistas da
região se organizaram e, de diversas formas, nas artes, nas produções literárias,
jornalísticas, entre outras buscaram uma maneira de mostrar quem são e para que
veio23, com isso surge o que denominamos cultura nordestina.
Como afirma Albuquerque Junior em Construção da Imagem do Nordestino /
Sertanejo na Constituição da Identidade (apud VASCONCELOS, 2006, p.4):
Uma nova consciência do espaço surge, principalmente, entre
intelectuais que se sentem cada vez mais distantes do centro de
decisão, do poder, seja no campo político, seja no da cultura e da
economia. Uma distância tanto geográfica, quanto em termos de
capacidade de intervenção.
Diante da citação acima, a nosso ver, percebemos que o poder, as decisões
estavam centradas na região Sul/Sudeste, com isso os intelectuais nordestinos da
época estavam se sentindo excluídos dentro de seu próprio país, estavam cada vez
mais distante de participar diretamente das decisões que poderia ser tanto no
23
Essas informações foram retiradas do artigo A Construção da Imagem do Nordeste /
Sertanejo na Constituição da Identidade Nacional de Claudia Pereira Vasconcelos (2006,
p.4).
31
campopolítico, culturalou econômico. A partirdeste sentimento de exclusão, nasce
uma reflexão, que por sua vez, gera vários discursos com temas que abordam os
costumes,as manifestações culturais e as práticas sociais. Portanto, a partir daí,
surge a segregação do Brasil em dois Brasis, um era atrasado, miserável, rural e
ficava esquecido na parte de cima que era a região Norte/ Nordeste e o outro era
moderno, rico, industrializadoque era parte de baixo a região Sul/Sudeste.
Dando continuidade à construção cultural do nordeste, não podemos esquecer de
Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido como Patativa do Assaré, pois ele,
entre outros, os quais citamos anteriormente, através de seus poemas, contribuiu
para a construção cultural do nordeste, mostrando a segregação do Brasil em dois
brasis. Ressaltamos que um era tido como o Brasil ideal o qual ficava na parte de
baixo, que por sua vez, era prospero, e o outro era tido como o Brasil real o qual
ficava na parte de cima, que por sua vez, era atrasado,24bem como denunciando as
diferenças sociais que existiam entre eles.
De acordo com Patativa do Assaré(1978, p. 271-272.) em Cante lá que eu canto cá,
Meu compadre Zé Fulo,
Meu amigo e companhêro,
Faz quage um ano que eu tou
Neste Rio de Janêro;
Eu saí do Cariri
Maginando que isto aqui
Era uma terra de sorte,
Mas fique sabendo tu
Que a misera aqui no Su
É esta mesma do Norte.
Tudo o que procuro acho.
Eu pude vê neste crima,
Que tem o Brasi de Baxo
E tem o Brasi de Cima.
Brasi de baxo, coitado!
É um pobre abandonado;
O de Cima tem cartaz,
Um do ôtro é bem deferente:
Brasi de Cima é pra frente,
Brasi de Baxo é pra trás.
24
Essas informações foram retiradas do artigo A Construção da Imagem do Nordeste /
Sertanejo na Constituição da Identidade Nacional de Claudia Pereira Vasconcelos (2006,
p.3).
32
Aqui no Brasil de Cima,
Não há dô nem indigença,
Reina o mais soavecrima
De riqueza e de opulença;
Só se fala de progresso,
Riqueza e novo processo
De grandeza e produção.
Porém, no Brasi de Baxo
Sofre a feme e sofre o macho
A mais dura privação.[...]
Podemos observar no poema acima, a separação e as diferenças sociais que há
entre a região Sul/Sudeste e aregião Norte/Nordeste, aquela marcada pelo
progresso, pela riqueza, pela modernidade e pelo clima favorável,esta caracterizada
pelo atraso, pela pobreza, pela dor, pelo clima precário e desfavorável. Mas dando
seguimento à construção cultural nordestina não podemos deixar de citar Ariano
Suassuna, que por sua vez, contribui para construção cultural do nordeste.
De acordo com Albuquerque Junior(2011, p.99) em A Invenção do Nordeste e outras
artes:
Na sua luta contra a história, Ariano constrói o Nordeste como o reino
dos mitos, do domínio do atemporal, do sagrado, da indiferenciação
entre a natureza e sociedade. Lançando mão do gênero epopeico,
das estruturas narrativas míticas e, principalmente, das estruturas
narrativas e do realismo mágico da literatura de cordel, Ariano
inventa seu Nordeste, reino embandeirado, épico e sagrado. Um
espaço sertanejo, inventado a partir da vivência do autor na cidade,
do agenciamento de lembranças e reminiscências de infância e de
uma grande quantidade de matérias de expressão populares. Um
espaço ainda não desencantando, não dessacralizado, um reino dos
mistérios, onde o maravilhoso se mistura à mais cruel realidade e lhe
dá sentido.
Ariano retrata o Nordeste a partir de seus momentos vivenciados na infância até a
fase adulta, essas experiências serviram para Ariano idealizar o Nordeste como um
mundo versificado de cultura e tradição,usando, assim as formas narrativas do
cordel como forma de representar esta região do país.
Segundo Albuquerque Júnior, podemos dizer que Ariano encontrou nas suas obras
a forma adequada de representar um espaço que não se limitava em expor o real e
o imaginário; entre os personagens que mostrava sentimentalismo e os que não
amavam; entre o que seguia o bem e o pagão; entre o que apresentava momentos
33
trágicos e o comediante; entre aquele que nos mostrava loucura e o que
representava a razão25. Portando, a partir daí, podemos inferir que Ariano constrói o
seu próprio nordeste, um nordeste ornamentado de questões típicas do contexto
social nordestino, das quais fazem parte a seca, a fome, a resistência do sertanejo,
entre outras.
Portanto dando continuidade, podemos observar no Auto da Compadecida que o
personagem Chicó apresenta alguns desses predicativos que foram expostos
anteriormente. Percebemos que na obra ele é caracterizado comoum homem frouxo
e cômico. Frouxe, pois estava sempre com medo e cômico porque as suas
respostas possuíam um tom de humor, tornando assim, o desenrolar da história
engraçada.
Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p. 80):
[...] João Grilo:
E Então? Reaja, Chicó, seja homem!
Chicó, eu não. Reaja você!
João Grilo: Você não é homem não, Chico?
Chicó: Eu sou homem, mas sou frouxo
De acordo com esse pequeno trecho, analisamos que Chico não tinha coragem e se
considerava frouxo diante de algumas situações, ao contrário de João Grilo, pois era
esperto, não o consideramos corajoso, mas, sim astuto, haja vista que a “astucia é a
coragem do pobre”26.
Segundo Suassuna, em O Auto da Compadecida, a cultura e a inovação
tecnológica(apud SOUZA, p.220):
O João Grilo é um personagem arquetípico. Ele é um personagem
que partiu da cultura brasileira em geral, e nordestina em particular,
não é. Ele é um homem, que aqui existe um ditado que diz: astúcia é
a coragem do pobre. Ele não pode ser corajoso,não. Ele tem que ser
astuto.
25
Estas informações foram retiradas do livro A Invenção do Nordeste de Durval Muniz de
Albuquerque Jr (2011, p.99)
26
Estas informações foram retiradas do artigo O auto da Compadecida, A Cultura e a
Inovação Tecnológica (2003, p. 221)de Maria Isabel Amphilo Rodrigues de Souza
34
Grilo possui características do Nordeste brasileiro, várias vezes era chamado de
amarelo safado porque tinha suas ideias e com elas lutavam todos os dias para
conseguir o que comer, o pobre tinha que ser esperto para sobreviver a fome do
sertão, consideramos que só os fortes resistiam a seca do sertão. Diante do que foi
abordado defendemos a figura de João, pois ele mentia para sobreviver, para
conseguir seu alimento diário. Na obra verificamos que o animal era humanizado e a
animalização do ser humano. Isso fica evidente no momento em que Chicó e João
Grilo observam que a cachorra come bife passado na manteiga, o mesmo que os
patrões comiam, enquanto os dois só comiam as sobras.
Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p.39)
[...]João Grilo:Ó homem sem vergonha! Você inda pergunta? Está
esquecido de que ela o deixou? Está esquecido da exploração que
eles fazem conosco naquela padaria do inferno? Pensam que são o
cão só porque enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a
raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me acabando
em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela
mandava para o cachorro. Até carne passada na manteiga tinha.
Para mim, nada, João Grilo que se danasse. Um dia eu me vingo.
Observamos que João Grilo não aceitava aquela situação, sentia-se incomodado
com a realidade do Nordeste, pois quando surgia um emprego é para exploração.
Suassuna expõe esses problemas como forma de tratar de assuntos tão reais que
são vivenciados no Nordeste, a exploração da mão de obra, os maus tratos com os
funcionários que não tinham direito a nada.
Dando continuidade, percebemos que Ariano idealizava popularizar o teatro,
seguindo esse objetivo adotou uma linguagem regional, que deixasse visível os
aspectos culturais. O próprio Ariano nos mostra um Nordeste marcado pelo sertão
das caatingas, a cidade apresentava um cenário simples com ruas empoeiradas e
que tinha a igreja como principal destaque onde as principais autoridades são o
padre, o delegado e o juiz, esses são personagens que mostram ter um absoluto
poder no sertão.
Dando continuidade, o Nordeste tornou-se conhecido devido os fatores que ocorriam
na própria região, e o nordestino identificado pelo seu sotaque. Portanto, podemos
35
ressaltar que o sotaque também faz parte dessa identidade cultural do Nordeste,
pois todo nordestino é caracterizado pelo seu modo próprio de entoar as palavras. A
partir daí podemos citar a literatura de cordel,pois é uma das peculiaridades da
cultura nordestina e nos mostra perfeitamente o sotaque nordestino em diferentes
relações típicas da região.
De acordo com José de Ribamar Lopes emA Literatura de Cordel no Âmbito da
Educação Transversal(apud SANTANA, 2009,p.12):
Criações artísticas de ordem popular, pelo imprevisto da imaginação,
pela delicadeza da sensibilidade, pelo poder de observação, pela
força de expressão, pela intuição poética, pelo arrojo das imagens,
pelo sentido de crítica, de protesto e de luta social que muitas vezes
apresentam, estão a exigir a atenção dos estudiosos.
Podemos perceber diante da citação acima que, o cordelé uma manifestação
artística que, por meio de poesia, foi um instrumento fundamental para mostrar
aquelas pessoas que não sabiam ler, o sofrimento de um povo, os sentimentos, as
frustrações, as adversidades, os medos, bem como as inquietações do tempo.
Dando seguimento, o cordel no Auto da Compadecida é retratado através dos
personagens Chicó e João Grilo, quando ambos vão se comunicar mostram traços
da literatura cordel27. Podemos ver também que, no o Auto da Compadecida, em
meio a tantos problemas e corrupções existentes no desenrolar da estória,Ariano
expõe esses contos em forma de humor. No caso do livro em análise,na fala de
Carolina Soares Hissa em O Auto da Compadecida: Uma análise do personagem
Chicó e dos níveis de conhecimento([s.d], p.11):
Suassuna se utiliza de situações humorísticas para falar de assuntos
como a miséria humana, a mesquinharia das pessoas, o racismo e a
luta pelo poder. São Encontradas informações complementares
acerca dos costumes regionais, o caráter religioso e católico dos
cristãos que realçam e delimitam o cenário e a sociedade retratada
pelo autor.
27
Estas informações foram retiradas do artigo Dos falares do Brasil ao falar do Nordeste de
Adriana Freitas da Silva Costa, (2011, p.6)
36
Percebemos que Suassuna, na Obra O Auto da Compadecida, traz assuntos reais
que fazem parte do cotidiano das pessoas do nordeste e os colocam de uma forma
engraçada para chamar atenção do leitor para a realidade do que acontece nesta
região. A obra teveo nordeste como principal cenáriopara realização dos fatos,
retratava os personagens com sotaque nordestino. Vale ressaltar que Ariano não
define uma regiãoe nem as variações linguísticas, suponhamos que pelo fato de ter
sido realizada no Nordeste, o sotaque, evidentemente venha ser do povo nordestino,
e de certa forma, Suassuna expressa uma linguagem popular.
Assim podemos observar no Auto da Compadecida (2004, p.155):
[...]João Grilo: O senhor me desculpe, mas a língua fica balançando
na boca que chega a me dar uma agonia. Eu posso ouvir um safado
desses dizendo que prestava e ficar calado?
Manuel: Deixe a acusação para o colega dele.
Sacristão: Colega?
Manuel: É brincadeira minha, mas, depois que João chamou minha
atenção, notei que o diabo tem mesmo um jeito assim de sacristão.
Encourado: Protesto contra essas brincadeiras. Isso aqui é um lugar
sério
Manuel: Calma, rapaz, você não está no inferno. Lá, sim, é um lugar
sério. Aqui pode-se brincar. Faça a acusação do sacristão.
O trecho acima nos mostra uma parte do julgamento, onde João Grilo tira
brincadeira com diabo. Neste dialogo percebemos que O Auto da Compadecida
possui uma linguagem simples e acessível para que as pessoas venham
compreender da melhor forma. As situações ocorridas na obra se passam na cidade
de Taperoá, no interior da Paraíba, tratava-se de um lugar que não possuía um
elevado grau de ensino e mantém a sustentação das relações entre as classes
sociais relacionadas no coronelismo, no poder e na religiosidade da Igreja Católica28
Com base no que foi proposto acima, inferimos que na obra O Auto da
Compadecida ospersonagenscomoo padeiro e sua esposa, o padre e o bispo
apresentam uma suposta personalidade de pessoas tementes a Deus e, essas
características vem desde do coronel até o cangaceiro, não podendo esquecer da
presença marcante de Chicó, pois através dele, percebemos o conhecimento
28
Estas informações foram retiradas do artigo O Auto da Compadecida: Uma análise do
personagem Chicó e dos níveis de conhecimento de Carolina Soares Hissa([s.d],p. 52)
37
popular nos momentos em que Chicó tenta explicar os seus contos, inúmeras vezes
quando vai contar uma mentira, ele responde: “ Não sei. Só sei que foi assim”.
Assim podemos no Auto da Compadecida(2004, p.26, 27):
Chicó
Bom, eu digo assim porque sei comoesse povo é
Cheio de coisas, mas não é nada de mais.
Eu mesmo já tive um cavalo bento.
João Grilo:Que é isso, Chico? (Passa o dedo na garganta.) Já
Estou ficando por aqui com suas histórias. É sempre
umacoisa toda esquisita. Quando se pede uma
explicação, vem sempre com “não sei, só sei que foi
assim”.
Chicó:Mas se eu tive mesmo o cavalo, meu filho, o que é
que eu vou fazer? Vou mentir, dizer que não tive?
João Grilo:Vocêvem com uma história dessas e depois se
queixa porque o povo diz que você é sem confiança.
Chicó:Eu, sem confiança? Antônio Martinho está para dar
as provas do que eu digo.
João Grilo
Antônio Martinho? Faz três anos que ele morreu.
Chicó: Mas era vivo quando eu tive o bicho
João Grilo:Quando você teve o bicho? E foi você quem pariu o
cavalo, Chico?
Chicó: Eu não. Mas do jeito que as coisas vão, não me
admiro mais de nada. No mês passado uma mulher
teveum, na serra do Araripe, para os lados do Ceará.
Na história aparece um momento em que os dois amigos, Chicó e João Grilo vão
tentar convencer o padre a benzer o cachorro da mulher do padeiro. João Grilo
sempre tinha um jeito de convencer as pessoas e, com suas invenções, conseguiu
enganar o padre.
Assim podemos ver no Auto da Compadecida(2004, p.26):
João Grilo – Não vai benzer? Por quê? Que é que um cachorro tem
de mais?
Chicó – Bom, eu digo assim porque sei como esse povo é cheio de
coisas, mas não é nada de mais. Eu mesmo já tive um cavalo bento.
João Grilo – Que é isso Chicó? (passa o dedo na garganta) Já estou
ficando por aqui com suas histórias. É sempre uma coisa toda
esquisita. Quando se pede uma explicação, vem sempre com “não
sei, só sei que foi assim”.
38
Neste momento, ambos estavam crendo na possibilidade do padre atender ao
pedido da dona do cachorro. Embora parecesse estranho, mas, de certa forma não
deixavade existir uma crença por parte da dona do cachorro, pois estava crendo que
depois que o padre benzesse seu cachorro, ele sobreviveria.
A dona do cachorro que no caso é a esposa do padeiro,apresenta-se na história
como uma mulher oferecida, pois trai o seu marido saindo com vários homens e, a
nosso ver podemos perceber que todos sabiam de seu adultério até mesmo o padre,
mas não tomava nenhuma providencia, pois a mulher colaborava com a igreja,
percebemos que padre é posto como interesseiro por isso não tomava nenhuma
atitude contra ela.
Não podendo esquecer-se do personagem Severino que, trata-se de um cangaceiro,
que mata para roubar, pois devido ter sido desprezado pela as pessoas da cidade,
decide se vingar, Severino(SUASSUNA, 2004, p.111) diz que “vergonha é uma
mulher casada na igreja se oferecer desse jeito. Aliás já tinha ouvido falar que a
senhora enganava seu marido com todo mundo. “Severino depois de ter ido à casa
do padeiro aparece na igreja com intuito de matar todos. A partir daí, João
Grilocoloca em pratica sua astucia e, juntamente com Chicó, decidem amarrar uma
bexiga com sangue na barriga e aproveitar a oportunidade para mostrar que tinha
uma gaita milagrosa, abençoada pelo padre Cícero. Inferimos nesse contexto uma
realidade vista em nossos dias atuais, onde muitas pessoas se aproveitam da fé
para obterem lucros, como prova disso temos a citação abaixo que descreve como
João Grilo usou o termo da gaita abençoado pelo padre Cícero,(SUASSUNA, 2004,
p.123 e 124):
João Grilo: Agora vou dar uma punhalada na barriga de Chico.
Chicó: na minha, não
João Grilo: Deixe de moleza. Depois eu toco na gaita e você fica vivo
de novo! (Murmurando, a Chico.) A bexiga, a bexiga!
[...] Chicó: Então vamos fazer o seguinte: você leva a punhalada e
quem toca na gaita sou eu.
João Grilo: Homem, sabe do que mais? Vamos deixar de conversa.
Tome lá! Morra, desgraçado!
[...] João Grilo: está vendo o sangue?
Severino: Estou. Vi você dar a facada, disso nunca duvidei. Agora,
quero ver você curar o homem
39
João Grilo: é já, começa a tocar na gaita e Chico começa a se mover
no ritmo da musica, primeiro uma mão depois as duas, os braços, até
que se levanta como se estivesse com dança de São Guido.
Quando Chicó retorna, descreve o céu, relatando que viu Nossa Senhora e Padre
Cícero. Severino fica perplexo quando Chicó relata o que Padre Cícero falou (2004,
p.125):
Chico: Disse: “essa é gaitinha que eu abençoei antes de morrer.
Vocês devem dá-la a Severino, que precisa dela mais do que vocês.
Severino: Ah meu Deus, só podia ser Meu Padrinho Padre Cícero
mesmo. João, me dê essa gaitinha
Notamos que Chicó e João Grilo aproveitaram da crença de Severino para enganálo. Percebemos que apesar de Severino ser um homem perverso, mantinha a sua
crença no padre Cícero.Podemos ressaltarque é de costume do povo nordestino
possuir essa crença. Como falamos de crenças no Auto da Compadecida,
analisamos que elas são importantes para construção cultural do Nordeste,
podemos ressaltar os romeiros que idolatram a estátua do padre Cícero em juazeiro
do Norte e é de costume de muitas cidades nordestinas possuir essa crença.
Segundo Daniel Walkerem Fé e Identidade sacra: O espaço sagrado de Juazeiro do
Norte/Ce (apud Cláudio PEREIRA, [s.n], p. 41):
O lançamento da pedra fundamental de uma capela em honra de
Nossa Senhora das Dores, em 15 de setembro de 1827, no local
denominado Fazenda Tabuleiro Grande (município do Crato), de
propriedade do brigadeiro Leandro Bezerra Monteiro, marca o
início da história do lugar que hoje é a cidade de Juazeiro do
Norte (...) Conta-se que três frondosos juazeiros existentes em
frente à capela, a margem da antiga estrada Missão Velha –
Crato - passaram a ser pousada obrigatória de viajantes e
tropeiros, que viviam em andanças pelos sertões. Com o tempo,
começaram a surgir às primeiras moradias e pontos de negócios,
tendo início o povoado.
De acordo com que foi proposto acima, podemos ver como se formou Juazeiro do
Norte, cidade que fica localizada no interior do Ceará e que ficou conhecida como
cidade santa, isso devido a sua história, bem como as peregrinações que os
40
romeiros fazem todo ano, os quais, por sua vez, sobem em uma colina para verem a
estátua de padre Cícero e rezarem aospés dela.
Salientamos que padre Cícero é um personagem singular na história de Juazeiro do
Norte e que sua formação deve-se a ele, pois quando ele fixou morada em Juazeiro,
a cidade era um aglomerado de pessoas, só havia duas ruas, a partir daí ele inicia
um trabalho evangelístico e moralizador, combatendo a bebedeira, a prostituição,
entre outros problemas29.
É importante ressaltar que, talvez padre Cícero tenha sido considerado um exemplo
no catolicismo popular. Embora ele ainda não tenha sido canonizado pela cúpula da
igreja católica, já é considerado santo por muitos estados brasileiros, principalmente
no Nordeste. Ou seja, embora padre Cicero ainda esteja em processo de
canonização, isso não muda a fé e a crença do povo nordestino que o tem como
santoe30representante Divino, que vivenciou os períodos de seca e, dessa forma,
agiu com solidariedade com o povo do Nordeste. Portanto verificamos que essa
crença no Padre Cícero está presente no objeto de nosso estudo, O Auto da
Compadecida, no qual muitas pessoas na obra mantêm essa devoção.
Dando seguimento à nossa análise, percebemos também a presença do
conhecimento popular nos momentos em que Chicó relata seus contos, ele quase
sempre se utiliza de assuntos relacionados ao populare envolve o contexto religioso.
Mas dando continuidade as crenças, podemos observar outra passagem do livro que
retrata o ato de crer, no trecho o qual Chicó(SUASSUNA, 1993, p.30) “avisa que
hora de se chamar padre é a hora da morte”.
De acordo como que abordamos anteriormente, a religiosidade retratada no Auto da
Compadecida, envolve todo contexto social, pois todos acreditam que só terão uma
morte sossegada se tiverem, o padre ou, qualquer outro religioso,na frente como
superior.
Dando continuidade na construção cultural do Nordeste,podemos verificar que o
lado imaginário de João Grilo, bem como os contos e provérbios de Chico, é um
reflexo do contexto social que eles vivem, pois para se defenderem da fome, da
29
Estas Informações foram acatadas do artigo Fé e Identidade sacra: O espaço sagrado de
Juazeiro do Norte/Ce de Cláudio Smalley Soares Pereira (2009, p.42)
30
Idem(2009, p. 43)
41
seca, das situações precárias daquela região, eles inventavam histórias recheadas
de astucia. Podemos ver também que esse lado imaginário e esses contos e
provérbios fazem parte da literatura de cordel. Com base no lado imaginário de João
Grilo apontaremos uma de suas histórias:
Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004,p.93):
[...] Mulher: Um gato?
João Grilo: Um gato.
Mulher: E é bonito?
João Grilo: Uma beleza.
Mulher: Ai, João, traga para eu ver! Chega a me dar uma agonia.
Traga, João, já estou gostando do bichinho.
Gente, não, é povo que não tolero, mas bicho dá
Gosto.
João Grilo: Pois então vou buscá-lo.
Mulher: Espere. Sabe do que mais, João? Não vá buscar o gato
que isso só me traz aborrecimento e despesa. Não viu o que
aconteceu com o cachorro? Terminei
Tendoque fazer o testamento.
João Grilo: Ah, mas aquilo é porque foi o cachorro. Com meu gato é
diferente...
Mulher: Diferente por quê?
João Grilo: Porque, em vez de dar despesa, esse gato dá lucro.
Mulher: Fora vaca, cavalo e criação, bicho que dá lucro não Existe.
João Grilo: Não existe se não... Eu fico meio encabulado de Dizer!
Mulher: Que é isso, João, você está em casa! Diga!
João Grilo: É que o gato que eu lhe trouxe, descome dinheiro.
Mulher: Descome dinheiro?
João Grilo: Descome, sim.
João Grilo ao ver a tristeza da esposa do padeiro pela perda da cachorra, percebeu
que era o momento de conseguir alguma vantagem, com isso, sabendo da fraqueza
da patroa por bichos, inventa que o gato cobrirá toda despesa que ela gastou com o
enterro da cachorra. A partir daí, desperta a curiosidade na mulher. Grilo diz à patroa
que o gato descome dinheiro, haja vista que os dois amigos já haviam colocado
algumas moedas no reto do gato.
Notamos que desde o início da história, o objetivo de Grilo é sempre o dinheiro, pois
é o que lhe faltava e, precisava para se alimentar e, o objetivo da mulher do padeiro
era sempre obter lucro, com isso João consegue enganá-la. Portanto, percebemos
que João grilo relata fatos para conseguir se manter e, sempre conseguia, pois era
conhecedordo ponto fraco das pessoas. Ou seja, verificamos que Grilo conhecia
42
mais as pessoas do que elas mesmas.E em relação aos contos de Chico, embora
fossem mentiras, como foi mostrado anteriormente,ele procurava sempre justificar
seus causos.Com relação a tudo que foi abordado, vamos tratar da religiosidade na
obra O Auto da Compadecida, mostrar os pontos religiosos e a falsa religiosidade.
43
3. A FALSA RELIGIOSIDADE EM O AUTO DA COMPADECIDA
Entendemos que falar de religião e religiosidade é uma incumbência custosa, é
andar sob o fio da navalha, pois além de existir inúmeras religiões, é algo complexo,
pois cada uma delas tem preceitos diferentes, o que por sua vez, geram
controvérsias.
Todos os dias, pelo os meios de comunicação ouvimos falar de religião, mas, ainda
assim, perguntamos o que é religião.
Segundo Antônio Roberto Soares no artigo Religião (2010, p.1)
A religião, por outro lado, é a posse de rituais e crenças religiosas. A
religião é uma escolha e um caminho para a religiosidade, um meio
para se entrar em contato com a divindade. Em si ela não é essencial
e, sim, o impulso de ligação com Deus.
De acordo com a citação acima, entendemos que religiãoé uma relação existente
entre o ser humano e o sobrenatural, é uma dependência incondicional que o
homem mantem em relação ao Divino, é a pratica dos cultos, dos rituais, das
missas, das reuniões, das sessões, bem como das festividades, enquanto que a
religiosidade é a disposição que o homem tem de seguir, fielmente, os preceitos e as
injunçõesda religião.A partir daí, dando continuidade, verificamos que a religiosidade
está bastante refletido em O Auto da Compadecida.
Percebemos que a religiosidade em O Auto da Compadecidase inicia pelo título da
obra. Compadecida é uma qualidade atribuída a alguém que tem compaixão, tem
misericórdia de alguém, sente o sofrimento do próximo como se fosse seu próprio
sofrimento, sente-se condoído com as tragédias alheias.
Partindo daí, ao nosso ver, percebemos que esses são predicativos atribuídos ao
personagem Maria, pois ela é posta como intercessora, agindo com amor sobre as
vidas das pessoas. Isso fica evidente, principalmente, no momento do julgamento,
quando aquelas almas já estavam destinadas ao inferno, Maria se enche
demisericórdia e intercede ao seu filho, Jesus, para que não as condenassem, pois,
embora, as acusações imputadas à aquelas pessoas fossem verídicas, elas eram
44
vítimas das adversidades enfrentadas na seca do sertão, e só cometiam esses
pecados para se defenderem da fome, da seca, entre outros. Portanto, devido, elas
teremvivido uma vida de sofrimento, as suas transgressões já estavam paga.
Percebemos
também
que,
embora,
as
acusações
do Encourado fossem
fundadas,Maria não se intimidava, mostrando ter piedade daquelas vidas fracas
epecadoras.
Para uma definição de misericórdia, podemos citar: “Derivado diretamente do latimo
termo “misericórdia” guarda claros vestígios de sua etimologia:
a misericórdia
emana do homem misericordioso, aquele cujo coração reage diante da miséria do
outro”31.
Dando continuidade, diante de tudo que foi explicitado, entendemos que o título da
obra refere-se a Maria, pois ela chama para si o papel de salvadora, assumindo o
lugar de seu filho, Jesus. E no momento certo, ela interveio em favor dos
condenados ao lago de fogo e enxofre.32
O narrador atribui as características as quais citamos acima a Maria,isso,pelo fato,
talvez dela ser mulher e mãe. Ou seja, entendemos que pelo fato dela ser mulher e
mãe a torna mais sensível as aflições, as dores, o sofrimento das pessoas.
Portando, a partir daí, inferimos que Maria é uma figura simbólica no sertão, pois
além de ser misericordiosa, foi privilegiada dentre várias mulheres para dar à luz a
Jesus.
Verificamos no evangelho de Lucas uma exortação de Jesus aos discípulos que diz:
“Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 36). De
acordo com essa passagem bíblica, entendemos que é uma advertência de Deus
para as pessoas, mostrando que todos deveriam seguir seu exemplo, ou seja, todos
deveriamter misericórdia dos que lhes ofendessem. Portanto, verificamos que Maria
é esse exemplo de misericórdia, pois ela é uma mulher temente a Deus, correta
segundo os preceitos cristãos.
31
CERBELAUD, D. Misericórdia. In: Dicionário Crítico de Teologia, p. 1150.([s.d])
Informações disponíveis no site:www.guiadoestudante.abril.com.br/estudar/literatura/autocompadecida-analise-obra-ariano-suassuna-700312.shtml, acessado em 13/05/2014
32
45
Com base nesses fatores, entendemos que ela é posta na sociedade como “Mãe de
misericórdia”33 e Compadecida de todos os pecadores.
Dando continuidade, sabemos que é comum quando as pessoas estão com medo e
assustadas com alguma coisa chamarem por Maria, percebemos essa invocação
antes do julgamento quando Severino de Aracaju junto com seus cangaceiros
entram na igreja com intuito de roubar e matar as pessoas, observamos que o padre
e o bispo assustados, com medo de Severino invocaram dizendo: “Ave-Maria!
Valha-me Nossa Senhora”. ( 2004, p.107). Também podemos observar esse mesmo
clamor no momento do julgamento, na ocasião em que João Grilo apela pela
Compadecida.
Assim podemos observar no Auto da Compadecida(2004, p.170)
Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré!
A Vaca mansa dá leite, a braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada, a braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio, mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher
Nesse momento, João Grilo chama pela compadecida, pedindo sua ajuda para que
salve sua alma e a dos outros das acusações do Encourado que no caso é o diabo.
Manuel estava abismado com tanta coisa ruim, visto, que, a solução para João Grilo
foi apelar pela virgem. Depois que a compadecida apareceu o destino das almas
mudou completamente, ao invés da condenação eterna, obtiveram a salvação.
Contudo, percebemos que antes da intercessão de Maria, Manuel seu filho, tinha
decretado a sentença para condenação eterna. Como mostramos anteriormente, a
Compadecida usa argumentos que relata fatos ocorridos no passado de cada
um,esses fatos mexe com os “sentimentos”34 de Manuel e de cada pessoa que foi
julgada. Com a posição de advogada ela diz: “Intercedo por esses pobres que não
tem ninguém por eles, meu filho. Não os condene”(2004,p.174).
33
Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na
obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa, (2013, p 53)
34
Idem(2013, p. 54)
46
Dando continuidade, inferimos que o narrador coloca a Compadecida no julgamento,
de uma forma, a qual ela irá defender cada um individualmente, mostrando seu amor
para com os pecadores. Nesse sentido vamos observar como os personagens vão
ser julgados.Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p. 22, 23): “Auto
da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão,
um padre e um bispo, para exercício da moralidade”. Os primeiros a serem julgados
são os eclesiásticos, o bispo, o padre e o sacristão. Esses personagens
representam na obra pessoas ligadas à igreja.
Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p.174,145):
Manuel: Que é que eu posso fazer? esse aí era um bispo avarento,
simoníaco, político ...
A Compadecida: Mas isso é a única coisa que se pode dizer contra
ele. E era trabalhador, cumpria suas obrigações nessa parte. Era de
nosso lado e quem não é contra nós e por nós.
O trecho acima relata o julgamento do bispo, a partir daí, presenciamos que mesmo
ele sendo um representante Divino,vários pecados foram cometidos por ele e devido
a intercessão de Maria, ele conseguiu a salvação, da mesma forma foi com o padre,
o sacristão, Severino de Aracaju, o padeiro e sua esposa e João Grilo.
Presenciamos que todos eles necessitaram da ajuda da Compadecida, pois se
encontravam em apuros devido aos seus pecados. Todavia, nesse momento a
Compadecida esclareceu os fatos pelos os quais aquelas pessoas estavam
arrependidas e porque elas deveriam ser salvas mesmo cometendo vários delitos,
fatos esses que já foram mostrados anteriormente.
Dando seguimento notamos que, devido à presença, bem como a intervenção da
Compadecida em favor daquelas almas perdidas, o Encourado ficou enfurecido com
ela e diz:“Lá vem a compadecida! Mulher em tudo se mete”! Diante dessa
exclamação, percebemos o quanto ele age de uma forma machista e
preconceituosa, caracterizando a mulher de fofoqueira e que se intromete em tudo.
A partir daí, percebemos que, pelo o fato dela ser a defensora das almas, o
Encourado cria uma inimizade com ela.
47
Dando continuidade, podemos inferir em O Auto da Compadecida que, devido às
características as quais mostramos anteriormente, Maria é humanizada, pois se
coloca no lugar das pessoas sofridase entende suas dores, suas aflições, seus
sentimentos. Portanto, de acordo com esses fatores, presenciamos uma lição de
moral, mostrando que apesar das falhas humanas, podemos simalcançar a
salvação, basta se arrepender.
Seguindo com a análise, assim verificamos noAuto da Compadecida(2004,p.
172,173):
Compadecida: E para que foi que você me chamou, João?
João Grilo: é que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o
inferno.
Eu só podia me pegar com a senhora mesmo.
Encourado: As acusações são graves.
Seu filho mesmo disse que há tempo não via tanta coisa ruim
[...] João Grilo: E então? Você ainda pergunta? Maria vai-nos
defender.
Padre João, puxe aí uma ave-maria
Padre: Ave Maria, Cheia de graça, o senhor é convosco,
bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre,
Jesus
[...] Todos: Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores,
agora na hora de nossa morte. Amém
De acordo com o diálogo acima, é importante enfatizar que essa crença na AveMaria é muito utilizada não só entre os católicos da região nordeste, mas também os
de outros regiões. Embora essa fé na ave Maria seja praticada também em outras
regiões, contudo é no nordeste que ela fica saliente, sendo praticada por muitos,
principalmentepor um pequeno grupo de beatas que se reúnem em suas casas para
celebrarem a Ave-Maria.Essa crença em Maria foi manifestada também no momento
dopurgatório.
Segundo padre Mauricio em Purgatório e Céu ([s.d], p.1)
O Purgatório é esse processo doloroso, como todos os processos de
ascensão e educação, no qual o homem na sua morte atualiza todas
as suas possibilidades, se purifica de todas as situações que a
alienação pecaminosa foi estigmatizando a vida, pela história do
pecado e suas consequências, mesmo após seu perdão, e pelos
mecanismos dos maus hábitos adquiridos ao longo da vida.
48
Diante da citação acima, entendemos que o purgatório se trata de um lugar no qual
as pessoas condenadas devem pagar pelos seus pecados, geralmente professada
pela igreja católica como um lugar de purificação, local no qual as pessoas
sentenciadas deveriam se purificar das mazelas, dos maus costumes adquiridos
durante o percurso de sua vida.
Segundo Costa (2013 p. 98):
Purificação presume que a pessoa pode, por meio dela, se ver liberta
dos pecados, ou seja, que pode evoluir. No juízo a pessoa encontrase com Deus e consigo mesma, mas isso não quer dizer que ela
chegou a um ponto final e estático em sua evolução. Pode-se
perceber que ela não está pronta para estar plenamente com Cristo,
viver no céu, de modo que, mesmo nesse estágio, mesmo na morte,
necessita de conversão. Esta última conversão é entendida como um
ato doloroso que foi denominado de purgatório.
Caracterizamos que o fato de estar no purgatório não significava que a pessoa
estivesse condenada, pelo contrário, era uma esperança que a pessoa pecadora
tinha de ser salva, pois no purgatório ela passaria por um processo de purificação
pelo o qual ela chegaria ao céu. Portanto, percebemos na obraO Auto da
Compadecida,que esse purgatório estárelacionado a visão medieval que, no caso,
estamos tratando da visão popular.
O narrador, mostra na obra, o purgatório como um lugar de reflexão e conversão,
mas em nenhum momento ele menciona conversão pessoal, mostra apenas
pessoas se purificando dos pecados que cometeram ao longa da vida. Portanto, o
narrador indo de acordo com a doutrina católica, apresenta o purgatório com um
lugar em busca da salvação35, em busca do céu. É importante salientar que, céu
retrata a morada de Deus, é um lugar de vida eterna, sendo identificado pela
tradição cristã, bem diferente do inferno. Portanto, a partir daí atribuímos que, o
purgatório é um momento de conversão, entretanto se a alma que estivesse lá não
se arrependesse de suas iniquidades seria lançada ao inferno.
Na visão de Santo Boaventura (apudCOSTA, 2013, p. 100):
35
Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos Teológicos na
obra o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa
49
Quanto à pena do inferno deve-se admitir o seguinte: A pena infernal
verifica-se em um lugar material situado debaixo da terra, no qual
são atormentados eternamente todos os réprobos, tanto os
homens como os espíritos malignos. (...) A este tormento de fogo
será unido também o tormento de todos os sentidos e pena dos
vermes e a carência da visão de Deus, de tal modo que haverá
variedade e acerbidade, e com a acerbidade a interminabilidade, a
fim de que se verifique, para o suplício dos condenados, que o fumo
dos tormentos sobe pelos séculos dos séculos.
Diante da citação acima entendemos que o inferno trata-se de um lugar composto
de sofrimento, de tormento, um lugar onde as almas das pessoas iniquas,
transgressoras eram jogadas. Ou seja, entendemos que, as pessoas que não se
arrependessem de seus pecados, pagariam um preço muito caro tendo como
castigo o fogo eterno.
Dando continuidade percebemos em O Auto da Compadecida,a existência do
inferno. Todavia, no momento do julgamento, esse inferno não funcionou, pois,
devido a interferência de Nossa Senhora as pessoas não foram lançadas lá.
Podemos verificar isso quando Manuel expressa a Compadecida: “Se a senhora
continuar a interceder desse jeito por todos, o inferno vai terminar como disse Murilo:
feito repartição pública, que existe mas não funciona”. Portanto, diante disso,
entendemos que Manuel se expressa de uma forma severa, pois se a Compadecida
continuar perdoando todos, o inferno se tornará vazio. Por isso adotamos a
concepção que, na obra o inferno existe, todavia não funcionou diante da defesa da
Virgem.
Portanto a partir daí, adotamos a possibilidade de que o narrador expõe o inferno
vazio para contradizer alguns preceitos bíblicos os quais relatam que, todos aqueles
que praticarem o que é incorreto aos olhos de Deus, serão lançados no inferno.
Suponhamos que o pensamento do narrador esteja correto, que todos mesmo
cometendo falhas têm direito a salvação, isso deve-se a concepção que Deus jamais
criaria um lugar desses para osfilhos que Ele tanto ama, por esse motivo que
emAuto da Compadecidatodos foram salvos. Entendemos que, por mais que
existisse o inferno, Deus tem o desejo que todos sejam salvos, que se arrependam e
consigam a salvação.
Assim podemos verificar nos preceitos bíblicos: “Por que há um só Deus, e um só
mediador entre Deus e a humanidade: o homem Cristo Jesus, que se entregou
50
como resgate por todos” (1Tm 2, 4-6), o versículo da bíblia expressa que Deus deu
seu único filho para salvar a humanidade pecadora. Portanto se Deus entregou seu
filho, Jesus como sacrifício, é porque Ele tem o desejo que todos sejam salvos.
Dando continuidade, percebemostambém que os personagens possuem uma
enorme vontade de viver, resistindo os momentos de seca do sertão e, mesmo
depois da morte, quando tudo parece estar perdido, eles resistem e acabam por fim
se livrando da condenação eterna. Esse desejo de viver e de superação são
arraigados da tradição cristã, pois Jesus assim nos diz na Bíblia Sagrada:(João
cap.10:10) “Eu vim para que tenham vida e tenham com abundância”.
O texto
bíblico transmite que Deus veio para nos dar vida e também uma vida próspera.
Com base nestes fatores religiosos, verificamos que desde o inícioda humanidade o
ser humano sente a necessidade de crer em algum Deus, seguindo, assim uma
determinada religião.
Dando seguimento a nossa análise, entendemos que, embora exista as religiões
católica e protestante, verificamos que talvez o narrador tenha colocado Jesus
Cristo, na obra, como católico, todavia não identificamos preconceito por parte do
narrador em relação a religião protestante. Podemos ver essa afirmação quando
João Grilo diz: que quando se vê uma pessoa boae que entende de bíblia, trata-se
de um protestante36.
Assim podemos ver em O Auto da Compadecida (2004, p187):
João Grilo: [...] Isso é que é conhecer a bíblia! O senhor é
protestante?
Manuel: Sou não, João, sou católico.
João Grilo: Pois na minha terra, quando a gente vê uma pessoa boa
e que entende a bíblia, vai ver é protestante. Bom, se o senhor não
faz objeção, minha pergunta é esta [...]
Portanto, diante desta citação, não só nesse contexto, mas em todo desenrolar da
história, percebemos que a igreja é católica e que todos os personagens são
devotos dessa religião. A citação acima relata que o próprio Jesus é católico.
36
Estas informações foram retiradas do livro O Auto da Compadecida, (2004, p.187)
51
Mas dando continuidade, entendemos que a religiosidade é vista como uma forma
do povo expressar a sua fé em Deus37, também verificamos que essa fé é expressa
através das crenças, seja ela no padre Cicero, em Nossa Senhora, no purgatório,
entre outras. Portanto duranteo percurso da estória, analisamos de acordo com a
nossa percepção, fatores relacionados areligiosidade, mostrando que, de fato todos
os personagens acreditavam na existência do céu e do inferno, e que seguiam com
fé alguns preceitos religiosos. Todavia diante dessa suposta religiosidade existia a
falsidade por trás de cada um, começando pelos próprios representantes da igreja,
no caso, o bispo, o padre e o sacristão, ambos mantinham personalidade de
pessoas santas, tementes a Deus, porém eram pessoas interesseiras que só fazia
alguma ação se tivesse algum lucro.
Assim podemos ver em o Auto da Compadecida (2004, p. 150, 151):
Encourado: Simonia negociou com o cargo, aprovando o enterro da
cachorra em latim, porque o dono lhe deu seis contos
Bispo: E proibido?
Encourado: Homem, se é proibido eu não sei. O que eu sei que você
achava que era e depois, de repente, passou a achar que não era. E
o trecho que foi cantado no enterro é uma oração da missa dos
defuntos.
Bispo: Isso é ai com meu amigo sacristão. Quem escolheu o pedaço
foi ele.
Encourado: Falso testemunho: citou o código canônico, primeiro para
condenar o ato o padre e contentar o ricaço Antônio Morais, depois
para justificar o enterro da cachorra. Velhacaria: esse bispo tinha
fama de grande administrador, mas não passava de um político,
apodrecido de sabedoria mundana.
Encourado: Arrogância e falta de humildade no desempenho de suas
funções: esse bispo, falando com um pequeno, tinha uma soberba só
comparável à subserviência que usava para tratar com os grandes.
Diante do trecho acima, percebemos que a lista de pecados cometidos pelo bispo
quase não acaba. Entre outras acusações, o encourado o acusa de simonia. Na
visão de Costa (2013, p.73): “Simonia define-se como a compra ou a venda ilícitas
de “bens espirituais”, como bênçãos, sacramentos e indulgências”.
37
Estas informações foram retiradas do artigo O auto da Compadecida, a cultura e a
inovação tecnológica de Maria Isabel Amphilo Rodrigues de Souza (2003, p.56)
52
Portanto podemos verificar em o Auto da Compadecida que o bispo sempre
procurava obter alguma recompensa com os dons divinos. Essa afirmação é
percebidano momento do enterro da cachorra o qual foi realizado em latim e por seis
contos. Assim podemos ver no Auto da Compadecida(2004, p. 83): “Se é proibido?
Deve ser, porque é engraçado demais para não ser. É proibido! É mais de que
proibido! código canônico, artigo 1627, parágrafo único, letra k, o senhor vai ser
suspenso”. Todavia, em seguida, o bispo ficou ciente que a cachorra havia deixado
um testamento de três contos de réis para o sacristão, quatro para o padre e seis
para o bispo38.
Com isso, visando o lucro que ia obter com o enterro da cachorra, o bispo mudou de
repente de opinião, dizendo: “é por isso que eu vivo dizendo que os animais também
são criaturas de Deus. Que animal interessante! que sentimento nobre!”
(SUASSUNA, 2004, p. 85).
Logo após com intuito de desfazer tudo que disse em prol de conseguir o dinheiro,
marca uma reunião e, mais uma vez, menti em relação ao Código Canônico:
(SUASSUNA,2004, p. 100): “Não resta dúvida, foi tudo legal, certo e permitido.
Código canônico, artigo 368, parágrafo terceiro, letra b.”
Portanto, de acordo com o que foi abordado, verificamos o quanto a hipocrisia é
presente na vida do bispo, pois diante do cargo que ele ocupava deveria viveruma
vida de santidade, dando exemplo de honestidade aos seus subordinados, todavia
vivia em vida de mentiras, de ganância.
Dando continuidade à falsa religiosidade, inferimos que o narradorfaz uma crítica
maior ao bispo a respeito do mundanismo dentro da igreja.De acordo com o
pensamento de Santo Agostinho (apud COSTA, 2013, p.72):
Quando me aterroriza o que sou para vós, consola-me o que sou
convosco. Pois para vós sou bispo, convosco sou cristão. Aquele é o
título de uma função recebida, este é título de graça; aquele é de
perigo; este é de salvação.
38
Estas informações foram retiradas do livro o Auto da Compadecida (2004, p. 85)
53
Diante da citação acima, inferimos que Santo Agostinho salienta a responsabilidade
pastoral, mostrando de acordo com os preceitos cristãos que, os bispos, bem como
os líderes de igreja têm o dever de praticar o bem para com o próximo e manter uma
imagem limpa diante da sociedade. A partir daí, voltando esse olhar para dentro da
obra, observamos que essa carga de responsabilidade está sobre o bispo por isso
que ele é a figura mais criticada e mais cobrada em relação a religiosidade.
Portando dando seguimento, podemos verificar na bíblia sagrada algumas
exortações em relação aos dons de Deus,podemos citar um exemplo em que nos
mostra um homem que se chamava Simão, o Mago, tinha o objetivo de comprar o
poder Divino. Todavia, Pedro, um dos apóstolos toma iniciativa exclamando: “O teu
dinheiro seja contigo para perdição, pois cuidaste que o dom de Deus se alcança por
dinheiro”.39Podemos também verificar em (Mt, 10:8):“Recebeste de graça, daipois,
gratuitamente”. Neste sentido, percebemos que os dons são de Deus e não nosso,
portanto não podemos usá-los em prol do nosso próprio benefício. Mas dando
continuidade, não podemos esquecer do padre e do sacristão.
Assim podemos ver no Auto da Compadecida(2004, p. 153):
Manuel: Então, acuse o padre.
Padre: de mim ele não tem nada o que dizer
Encourado: É o que você pensa, minha safra hoje esta garantida.
Tudo o que eu disse do bispo pode se aplicar ao padre. Simonia, no
enterro da cachorra, velhacaria, política mundana, arrogância com os
pequenos, subserviência com os grandes.
Manuel: [...] faça a acusação do sacristão
Encourado: Esse sujeito foi quem tramou a história do enterro Foi ele
quem saiu cantando o trecho da missa atrás do cachorro, com olho
nos três contos. Em latim, na língua que você escolheu. Hipocrisia e
auto-suficiência chegaram e aí ficaram. E, além de tudo, roubava a
igreja.
De acordo com a citação acima, percebemos que o padre, o bispo e o sacristão
possuíam os mesmos erros, bem como a cumplicidade em relação ao enterro da
cachorra.Isso se confirma na citação a seguir.
Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p. 32, 33)
39
Estas informações foram retiradas da Bíblia Sagrada em Atos (Cap. 8:20)
54
PADRE: Não benzo de jeito nenhum.
CHICÓ: Mas padre, não vejo nada de malem se benzer o bicho.
JOÃO GRILO: No dia em que chegou o motor novo do major
Antônio Morais o senhor não o benzeu?
PADRE:Motor é diferente, é uma coisa que todo mundo
benze. Cachorro é que eu nunca ouvi falar[...]
PADRE:É, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo
o cachorro. Benzer motor é fácil,
todo mundo faz isso, mas benzer cachorro?
JOÃO GRILO:É, Chicó, o padre tem razão. Quem vai ficar
engraçado é ele e uma coisa é o motor do major
Antônio Morais e outra benzer o cachorro do major
Antônio Morais.
PADRE: mão em concha no ouvido
Como?
JOÃO GRILO: Eu disse que uma coisa era o motor e outra o
cachorro do major Antônio Morais.
PADRE:E o dono do cachorro de quem vocês estão falando
é Antônio Morais?
JOÃO GRILO:É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se
zangasse, mas o major é rico e poderoso e eu
trabalho na mina dele. Com medo de perder meu
emprego, fui forçado aobedecer, mas disse a Chicó: o padre vai se
zangar.
PADRE: desfazendo-se em sorrisos
Zangar nada, João! Quem é um ministro de Deus
Paraterdireito de se zangar? Falei por falar, mas
Também vocês não tinham dito de quem era o cachorro!
A citação acima expressa a participação do padre no enterro da cachorra e nos
mostra mais um ponto relevante em relação a falsa religiosidade. A partir daí,
percebemos que depois que João Grilo mentiu para o padre, dizendo que a cachorra
é do major Antônio Morais, o padre mudou de opinião, pois antes relatava que era
maluquice, que era besteira benzer a cachorra, que sua vez não benzia de jeito
nenhum. Mas em seguida, crendo que a cachorra seria mesmo do major, o padre
responde que não vê mal algum abençoar as criaturas de Deus.
Com base nesses aspectos observamos que o padre faz segregação de pessoas,
pois só considera pessoas que tem uma posição elevada na sociedade. Portanto,
diante desses fatos, podemos considerar essas características presente nos dias de
hoje dentro das igrejas, pois muitos representantes do evangelho dão prioridade a
quem tem condições financeiras, que contribuem com maior dizimo, com ofertas
diariamente, com doações para os templos, entre outras. A partir daí percebemos
que essas pessoas passam a ocuparem cargos de destaque dentro da igreja. Como
55
exemplo disso temos o padeiro e sua esposa, os dois faziam parte dessa máscara
de religiosidade.
Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p. 156,):
ENCOURADO: Ele e a mulher foram os piores patrões que Taperoá
já viu.
MULHER:É mentira!
JOÃO GRILO:É não, é verdade. Três dias passei...
MANUEL:Em cima de uma cama, com febre, e nem um copo
d’águalhe mandaram. Já sei, João, todo mundo já
sabedessa história, de tanto ouvir você contar.
JOÃO GRILO:Mas eu posso? Me diga mesmo se eu posso! Bife
passado na manteiga para o cachorro e fome para
João Grilo. É demais!
ENCOURADO:Avareza do marido, adultério da mulher. Bem
Medidoe bem pesado, cada um era pior do que o outro.
O casal foi acusado de serem os piores patrões da cidade de Taperoá, pois pagava
a João Grilo e Chico pelo o preço de um. Ou seja, a avareza era praticada pelo
padeiro, que por sua vez, na ganância de obter lucros usava de má fé com seus
funcionários explorando-os, enquanto que a esposa dele vivia adulterar, traindo-o
com vários homens. É importante salientar que, podemos ver na bíblia uma
passagem que condena a avareza: (I Coríntios,6:10)“nem os ladrões, nem os
avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o
reino de Deus”.
Podemos ver também uma passagem que condena o adultério:(Êxodo, 20:14) “Não
adulterarás”. Portanto um dos mandamentos do Senhor Deus segundo a bíblia é
que, a mulher honre seu esposo, pois os dois foram unido em um matrimonio com o
dever de ser fiel um ao outro até a morte. Vale ressaltar que os dois faziam parte da
igreja, o padeiro era presidente da Irmandade das Almas e sua esposa vivia fazendo
doações devido o cargo que seu esposo exercia. Portanto deveriam ser exemplos
de honestidade e fidelidade, entretanto eram exemplos de desonestidade,
infidelidade, entre outros predicativos.
Assim podemos ver no Auto da Compadecida, (2004, p. 52):
[...]Padeiro:Eu é que pergunto: que é isso? Afinal de contas eu
sou presidente da Irmandade das Almas, e isso é
56
alguma coisa.
João Grilo: É, padre, o homem aí é coisa muita. Presidente da
Irmandade das Almas! Para mim isso, é um caso
claro de cachorro bento. Benzalogo o cachorro e
tudo fica em paz.[...]
Mulher: De hoje em diante não me sai lá de casa nem um
pão para a Irmandade!
Padeiro:Nem um pão!
Mulher: E olhe que os pães que vêm para aqui são de graça!
Padeiro:São de graça!
Mulher:E olhe que as obras da igreja é ele quem está
custeando!
Padeiro:Sou eu que estou custeando!
Padre, apaziguador
Que é isso, que é isso!
Mulher: O que é isso? É a voz da verdade, padre João. O
senhor agora vai ver quem é a mulher do padeiro!
João Grilo: Ai, ai, ai e a Senhora, o que é que é do padeiro?
Mulher:A vaca...
Chicó:A vaca?!
Mulher:A vaca que eu mandei para cá, para fornecer leite
ao vigário tem que ser devolvida hoje mesmo.
De acordo com a citação acima, observamos que na primeira oportunidade o
padeiro jogou na “cara” do padre o cargo que exercia dentro da igreja, achando-se
merecedor de tal ação, da mesma forma sua esposa, sentiu-se indignada com a
atitude do padre de não querer benzer a cachorra. Portanto percebemos que no
desenrolar desse contexto, tudo se trata de uma troca de favores, pois havia
interesses financeiros. Suponhamos que o padre era ciente das falhas do casal, mas
devido os dois colaborarem com a reforma da igreja, o padre se mantinha em
silencio, pois se falasse poderia perder a colaboração do casal.
Dando seguimento, caracterizamos que de todos os personagens, João Grilo era
diferente. Percebemos que Suassuna apresenta João Grilo como um astuto, um
heróique tenta vencer a fome e a seca do sertão, não fazia parte do clero, bem como
da burguesia, esta última era representada pelo o casal, o padeiro e sua esposa.
Contrario deles, João Grilo representava o povo pobre, humilde que tinha suas
astucias para sobreviver aos poderosos, era conhecido na cidade como o
amarelo.Segundo Maria Aparecida Lopes Nogueira (apud COSTA, 2013, p.80):
Amarelo é luz, que se transfigura em algo menor, negação do
luminoso; ao mesmo tempo, o próprio João Grilo se autoresgata
como ser aluminoso, uma vez que é o responsável direto pela
57
reversão e absolvição de todos os personagens no julgamento
final, com a ajuda de Nossa Senhora, a compadecida.
Seguindo essa perspectiva, podemos salientar algumas acusações contra João
Grilo, uma delas é o preconceito de raça (SUASSUNA, 2004, p. 148): “Porque... não
é lhe faltando com o respeito não, mas eu pensava que o senhor era muito menos
queimado”. João Grilo alega possuir um pensamento, que Jesus seria branco e não
imaginaria que ele fosse negro.
Portanto verificamos, a partir daí a visãoestereotipada que se tem de Jesus, pois ele
é caracterizado como loiro, cabelo longo e olhos verdes. Percebemos também que
todos que ali tinham o mesmo pensado de João Grilo, ou seja, que Jesus seria loiro,
entretanto Grilo foi o único que falou, demonstrando dessa forma sinceridade. Mas
dando seguimento, assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p. 149):
Manuel: Muito obrigado, João, mas agora é sua vez. Você é cheio
depreconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque sabia
que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu Jesus, nasci
branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para mim,
tanto faz um branco como um preto.
Podemos ver no diálogo acima, o momento que Manuel repreende João Grilo por
seu preconceito de raça. Manuel alega ter se apresentado dessa forma
propositalmente, pois, a nosso ver, Manuel sabia que estava lhe dando com pessoas
preconceituosas. Mas a lista de acusações feitas a João Grilo segue dando
continuidade. Como citamos anteriormente sobre a esperteza, quando tramou o
enterro da cachorra; a venda do gato que descome dinheiro; e a gaita milagrosa
usada para enganar os cangaceiros. Portando, diferente dos demais personagens,
acreditamos que todas essas histórias de João Grilo não fazem parte da falsa
religiosidade, mas, sim do contexto que ele estava inserido, pois com estas mentiras
ele buscava vencer a miséria e a fome, procurava meios para sua sobrevivência.
De acordo com tudo que foi abordado, inferimos que a falsa religiosidade está
presente nos personagens; o bispo, o padre, o sacristão e o padeiro e sua esposa,
embora a crítica, o tom satírico se sobressai na figura do padre e do bispo,
poispercebemos que a falsidade é mais exacerbada nos próprios, pois eles
58
deveriam ser exemplo para sociedade, todavia são retratados, como pessoas sem
nenhuma moral, totalmente sem escrúpulos. Portanto verificamos que todos faziam
parte da igreja, mas não tinham um bom testemunho diante dos fiéis.
Analisamos também que, essa visão é uma realidade, certo, que todos nós somos
falhos e temos o direito de arrepender-se, mas nem sempre aos olhos da sociedade
esses erros cometidos pelos líderes da igreja são considerado normais. É importante
salientar que em nenhum momento a obra é blasfema, em nenhum momento busca
anular a conduta religiosa, mas busca mostrar de forma explicita valores que mexem
com os princípios das pessoas, entre eles a ambição e a justiça.
Portanto, através da obra buscamos demonstrar de forma clara e objetiva um pouco
da construção cultural do nordeste, demonstrando a religiosidade dos sertanejos,
bem como, as motivações que eles têm para superar as adversidades da seca do
sertão.
Entendemos que a motivação do povo sertanejo é a fé, é crê na Justiça de Deus, é
acreditar num futuro promissor e que, embora o sofrimento, a fome, a seca façam
parte de sua realidade é um povo feliz.
59
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante todo o percurso deste trabalho, percebemos que a obra O Auto da
Compadecida nos ajudou a compreender os fatos sociais que envolvem a
religiosidade, mostrando a realidade que existe dentro de algumas igrejas, onde
várias processam uma fé enganosa.
Suassuna ao resgatar a visão de Gil Vicente tem o intuito de mostrar a falsa
religiosidade, criando alguns personagens que são envolvidos com a obra de Deus e
praticam tudo a inverso do que está escrito na bíblia. Essas características não se
refere somente na Idade Média, mas também são vistas nos dias atuais e de uma
forma mais escandalizadora.
Analisamos a crença na Compadecida que no caso é a Virgem Maria, mãe de
Manuel, a qual foi posta no Auto como intercessora das almas perdidas, que por sua
vez, estavam destinas ao inferno. Percebemos que a figura da mulher foi importante
para solucionar os fatos, isso por ela ser vista como um gênero sensível e por ser
mãe, coloca-se na posição de advogada, atribuindo, assim, méritos que justifiquem o
motivo a qual as almas mereciam a salvação.
Observamos que a obra apresenta aspectos moralizante, pois apesar dos pecados
dos personagens, todos foram salvos, mostrando, assim, que todo ser humano é
falho, independente de religião, e que merecem ser perdoado, mesmo que esse
arrependimento venha ocorrer depois da morte.
60
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