FACULDADE SETE DE SETEMBRO – FASETE CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM LETRAS HABILITAÇÃO EM INGLÊS E PORTUGUÊS MANOEL CORDEIRO DE OLIVEIRA JUNIOR A FALSA RELIGIOSIDADE NA OBRA O AUTO DA COMPADECIDA DE ARIANO SUASSUNA PAULOAFONSO – BA JUNHO/2014 MANOEL CORDEIRO DE OLIVEIRA JUNIOR A FALSA RELIGIOSIDADE NA OBRA O AUTO DA COMPADECIDA DE ARIANO SUASSUNA Monografia apresentada ao Curso de Letras – Habilitação Português / Inglês da FASETE – Faculdade Sete de Setembro, como requisito para a avaliação conclusiva, sob a orientação da prof. Msc.Joranaide Alves Ramos. PAULO AFONSO – BA JUNHO/2014 Dedico essa monografia aos meus familiares pelo o exemplo de força e determinação. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço a Deus que na sua infinita bondade me deu forças para que eu pudesse alcançar meus objetivos e para realização deste trabalho. A minha Mãe Uiara que sempre me incentivou. A minha orientadora Joranaide, que acreditou que eu seria capaz e sempre procurou me orientar da melhor forma possível. Agradeço também a minha namorada Vanessa. “Auto da Compadecia! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade”. (Ariano Suassuna) RESUMO O presente trabalho mostra uma análise crítica do Auto Compadecida (2004) de Ariano Suassuna, tendo como focos principais Autos da Idade Média, a religiosidade e a falsa religiosidade envolvida na obra. Dividimos, portanto, o estudo em três capítulos. No primeiro tratamos de alguns Autos relacionados a época medieval, mas que são retratados nos dias de hoje; no segundo capitulo, abordamos a biografia do autor e, além de uma leitura sobre as características nordestinas a partir de seus aspecto sociocultural. No terceiro capitulo, tratamos da religiosidade retratada através da Compadecida; observamos a falsa religiosidade a partir dos personagens da igreja.Para fundamentar tais questões, usamos Gil Vicente (1516), Anchieta (1954) e Albuquerque Junior (2011). PALAVRAS CHAVES:Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida, Falsa Religiosidade. ABSTRACT The present work shows a critical analysis of the Auto da Compadecida (2004) by Ariano Suassuna, having as main focuses Acts of the Middle Ages, the religiosity and false religiosity involved in the work. We divided, therefore, the study in three chapters. In the first one we dealed with some Acts related to medieval times, but which are portrayed nowadays; in the second chapter, we focus on the biography of the author and, in addition to a reading on the northeastern characteristics from its sociocultural aspect. In the third chapter, we treated the religiosity portrayed through the Compassionate; we observed the false religiosity from the characters of the church. To substantiate such issues, we used Gil Vicente (1516), Anchieta (1954) and Albuquerque Junior (2011) KEY WORDS:Ariano Suassuna, Auto da Compadecida, False Religiosity. SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................9 1.AUTOS:DA IDADE MÉDIA ATÉ OS DIAS DE HOJE ..........................................11 1.2 A RELIGIOSIDADE RETRADA NOS AUTOS.....................................................17 2. ARIANO SUASSUNA ...........................................................................................22 2.1 O AUTO DA COMPADECIDA: UM RECORTE DO NORDESTE........................26 3. A FALSA RELIGIOSIDADE NO AUTO DA COMPADECIDA .............................42 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................58 REFERÊNCIAS..........................................................................................................59 10 INTRODUÇÃO O presente trabalho mostra uma análise da falsa religiosidade em O Auto da Compadecida. Nosso objetivo foi rever alguns aspectos religiosos da época medieval até os dias de hoje através da obra O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna. Percebemos que Ariano resgata o modelo medieval de Gil Vicente e atribui em sua obra. Percebemos, pois, que na obra em análise, há mais questões relacionadas a falsa religiosidade do que a própria religiosidade. Neste sentido podemos verificar que há, entre os eclesiásticos, o outro lado dessa suposta religiosidade, um lado recheado de falso testemunho, de mentira, de ganância, de imoralidade, de simonia, de adultério, entre outros. Tais questões são postas como máscaras que depois são reveladas, na verdade fingiam seguir os preceitos bíblicos cristãos. Todavia notamos que não é diferente dos dias de hoje, ou melhor falando, desde de sempre nunca foi diferente, pois sempre existiu falsidade dentro da religiosidade, máscaras ocultas para esconder seus erros. Ou seja, percebemos que o narrador relata explicitamente a hipocrisia existente no meio do povo religioso. Para cumprir tais objetivos dividimos o trabalho em três capítulos. No primeiro, tratamos dos “Autos na Idade Média aos dias de hoje”. Observamos alguns Autos da época medieval e usamos Gil Vicente com O Auto da Barca do Inferno (1516), Auto da Alma (1508); o Padre José de Anchieta com O Auto da Visitação Universal (1954) que contribuíram para uma análise com os Autos da Idade Média. No segundo Capitulo, “Ariano Suassuna”, mostramos a biografia do autor. Em seguida abordamos as crenças nordestinas, envolvendo a construção cultural do Nordeste, para isso, usamos Durval Muniz de Albuquerque Junior em A Invenção do Nordeste e outras artes (2001), partindo para uma análise das características nordestina envolvidas no Auto da Compadecida No terceiro capitulo “A falsa religiosidade em O Auto da Compadecida”, tratamos da religiosidade na Compadecida que, no caso é a virgem Maria, apresentamos a falsidade existente no bispo, padre, sacristão, o padeiro e sua esposa, são personagens que supostamente apresentava ser religiosos. Para adquirirmos tal 11 pensamento usamos Jonas Nogueira da Costa em O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na obra O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (2013). E com base nisto analisamos a máscara que existia por trás de cada um. 12 1. AUTOS: DA IDADE MÉDIA AOS DIAS DE HOJE A Idade Média ocorreu entre os séculos V e XV e também foi conhecida como idade das trevas, porque a sociedade cultural não progredia, a igreja estava disposta a fazer manifestações para expressar seu pensamento através da literatura. Durante a Idade Média surgiu um tipo de teatro que foi posto o nome de popular por todo seu perfil e por abranger temas que envolvem o contexto popular, tanto na linguagem quanto nos autores. Pode-se dizer que é de origem francesa e iniciou-se com os mistérios e milagres 1 ; eram apresentações bíblicas ocorridas em datas festivas, principalmente no natal e na páscoa. Os personagens das peças apresentavam as encenações dentro das igrejas, nos templos e, com o passar do tempo, o teatro passou apresentar um caráter não-religioso e passou adquirir personalidade profana, pois começaram a ser apresentadas fora dos templos. SegundoMárciaLimaemTeatroMedieval([s.d], p.3): O profano é a sátira ao divino. Associa-se em grande parte ao cômico. Não aparece como forma independente antesdo século XIII,não se sabe de onde provém, aumenta sua influência quando a encenação sai da igreja. Nas praças e nas feiras, os jograis-mímicos profissionais exploram a literatura oral, recitam, cantam, executam monólogos dramáticose mímicas dialogadas, imitando tipos (o louco, o bêbado, o tolo), tornando-se assim herdeiros e transmissores da antiga tradição latina. As companhias desta modalidade teatral buscavam a contravenção não só nos seustemas, mas também com a presença de mulheres em seu elenco e com maneiras diferentes de se apresentar: cantando, dançando e, às vezes, até se despindo. O profano é outra característica atribuída ao teatro medieval, que apresenta fatos religiosos representados por pessoas que não seguiam de forma correta os preceitos bíblicos. O profano seria uma forma de mostrar a realidade que ocorre dentro da igreja. Muitas dessas peças eram apresentadas nas ruas e nas praças, um lugar bem frequentado e que chamasse a atenção de todos. Como abordamos anteriormente, o teatro deu-se início na Idade Média que foidividida em três fases. As primeiras manifestaçõesteatrais começaram na Plena Idade Média: 11 Estas informações foram retiradas do livro Literatura Portuguesa de MassaudMoises, 2004. 13 Na fala de Lima, ([s.d], p. 1): Alta Idade Média, Plena Idade Média e Baixa Idade Média. Asprimeiras manifestações teatrais ocorreram na Plena Idade Média, seguidas de um grande florescimento na Baixa Idade Média feudal, rigidamente estratificada, compreende uma aristocracia, formada pela união da nobreza e do clero, e o ‘Terceiro Estado’, representado por servos e camponeses livres e, posteriormente, pela burguesia. A citação acima trata das subdivisões da Idade Média, especifica em que período ocorreu às primeiras apresentações teatrais. De acordo com Lima ([s.d]. p1) “O teatro medieval deriva do rito religioso (a missa-cristã), do mesmo modo como, na Antiguidade, a tragédia grega.” O Teatro medieval começou com representações religiosas submetidas pela igreja católica e, de acordo com tudo que foi abordado, podemos citar um dos mais antigos autos, Los Reyes Magos que talvez tenha sido escrito no século XIII, o Monólogo do Vaqueiro e o Auto da Visitação são considerados um dos mais conhecidos de Gil Vicente e foram usados para retratar o nascimento do príncipe D. João III filho de D. Maria, esta encenação ficou marcada na história do teatro português. O teatro medieval obteve várias contribuições para que se realizasse com sucesso através da criatividade atribuída aos atores, o cenário também é um fator necessário para as peças, então deveria estar com iluminação e sonoplastia, e todos deveriam ter o conhecimento de todas essas técnicas, pois cada cena apresentava um som diferente para causar suspense nos telespectadores, o figurino e a maquiagem são elementos essenciais na atuação2. De acordo com o que foi abordado, a farsa é outra característica que faz parte dos Autos e sempre estava presente em um personagem que representava traição, mentira e roubos. De acordo com Jacinto do Prado Coelho em O Tribunal de Manuel: Aspectos Teológicos na obra O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (apud COSTA, 2013. p. 36) 2 Estas informações foram retiradas do artigo de Marcia lima o teatro medieval, ([s.d], p. 3) 14 Definição de auto:Termo que no século XVI (nomeadamente na edição do teatro vicentino) se aplicava a peças de teatro ao gosto tradicional. Os assuntos podiam ser religiosos ou profanos, sérios ou cômicos. Os autos, ao mesmo tempo que divertiam, moralizavam pela sátira de costumes e inculcavam de modo vivo e acessível as verdades da fé. A citação acima esclarece de uma forma objetiva a definição do Auto e, não podendo esquecer-se de Gil Vicente, uma figura muito importante na literatura, cuja história foi marcada pelos seus Autos, escreveu vários, porém poucos foram publicados como podemos citar O Auto Pastoril Castelhano, Auto da Fé, Auto Pastoril Português, Auto de Amadis de Gaula, Farsa de Inês Pereira, Auto da Barca do Inferno, Autoda Barca do Purgatório, Auto da Barca da Glória, Auto da Alma, entre outros.Estas peças, geralmente, são as que transmitem o caráter religioso e, pode-se dizer, que eram apresentadas em festas natalinas.3 De acordo comRosângelaDivina Santos Moraes daSilva(2010, p.91) É justamente no palco palaciano que emerge o teatro popular de Gil Vicente com seu humor sarcástico, o qual rompe as esferas públicas e privadas, pois não se destina a apenas divertir os que governam, mas a despertar no povo a reflexão crítica através de seus espetáculos. Com base na citação expressa acima, o objetivo de Gil Vicente era fazer com que as pessoas refletissem sobre a mentira e o falso testemunho que existia dentro da religiosidade, mostrando que não viviam o que pregavam. Podemos ressaltar, a nosso ver, que o estilo Vicentino influenciou o estilo de José de Anchieta.No Brasil, o Auto foi bastante usado peloJesuítaAnchietaque, carrega em seus Autos, uma forte característica medieval,usados,geralmente, em seus trabalhos de catequese. De acordo com Vanessa Campos Mariano, em o Teatro Anchietano enquanto Instrumento Pedagógico: analise das peças (apud O’MALLEY, [s.d], p.5) 3 Estas informações foram retiradas do artigo Teatro Português Medieval de Rosângela Divina Santos Moraes da Silva (2010, p.91). 15 (...) os jesuítas não inventaram o “drama escolar”, mas o cultivaram num nível especialmente alto por um longo período de tempo, numa vasta rede de colégios quase ao redor do mundo. Envolveram-se com o drama, poucos anos depois de abrir o colégio de Messina. As características Jesuíticas estavam presentes no teatro, tendo como objetivo,conformecitamosanteriormente, a catequese e a instrução. Todas as escolas tinham o teatro como uma boa referência para a educação. Vale ressaltar que esse instrumento de ensino começou muito antes de Anchieta elaborar seus Autos, e dessa forma, começar a catequizar. O maior objetivo dele foi trazer para os colégiosa melhor forma de ensinar os princípios religiosos. O Auto da Pregação Universal foi o primeiro Auto escrito por Anchieta, na ocasião que estava sendo escrito comemorava-se o natal em pleno 1561. O uso do “Universal” posto no título do Auto significa que, a pregação era dirigida tanto aos brancos quantos aos índios, relacionando a religião indígena e, por conseguinte, a união entre o povo nativo e Europeu. Nesse autoobservamos três línguas, o português,o tupi e o espanhol4. Anchieta teve o objetivo de colocar os índios na peça para mostrar claramente o propósito de ensinamento, pois os padres eram postos no Auto para ensinar seus costumes e as religiões para o povo indígena e, dessa maneira, proporcionar a cultura e, ao mesmo tempo, ensinar a doutrina católica. Vale ressaltar que Anchieta também colocouanjosedemônios para representar a luta do bem contra o mal, visto que, essa luta é uma característica dos Autos medievais. Na história há dois demônios que se chamam Guaixará e Aimbiré e, foram postos em forma indígena. A história apresenta apenas um anjo e, no início aborda, o mesmo pecado que Adão cometeu. A presença marcante entre o bem e mal é constante, os demônios invadem a aldeia, nessa parte podemos estabelecer a cultura indígena em relação a invasão dos demônios. Observamos abaixo um pequeno trecho do Auto que, mostra um diálogo entre os demônios, bem comoa língua usada para escrever esse Auto: De acordo com José de Anchieta em o Teatro de José de Anchieta, arte e pedagogia no país colônia (apud PAULO HERNANDES, [s.d], p. 3) 4 Esta informações foram retiradas do artigo O teatro Anchieta no enquanto Instrumento Pedagógico analise das peças de Vanessa Campos Mariano ([s.d],p. 9) 16 Aimbirê: Jabáixébosaánga Serekoárajabaeté Xe mondyia Guaixará Abápa e? Aimbirê 135 Karaibebéporánga Xeamotareymbárañe Guaixará: Osyiñemoxykory Xerepiákarupibéne O abá (zinho), para mim Tenta-los, seu guardião, o Obá honrado, ele me Espanta Pois quem mesmo? O belo Karaibebé, meu Inimigo com efeito Osyi hoje terá medo Do meu mau olhado Com base na obra o Auto da Pregação Universal, o trecho acima expõe uma pequena fala dos demônios,mostrando, assim, a tradição indígena e também a presença do mal como já era de costume existir, esse cenário do bem e do mal. Como exemplo disso temos o objeto de nosso estudo, o escritor Ariano Suassuna, que escreveu O Auto da Compadecida(1955), o qualenvolve todo esse cenário, resgatando as características medievais, tais como os padrões religiosos proporcionados através da bíblia, transmitindo para as pessoas como seria a vida após a morte e, ao mesmo tempo, mostravam através do teatro a realidade, apresentando a farsa que existia por trás daquela imagem de santidade.O teatro atraía a atenção de todos para as histórias da bíblia, abordava assuntos relacionados à religião, mas com uma mistura de comédia, crueldade e simplicidade. Segundo Suassuna, (2004, p 140): [...] Padre Quem é? 17 João Grilo :Você ainda pergunta? Desde que cheguei que comecei a sentir um cheiroruim danado, essa peste deve ser um diabo. Demônio:Saindo da sombra, severo, Calem-se todos. Chegou a hora da verdade. Severino:Da verdade? Bispo:Da verdade Padre:Da verdade? Demônio:Da verdade, sim. João Grilo:Então já sei que estou desgraçado, porque comigo era na mentira. Padre:Mas o que foi que eu fiz... Demônio:Silêncio! Chegou a hora do silêncio para vocês e do comando para mim, e calem-se todos, vem chegando agora quem pode mais do que eu e do que vocês, deitem-se! Ouçam o que estou dizendo, senão será pior. A citação acima trata do início do juízo final em O Auto da Compadecida. Percebemos aspectos religiosos, retratando o julgamento das almas e, de acordo com o que foi abordado na citação, quem não praticou boas obras,será lançado no inferno e, os que praticaram o que era correto perante os preceitos bíblicos,herdarão o céu. Observamos características da bíblia sagrada, tanto na formação do julgamento, quanto nas características atribuídas ao demônio. Verificamos quando João Grilo conheceu o demônio pelo o cheiro, pois a bíblia adverte que o inferno arde como enxofre. Segundo a Bíblia em Apocalipse (Cap.19:20): A Besta e o falso profeta: E a besta foi presa, e com ela o falso profeta, que diante dela fizera os sinais, com que enganou os que receberam o sinal da besta, e adoraram a sua imagem. Estes dois foram lançados vivos no lago de fogo que arde com enxofre. Esse contexto retrata um pequeno trecho da bíblia que, nos mostra, como é o juízo final e também como é caracterizado o inferno o qual arde como enxofre. Suponhamos que, de acordo com o que foi citado acima, o demônio tenha de fato o cheiro enxofre, devido talvez sua habitação possuir fogo. Partiremos para uma análiseda religiosidade envolvida nos Autos de Gil Vicente e, aprofundaremos no objeto de nosso estudo, a qual vamos analisar contextos bíblicos que, de certa forma, faz uma breve intertextualidade com passagens da 18 bíblia. Verificamos a religiosidade popular, apresentando, assim, características de alguns personagens que deixa transparecer a cultura do nosso nordeste. 1.1 A religiosidade retratada nos Autos O cristianismo foi seguido por muitos na época medieval, a religião causava medo em toda população. A igreja fez com que as pessoas tivessem medo de Deus aqui na terra e depois da morte e, usou esse termo, como arma para tê-las em seu comando. A igreja exigia obediência de seus fiéis, os quais tinham que seguir as regras religiosas, não por amor a Deus, mas por medo de ser castigado. De acordo com esses fatos, a igreja católica encontrou no teatro uma forma facilitadora de discernimento sobre a obediência da época e, mesmo as peças teatrais, seguindo as doutrinas religiosas não perdiam a diversão. Para Robert Cairns em Teatro Português Medieval(apud Rosângela Divina Santos Moraes da Silva (2010, p. 89), a Igreja paganiza-se parcialmente na tentativa de solucionar os problemas advindos da invasão bárbara. Nesse sentido, muitas práticas ritualistas, padrões de vida e de costumes são incorporados ao culto cristão. Dessaforma, podemos inferir que, com a afluência dos bárbaros e o crescimento episcopal, a Igreja altera significativamente o culto; materializa a liturgia para tornar Deus mais acessível aos seus fiéis. A veneração de anjos, santos, relíquias, imagens e estátuas é uma consequência lógica deste procedimento, como também o surgimento do teatro religioso. A citação acima expõe as mudanças que a igreja passou obter, 5nesses aspectos, o teatro religioso revelou-se como entretenimento para toda população. O teatro passou adquirir os traços do paganismo, dessa forma as pessoas passaram a compreender a realidade do que ocorria por trás daquela imagem de santidade e começaram a enxergar a farsa que existia na religiosidade. 5 Estas informações foram retiradas do artigo Teatro Português Medieval de Rosângela Divina Santos Moraes da Silva (2010. p.89) 19 Toda essa mudança em relação aos cultos da igreja ocorreu devido o estado “monárquico mudar sua forma democrática simples para uma aristocrática repleta de liturgias”.6 O teatro medieval reforça a religiosidade da igreja mostrando a verdade de acordo com a bíblia. Com a criatividade de persuasão, o teatro comove as pessoas, causando emoções a todos os ouvintes. Nesse caso, “o espetáculo teatral não pode ser dissociado do lúdico, com isso torna a forma teatral mais atraente provocando risos incontroláveis”. 7 Não podendo esquecer que a forma engraçada tinha o intuito de persuadir, mostrando a realidade que existia na religião, como exemplo disso podemos citar algumas obras de Gil Vicente que retrata características bíblicas. O Auto da Barca do Inferno mostra-nos vários elementos simbólicos, pois revela a hipocrisia cristã nas vidas das pessoas da época medieval e tambémno próprio Gil Vicente. Vale ressaltar que no período medieval não só Gil Vicente, mas também o jesuíta Anchieta e o padre Manuel da Nóbrega que, escreveu O Auto do Diálogo sobre a Conversão dos Gentios, encontraram nos Autos uma forma de expressar a mentira presente na vida das pessoas que pregam uma coisa e vivem outra, certoque, também é uma forma de ironizar. O cenário do Auto da Barca do Inferno é composto pelos cavaleiros de Cristo, posto de uma forma simbólica que, no caso, são representados pelos anjos que, trata da salvação das almas no juízo final. O fato do Juízo final ser atribuído a bíblia, adverte que aqueles que praticarem o bem, conseguirão a salvação e, os que não conseguirem, serão lançados no inferno. No Auto da Alma, também escrito por Gil Vicente, presumimos uma forte característica pagã, pois apresenta um ponto relacionado ao espiritismo, quando alma fica vagando com o propósito de alcançar o paraíso. Nesse momento, segundo as doutrinas espíritas,essa alma está passando por um processo de arrependimento. Nesse Auto, a alma passa por vários conflitos, estando ela entre o bem e o mal, quando o anjo se aproximava a alma se sentia pura e livre de todos os pecados, 7 Estas informações foram retiradas do artigo Teatro Português Medieval de Rosângela Divina Santos Moraes da Silva (2010, p.90) 20 mas quando o diabo aparecia tentando seduzi-la com os prazeres terrenos, ela começava a sentir-se fraca e sua jornada tornava-se mais longa. Caracterizamos também a simbologia quando a alma rende-se e, junto com o anjo, entra na igreja e conhece todos os santos que habitam nela. Suponhamos que, essa alma não estivesse morta, estaria ali, o anjo e diabo em uma luta constante por aquela pessoa, na jornada longa da vida esse ser decide seguir o caminho do mal, passando, assim, a usufruir dos prazeres terrenos e, com o passar do tempo, a dor e o arrependimento por tudo que cometera vem à tona e, começa a sentir o peso pelos seus pecados, passando, assim, tanto sofrimento decide se render a Cristo e ir à igreja. Percebemosnessecontexto,características relacionadas ao cristianismo seguido dos princípios bíblicos. Citamos algumas dessas características atribuídas no Auto da Compadecida. Ariano resgata os princípios do teatro medieval e, apresenta aspectos religiosos atribuídos à igreja católica, mostra pessoas na peça que cometeram pecados e, que necessitavam se arrepender de suas transgressões para que pudessem herdar o paraíso, coloca-os em um purgatório para decidir seu juízo final. Juízo Final: O Diabo Lá vem a compadecida! Mulher em tudo se mete! Maria meu filho, perdoai esta alma, tenha dela compaixão! Não se perdoando esta alma, faz-se é dar mais gosto ao cão: por isto absolva ela, lançai a vossa benção. Jesus Pois minha mãe, leve a alma, leve em sua proteção. diga às outras que a recebam, faça, com ela união. fica feito o seu pedido, dou a ela a salvação. (SUASSUNA, 2008, p. 08). Neste pequeno trecho podemos ter uma base do julgamento realizado para que pudesse conceder à salvação as pobres almas. Segundo Costa, (2013, p.91) “em 21 relação ao juízo estamosnosreferindoà administração da justiça plena, o que não se limita apenas à declaração de um juiz, mas a um conhecimento amplo e profundo das pessoas e do contexto em que vivem e o seu veredicto”.Nesse momento, percebemos que o juiz é um ser que, é consciente de tudo que fazemos e cabe nos julgar de acordo com os nossos erros perante a lei. No Auto, observamos a parte do julgamento, na qualManuel que é Jesus julga as pessoas de acordo com os pecados que elas cometeram na sua vida terrena. Queremos lançar um olhar especial sobre o juízo de Manuel no Auto, sentando em um trono, Manuel diz:“Levantem-se todos, pois vão ser julgados” (SUASSUNA, p. 125). E a partir desse momento que começa o julgamento dos personagens, que depois da morte se encontram com Jesus. O ato de se levantar para iniciar o julgamento é uma característica atribuída ao tribunal civil 8 .Esse momento de julgamento, no Auto da compadecida, nos faz recordar de uma passagem bíblica. Segundo o Evangelho de Mateus (Cap.25, 31-32): Quando o Filhodo Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os seus anjos, ele se assentará em seu trono glorioso. Todas as nações da terra serão reunidas diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. A citação acima nos mostra essa passagem retirada da própria bíblia, expressando, assim, como será o juízo final. No Auto da Compadecida, encontramos semelhanças na parte do julgamento, Cristo como o juiz, sentado em um trono, o poder e a autoridade estava em suas mãos. Com base nisso, vale ressaltar que, a obra de Suassuna, segue a religiosidade popular, como citamos, a imagem de Cristo na obra, apresentou uma breve intertextualidade com a bíblia, numa passagem bíblica em relação ao juízo final que, apresentava semelhança no Auto da Compadecida. Cada personagem na obra representa uma característica popular. Como outro exemplo, temos Severino que, mantinha um enorme desejo de ver padre Cícero. Seduzido por esse desejo, pediu para que seu cangaceiro atirasse nele, pois 8 Estas informações foram acatadas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa (2013, p. 53) 22 acreditava que se encontraria com padre Cícero. “Meu Padrinho PadreCícero” ou maneira falada pelo povo “Meu padim pade Ciço” (SUASSUNA, p. 106). Essa devoção do padre Cícero continua na maioria dos nordestinos. Outra figura é o diabo, através desse meio religioso podemos conhecer várias estórias atribuídas ao diabo e que ganhou vários nomes comomolambudo, pé-preto, chifrudo, bode sujo etc9. Em todas a estórias apresenta uma fama de perdedor, pois como se trata de um Auto relacionado aos tempos medievais,sempre mostrava essa luta do bem contra o mal. Segundo Costa (2013, p.51): O Auto da Compadecida reúne, de maneira exemplar, como podemos ver, um conjunto importante de crenças religiosas típicas de nosso povo. É um espelho onde se vê refletido o rosto do ser humano, dentro de uma realidade espacial, cultural e religiosa muito específica, transformada em literatura por um dos gênios da dramaturgia brasileira. Diante do exposto, podemos falar que a obra funciona como um palco, onde tudo isso nos é apresentado, convidando a teologia para refletir sobre o que a arte representou entre o abrir e o fechar de cortinas dessa extraordinária peça de teatro. Com base no que foi proposto acima, observamos que de um modo geral, Ariano em O Auto da Compadecida tem o intuito de preservar a cultura nordestina, a nosso ver, a obra reflete a realidade do que acontece no nordeste e que, de certa forma, essa cultura merece ser valorizada pelos os próprios nordestinos. De acordo com nossa perspectiva, percebemos que Ariano valoriza a nossa cultura e, agora dando continuidade, partiremos para conhecer a trajetóriade Ariano, verificando sua vida pessoal o que, por sua vez, reflete na sua carreira profissional. Vamos abordar como deuinício a sua carreira na literatura. 9 Estas informações foram acatadas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa (2013, p. 108) 23 2. ARIANO SUASSUNA Ariano Vilar Suassuna, nasceu em 16 de junho de (1927)10e vivenciou uma época de reformas políticas e tributáriasna cidade que hoje chamamos de João Pessoa, mas queatéo ano de 1930 se chamava Nossa Senhora das Neves; é o oitavo filho de João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna e Rita de Cássia Dantas Villar. Ariano e sua família passaram os primeiros anos em uma fazenda na Paraíba que se chamava Acauã. Durante esse período, no ano de 1924, o pai de Ariano teve o privilégio de ser presidente do Estado da Paraíba e, depois desse período, passou sua posição para João Pessoa. Segundo Costa (2013, p. 27): João Pessoa deu início ás reformas políticas e tributárias, afetando diretamente produtores e comerciantes de algodão, o que contribuiu com o processo de enfraquecimento do poder político dos “coronéis”. Umasériede intrigas políticas teve como desfecho o assassinato de João Pessoa por um representante dos clãs da oposição sertaneja. Nesta época, João Pessoa, sucessor do pai de Ariano estabeleceu várias mudanças e,devidoas intrigas políticas, João Pessoa foi assassinado por um representante dos clãs da oposição sertaneja.Em9 de outubro de 1930 no Rio de Janeiro,João Suassuna, pai de Ariano também foi assassinado por um pistoleiro 11 .Depois de vários acontecimentos,em 1933, Ariano junto com sua família decide se mudar para Taperoá,uma pequena cidade no sertão da Paraíba aonde permaneceu durante 10 anos, sendo que esse período foi essencial para sua carreira literária,com isso, Taperoá foi considerada o centro de seu universo artístico12. Com o passar do tempo, Ariano passa a morar em Recife e começa a estudar em um colégio americano batista, a qualidade de ensino superava às expectativas de Ariano, pois abordava assuntos relacionados ao cristianismo. Ariano sentia-se ligado ao protestantismo devido a sua avó materna, dona Afra quese encontrava muito doente e contou com a assistência de um médico norte americano e protestante 10 Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa, (2013, p.26) 11 Idem (2013, p. 27) 12 Idem(2013, p.27) 24 Samuel Butler. Com sua melhora, ela decidiseguir o protestantismo junto com sua filha, mãe de Ariano.13 Percebemos que Ariano sempre esteve em contato com a religião, não só na estória de sua vida, mas também em suas obras. Ariano já sonhava desde dos 12 anos ser um escritor, quando criança arrancava pedaços de livros que lia e colocava na boca, o que levou ele ser um verdadeiro devorador de livros14. Ariano possuía desejos por apresentações, eleconsiderava o circo como umas das melhores festasno sertão nordestino, um fato que ficou marcado nainfância de Ariano. O palhaço Gregório, do circo Stringhini era considerado um dos melhores artistas para Ariano e esse artista admirado por nosso autor, foi posto no Auto da Compadecidacomo palhaço narrador. No Início da peça, o Palhaço (ou Suassuna) (2014,p.23) diz: o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo que sofre tem direito a certas intimidades. Percebemos que o palhaço foi posto na obra como o apresentador, analisamos que o termo popular adquirido pelo palhaço lhe permite intimidades e uma ligação com a religiosidade popular e a forma simples de como a pessoas serviam a Deus 15 . Portanto não podemos esquecer que o palhaço era uma figura admirada por Suassuna na sua infância e, de acordo com o nosso ponto de vista, esse personagem também foi posto como narrador no Auto da Compadecida por ser uma lembrança predileta do seu passado. Assim verificamos no Auto da Compadecida (2004, p. 22,23): “Palhaço: Auto da Compadecida! o julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade”. 13 Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa, (2013, p. 27) 14 Idem( 2013, p. 28) 15 Idem (2013, p. 28) 25 Esse pequeno trecho nos mostra o momento em que o palhaço dá a abertura a peça. De acordo com Ariano Suassuna em o Tribunal de Manuel:Aspectos Teológicos na obra o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (apud VICTOR, 2013, p.28) Depois de assistir aos espetáculos, eu ficava dias e dias repetindo exatamente tudo o que os palhaços haviam dito, as brincadeiras, as graças. Minhamãe eminhas irmãs se cansavam da mesma história – uma delas chorou depois de tanto eu repetir as brincadeiras de Gregório”, não esquece Ariano. Além do circo, o teatro marcou os momentos deinfância de Suassuna, como o teatro dos mamulengos que é conhecido em outros lugares do nosso Brasil como marionetes.Devido a essas experiências atribuídas na infância como recordação, escreve em 1959 uma peça teatral que se chama A Pena e a Lei. No primeiro momento dessa peça os personagens se apresentam iguais aos mamulengos. De acordo com esses momentos vividos por Ariano, podemos perceber seu talento que gerou um marco na literatura.No ano de 1946, o autor decidiu entrar na faculdade de Direito na cidade de Recife e neste mesmo ano, Ariano teve o privilégio de organizar o teatro de estudantes de Pernambuco (TEP) o qual teve Hermilo Borba Filho como diretor16. Forma-se em direito e logo após decide abandonar essa profissão e seguir o seu lado artístico. Entretanto, notamos que nosso autor teve uma grande carreira de vida e não podendo esquecer que, logo após abandonar a profissão de direito, ele decidiu se casar com Zélia deAndrade Lima. O romance entre Zélia e Ariano vem de muitos anos como era comum em famílias tradicionais, devido à influência de sua esposa ele optou pelo catolicismo. De acordo com o nosso ponto de vista, Ariano é muito envolvido com religiões, pois conheceu protestantismo e logo após o catolicismo,percebemos que devido esse envolvimento com a religiosidade, o escritor adquiriu conhecimentos para expor em suas obras. 16 Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos Teológicos na obra o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa, (2013, p.28) 26 Dando continuidade na carreira do escritor Ariano, sua primeira peça teatral foiUma Mulher Vestida de Sol, foi sua primeira obra de teatro e, em 1994 teve o privilégio de ser apresentada pela rede globo.Ariano tinha o desejo de valorizar a nossa cultura nordestina e, dessa forma, junto com outras pessoas que eram envolvidas com o lado artístico criaram o MovimentoArmorial 17 . Esse movimento focava na arte brasileira erudita e na cultura popular. O evento para o lançamento desse movimento aconteceu em Recife, foi apresentada uma orquestra 18 Armorial de Câmera com o título:Três Séculos de Música Nordestina: do Barroco ao Armorial. Esse evento apresentou exposições de gravuras, pinturas e esculturas na igreja de São Pedro dos Clérigos também em Recife. De acordo com Suassuna (apud COSTA, 2013, p. 29) Descobri que o nome ‘Armorial’servia, ainda, para qualificar os “cantares” do Romanceiro, os toques da viola e rabeca dos Cantadores – toques ásperos, arcaicos,acelerados como gumes de faca-de-ponta, lembrando o clavicórdio e a viola-de-arco da nossa Música Barroca do século XVIII. O Objetivo do Movimento Armorial é divulgar a cultura nordestina, valorizar a cultura não apenas pelas pessoas nordestinas, mas também pelo meio artístico. Como prova da existência dessa cultura, podemos vê-la nos contos populares, nos folhetos e nas xilogravuras. Com isso foi criado uma arte brasileira erudita tendo como base a nossa cultura e como prioridade o espaço nordestino, sertanejo e rural. A armorialidade está composta em três elementos: a literatura popular do nordeste como modelos poético; os modos de recriação da literatura oral e as relações entre as artes19. Depois desse movimento, Ariano teve o privilégio de ser eleito em 09 de agosto de 1990 para Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira número trinta e dois, 17 Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa, (2013, p.29) 18 Idem(2013, p. 29) 19 Idem (2013, p.30) 27 também foi eleito para academia pernambucana de letras, posto na cadeira número oito.20 Ariano escreveu várias obras, para conhecermos o talento do nosso autor,podemos citar algumas obras que foram escritas: 21Uma Mulher Vestida de Sol (1947); O Desertor de Princesa (Cantam as harpas de Sião) (1948); Os Homens de Barro (1949); Auto de João da Cruz (1950); Torturas de um Coração ou Boca Fechada não entra Mosquito (1951); O Arco Desolado (1952); O Castigo da Soberba (1953); O Rico Avarento (1954); Auto da Compadecida (1955); História de Amor de Fernando e Isaura (1956); O Casamento Suspeitoso e O santo e a Porca (1957); O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna (1958); A Pena e a Lei (1959); Farsa da Boa Preguiça (1960); A Caseira e a Catarina (1962); O Seguro(1964); O Sedutor do Sertão (1966); Romance d‟A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do vai-e-volta (1971); História d‟O rei Degolado nas Caatingas do sertão: Ao Sol da Onça Caetana (1976); História d‟O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão:As Infâncias de Quaderna (1977). Ariano teve uma grande carreira de vida como pessoa e como escritor.Observamos que suas experiências vividas na infância até os dias de hoje foram eficazes diante do que o autor se tornou. Mostramos acima várias obras de Ariano e, muitas dessas obras refletem suas experiências de vida, como exemplo disso, iremos tratar do objeto de nosso estudo o qual vamos analisar as crenças nordestinas na obra o Auto da Compadecida. 2.1O Auto da Compadecida: um recorte do Nordeste Na década de 1910, o nordeste não tinha reconhecimento, as pessoas tinham uma visão de que o nordeste era um lugar de pessoas simples e de miséria.Todavia, percebemos que o Nordeste foi alvo de muito preconceito que surgiu junto com a 20 Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa. 21 Estas informações foram retiradas das do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa. 28 visão estereotipada dos intelectuais do Sul e Sudeste, entre eles Oswald de Andradeque preferiu cantar a cidade. Portanto, podemos salientar que o Sul e o Sudeste, por sua vez,tem sua população formada por pessoas branca e moderna, por receber influência de imigrantes estrangeiros e possuir uma temperatura climática favorecida ao seu rápido desenvolvimento e progresso,22 enquanto que o nordeste traz consigo a imagem de uma região precária, na qual o clima é desfavorecido, a população é sofrida e devastada pela miséria, pela fome, pela seca e formada de mestiços. Segundo Durval Muniz de Albuquerque Jr.(2001, p. 62) Seja na imprensa do Sul, seja nos trabalhos dos intelectuais que adotam os paradigmas naturalistas, seja no próprio discurso da seca, o Norte aparece como uma área inferior do país... A certeza de que o rápido desenvolvimento do Sul, notadamente São Paulo, se explicava por ser um Estado de clima temperado e raça branca, levava a que não tivesse dúvidas do destino desta área, puxar o trem descarrilhado de uma nação tropical mestiça. O Norte ficaria naturalmente para trás. Diante da citação exposta acima, inferimos claramente o quanto o nordeste foi vítima de uma desvalorização, diga-se de passagem dolosa, pois as pessoas se limitavam a observar as condições naturais, limitavam-se a examinar o clima que, talvez, fosse desfavorável ao desenvolvimento e progresso. Embora o nordeste vivenciasse uma situação climática adversa, essa adversidade não foi empecilho para o nordeste criar sua própria identidade, pelo contrário, percebemos que sua construção cultural surge a partir desses infortúnios. Ou seja, mesmo diante de tantos problemas sociais, o Nordeste buscou sua própria característica, seu próprio estilo, construiu sua autenticidade. Segundo, Maria Cristina Jorge de Carvalho em Identidades Culturais e Cultura Nordestina (2008, p.6): 22 Estas informações foram retiradas do artigo Identidades Culturais e Cultura Nordestina de Giselle, Marcelle Trindade Bezerra, Maria Cristina Jorge de Carvalho e Rosângela Soares, (2008, p. 6). 29 A identidade enquanto uma construção simbólica faz-se presente nas músicas de forró em relação à região, com seus traços culturais característicos-costumes, crenças e valores morais - que interage com outros referentes indenitários, como a natureza e seus componentes especificamente regionais: o solo, o sol, os animais, os pássaros, o clima quente. Nessa perspectiva, verificamos que através da música podemos identificar traços característicos do nordestino, entre eles, as crenças, os costumes e os valores morais, sendo assim, uma espécie de porta-voz na qual, descreve toda paisagem natural, entre outros, o solo, o clima, os animais, os pássaros, deixando claro a referência da região nordestina. Dando continuidade à construção cultural do nordeste, não podemos esquecer de Luiz Gonzaga o qual foi contribuinte singular para a divulgação da cultura nordestina em outras regiões do país. Podemos encontrar nas músicas de Gonzaga, adescrição climática da paisagem nordestina, as adversidades enfrentadas pelos nordestinos, bem como seu êxodo. Assim podemos ver na música de Luiz Gonzaga (1947) Quando olhei a terra ardendo. Qual a fogueira de São João. Eu perguntei a Deus do céu, ai. Por que tamanha judiação. Eu perguntei a Deus do céu, ai. Por que tamanha judiação. Que braseiro, que fornalha. Nem um pé de prantação. Por falta d'água perdi meu gado. Morreu de sede meu alazão. Por farta d'água perdi meu gado. Morreu de sede meu alazão. Inté mesmo a asa branca. Bateu asas do sertão. Então eu disse, adeus Rosinha.Guarda contigo meu coração. De acordo com a citação acima, a nosso ver, podemos observar a precariedade que os nordestinosenfrentavam em período de seca, que por sua vez, levava muitos a migrarempara região Sul e Sudeste, deixando de lado sua família e sua terra em busca de melhores condições de vida, assimsujeitavam-se a trabalhos inferiorizados e a mão de obra, diga-se de passagem escrava, imaginamos como é difícil deixar sua cultura para se adaptar a uma outra cultura diferente. Dando continuidade podemos verificar que o nordeste, segundo Albuquerque Jrem Dos falares do Brasil ao falar do Nordeste (apud COSTA, 2011, p.4): 30 torna-se tema privilegiado por causa dos seus problemas sociais e por ser uma área subdesenvolvida, mas é a área mais nacional do ponto de vista cultural. A região sudeste do país teve muitas influências de outras culturas, principalmente depois do surgimento das indústrias, que ocasionou a vinda dos imigrantes. No Nordeste, houve uma construção da cultura nordestina com os próprios elementos regionais. Caracterizamos que a construção cultural do Nordeste é um momento de transformação da região, é o momento no qual esta região busca sua identidade, onde as adversidades, as crisessão temáticas discutidas no sul e sudeste. Todavia, o Nordeste não deve ser lembrado apenas pelas crises do passado, embora que esse passado também faça parte de sua construção cultural. Portanto depois de tantos momentos difíceis, a região nordeste consegue ser marcada pela sua cultura.Porém,vale salientar para que a transformação da região acontecesse, muitos nordestinos, entre eles Gilberto Freyre,intelectuais, políticos e artistas da região se organizaram e, de diversas formas, nas artes, nas produções literárias, jornalísticas, entre outras buscaram uma maneira de mostrar quem são e para que veio23, com isso surge o que denominamos cultura nordestina. Como afirma Albuquerque Junior em Construção da Imagem do Nordestino / Sertanejo na Constituição da Identidade (apud VASCONCELOS, 2006, p.4): Uma nova consciência do espaço surge, principalmente, entre intelectuais que se sentem cada vez mais distantes do centro de decisão, do poder, seja no campo político, seja no da cultura e da economia. Uma distância tanto geográfica, quanto em termos de capacidade de intervenção. Diante da citação acima, a nosso ver, percebemos que o poder, as decisões estavam centradas na região Sul/Sudeste, com isso os intelectuais nordestinos da época estavam se sentindo excluídos dentro de seu próprio país, estavam cada vez mais distante de participar diretamente das decisões que poderia ser tanto no 23 Essas informações foram retiradas do artigo A Construção da Imagem do Nordeste / Sertanejo na Constituição da Identidade Nacional de Claudia Pereira Vasconcelos (2006, p.4). 31 campopolítico, culturalou econômico. A partirdeste sentimento de exclusão, nasce uma reflexão, que por sua vez, gera vários discursos com temas que abordam os costumes,as manifestações culturais e as práticas sociais. Portanto, a partir daí, surge a segregação do Brasil em dois Brasis, um era atrasado, miserável, rural e ficava esquecido na parte de cima que era a região Norte/ Nordeste e o outro era moderno, rico, industrializadoque era parte de baixo a região Sul/Sudeste. Dando continuidade à construção cultural do nordeste, não podemos esquecer de Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido como Patativa do Assaré, pois ele, entre outros, os quais citamos anteriormente, através de seus poemas, contribuiu para a construção cultural do nordeste, mostrando a segregação do Brasil em dois brasis. Ressaltamos que um era tido como o Brasil ideal o qual ficava na parte de baixo, que por sua vez, era prospero, e o outro era tido como o Brasil real o qual ficava na parte de cima, que por sua vez, era atrasado,24bem como denunciando as diferenças sociais que existiam entre eles. De acordo com Patativa do Assaré(1978, p. 271-272.) em Cante lá que eu canto cá, Meu compadre Zé Fulo, Meu amigo e companhêro, Faz quage um ano que eu tou Neste Rio de Janêro; Eu saí do Cariri Maginando que isto aqui Era uma terra de sorte, Mas fique sabendo tu Que a misera aqui no Su É esta mesma do Norte. Tudo o que procuro acho. Eu pude vê neste crima, Que tem o Brasi de Baxo E tem o Brasi de Cima. Brasi de baxo, coitado! É um pobre abandonado; O de Cima tem cartaz, Um do ôtro é bem deferente: Brasi de Cima é pra frente, Brasi de Baxo é pra trás. 24 Essas informações foram retiradas do artigo A Construção da Imagem do Nordeste / Sertanejo na Constituição da Identidade Nacional de Claudia Pereira Vasconcelos (2006, p.3). 32 Aqui no Brasil de Cima, Não há dô nem indigença, Reina o mais soavecrima De riqueza e de opulença; Só se fala de progresso, Riqueza e novo processo De grandeza e produção. Porém, no Brasi de Baxo Sofre a feme e sofre o macho A mais dura privação.[...] Podemos observar no poema acima, a separação e as diferenças sociais que há entre a região Sul/Sudeste e aregião Norte/Nordeste, aquela marcada pelo progresso, pela riqueza, pela modernidade e pelo clima favorável,esta caracterizada pelo atraso, pela pobreza, pela dor, pelo clima precário e desfavorável. Mas dando seguimento à construção cultural nordestina não podemos deixar de citar Ariano Suassuna, que por sua vez, contribui para construção cultural do nordeste. De acordo com Albuquerque Junior(2011, p.99) em A Invenção do Nordeste e outras artes: Na sua luta contra a história, Ariano constrói o Nordeste como o reino dos mitos, do domínio do atemporal, do sagrado, da indiferenciação entre a natureza e sociedade. Lançando mão do gênero epopeico, das estruturas narrativas míticas e, principalmente, das estruturas narrativas e do realismo mágico da literatura de cordel, Ariano inventa seu Nordeste, reino embandeirado, épico e sagrado. Um espaço sertanejo, inventado a partir da vivência do autor na cidade, do agenciamento de lembranças e reminiscências de infância e de uma grande quantidade de matérias de expressão populares. Um espaço ainda não desencantando, não dessacralizado, um reino dos mistérios, onde o maravilhoso se mistura à mais cruel realidade e lhe dá sentido. Ariano retrata o Nordeste a partir de seus momentos vivenciados na infância até a fase adulta, essas experiências serviram para Ariano idealizar o Nordeste como um mundo versificado de cultura e tradição,usando, assim as formas narrativas do cordel como forma de representar esta região do país. Segundo Albuquerque Júnior, podemos dizer que Ariano encontrou nas suas obras a forma adequada de representar um espaço que não se limitava em expor o real e o imaginário; entre os personagens que mostrava sentimentalismo e os que não amavam; entre o que seguia o bem e o pagão; entre o que apresentava momentos 33 trágicos e o comediante; entre aquele que nos mostrava loucura e o que representava a razão25. Portando, a partir daí, podemos inferir que Ariano constrói o seu próprio nordeste, um nordeste ornamentado de questões típicas do contexto social nordestino, das quais fazem parte a seca, a fome, a resistência do sertanejo, entre outras. Portanto dando continuidade, podemos observar no Auto da Compadecida que o personagem Chicó apresenta alguns desses predicativos que foram expostos anteriormente. Percebemos que na obra ele é caracterizado comoum homem frouxo e cômico. Frouxe, pois estava sempre com medo e cômico porque as suas respostas possuíam um tom de humor, tornando assim, o desenrolar da história engraçada. Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p. 80): [...] João Grilo: E Então? Reaja, Chicó, seja homem! Chicó, eu não. Reaja você! João Grilo: Você não é homem não, Chico? Chicó: Eu sou homem, mas sou frouxo De acordo com esse pequeno trecho, analisamos que Chico não tinha coragem e se considerava frouxo diante de algumas situações, ao contrário de João Grilo, pois era esperto, não o consideramos corajoso, mas, sim astuto, haja vista que a “astucia é a coragem do pobre”26. Segundo Suassuna, em O Auto da Compadecida, a cultura e a inovação tecnológica(apud SOUZA, p.220): O João Grilo é um personagem arquetípico. Ele é um personagem que partiu da cultura brasileira em geral, e nordestina em particular, não é. Ele é um homem, que aqui existe um ditado que diz: astúcia é a coragem do pobre. Ele não pode ser corajoso,não. Ele tem que ser astuto. 25 Estas informações foram retiradas do livro A Invenção do Nordeste de Durval Muniz de Albuquerque Jr (2011, p.99) 26 Estas informações foram retiradas do artigo O auto da Compadecida, A Cultura e a Inovação Tecnológica (2003, p. 221)de Maria Isabel Amphilo Rodrigues de Souza 34 Grilo possui características do Nordeste brasileiro, várias vezes era chamado de amarelo safado porque tinha suas ideias e com elas lutavam todos os dias para conseguir o que comer, o pobre tinha que ser esperto para sobreviver a fome do sertão, consideramos que só os fortes resistiam a seca do sertão. Diante do que foi abordado defendemos a figura de João, pois ele mentia para sobreviver, para conseguir seu alimento diário. Na obra verificamos que o animal era humanizado e a animalização do ser humano. Isso fica evidente no momento em que Chicó e João Grilo observam que a cachorra come bife passado na manteiga, o mesmo que os patrões comiam, enquanto os dois só comiam as sobras. Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p.39) [...]João Grilo:Ó homem sem vergonha! Você inda pergunta? Está esquecido de que ela o deixou? Está esquecido da exploração que eles fazem conosco naquela padaria do inferno? Pensam que são o cão só porque enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o cachorro. Até carne passada na manteiga tinha. Para mim, nada, João Grilo que se danasse. Um dia eu me vingo. Observamos que João Grilo não aceitava aquela situação, sentia-se incomodado com a realidade do Nordeste, pois quando surgia um emprego é para exploração. Suassuna expõe esses problemas como forma de tratar de assuntos tão reais que são vivenciados no Nordeste, a exploração da mão de obra, os maus tratos com os funcionários que não tinham direito a nada. Dando continuidade, percebemos que Ariano idealizava popularizar o teatro, seguindo esse objetivo adotou uma linguagem regional, que deixasse visível os aspectos culturais. O próprio Ariano nos mostra um Nordeste marcado pelo sertão das caatingas, a cidade apresentava um cenário simples com ruas empoeiradas e que tinha a igreja como principal destaque onde as principais autoridades são o padre, o delegado e o juiz, esses são personagens que mostram ter um absoluto poder no sertão. Dando continuidade, o Nordeste tornou-se conhecido devido os fatores que ocorriam na própria região, e o nordestino identificado pelo seu sotaque. Portanto, podemos 35 ressaltar que o sotaque também faz parte dessa identidade cultural do Nordeste, pois todo nordestino é caracterizado pelo seu modo próprio de entoar as palavras. A partir daí podemos citar a literatura de cordel,pois é uma das peculiaridades da cultura nordestina e nos mostra perfeitamente o sotaque nordestino em diferentes relações típicas da região. De acordo com José de Ribamar Lopes emA Literatura de Cordel no Âmbito da Educação Transversal(apud SANTANA, 2009,p.12): Criações artísticas de ordem popular, pelo imprevisto da imaginação, pela delicadeza da sensibilidade, pelo poder de observação, pela força de expressão, pela intuição poética, pelo arrojo das imagens, pelo sentido de crítica, de protesto e de luta social que muitas vezes apresentam, estão a exigir a atenção dos estudiosos. Podemos perceber diante da citação acima que, o cordelé uma manifestação artística que, por meio de poesia, foi um instrumento fundamental para mostrar aquelas pessoas que não sabiam ler, o sofrimento de um povo, os sentimentos, as frustrações, as adversidades, os medos, bem como as inquietações do tempo. Dando seguimento, o cordel no Auto da Compadecida é retratado através dos personagens Chicó e João Grilo, quando ambos vão se comunicar mostram traços da literatura cordel27. Podemos ver também que, no o Auto da Compadecida, em meio a tantos problemas e corrupções existentes no desenrolar da estória,Ariano expõe esses contos em forma de humor. No caso do livro em análise,na fala de Carolina Soares Hissa em O Auto da Compadecida: Uma análise do personagem Chicó e dos níveis de conhecimento([s.d], p.11): Suassuna se utiliza de situações humorísticas para falar de assuntos como a miséria humana, a mesquinharia das pessoas, o racismo e a luta pelo poder. São Encontradas informações complementares acerca dos costumes regionais, o caráter religioso e católico dos cristãos que realçam e delimitam o cenário e a sociedade retratada pelo autor. 27 Estas informações foram retiradas do artigo Dos falares do Brasil ao falar do Nordeste de Adriana Freitas da Silva Costa, (2011, p.6) 36 Percebemos que Suassuna, na Obra O Auto da Compadecida, traz assuntos reais que fazem parte do cotidiano das pessoas do nordeste e os colocam de uma forma engraçada para chamar atenção do leitor para a realidade do que acontece nesta região. A obra teveo nordeste como principal cenáriopara realização dos fatos, retratava os personagens com sotaque nordestino. Vale ressaltar que Ariano não define uma regiãoe nem as variações linguísticas, suponhamos que pelo fato de ter sido realizada no Nordeste, o sotaque, evidentemente venha ser do povo nordestino, e de certa forma, Suassuna expressa uma linguagem popular. Assim podemos observar no Auto da Compadecida (2004, p.155): [...]João Grilo: O senhor me desculpe, mas a língua fica balançando na boca que chega a me dar uma agonia. Eu posso ouvir um safado desses dizendo que prestava e ficar calado? Manuel: Deixe a acusação para o colega dele. Sacristão: Colega? Manuel: É brincadeira minha, mas, depois que João chamou minha atenção, notei que o diabo tem mesmo um jeito assim de sacristão. Encourado: Protesto contra essas brincadeiras. Isso aqui é um lugar sério Manuel: Calma, rapaz, você não está no inferno. Lá, sim, é um lugar sério. Aqui pode-se brincar. Faça a acusação do sacristão. O trecho acima nos mostra uma parte do julgamento, onde João Grilo tira brincadeira com diabo. Neste dialogo percebemos que O Auto da Compadecida possui uma linguagem simples e acessível para que as pessoas venham compreender da melhor forma. As situações ocorridas na obra se passam na cidade de Taperoá, no interior da Paraíba, tratava-se de um lugar que não possuía um elevado grau de ensino e mantém a sustentação das relações entre as classes sociais relacionadas no coronelismo, no poder e na religiosidade da Igreja Católica28 Com base no que foi proposto acima, inferimos que na obra O Auto da Compadecida ospersonagenscomoo padeiro e sua esposa, o padre e o bispo apresentam uma suposta personalidade de pessoas tementes a Deus e, essas características vem desde do coronel até o cangaceiro, não podendo esquecer da presença marcante de Chicó, pois através dele, percebemos o conhecimento 28 Estas informações foram retiradas do artigo O Auto da Compadecida: Uma análise do personagem Chicó e dos níveis de conhecimento de Carolina Soares Hissa([s.d],p. 52) 37 popular nos momentos em que Chicó tenta explicar os seus contos, inúmeras vezes quando vai contar uma mentira, ele responde: “ Não sei. Só sei que foi assim”. Assim podemos no Auto da Compadecida(2004, p.26, 27): Chicó Bom, eu digo assim porque sei comoesse povo é Cheio de coisas, mas não é nada de mais. Eu mesmo já tive um cavalo bento. João Grilo:Que é isso, Chico? (Passa o dedo na garganta.) Já Estou ficando por aqui com suas histórias. É sempre umacoisa toda esquisita. Quando se pede uma explicação, vem sempre com “não sei, só sei que foi assim”. Chicó:Mas se eu tive mesmo o cavalo, meu filho, o que é que eu vou fazer? Vou mentir, dizer que não tive? João Grilo:Vocêvem com uma história dessas e depois se queixa porque o povo diz que você é sem confiança. Chicó:Eu, sem confiança? Antônio Martinho está para dar as provas do que eu digo. João Grilo Antônio Martinho? Faz três anos que ele morreu. Chicó: Mas era vivo quando eu tive o bicho João Grilo:Quando você teve o bicho? E foi você quem pariu o cavalo, Chico? Chicó: Eu não. Mas do jeito que as coisas vão, não me admiro mais de nada. No mês passado uma mulher teveum, na serra do Araripe, para os lados do Ceará. Na história aparece um momento em que os dois amigos, Chicó e João Grilo vão tentar convencer o padre a benzer o cachorro da mulher do padeiro. João Grilo sempre tinha um jeito de convencer as pessoas e, com suas invenções, conseguiu enganar o padre. Assim podemos ver no Auto da Compadecida(2004, p.26): João Grilo – Não vai benzer? Por quê? Que é que um cachorro tem de mais? Chicó – Bom, eu digo assim porque sei como esse povo é cheio de coisas, mas não é nada de mais. Eu mesmo já tive um cavalo bento. João Grilo – Que é isso Chicó? (passa o dedo na garganta) Já estou ficando por aqui com suas histórias. É sempre uma coisa toda esquisita. Quando se pede uma explicação, vem sempre com “não sei, só sei que foi assim”. 38 Neste momento, ambos estavam crendo na possibilidade do padre atender ao pedido da dona do cachorro. Embora parecesse estranho, mas, de certa forma não deixavade existir uma crença por parte da dona do cachorro, pois estava crendo que depois que o padre benzesse seu cachorro, ele sobreviveria. A dona do cachorro que no caso é a esposa do padeiro,apresenta-se na história como uma mulher oferecida, pois trai o seu marido saindo com vários homens e, a nosso ver podemos perceber que todos sabiam de seu adultério até mesmo o padre, mas não tomava nenhuma providencia, pois a mulher colaborava com a igreja, percebemos que padre é posto como interesseiro por isso não tomava nenhuma atitude contra ela. Não podendo esquecer-se do personagem Severino que, trata-se de um cangaceiro, que mata para roubar, pois devido ter sido desprezado pela as pessoas da cidade, decide se vingar, Severino(SUASSUNA, 2004, p.111) diz que “vergonha é uma mulher casada na igreja se oferecer desse jeito. Aliás já tinha ouvido falar que a senhora enganava seu marido com todo mundo. “Severino depois de ter ido à casa do padeiro aparece na igreja com intuito de matar todos. A partir daí, João Grilocoloca em pratica sua astucia e, juntamente com Chicó, decidem amarrar uma bexiga com sangue na barriga e aproveitar a oportunidade para mostrar que tinha uma gaita milagrosa, abençoada pelo padre Cícero. Inferimos nesse contexto uma realidade vista em nossos dias atuais, onde muitas pessoas se aproveitam da fé para obterem lucros, como prova disso temos a citação abaixo que descreve como João Grilo usou o termo da gaita abençoado pelo padre Cícero,(SUASSUNA, 2004, p.123 e 124): João Grilo: Agora vou dar uma punhalada na barriga de Chico. Chicó: na minha, não João Grilo: Deixe de moleza. Depois eu toco na gaita e você fica vivo de novo! (Murmurando, a Chico.) A bexiga, a bexiga! [...] Chicó: Então vamos fazer o seguinte: você leva a punhalada e quem toca na gaita sou eu. João Grilo: Homem, sabe do que mais? Vamos deixar de conversa. Tome lá! Morra, desgraçado! [...] João Grilo: está vendo o sangue? Severino: Estou. Vi você dar a facada, disso nunca duvidei. Agora, quero ver você curar o homem 39 João Grilo: é já, começa a tocar na gaita e Chico começa a se mover no ritmo da musica, primeiro uma mão depois as duas, os braços, até que se levanta como se estivesse com dança de São Guido. Quando Chicó retorna, descreve o céu, relatando que viu Nossa Senhora e Padre Cícero. Severino fica perplexo quando Chicó relata o que Padre Cícero falou (2004, p.125): Chico: Disse: “essa é gaitinha que eu abençoei antes de morrer. Vocês devem dá-la a Severino, que precisa dela mais do que vocês. Severino: Ah meu Deus, só podia ser Meu Padrinho Padre Cícero mesmo. João, me dê essa gaitinha Notamos que Chicó e João Grilo aproveitaram da crença de Severino para enganálo. Percebemos que apesar de Severino ser um homem perverso, mantinha a sua crença no padre Cícero.Podemos ressaltarque é de costume do povo nordestino possuir essa crença. Como falamos de crenças no Auto da Compadecida, analisamos que elas são importantes para construção cultural do Nordeste, podemos ressaltar os romeiros que idolatram a estátua do padre Cícero em juazeiro do Norte e é de costume de muitas cidades nordestinas possuir essa crença. Segundo Daniel Walkerem Fé e Identidade sacra: O espaço sagrado de Juazeiro do Norte/Ce (apud Cláudio PEREIRA, [s.n], p. 41): O lançamento da pedra fundamental de uma capela em honra de Nossa Senhora das Dores, em 15 de setembro de 1827, no local denominado Fazenda Tabuleiro Grande (município do Crato), de propriedade do brigadeiro Leandro Bezerra Monteiro, marca o início da história do lugar que hoje é a cidade de Juazeiro do Norte (...) Conta-se que três frondosos juazeiros existentes em frente à capela, a margem da antiga estrada Missão Velha – Crato - passaram a ser pousada obrigatória de viajantes e tropeiros, que viviam em andanças pelos sertões. Com o tempo, começaram a surgir às primeiras moradias e pontos de negócios, tendo início o povoado. De acordo com que foi proposto acima, podemos ver como se formou Juazeiro do Norte, cidade que fica localizada no interior do Ceará e que ficou conhecida como cidade santa, isso devido a sua história, bem como as peregrinações que os 40 romeiros fazem todo ano, os quais, por sua vez, sobem em uma colina para verem a estátua de padre Cícero e rezarem aospés dela. Salientamos que padre Cícero é um personagem singular na história de Juazeiro do Norte e que sua formação deve-se a ele, pois quando ele fixou morada em Juazeiro, a cidade era um aglomerado de pessoas, só havia duas ruas, a partir daí ele inicia um trabalho evangelístico e moralizador, combatendo a bebedeira, a prostituição, entre outros problemas29. É importante ressaltar que, talvez padre Cícero tenha sido considerado um exemplo no catolicismo popular. Embora ele ainda não tenha sido canonizado pela cúpula da igreja católica, já é considerado santo por muitos estados brasileiros, principalmente no Nordeste. Ou seja, embora padre Cicero ainda esteja em processo de canonização, isso não muda a fé e a crença do povo nordestino que o tem como santoe30representante Divino, que vivenciou os períodos de seca e, dessa forma, agiu com solidariedade com o povo do Nordeste. Portanto verificamos que essa crença no Padre Cícero está presente no objeto de nosso estudo, O Auto da Compadecida, no qual muitas pessoas na obra mantêm essa devoção. Dando seguimento à nossa análise, percebemos também a presença do conhecimento popular nos momentos em que Chicó relata seus contos, ele quase sempre se utiliza de assuntos relacionados ao populare envolve o contexto religioso. Mas dando continuidade as crenças, podemos observar outra passagem do livro que retrata o ato de crer, no trecho o qual Chicó(SUASSUNA, 1993, p.30) “avisa que hora de se chamar padre é a hora da morte”. De acordo como que abordamos anteriormente, a religiosidade retratada no Auto da Compadecida, envolve todo contexto social, pois todos acreditam que só terão uma morte sossegada se tiverem, o padre ou, qualquer outro religioso,na frente como superior. Dando continuidade na construção cultural do Nordeste,podemos verificar que o lado imaginário de João Grilo, bem como os contos e provérbios de Chico, é um reflexo do contexto social que eles vivem, pois para se defenderem da fome, da 29 Estas Informações foram acatadas do artigo Fé e Identidade sacra: O espaço sagrado de Juazeiro do Norte/Ce de Cláudio Smalley Soares Pereira (2009, p.42) 30 Idem(2009, p. 43) 41 seca, das situações precárias daquela região, eles inventavam histórias recheadas de astucia. Podemos ver também que esse lado imaginário e esses contos e provérbios fazem parte da literatura de cordel. Com base no lado imaginário de João Grilo apontaremos uma de suas histórias: Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004,p.93): [...] Mulher: Um gato? João Grilo: Um gato. Mulher: E é bonito? João Grilo: Uma beleza. Mulher: Ai, João, traga para eu ver! Chega a me dar uma agonia. Traga, João, já estou gostando do bichinho. Gente, não, é povo que não tolero, mas bicho dá Gosto. João Grilo: Pois então vou buscá-lo. Mulher: Espere. Sabe do que mais, João? Não vá buscar o gato que isso só me traz aborrecimento e despesa. Não viu o que aconteceu com o cachorro? Terminei Tendoque fazer o testamento. João Grilo: Ah, mas aquilo é porque foi o cachorro. Com meu gato é diferente... Mulher: Diferente por quê? João Grilo: Porque, em vez de dar despesa, esse gato dá lucro. Mulher: Fora vaca, cavalo e criação, bicho que dá lucro não Existe. João Grilo: Não existe se não... Eu fico meio encabulado de Dizer! Mulher: Que é isso, João, você está em casa! Diga! João Grilo: É que o gato que eu lhe trouxe, descome dinheiro. Mulher: Descome dinheiro? João Grilo: Descome, sim. João Grilo ao ver a tristeza da esposa do padeiro pela perda da cachorra, percebeu que era o momento de conseguir alguma vantagem, com isso, sabendo da fraqueza da patroa por bichos, inventa que o gato cobrirá toda despesa que ela gastou com o enterro da cachorra. A partir daí, desperta a curiosidade na mulher. Grilo diz à patroa que o gato descome dinheiro, haja vista que os dois amigos já haviam colocado algumas moedas no reto do gato. Notamos que desde o início da história, o objetivo de Grilo é sempre o dinheiro, pois é o que lhe faltava e, precisava para se alimentar e, o objetivo da mulher do padeiro era sempre obter lucro, com isso João consegue enganá-la. Portanto, percebemos que João grilo relata fatos para conseguir se manter e, sempre conseguia, pois era conhecedordo ponto fraco das pessoas. Ou seja, verificamos que Grilo conhecia 42 mais as pessoas do que elas mesmas.E em relação aos contos de Chico, embora fossem mentiras, como foi mostrado anteriormente,ele procurava sempre justificar seus causos.Com relação a tudo que foi abordado, vamos tratar da religiosidade na obra O Auto da Compadecida, mostrar os pontos religiosos e a falsa religiosidade. 43 3. A FALSA RELIGIOSIDADE EM O AUTO DA COMPADECIDA Entendemos que falar de religião e religiosidade é uma incumbência custosa, é andar sob o fio da navalha, pois além de existir inúmeras religiões, é algo complexo, pois cada uma delas tem preceitos diferentes, o que por sua vez, geram controvérsias. Todos os dias, pelo os meios de comunicação ouvimos falar de religião, mas, ainda assim, perguntamos o que é religião. Segundo Antônio Roberto Soares no artigo Religião (2010, p.1) A religião, por outro lado, é a posse de rituais e crenças religiosas. A religião é uma escolha e um caminho para a religiosidade, um meio para se entrar em contato com a divindade. Em si ela não é essencial e, sim, o impulso de ligação com Deus. De acordo com a citação acima, entendemos que religiãoé uma relação existente entre o ser humano e o sobrenatural, é uma dependência incondicional que o homem mantem em relação ao Divino, é a pratica dos cultos, dos rituais, das missas, das reuniões, das sessões, bem como das festividades, enquanto que a religiosidade é a disposição que o homem tem de seguir, fielmente, os preceitos e as injunçõesda religião.A partir daí, dando continuidade, verificamos que a religiosidade está bastante refletido em O Auto da Compadecida. Percebemos que a religiosidade em O Auto da Compadecidase inicia pelo título da obra. Compadecida é uma qualidade atribuída a alguém que tem compaixão, tem misericórdia de alguém, sente o sofrimento do próximo como se fosse seu próprio sofrimento, sente-se condoído com as tragédias alheias. Partindo daí, ao nosso ver, percebemos que esses são predicativos atribuídos ao personagem Maria, pois ela é posta como intercessora, agindo com amor sobre as vidas das pessoas. Isso fica evidente, principalmente, no momento do julgamento, quando aquelas almas já estavam destinadas ao inferno, Maria se enche demisericórdia e intercede ao seu filho, Jesus, para que não as condenassem, pois, embora, as acusações imputadas à aquelas pessoas fossem verídicas, elas eram 44 vítimas das adversidades enfrentadas na seca do sertão, e só cometiam esses pecados para se defenderem da fome, da seca, entre outros. Portanto, devido, elas teremvivido uma vida de sofrimento, as suas transgressões já estavam paga. Percebemos também que, embora, as acusações do Encourado fossem fundadas,Maria não se intimidava, mostrando ter piedade daquelas vidas fracas epecadoras. Para uma definição de misericórdia, podemos citar: “Derivado diretamente do latimo termo “misericórdia” guarda claros vestígios de sua etimologia: a misericórdia emana do homem misericordioso, aquele cujo coração reage diante da miséria do outro”31. Dando continuidade, diante de tudo que foi explicitado, entendemos que o título da obra refere-se a Maria, pois ela chama para si o papel de salvadora, assumindo o lugar de seu filho, Jesus. E no momento certo, ela interveio em favor dos condenados ao lago de fogo e enxofre.32 O narrador atribui as características as quais citamos acima a Maria,isso,pelo fato, talvez dela ser mulher e mãe. Ou seja, entendemos que pelo fato dela ser mulher e mãe a torna mais sensível as aflições, as dores, o sofrimento das pessoas. Portando, a partir daí, inferimos que Maria é uma figura simbólica no sertão, pois além de ser misericordiosa, foi privilegiada dentre várias mulheres para dar à luz a Jesus. Verificamos no evangelho de Lucas uma exortação de Jesus aos discípulos que diz: “Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 36). De acordo com essa passagem bíblica, entendemos que é uma advertência de Deus para as pessoas, mostrando que todos deveriam seguir seu exemplo, ou seja, todos deveriamter misericórdia dos que lhes ofendessem. Portanto, verificamos que Maria é esse exemplo de misericórdia, pois ela é uma mulher temente a Deus, correta segundo os preceitos cristãos. 31 CERBELAUD, D. Misericórdia. In: Dicionário Crítico de Teologia, p. 1150.([s.d]) Informações disponíveis no site:www.guiadoestudante.abril.com.br/estudar/literatura/autocompadecida-analise-obra-ariano-suassuna-700312.shtml, acessado em 13/05/2014 32 45 Com base nesses fatores, entendemos que ela é posta na sociedade como “Mãe de misericórdia”33 e Compadecida de todos os pecadores. Dando continuidade, sabemos que é comum quando as pessoas estão com medo e assustadas com alguma coisa chamarem por Maria, percebemos essa invocação antes do julgamento quando Severino de Aracaju junto com seus cangaceiros entram na igreja com intuito de roubar e matar as pessoas, observamos que o padre e o bispo assustados, com medo de Severino invocaram dizendo: “Ave-Maria! Valha-me Nossa Senhora”. ( 2004, p.107). Também podemos observar esse mesmo clamor no momento do julgamento, na ocasião em que João Grilo apela pela Compadecida. Assim podemos observar no Auto da Compadecida(2004, p.170) Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré! A Vaca mansa dá leite, a braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, a braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher Nesse momento, João Grilo chama pela compadecida, pedindo sua ajuda para que salve sua alma e a dos outros das acusações do Encourado que no caso é o diabo. Manuel estava abismado com tanta coisa ruim, visto, que, a solução para João Grilo foi apelar pela virgem. Depois que a compadecida apareceu o destino das almas mudou completamente, ao invés da condenação eterna, obtiveram a salvação. Contudo, percebemos que antes da intercessão de Maria, Manuel seu filho, tinha decretado a sentença para condenação eterna. Como mostramos anteriormente, a Compadecida usa argumentos que relata fatos ocorridos no passado de cada um,esses fatos mexe com os “sentimentos”34 de Manuel e de cada pessoa que foi julgada. Com a posição de advogada ela diz: “Intercedo por esses pobres que não tem ninguém por eles, meu filho. Não os condene”(2004,p.174). 33 Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa, (2013, p 53) 34 Idem(2013, p. 54) 46 Dando continuidade, inferimos que o narrador coloca a Compadecida no julgamento, de uma forma, a qual ela irá defender cada um individualmente, mostrando seu amor para com os pecadores. Nesse sentido vamos observar como os personagens vão ser julgados.Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p. 22, 23): “Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade”. Os primeiros a serem julgados são os eclesiásticos, o bispo, o padre e o sacristão. Esses personagens representam na obra pessoas ligadas à igreja. Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p.174,145): Manuel: Que é que eu posso fazer? esse aí era um bispo avarento, simoníaco, político ... A Compadecida: Mas isso é a única coisa que se pode dizer contra ele. E era trabalhador, cumpria suas obrigações nessa parte. Era de nosso lado e quem não é contra nós e por nós. O trecho acima relata o julgamento do bispo, a partir daí, presenciamos que mesmo ele sendo um representante Divino,vários pecados foram cometidos por ele e devido a intercessão de Maria, ele conseguiu a salvação, da mesma forma foi com o padre, o sacristão, Severino de Aracaju, o padeiro e sua esposa e João Grilo. Presenciamos que todos eles necessitaram da ajuda da Compadecida, pois se encontravam em apuros devido aos seus pecados. Todavia, nesse momento a Compadecida esclareceu os fatos pelos os quais aquelas pessoas estavam arrependidas e porque elas deveriam ser salvas mesmo cometendo vários delitos, fatos esses que já foram mostrados anteriormente. Dando seguimento notamos que, devido à presença, bem como a intervenção da Compadecida em favor daquelas almas perdidas, o Encourado ficou enfurecido com ela e diz:“Lá vem a compadecida! Mulher em tudo se mete”! Diante dessa exclamação, percebemos o quanto ele age de uma forma machista e preconceituosa, caracterizando a mulher de fofoqueira e que se intromete em tudo. A partir daí, percebemos que, pelo o fato dela ser a defensora das almas, o Encourado cria uma inimizade com ela. 47 Dando continuidade, podemos inferir em O Auto da Compadecida que, devido às características as quais mostramos anteriormente, Maria é humanizada, pois se coloca no lugar das pessoas sofridase entende suas dores, suas aflições, seus sentimentos. Portanto, de acordo com esses fatores, presenciamos uma lição de moral, mostrando que apesar das falhas humanas, podemos simalcançar a salvação, basta se arrepender. Seguindo com a análise, assim verificamos noAuto da Compadecida(2004,p. 172,173): Compadecida: E para que foi que você me chamou, João? João Grilo: é que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o inferno. Eu só podia me pegar com a senhora mesmo. Encourado: As acusações são graves. Seu filho mesmo disse que há tempo não via tanta coisa ruim [...] João Grilo: E então? Você ainda pergunta? Maria vai-nos defender. Padre João, puxe aí uma ave-maria Padre: Ave Maria, Cheia de graça, o senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus [...] Todos: Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora na hora de nossa morte. Amém De acordo com o diálogo acima, é importante enfatizar que essa crença na AveMaria é muito utilizada não só entre os católicos da região nordeste, mas também os de outros regiões. Embora essa fé na ave Maria seja praticada também em outras regiões, contudo é no nordeste que ela fica saliente, sendo praticada por muitos, principalmentepor um pequeno grupo de beatas que se reúnem em suas casas para celebrarem a Ave-Maria.Essa crença em Maria foi manifestada também no momento dopurgatório. Segundo padre Mauricio em Purgatório e Céu ([s.d], p.1) O Purgatório é esse processo doloroso, como todos os processos de ascensão e educação, no qual o homem na sua morte atualiza todas as suas possibilidades, se purifica de todas as situações que a alienação pecaminosa foi estigmatizando a vida, pela história do pecado e suas consequências, mesmo após seu perdão, e pelos mecanismos dos maus hábitos adquiridos ao longo da vida. 48 Diante da citação acima, entendemos que o purgatório se trata de um lugar no qual as pessoas condenadas devem pagar pelos seus pecados, geralmente professada pela igreja católica como um lugar de purificação, local no qual as pessoas sentenciadas deveriam se purificar das mazelas, dos maus costumes adquiridos durante o percurso de sua vida. Segundo Costa (2013 p. 98): Purificação presume que a pessoa pode, por meio dela, se ver liberta dos pecados, ou seja, que pode evoluir. No juízo a pessoa encontrase com Deus e consigo mesma, mas isso não quer dizer que ela chegou a um ponto final e estático em sua evolução. Pode-se perceber que ela não está pronta para estar plenamente com Cristo, viver no céu, de modo que, mesmo nesse estágio, mesmo na morte, necessita de conversão. Esta última conversão é entendida como um ato doloroso que foi denominado de purgatório. Caracterizamos que o fato de estar no purgatório não significava que a pessoa estivesse condenada, pelo contrário, era uma esperança que a pessoa pecadora tinha de ser salva, pois no purgatório ela passaria por um processo de purificação pelo o qual ela chegaria ao céu. Portanto, percebemos na obraO Auto da Compadecida,que esse purgatório estárelacionado a visão medieval que, no caso, estamos tratando da visão popular. O narrador, mostra na obra, o purgatório como um lugar de reflexão e conversão, mas em nenhum momento ele menciona conversão pessoal, mostra apenas pessoas se purificando dos pecados que cometeram ao longa da vida. Portanto, o narrador indo de acordo com a doutrina católica, apresenta o purgatório com um lugar em busca da salvação35, em busca do céu. É importante salientar que, céu retrata a morada de Deus, é um lugar de vida eterna, sendo identificado pela tradição cristã, bem diferente do inferno. Portanto, a partir daí atribuímos que, o purgatório é um momento de conversão, entretanto se a alma que estivesse lá não se arrependesse de suas iniquidades seria lançada ao inferno. Na visão de Santo Boaventura (apudCOSTA, 2013, p. 100): 35 Estas informações foram retiradas do artigo O tribunal de Manuel: Aspectos Teológicos na obra o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna de Jonas Nogueira da Costa 49 Quanto à pena do inferno deve-se admitir o seguinte: A pena infernal verifica-se em um lugar material situado debaixo da terra, no qual são atormentados eternamente todos os réprobos, tanto os homens como os espíritos malignos. (...) A este tormento de fogo será unido também o tormento de todos os sentidos e pena dos vermes e a carência da visão de Deus, de tal modo que haverá variedade e acerbidade, e com a acerbidade a interminabilidade, a fim de que se verifique, para o suplício dos condenados, que o fumo dos tormentos sobe pelos séculos dos séculos. Diante da citação acima entendemos que o inferno trata-se de um lugar composto de sofrimento, de tormento, um lugar onde as almas das pessoas iniquas, transgressoras eram jogadas. Ou seja, entendemos que, as pessoas que não se arrependessem de seus pecados, pagariam um preço muito caro tendo como castigo o fogo eterno. Dando continuidade percebemos em O Auto da Compadecida,a existência do inferno. Todavia, no momento do julgamento, esse inferno não funcionou, pois, devido a interferência de Nossa Senhora as pessoas não foram lançadas lá. Podemos verificar isso quando Manuel expressa a Compadecida: “Se a senhora continuar a interceder desse jeito por todos, o inferno vai terminar como disse Murilo: feito repartição pública, que existe mas não funciona”. Portanto, diante disso, entendemos que Manuel se expressa de uma forma severa, pois se a Compadecida continuar perdoando todos, o inferno se tornará vazio. Por isso adotamos a concepção que, na obra o inferno existe, todavia não funcionou diante da defesa da Virgem. Portanto a partir daí, adotamos a possibilidade de que o narrador expõe o inferno vazio para contradizer alguns preceitos bíblicos os quais relatam que, todos aqueles que praticarem o que é incorreto aos olhos de Deus, serão lançados no inferno. Suponhamos que o pensamento do narrador esteja correto, que todos mesmo cometendo falhas têm direito a salvação, isso deve-se a concepção que Deus jamais criaria um lugar desses para osfilhos que Ele tanto ama, por esse motivo que emAuto da Compadecidatodos foram salvos. Entendemos que, por mais que existisse o inferno, Deus tem o desejo que todos sejam salvos, que se arrependam e consigam a salvação. Assim podemos verificar nos preceitos bíblicos: “Por que há um só Deus, e um só mediador entre Deus e a humanidade: o homem Cristo Jesus, que se entregou 50 como resgate por todos” (1Tm 2, 4-6), o versículo da bíblia expressa que Deus deu seu único filho para salvar a humanidade pecadora. Portanto se Deus entregou seu filho, Jesus como sacrifício, é porque Ele tem o desejo que todos sejam salvos. Dando continuidade, percebemostambém que os personagens possuem uma enorme vontade de viver, resistindo os momentos de seca do sertão e, mesmo depois da morte, quando tudo parece estar perdido, eles resistem e acabam por fim se livrando da condenação eterna. Esse desejo de viver e de superação são arraigados da tradição cristã, pois Jesus assim nos diz na Bíblia Sagrada:(João cap.10:10) “Eu vim para que tenham vida e tenham com abundância”. O texto bíblico transmite que Deus veio para nos dar vida e também uma vida próspera. Com base nestes fatores religiosos, verificamos que desde o inícioda humanidade o ser humano sente a necessidade de crer em algum Deus, seguindo, assim uma determinada religião. Dando seguimento a nossa análise, entendemos que, embora exista as religiões católica e protestante, verificamos que talvez o narrador tenha colocado Jesus Cristo, na obra, como católico, todavia não identificamos preconceito por parte do narrador em relação a religião protestante. Podemos ver essa afirmação quando João Grilo diz: que quando se vê uma pessoa boae que entende de bíblia, trata-se de um protestante36. Assim podemos ver em O Auto da Compadecida (2004, p187): João Grilo: [...] Isso é que é conhecer a bíblia! O senhor é protestante? Manuel: Sou não, João, sou católico. João Grilo: Pois na minha terra, quando a gente vê uma pessoa boa e que entende a bíblia, vai ver é protestante. Bom, se o senhor não faz objeção, minha pergunta é esta [...] Portanto, diante desta citação, não só nesse contexto, mas em todo desenrolar da história, percebemos que a igreja é católica e que todos os personagens são devotos dessa religião. A citação acima relata que o próprio Jesus é católico. 36 Estas informações foram retiradas do livro O Auto da Compadecida, (2004, p.187) 51 Mas dando continuidade, entendemos que a religiosidade é vista como uma forma do povo expressar a sua fé em Deus37, também verificamos que essa fé é expressa através das crenças, seja ela no padre Cicero, em Nossa Senhora, no purgatório, entre outras. Portanto duranteo percurso da estória, analisamos de acordo com a nossa percepção, fatores relacionados areligiosidade, mostrando que, de fato todos os personagens acreditavam na existência do céu e do inferno, e que seguiam com fé alguns preceitos religiosos. Todavia diante dessa suposta religiosidade existia a falsidade por trás de cada um, começando pelos próprios representantes da igreja, no caso, o bispo, o padre e o sacristão, ambos mantinham personalidade de pessoas santas, tementes a Deus, porém eram pessoas interesseiras que só fazia alguma ação se tivesse algum lucro. Assim podemos ver em o Auto da Compadecida (2004, p. 150, 151): Encourado: Simonia negociou com o cargo, aprovando o enterro da cachorra em latim, porque o dono lhe deu seis contos Bispo: E proibido? Encourado: Homem, se é proibido eu não sei. O que eu sei que você achava que era e depois, de repente, passou a achar que não era. E o trecho que foi cantado no enterro é uma oração da missa dos defuntos. Bispo: Isso é ai com meu amigo sacristão. Quem escolheu o pedaço foi ele. Encourado: Falso testemunho: citou o código canônico, primeiro para condenar o ato o padre e contentar o ricaço Antônio Morais, depois para justificar o enterro da cachorra. Velhacaria: esse bispo tinha fama de grande administrador, mas não passava de um político, apodrecido de sabedoria mundana. Encourado: Arrogância e falta de humildade no desempenho de suas funções: esse bispo, falando com um pequeno, tinha uma soberba só comparável à subserviência que usava para tratar com os grandes. Diante do trecho acima, percebemos que a lista de pecados cometidos pelo bispo quase não acaba. Entre outras acusações, o encourado o acusa de simonia. Na visão de Costa (2013, p.73): “Simonia define-se como a compra ou a venda ilícitas de “bens espirituais”, como bênçãos, sacramentos e indulgências”. 37 Estas informações foram retiradas do artigo O auto da Compadecida, a cultura e a inovação tecnológica de Maria Isabel Amphilo Rodrigues de Souza (2003, p.56) 52 Portanto podemos verificar em o Auto da Compadecida que o bispo sempre procurava obter alguma recompensa com os dons divinos. Essa afirmação é percebidano momento do enterro da cachorra o qual foi realizado em latim e por seis contos. Assim podemos ver no Auto da Compadecida(2004, p. 83): “Se é proibido? Deve ser, porque é engraçado demais para não ser. É proibido! É mais de que proibido! código canônico, artigo 1627, parágrafo único, letra k, o senhor vai ser suspenso”. Todavia, em seguida, o bispo ficou ciente que a cachorra havia deixado um testamento de três contos de réis para o sacristão, quatro para o padre e seis para o bispo38. Com isso, visando o lucro que ia obter com o enterro da cachorra, o bispo mudou de repente de opinião, dizendo: “é por isso que eu vivo dizendo que os animais também são criaturas de Deus. Que animal interessante! que sentimento nobre!” (SUASSUNA, 2004, p. 85). Logo após com intuito de desfazer tudo que disse em prol de conseguir o dinheiro, marca uma reunião e, mais uma vez, menti em relação ao Código Canônico: (SUASSUNA,2004, p. 100): “Não resta dúvida, foi tudo legal, certo e permitido. Código canônico, artigo 368, parágrafo terceiro, letra b.” Portanto, de acordo com o que foi abordado, verificamos o quanto a hipocrisia é presente na vida do bispo, pois diante do cargo que ele ocupava deveria viveruma vida de santidade, dando exemplo de honestidade aos seus subordinados, todavia vivia em vida de mentiras, de ganância. Dando continuidade à falsa religiosidade, inferimos que o narradorfaz uma crítica maior ao bispo a respeito do mundanismo dentro da igreja.De acordo com o pensamento de Santo Agostinho (apud COSTA, 2013, p.72): Quando me aterroriza o que sou para vós, consola-me o que sou convosco. Pois para vós sou bispo, convosco sou cristão. Aquele é o título de uma função recebida, este é título de graça; aquele é de perigo; este é de salvação. 38 Estas informações foram retiradas do livro o Auto da Compadecida (2004, p. 85) 53 Diante da citação acima, inferimos que Santo Agostinho salienta a responsabilidade pastoral, mostrando de acordo com os preceitos cristãos que, os bispos, bem como os líderes de igreja têm o dever de praticar o bem para com o próximo e manter uma imagem limpa diante da sociedade. A partir daí, voltando esse olhar para dentro da obra, observamos que essa carga de responsabilidade está sobre o bispo por isso que ele é a figura mais criticada e mais cobrada em relação a religiosidade. Portando dando seguimento, podemos verificar na bíblia sagrada algumas exortações em relação aos dons de Deus,podemos citar um exemplo em que nos mostra um homem que se chamava Simão, o Mago, tinha o objetivo de comprar o poder Divino. Todavia, Pedro, um dos apóstolos toma iniciativa exclamando: “O teu dinheiro seja contigo para perdição, pois cuidaste que o dom de Deus se alcança por dinheiro”.39Podemos também verificar em (Mt, 10:8):“Recebeste de graça, daipois, gratuitamente”. Neste sentido, percebemos que os dons são de Deus e não nosso, portanto não podemos usá-los em prol do nosso próprio benefício. Mas dando continuidade, não podemos esquecer do padre e do sacristão. Assim podemos ver no Auto da Compadecida(2004, p. 153): Manuel: Então, acuse o padre. Padre: de mim ele não tem nada o que dizer Encourado: É o que você pensa, minha safra hoje esta garantida. Tudo o que eu disse do bispo pode se aplicar ao padre. Simonia, no enterro da cachorra, velhacaria, política mundana, arrogância com os pequenos, subserviência com os grandes. Manuel: [...] faça a acusação do sacristão Encourado: Esse sujeito foi quem tramou a história do enterro Foi ele quem saiu cantando o trecho da missa atrás do cachorro, com olho nos três contos. Em latim, na língua que você escolheu. Hipocrisia e auto-suficiência chegaram e aí ficaram. E, além de tudo, roubava a igreja. De acordo com a citação acima, percebemos que o padre, o bispo e o sacristão possuíam os mesmos erros, bem como a cumplicidade em relação ao enterro da cachorra.Isso se confirma na citação a seguir. Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p. 32, 33) 39 Estas informações foram retiradas da Bíblia Sagrada em Atos (Cap. 8:20) 54 PADRE: Não benzo de jeito nenhum. CHICÓ: Mas padre, não vejo nada de malem se benzer o bicho. JOÃO GRILO: No dia em que chegou o motor novo do major Antônio Morais o senhor não o benzeu? PADRE:Motor é diferente, é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro é que eu nunca ouvi falar[...] PADRE:É, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo o cachorro. Benzer motor é fácil, todo mundo faz isso, mas benzer cachorro? JOÃO GRILO:É, Chicó, o padre tem razão. Quem vai ficar engraçado é ele e uma coisa é o motor do major Antônio Morais e outra benzer o cachorro do major Antônio Morais. PADRE: mão em concha no ouvido Como? JOÃO GRILO: Eu disse que uma coisa era o motor e outra o cachorro do major Antônio Morais. PADRE:E o dono do cachorro de quem vocês estão falando é Antônio Morais? JOÃO GRILO:É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se zangasse, mas o major é rico e poderoso e eu trabalho na mina dele. Com medo de perder meu emprego, fui forçado aobedecer, mas disse a Chicó: o padre vai se zangar. PADRE: desfazendo-se em sorrisos Zangar nada, João! Quem é um ministro de Deus Paraterdireito de se zangar? Falei por falar, mas Também vocês não tinham dito de quem era o cachorro! A citação acima expressa a participação do padre no enterro da cachorra e nos mostra mais um ponto relevante em relação a falsa religiosidade. A partir daí, percebemos que depois que João Grilo mentiu para o padre, dizendo que a cachorra é do major Antônio Morais, o padre mudou de opinião, pois antes relatava que era maluquice, que era besteira benzer a cachorra, que sua vez não benzia de jeito nenhum. Mas em seguida, crendo que a cachorra seria mesmo do major, o padre responde que não vê mal algum abençoar as criaturas de Deus. Com base nesses aspectos observamos que o padre faz segregação de pessoas, pois só considera pessoas que tem uma posição elevada na sociedade. Portanto, diante desses fatos, podemos considerar essas características presente nos dias de hoje dentro das igrejas, pois muitos representantes do evangelho dão prioridade a quem tem condições financeiras, que contribuem com maior dizimo, com ofertas diariamente, com doações para os templos, entre outras. A partir daí percebemos que essas pessoas passam a ocuparem cargos de destaque dentro da igreja. Como 55 exemplo disso temos o padeiro e sua esposa, os dois faziam parte dessa máscara de religiosidade. Assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p. 156,): ENCOURADO: Ele e a mulher foram os piores patrões que Taperoá já viu. MULHER:É mentira! JOÃO GRILO:É não, é verdade. Três dias passei... MANUEL:Em cima de uma cama, com febre, e nem um copo d’águalhe mandaram. Já sei, João, todo mundo já sabedessa história, de tanto ouvir você contar. JOÃO GRILO:Mas eu posso? Me diga mesmo se eu posso! Bife passado na manteiga para o cachorro e fome para João Grilo. É demais! ENCOURADO:Avareza do marido, adultério da mulher. Bem Medidoe bem pesado, cada um era pior do que o outro. O casal foi acusado de serem os piores patrões da cidade de Taperoá, pois pagava a João Grilo e Chico pelo o preço de um. Ou seja, a avareza era praticada pelo padeiro, que por sua vez, na ganância de obter lucros usava de má fé com seus funcionários explorando-os, enquanto que a esposa dele vivia adulterar, traindo-o com vários homens. É importante salientar que, podemos ver na bíblia uma passagem que condena a avareza: (I Coríntios,6:10)“nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus”. Podemos ver também uma passagem que condena o adultério:(Êxodo, 20:14) “Não adulterarás”. Portanto um dos mandamentos do Senhor Deus segundo a bíblia é que, a mulher honre seu esposo, pois os dois foram unido em um matrimonio com o dever de ser fiel um ao outro até a morte. Vale ressaltar que os dois faziam parte da igreja, o padeiro era presidente da Irmandade das Almas e sua esposa vivia fazendo doações devido o cargo que seu esposo exercia. Portanto deveriam ser exemplos de honestidade e fidelidade, entretanto eram exemplos de desonestidade, infidelidade, entre outros predicativos. Assim podemos ver no Auto da Compadecida, (2004, p. 52): [...]Padeiro:Eu é que pergunto: que é isso? Afinal de contas eu sou presidente da Irmandade das Almas, e isso é 56 alguma coisa. João Grilo: É, padre, o homem aí é coisa muita. Presidente da Irmandade das Almas! Para mim isso, é um caso claro de cachorro bento. Benzalogo o cachorro e tudo fica em paz.[...] Mulher: De hoje em diante não me sai lá de casa nem um pão para a Irmandade! Padeiro:Nem um pão! Mulher: E olhe que os pães que vêm para aqui são de graça! Padeiro:São de graça! Mulher:E olhe que as obras da igreja é ele quem está custeando! Padeiro:Sou eu que estou custeando! Padre, apaziguador Que é isso, que é isso! Mulher: O que é isso? É a voz da verdade, padre João. O senhor agora vai ver quem é a mulher do padeiro! João Grilo: Ai, ai, ai e a Senhora, o que é que é do padeiro? Mulher:A vaca... Chicó:A vaca?! Mulher:A vaca que eu mandei para cá, para fornecer leite ao vigário tem que ser devolvida hoje mesmo. De acordo com a citação acima, observamos que na primeira oportunidade o padeiro jogou na “cara” do padre o cargo que exercia dentro da igreja, achando-se merecedor de tal ação, da mesma forma sua esposa, sentiu-se indignada com a atitude do padre de não querer benzer a cachorra. Portanto percebemos que no desenrolar desse contexto, tudo se trata de uma troca de favores, pois havia interesses financeiros. Suponhamos que o padre era ciente das falhas do casal, mas devido os dois colaborarem com a reforma da igreja, o padre se mantinha em silencio, pois se falasse poderia perder a colaboração do casal. Dando seguimento, caracterizamos que de todos os personagens, João Grilo era diferente. Percebemos que Suassuna apresenta João Grilo como um astuto, um heróique tenta vencer a fome e a seca do sertão, não fazia parte do clero, bem como da burguesia, esta última era representada pelo o casal, o padeiro e sua esposa. Contrario deles, João Grilo representava o povo pobre, humilde que tinha suas astucias para sobreviver aos poderosos, era conhecido na cidade como o amarelo.Segundo Maria Aparecida Lopes Nogueira (apud COSTA, 2013, p.80): Amarelo é luz, que se transfigura em algo menor, negação do luminoso; ao mesmo tempo, o próprio João Grilo se autoresgata como ser aluminoso, uma vez que é o responsável direto pela 57 reversão e absolvição de todos os personagens no julgamento final, com a ajuda de Nossa Senhora, a compadecida. Seguindo essa perspectiva, podemos salientar algumas acusações contra João Grilo, uma delas é o preconceito de raça (SUASSUNA, 2004, p. 148): “Porque... não é lhe faltando com o respeito não, mas eu pensava que o senhor era muito menos queimado”. João Grilo alega possuir um pensamento, que Jesus seria branco e não imaginaria que ele fosse negro. Portanto verificamos, a partir daí a visãoestereotipada que se tem de Jesus, pois ele é caracterizado como loiro, cabelo longo e olhos verdes. Percebemos também que todos que ali tinham o mesmo pensado de João Grilo, ou seja, que Jesus seria loiro, entretanto Grilo foi o único que falou, demonstrando dessa forma sinceridade. Mas dando seguimento, assim podemos ver no Auto da Compadecida (2004, p. 149): Manuel: Muito obrigado, João, mas agora é sua vez. Você é cheio depreconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para mim, tanto faz um branco como um preto. Podemos ver no diálogo acima, o momento que Manuel repreende João Grilo por seu preconceito de raça. Manuel alega ter se apresentado dessa forma propositalmente, pois, a nosso ver, Manuel sabia que estava lhe dando com pessoas preconceituosas. Mas a lista de acusações feitas a João Grilo segue dando continuidade. Como citamos anteriormente sobre a esperteza, quando tramou o enterro da cachorra; a venda do gato que descome dinheiro; e a gaita milagrosa usada para enganar os cangaceiros. Portando, diferente dos demais personagens, acreditamos que todas essas histórias de João Grilo não fazem parte da falsa religiosidade, mas, sim do contexto que ele estava inserido, pois com estas mentiras ele buscava vencer a miséria e a fome, procurava meios para sua sobrevivência. De acordo com tudo que foi abordado, inferimos que a falsa religiosidade está presente nos personagens; o bispo, o padre, o sacristão e o padeiro e sua esposa, embora a crítica, o tom satírico se sobressai na figura do padre e do bispo, poispercebemos que a falsidade é mais exacerbada nos próprios, pois eles 58 deveriam ser exemplo para sociedade, todavia são retratados, como pessoas sem nenhuma moral, totalmente sem escrúpulos. Portanto verificamos que todos faziam parte da igreja, mas não tinham um bom testemunho diante dos fiéis. Analisamos também que, essa visão é uma realidade, certo, que todos nós somos falhos e temos o direito de arrepender-se, mas nem sempre aos olhos da sociedade esses erros cometidos pelos líderes da igreja são considerado normais. É importante salientar que em nenhum momento a obra é blasfema, em nenhum momento busca anular a conduta religiosa, mas busca mostrar de forma explicita valores que mexem com os princípios das pessoas, entre eles a ambição e a justiça. Portanto, através da obra buscamos demonstrar de forma clara e objetiva um pouco da construção cultural do nordeste, demonstrando a religiosidade dos sertanejos, bem como, as motivações que eles têm para superar as adversidades da seca do sertão. Entendemos que a motivação do povo sertanejo é a fé, é crê na Justiça de Deus, é acreditar num futuro promissor e que, embora o sofrimento, a fome, a seca façam parte de sua realidade é um povo feliz. 59 CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante todo o percurso deste trabalho, percebemos que a obra O Auto da Compadecida nos ajudou a compreender os fatos sociais que envolvem a religiosidade, mostrando a realidade que existe dentro de algumas igrejas, onde várias processam uma fé enganosa. Suassuna ao resgatar a visão de Gil Vicente tem o intuito de mostrar a falsa religiosidade, criando alguns personagens que são envolvidos com a obra de Deus e praticam tudo a inverso do que está escrito na bíblia. Essas características não se refere somente na Idade Média, mas também são vistas nos dias atuais e de uma forma mais escandalizadora. Analisamos a crença na Compadecida que no caso é a Virgem Maria, mãe de Manuel, a qual foi posta no Auto como intercessora das almas perdidas, que por sua vez, estavam destinas ao inferno. Percebemos que a figura da mulher foi importante para solucionar os fatos, isso por ela ser vista como um gênero sensível e por ser mãe, coloca-se na posição de advogada, atribuindo, assim, méritos que justifiquem o motivo a qual as almas mereciam a salvação. Observamos que a obra apresenta aspectos moralizante, pois apesar dos pecados dos personagens, todos foram salvos, mostrando, assim, que todo ser humano é falho, independente de religião, e que merecem ser perdoado, mesmo que esse arrependimento venha ocorrer depois da morte. 60 REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes, 2011. ANCHIETA, José. O Auto da Pregação Universal, Faculdade de Educação e Ciências Gerenciais de Sumaré, 2001. CERBELAUD, D. Misericórdia. In: Dicionário Crítico de Teologia, [s.d]. COSTA,Adriana Freitas da Silva. Dos falares do Brasil ao falar do Nordeste, 2011. COSTA, Jonas Nogueira da.O Tribunal de Manuel: Aspectos teológicos na obra o auto da compadecida, de Ariano Suassuna, 2013. HERNANDES, Paulo Romualdo.O Teatro de José de Anchieta, arte e pedagogia no país colônia, [s.d]. HISSA, Carolina Soares.O Auto da Compadecida: Uma análise do personagem Chicó e dos níveis de conhecimento, [s.d]. LIMA, Márcia. O Teatro Medieval, [s.n], 8p. MARIANO, Vanessa. Teatro Anchietano enquanto instrumento pedagógico: analise das peças, [s.d]. MASSAUD, Moises. Literatura Portuguesa, 2004. MAURICIO, Padre.Purgatório e Céu, [s.d]. PATATIVA, Assaré,Cante lá que eu canto cá, 1978. PEREIRA,Cláudio Smalley Soares.Fé e Identidade Sacra: O espaço sagrado de Juazeiro do Norte/Ce, 2009. SOARES,Antônio Roberto.Religião,2010. SILVA, Divina Santos Morais da. Teatro Português Medieval, 2010. SOUZA, Maria Isabel Amphilo Rodrigues de.O Auto da Compadecida, A Cultura e a Inovação Tecnológica, 2003. SUASSUNA,Ariano. O Auto da Compadecida, 2004. 61 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida/ Ariano Suassuna; capa, Rubens Gerchman – 34ª ed – Rio de Janeiro: Agir, 2004. 208p: 19 cm. VASCONCELOS, Claudia Pereira. A Construção da Imagem do Nordeste / Sertanejo na Constituição da Identidade Nacional, 2006. VICENTE, Gil, Auto da Alma,edição organizada por A. Nunes de Almeida 2 edição da editora Atlântida Ed., 1975 com 95 pags. VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno, Ed L&PM, 2005.