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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
WELLYSSON DOS SANTOS GOMES
O RISO COMO AGENTE CRÍTICO-SOCIAL NA OBRA AUTO DA
COMPADECIDA, DE ARIANO SUASSUNA
João Pessoa
2014
2
WELLYSSON DOS SANTOS GOMES
O RISO COMO AGENTE CRÍTICO-SOCIAL NA OBRA AUTO DA
COMPADECIDA, DE ARIANO SUASSUNA
Trabalho apresentado à Coordenação do Curso de
Licenciatura em Letras da Universidade Federal da
Paraíba como requisito para obtenção do grau de
Licenciado em Letras, Habilitação Língua
Portuguesa.
Orientador: Prof. Dr. Expedito Ferraz Júnior.
João Pessoa
2014
3
G633c Gomes, Wellysson dos Santos.
O riso como agente crítico-social na obra Auto da
Compadecida, de Ariano Suassuna / Wellysson dos
Santos Gomes.- João Pessoa, 2014.
29f. : il.
Orientador: Expedito Ferraz Júnior
TCC (Graduação) - UFPB/CCHL
1. Suassuna, Ariano Vilar, 1927interpretação. 2.Literatura brasileira –
interpretação. 3.Riso. 4.Crítica. 5.Teatro.
UFPB/BC
crítica e
crítica e
CDU: 869.0(81)(043.2)
4
WELLYSSON DOS SANTOS GOMES
O RISO COMO AGENTE CRÍTICO-SOCIAL NA OBRA AUTO DA
COMPADECIDA, DE ARIANO SUASSUNA
Trabalho apresentado à Coordenação do Curso de
Licenciatura em Letras da Universidade Federal da
Paraíba como requisito para obtenção do grau de
Licenciado em Letras, Habilitação Língua
Portuguesa.
Orientador: Prof. Dr. Expedito Ferraz Júnior.
Banca Examinadora:
Professor
Expedito Ferraz Jr.
Gláucia Vieira
Machado
Luciana E. de F.
Calado Deplagne
Título
O Riso como
Agente CríticoSocial na Obra
Auto da
Compadecida, de
Ariano Suassuna
Instituição
UFPB
UFAL/UFPB
UFPB
Menção
Assinatura
Data
5
WELLYSSON DOS SANTOS GOMES
O RISO COMO AGENTE CRÍTICO-SOCIAL NA OBRA AUTO DA COMPADECIDA,
DE ARIANO SUASSUNA
Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal da Paraíba,
como requisito para obtenção do grau de Licenciado em Letras, habilitação Língua Portuguesa.
Data de aprovação: ______/ _____/ ______.
Banca Examinadora:
__________________________________________________________
Prof. Dr. Expedito Ferraz Jr., DLCV/UFPB
orientador
__________________________________________________________
Profª Drª Gláucia Vieira Machado, DLCV/UFPB
examinadora
___________________________________________________________
Profª Drª Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne, DLCV/UFPB
examinadora
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Gostaria de agradecer a todos que contribuíram
para este trabalho, especialmente ao prof. Dr.
Expedito Ferraz Júnior, aos meus pais, Maria das
Graças e Ednaldo, e ao meu irmão e amigo
inseparável, Nayadson.
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“Não troco o meu oxente pelo ok de ninguém”.
Ariano Suassuna
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RESUMO
Minha pretensão e foco principal neste trabalho é realizar um estudo da obra Auto da
Compadecida (2005), de Ariano Suassuna. Nessa abordagem, tomarei como objeto de
estudo o riso. Com isto, procurarei desconstruir o paradigma do riso entendido apenas como
ato fisiológico de “gargalhar”, relacionado apenas ao contexto social da diversão, buscando
expor seu caráter de agente crítico da sociedade diante da subversão estabelecida nas
diversas instâncias sociais, como o ambiente familiar, religioso, matrimonial e de trabalho,
nos quais se enquadram os personagens da obra em estudo. Para desenvolver esta temática,
utilizarei como principais fundamentações teóricas os livros A Cultura Popular na Idade
Média, de Mikhail Bakhtin, Riso: Ensaio sobre a Significação do Cômico, de Henri
Bergson, O Sertão Medieval: Origens Europeias do Teatro de Ariano Suassuna, de Ligia
Vassalo, e Ironia em perspectiva polifônica, de Beth Brait. Pretendo constatar o emprego
do riso como mecanismo crítico, através das relações de poder estabelecidas entre os
personagens da obra. Apontarei que o riso não se resume apenas ao simples ato de sorrir e
de ridicularizar, mas que ele possui um caráter de denúncia, revolucionário, inovador e
crítico-social.
Palavras-chave: Riso. Teatro, Ariano Suassuna. Sociedade.
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ABSTRACT
My main focus and intention in this work is to conduct a study on the meaning of the laughter
in the literary work Auto da Compadecida (2005), by Ariano Suassuna. In this study, I try to
deconstruct the paradigm of laughter only understood as a physiological act of "laughing",
and only related to the social context of fun, seeking to expose its character of critical agent,
and subversion of social institutions such as family environment, religious, marital and work,
as they are shown in Suassuna’s characters. To develop this theme, I used as the main
theoretical foundations the works Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, by
Mikhail Bakhtin, Riso: Ensaio sobre a Significação do Cômico, by Henri Bergson, O Sertão
Medieval: Origens Europeias do Teatro de Ariano Suassuna, by Ligia Vassalo and Ironia em
perspectiva polifônica, by Beth Brait. So, I intend to consider laughter as a critical
mechanism of social relations between the characters of the work, and point out that it is not
just the simple act of smiling and deride, as it has a character of denunciation, revolution and
innovation.
Key-words: Laughter. Drama. Ariano Suassuna, Society.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO …………………………………………………………………..
10
CAPÍTULO 1 – O riso: sobre o cômico em geral
11
........................................
1.1 A multiplicidade de faces e funções da ironia
1.2 Ariano Suassuna e seu teatro medieval
....................... 14
...............................
CAPÍTULO 2 – O riso e a subversão na obra Auto da Compadecida
17
.............
20
CONCLUSÃO
....................................................................................................
28
REFERÊNCIAS
..................................................................................................... 29
11
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo analisar a produção do riso na obra Auto da
Compadecida, a partir da teoria bergsoniana, a respeito da significação do cômico, e da teoria
bakhtiniana, através dos conceitos de carnavalização, dialogismo e polifonia.
O riso, na obra Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, é provocado
constantemente pelo personagem João Grilo, o chamado “amarelinho”, homem do povo, que
enfrenta as adversidades da vida com astúcia, no sertão nordestino. Dessa maneira, pode-se
observar que os diálogos presentes no corpus extrapolam a relação autor – personagem –
leitor, movimentando vozes distintas, com a função de dessacralizar a ordem predominante e
desmascarar a normalidade. A representação cômica desse personagem levanta um
questionamento referente ao que o faz ser burlesco e por qual motivo o autor utiliza o riso
como fator de subversão da ordem social estabelecida.
Com o intuito de desenvolver esse tema, este trabalho estará dividido em dois
capítulos. No primeiro, intitulado de O Riso: sobre o cômico em geral, estará determinada a
teoria referente aos processos de fabricação do riso, além de sua intencionalidade no âmbito
social. Este primeiro capítulo apresentará dois subitens, assim denominados: A multiplicidade
de faces e funções da ironia e Ariano Suassuna e seu teatro medieval. No segundo capítulo,
chamado O Riso e Subversão na Obra “Auto da Compadecida”, será apresentado o texto que
compõe o corpus deste trabalho e, posteriormente, a análise apoiada no percurso teórico
apresentado no primeiro capítulo.
12
CAPÍTULO 1
O Riso: Sobre o Cômico em Geral
“O que é o riso? O que existe no âmago do risível?” A partir de tais questionamentos,
o autor Henri Bergson formulou um estudo bastante original a respeito de um tema que,
mesmo já tendo sido abordado por diversos filósofos desde Aristóteles, poucas vezes o foi
com tanta sutileza de raciocínio e argumentação. Henri Bergson pautou-se na comédia, na
farsa, na arte do palhaço, no dito picaresco e no jogo de palavras para procurar os métodos de
fabricação do riso e qual a intenção da sociedade quando ri.
De início, devem ser consideradas três observações fundamentais que se referem ao
lugar onde devemos buscar o cômico. A primeira, segundo Henri Bergson, diz que “não há
comicidade fora do que é propriamente humano”. Ou seja, apenas riremos de uma paisagem,
objeto ou animal no momento em que acrescentarmos nestes uma atitude ou expressão
humana. A partir dessa constatação, verifica-se o diferencial do homem para com outros seres
no que diz respeito à comicidade. De acordo com Bergson (1980, p. 12):
Já se definiu o homem como “um animal que ri”. Poderia também ter sido
definido como um animal que faz rir, pois se outro animal o conseguisse, ou
algum objeto inanimado, seria por semelhança com o homem, pela
característica impressa pelo homem ou pelo uso que o homem dele faz.
A segunda observação referente à comicidade destaca a insensibilidade que
naturalmente acompanha o riso. A indiferença do riso é o seu ambiente natural, já que ele só
produzirá efeito sob condição de cair na superficialidade de um espírito tranquilo e bem
articulado. Nas palavras de Bergson (1980, p. 12):
O maior inimigo do riso é a emoção. Isso não significa negar, por exemplo,
que não se possa rir de alguém que nos inspire piedade, ou mesmo afeição:
apenas, no caso, será preciso esquecer por alguns instantes essa afeição, ou
emudecer essa piedade.
O cômico exige algo como uma “anestesia” do coração a fim de produzir seu efeito,
destinando-se à inteligência pura. A partir desta caracterização, surge a terceira observação
relativa à comicidade: o riso se destina à inteligência pura, mas essa inteligência deve
permanecer em contato com outras inteligências. O cômico não seria desfrutado se nos
sentíssemos isolados, sem o eco necessário ao efeito do riso. Para Bergson (1980, p.13):
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O riso parece precisar de eco. Ouçamo-lo bem: não se trata de um som
articulado, nítido, acabado; mas alguma coisa que se prolongasse
repercutindo aqui e ali, algo começando por um estalo para continuar
ribombando, como o trovão nas montanhas. E, no entanto, essa repercussão
não deve seguir ao infinito. Pode caminhar no interior de um círculo tão
amplo quanto se queira, mas, ainda assim, sempre fechado. O nosso riso é
sempre o riso de um grupo.
Portanto, para a compreensão do riso, é preciso colocá-lo no seu ambiente natural, que
é a sociedade, e determinar-lhe a sua útil função social. O riso tem que corresponder a certas
exigências da vida comum e ter uma significação social. A partir dessas três observações
referentes ao lugar de onde advém o cômico, surge assim o ponto a que elas convergem. Ou
seja, pelo que foi explicitado, o cômico se manifestará quando pessoas reunidas em grupo
dirijam sua atenção a uma delas, silenciando a sensibilidade e executando apenas a
inteligência. Porém, qual seria o ponto em especial ao qual as pessoas deveriam dirigir suas
atenções? E a que se aplicaria a inteligência?
A motivação para o riso decorre de situações que merecem destaque, a fim de uma
melhor compreensão do cômico e sua funcionalidade. Primeiramente, imaginemos uma
pessoa que a correr pela rua acaba tropeçando e cai. Outras pessoas que se encontram
próximas a ela riem, não por ela ter a vontade de sentar-se no chão, mas porque sentou-se sem
querer. Portanto, o riso caracteriza-se pela mudança de atitude de forma involuntária, pelo
desajeitamento, e não apenas pela mudança em si dessa atitude. Supondo que haveria uma
pedra no caminho do indivíduo na situação, seria necessário a ele observar a pedra e mudar o
movimento para não sofrer a queda. No entanto, pela falta de agilidade, desvio do corpo e
determinado efeito de rigidez ou de velocidade adquiridos, os músculos do transeunte
permaneceram com o mesmo movimento, causando sua queda e o inevitável riso dos outros
transeuntes.
Outra situação a ser analisada é a de um indivíduo que executa suas ocupações de
forma metódica e regular, e outra pessoa interfere na organização dos seus objetos, no intuito
de ver como a vítima se sairá diante da situação. Dessa forma, o indivíduo age de acordo com
o que sempre fez rotineiramente, mesmo não alcançando o êxito esperado. O hábito imprimiu
determinado impulso, porém a pessoa deveria deter ou mudar o rumo do seu movimento. A
vítima dessa brincadeira está em situação similar daquela que cai. O risível encontra-se em
certa rigidez mecânica, onde deveria haver a maleabilidade e flexibilidade da pessoa. O que
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diferencia os dois casos é que o primeiro ocorreu de maneira espontânea, tendo os transeuntes
apenas no papel de observadores, e o segundo foi produzido artificialmente, através da pessoa
que causou a situação no papel de brincalhão.
Segundo Bergson (1980, p.15):
“O cômico é, pois, casual; permanece, por assim dizer, na superfície da
pessoa. Como se interiorizará? Para se revelar a rigidez mecânica, será
preciso não mais haver um obstáculo anteposto à pessoa pelo acaso das
circunstâncias ou pela galhofa de alguém. Será preciso que venha do seu
próprio fundo, por uma operação natural, o ensejo incessantemente renovado
de se manifestar exteriormente.”
Quando certo efeito cômico vier de determinada causa julgada por nós como a mais
natural possível, mais relevante nos parecerá o efeito cômico advindo dela. Se já é comum rir
do desvio que se apresenta como simples fato, mais risível será o desvio surgido e aumentado
de nós mesmos, cujo sua origem é conhecida e sua história pode ser reconstituída. A partir
dos exemplos listados anteriormente, referentes à pessoa que cai e à outra que, ingenuamente,
é enganada pelas peripécias de um brincalhão, tornou-se claro o progresso através do qual o
cômico se instala cada vez mais intensamente no indivíduo, sem deixar de destacar os efeitos
de automatismo e rigidez advindos da comicidade de ambas as situações. Tal constatação
decorre de uma perspectiva a respeito do aspecto risível e sobre a funcionalidade comum do
riso.
A vida e a sociedade nos exigem determinada atenção, para contornar situações
presentes no dia-a-dia, além das elasticidades corporais e espirituais, que possibilitem uma
melhor adaptação às situações postas em jogo no nosso cotidiano. Por isso, qualquer rigidez
do caráter, do espírito e até mesmo do corpo será um ponto de suspeita à sociedade,
constituindo-se assim em um indício de “excentricidade” social, com a tendência de se afastar
do centro comum em torno do qual a sociedade gravita. Tal excentricidade inquieta a
sociedade por meio de um gesto, e ela reage exatamente por meio de outro simples gesto.
Dessa forma, o riso torna-se uma espécie de gesto social, suavizando tudo o que puder restar
de rigidez mecânica na superfície do corpo social.
Determinadas ações e intenções, que comprometem a vida individual ou social de
alguém, castigam-se a si mesmas pelas suas próprias conseqüências naturais. No entanto,
haverá uma zona neutra, fora do terreno de emoção e luta humanas, na qual o homem mostrase simplesmente como espetáculo do homem, apresentando a rigidez corporal, do espírito e do
caráter, as quais a sociedade deseja eliminar para alcançar uma melhor elasticidade corporal e
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a mais alta sociabilidade possível. Portanto, tal rigidez é o cômico, e a correção dela é
exatamente o riso.
1.1. A multiplicidade de faces e funções da ironia
O procedimento irônico apresenta uma configuração que envolve determinadas
estratégias de compreensão e representação do mundo, através de suas múltiplas faces e
funções. O humor, tomado a partir de uma categoria ampla e configurado ou não pela ironia,
caracteriza-se como um traço de linguagem divulgador de um ponto de vista a respeito do
mundo. Dessa forma, o humor tem o papel de esmiuçar os valores sociais, culturais e morais
tidos como imutáveis pela própria sociedade, podendo agredir tais valores e outros aspectos
dissimulados pelos discursos sócio-político-culturais já estabelecidos. A partir disso, a ironia,
ao tornar-se um aspecto particular do humor, é caracterizada como um processo discursivo
sujeito a ser observado em diferentes manifestações e tendo destino de interpretação no seu
próprio mecanismo gerativo.
Segundo Beth Brait (2008, p. 16):
A ironia será considerada como estratégia de linguagem que, participando da
constituição do discurso como fato histórico e social, mobiliza diferentes
vozes, instaura a polifonia.
O interdiscurso irônico é o elemento que estrutura um texto com base na construção
irônica, cuja força encontra-se na sua capacidade de fazer do riso uma consequência e, além
disso, possibilita o não silenciamento de vários aspectos culturais, sociais ou até estéticos,
encobertos pelos discursos considerados bastante sérios e com menos criticidade. A partir de
elementos de uma abordagem filosófica da ironia, destacam-se as noções estabelecidas pelos
filósofos Aristóteles e Sócrates a respeito de questionamentos de grande repercussão ligados à
ironia da ambiguidade como configuração do riso, do humor, do cômico e da ironia.
Aristóteles inaugura o que se pode determinar como uma “noção tradicional” da
ironia, que é caracterizada como uma “espécie determinada de disposição e atitude
intelectuais próprias de um tipo de homem”. Tal configuração irônica como atitude tem em
Sócrates o primeiro modelo de comportamento irônico, a partir de técnicas desenvolvidas por
esse filósofo. Essas técnicas pautavam-se em transformar uma frase assertiva em
interrogativa, com o intuito de dar a entender ao interlocutor a falta de uma convicção
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relacionada a determinado tema. A ironia é, então, configurada como arma de polêmica, e não
de construção de crenças nas verdades e princípios racionais.
A partir da ideia relacionada à função da linguagem em estabelecer as relações entre o
homem e o mundo, e também entre os homens, a ironia socrática apresenta uma ideia de
diálogo que pressupõe a relação enunciativa entre os interlocutores, que devem estar
submetidos às especificidades do discurso irônico. Já o sentido da ironia como atitude,
desenvolvida por Aristóteles, faz referência a determinados aspectos que caracterizam a forma
de discurso dentro do procedimento irônico. Tais aspectos levados em consideração quanto à
ironia como atitude são elencados por Beth Brait (2008, p. 30):
a) Seu caráter inaugural em relação ao estudo desse fenômeno e sua
persistência em diferentes domínios; b) a possibilidade do aproveitamento
dessa concepção em determinados discursos de configuração irônica, com
base no instrumental oferecido pela retórica e reinterpretado pela pragmática;
c) a articulação das concepções atitude-construção verbal, a partir de uma
perspectiva enunciativa.
A ironia, de acordo com o viés filosófico socrático, pode ser considerada a partir da
distinção entre ironia como atitude e ironia como linguagem, por meio da apreensão e
compreensão do procedimento da linguagem, dentro de uma dimensão discursiva e
enunciativa do processo irônico. Além disso, a ironia socrática pode ser acrescentada de uma
dimensão teórica contemporânea que se constitui na apreensão de estratégias de linguagem,
através de mecanismos discursivos de produção, recepção e interpretação de diálogos, ou seja,
no encadeamento de enunciações, de enunciadores e de locutores.
Henri Bergson aborda a questão da ironia referindo-se ao conceito de interferências
das séries, tratando-se de um efeito cômico que apresenta grande variedade de formas
apresentadas no teatro. Essa interferência das séries pode ser definida como “uma situação
que sempre será cômica quando pertencer ao mesmo tempo a duas séries de fatos
absolutamente independentes, e que possa ser interpretada simultaneamente em dois sentidos
inteiramente diversos”. O autor destaca uma situação bastante representativa desse fenômeno
dentro do discurso teatral: o quiprocó. Este consiste em uma situação que apresenta ao mesmo
tempo dois sentidos distintos, e outro simplesmente possível. Ou seja, os sentidos que os
atores lhe atribuem, e o outro real, que o público lhe dá.
Ainda de acordo com Bergson (1980, p. 65):
17
A interferência de dois sistemas de ideias na mesma frase é fonte
inesgotável
de
efeitos
engraçados.
Há
muitos
meios
de obter a interferência, isto é, de dar à mesma frase
duas significações independentes e que se superpõem.
Além da interferência das séries, outros dois processos constatados no teatro são a
repetição, que se trata de uma combinação de circunstâncias, repetida exatamente em diversas
ocasiões, contrastando abertamente com o curso indefinido da vida, e a inversão, representada
por meio de uma cena cômica que faz com que a situação volte para trás e com que os papeis
se invertam. Como exemplos de inversão, podemos destacar situações em que existe a
presença do riso quando o acusado dá lição de moral ao juiz, a criança que pretende ensinar
aos pais, e outras que podem ser representativas do “mundo às avessas”.
A comicidade de transposição, também presente na teoria de Bergson, é decorrente da
seguinte regra geral: Obteremos um efeito cômico ao transpor a expressão natural de uma
ideia para outra tonalidade. Os numerosos e variados meios de transposição fazem com que a
linguagem apresente uma grande sequência de tons, permitindo que a comicidade passe por
uma gama infinita de graus, a partir do burlesco mais vulgar até as formas mais elevadas do
humor e da ironia. A concepção de interferência das séries, em conjunto com o conceito de
transposição, vai constatar a definição de ironia verbal, caracterizada por Bergson como uma
transposição numa interferência das séries.
Nas palavras de Bergson (1980, p.68):
Para resumir o que até agora dissemos, há em primeiro lugar dois termos de
comparação extremos: o muito grande e o muito pequeno, o melhor e o pior,
entre os quais a transposição se pode efetuar num sentido ou noutro. Ora,
diminuindo aos poucos o intervalo, obteremos termos de contraste cada vez
menos bruscos e efeitos de transposição cômica cada vez mais sutil. A mais
geral dessas operações seria talvez a do real com o ideal: do que é com o que
deveria ser. Ainda aqui a transposição poderá ser feita nas duas direções
inversas. Ora se enunciará o que deveria ser fingindo-se acreditar ser
precisamente o que é. Nisso consiste a ironia. Ora, pelo contrário, se
descreverá cada vez mais meticulosamente o que é, fingindo-se crer que
assim é que as coisas deveriam ser. É o caso do humor. O humor, assim
definido, é o inverso da ironia. Ambos são formas da sátira, mas a ironia é de
natureza retórica, ao passo que o humor tem algo de mais científico.
Acentua-se a ironia deixando-se arrastar cada vez mais alto pela ideia do
bem que deveria ser. Por isso a ironia pode aquecer-se interiormente até se
tornar, de algum modo, eloquência sob pressão.
Essa concepção estabelece uma ligação entre o olhar filosófico e um olhar lingüísticodiscursivo sobre a ironia, constatando-se, assim, que o fenômeno irônico não só pode ser visto
18
filosoficamente, mas dentro da funcionalidade da linguagem, já que esta só consegue efeitos
risíveis porque é obra humana, viva e repleta de hábitos, aos quais estamos submetidos.
1.2. Ariano Suassuna e seu teatro medieval
O vínculo existente entre o riso e as esferas da religião na Idade Média caracterizou-se
como um traço distintivo da mentalidade das pessoas daquela época, envolvendo as atitudes
das camadas populares e da aristocracia clerical. Após transformações profundas verificadas
na Europa pós-renascentista, houve uma acentuada aproximação entre instâncias e
comportamentos aparentemente excludentes, a partir de um conjunto complexo de ritos,
cultos cômicos especiais e festividades, dando origem ao carnaval moderno.
As múltiplas manifestações populares possuíam uma unidade de estilo e constituíam
parcelas da cultura popular, essencialmente da cultura carnavalesca. De acordo com Mikhail
Bakhtin (1993, p. 4), “essas manifestações podiam subdividir-se em três grandes categorias”,
que eram elas: * as formas dos ritos e espetáculos (festejos carnavalescos, obras cômicas
representadas nas praças públicas, etc.); * obras cômicas verbais (inclusive as paródias) de
diversa natureza: orais e escritas, em latim ou em língua vulgar; * diversas formas e gêneros
do vocabulário familiar e grosseiro (insultos, juramentos, blasões populares, etc.).
Os festejos carnavalescos participavam do conjunto mais vasto de eventos
relacionados às comemorações religiosas, tais como festas de santos, às de caráter privado,
como o casamento de nobres, e às de caráter público, voltadas para a exaltação dos poderes
temporais. O riso acompanhava todas essas cerimônias e ritos da vida cotidiana daquela
sociedade. Os ritos e espetáculos ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações
humanas bastante diferentes, sem nenhuma formalidade, e exterior à Igreja e ao Estado.
Nas palavras de Bakhtin (1993, p. 5):
[...] Todos esses ritos e festividades pareciam ter construído, ao lado do
mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens
da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles
viviam em ocasiões determinadas. Isso criava uma espécie de dualidade do
mundo e cremos que, sem levá-la em consideração, não se poderia
compreender nem a consciência cultural da Idade Média nem a civilização
renascentista. Ignorar ou subestimar o riso popular na Idade Média deforma
também o quadro evolutivo histórico da cultura europeia nos séculos
seguintes.
19
As grandes diferenças sociais e econômicas, marcadas naquela sociedade, eram
provisoriamente abolidas durante os momentos festivos. Em alguns casos, a inversão de
hierarquias sociais marcava o triunfo de uma liberação das amarras dominantes e das
imposições aceitas pela sociedade, em que se findavam os privilégios e regras. As festas
também estavam muito associadas a rituais relacionados ao calendário agrícola, remetendo-se
às noções de fertilidade, fecundidade e abundância, primordiais para os agrícolas tradicionais
da época.
O termo “carnaval” derivaria, segundo estudiosos desse período, do estado de espírito
permitido nos momentos festivos e de completa liberdade, em que ainda era possível comer
em abundância. Por isso, a relação com a expressão carne vale. Para outros, o nome estava
ligado aos carros alegóricos utilizados nos cortejos e jogos, advindos da expressão curris
navalis. Dependendo dos lugares onde as comemorações eram realizadas, o carnaval recebia
diferentes
designações,
tais
como
carnilivari,
carnelevarium,
carnelevale, carnal,
carnestolendas e antruejo.
O princípio cômico do carnaval é um instrumento libertador do dogmatismo religioso
ou eclesiástico, chegando a fazer verdadeiras paródias à Igreja e aos seus cultos religiosos.
Além disso, o carnaval apresenta uma característica peculiar de proporcionar às pessoas uma
total liberdade que não as torne apenas espectadoras daquela manifestação. As pessoas vivem
o carnaval, havendo uma distinção entre atores e público, aspecto recorrente do teatro.
Ainda sobre o carnaval, Bakhtin (1993, p. 6 e 7) destaca:
O carnaval possui um caráter universal, é um estado peculiar do mundo: o
seu renascimento e sua renovação, dos quais participa cada indivíduo. Essa é
a própria essência do carnaval, e os que participam dos festejos sentem-se
intensamente. [...] Em resumo, durante o carnaval é a própria vida que
representa, e por um certo tempo o jogo se transforma em vida real. Essa é a
natureza específica do carnaval, seu modo particular de existência. O
carnaval é segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida
festiva. A festa é a propriedade fundamental de todas as formas de ritos e
espetáculos cômicos da Idade Média.
O riso e a visão carnavalesca do mundo encontram-se na base do grotesco, destruindo
a normalidade unilateral e as pretensões de significação incondicional e atemporal, liberando
a consciência, o pensamento e a imaginação humana, no intuito de desenvolver novas
possibilidades. Essa visão carnavalesca do mundo produz formas de linguagem que encerram
com qualquer restrição de vocabulário ou dificuldade de aproximação entre sujeitos
enunciadores. A partir disso, surge a relação de tal princípio com a linguagem típica
20
carnavalesca nos trabalhos do escritor Ariano Suassuna, destacando, dentre outras, a obra
Auto da Compadecida.
Ariano Suassuna é um dramaturgo, professor e romancista, nascido no dia 16 de junho
de 1927, em Nossa Senhora das Neves, atual cidade de João Pessoa, capital do Estado da
Paraíba. Membro da Academia Brasileira de Letras, é o idealizador do Movimento Armorial,
lançado na cidade de Recife em 1970, com o objetivo de, segundo o próprio autor, “realizar
uma arte erudita brasileira a partir das raízes populares da nossa cultura”.
Vários aspectos medievais são encontrados na obra de Ariano Suassuna, através de sua
dramaturgia. Seu projeto estético pauta-se na transposição da literatura popular do Nordeste
para o ambiente culto. Existe a presença do aspecto medieval não só nas práticas culturais no
Nordeste, mas também nas fontes temáticas, nos modelos formais de gênero literário, nas
matrizes textuais e no próprio tipo de dramaturgia adotada por Suassuna. A partir também dos
conceitos de paródia e carnavalização, de Mikhail Bakhtin, destacam-se as características
gerais do teatro épico de Ariano Suassuna, teatro marcado pelo catolicismo, enfatizando a
moral final e misturando o medieval religioso com o profano, presentes nas suas peças e
matrizes textuais.
Em 1955, ano em que escreve o Auto da Compadecida, Ariano Suassuna realiza pela
primeira vez uma experiência satisfatória de transpor ao teatro os mitos, o espírito e os
personagens dos folhetos e romances, aos quais, para ele, se devem sempre associar seus
irmãos gêmeos, os espetáculos teatrais nordestinos, principalmente o Bumba-meu-boi e o
Mamulengo.
De acordo com Ligia Vassalo (1993, p. 29):
A medievalidade imprime a marca mais específica ao seu teatro,
recortando transversalmente os temas, os textos e os modelos formais.
Ela decorre de imediato de suas fontes populares, que retiveram o
modelo medieval e o transmitem por via indireta; e, mediatamente,
das fontes cultas católicas de seu teatro. Suas estruturas semânticoformais abstratas (ou arquitextos) são escolhidos entre as práticas mais
antigas da cena ibérica, de que o romanceiro tradicional nordestino
guarda muitas consonâncias nas técnicas e nos temas.
A maneira como Ariano Suassuna utiliza determinados episódios e personagens do
Auto da Compadecida, obra que será analisada no capítulo posterior, demonstra uma
importante recorrência a uma tradição antiga, por meio de vários séculos de existência,
permitindo uma nova transformação de princípios medievais às fontes populares do Nordeste.
21
CAPÍTULO 2
O riso e a subversão na obra Auto da Compadecida
O Auto da Compadecida, escrito em 1955 por Ariano Suassuna, é um texto teatral com
base em romances e histórias populares do Nordeste. Sua primeira montagem ocorreu no ano
de 1956, no teatro Santa Isabel, na cidade do Recife, capital pernambucana. Após diversas
remontagens, foi adaptada para a televisão pelo diretor Guel Arraes, em 1999, e no ano
seguinte seria convertida em filme de grande sucesso.
A palavra auto remete a uma composição teatral da literatura dramática, surgida na
Idade Média, e com elementos de comicidade e intenções moralizadoras. Uma das grandes
influências do escritor Ariano Suassuna nesse viés teatral é Gil Vicente, nome de grande
expressão do gênero dramático em Portugal, no século XVI.
A edição do Auto da Compadecida utilizada como corpus neste trabalho é a trigésima
quinta, publicada pela editora Agir, no ano de 2005. A peça é estruturada em três atos, assim
definidos: o primeiro ato se baseia em O enterro do cachorro, fragmento do folheto de cordel
O Dinheiro, de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), onde é contado o episódio do
cachorro morto cujo dono destina soma em dinheiro para que o enterro do animal seja
realizado em latim, dando origem a quiproquós eclesiásticos; o segundo na História do cavalo
que defecava dinheiro, do mesmo escritor, onde há o episódio do gato que “descome” moedas
e o da falsa ressureição ao som de instrumento mágico; e o terceiro é baseado em O castigo
da soberba,de Anselmo Vieira de Sousa, e A peleja da Alma, de Silvino Pirauá Lima, textos
que dão base para o julgamento dos personagens no Céu e a intercessão da piedosa Nossa
Senhora, a “Compadecida”.
A história possui dezesseis personagens, que são: Palhaço, Compadecida, João Grilo,
Chicó, padre João, Major Antonio Moraes, padeiro e sua esposa, Sacristão, Bispo, Frade,
cangaceiro Severino do Aracaju e seu ajudante, Manuel, demônio e Encourado.
A visão carnavalesca de mundo, trabalhada por Ariano Suassuna, traz, em si, uma
ideia de inacabamento, imperfeição e uma forma de expressão ambivalente, por isso ela é
dinâmica e mutável. As formas e símbolos da linguagem carnavalesca caracterizam-se
principalmente pela coerência seqüencial das coisas “ao avesso” e pelas diversas formas de
paródias, degradações e atitudes burlescas. O rito carnavalesco é constituído pela vitória de
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uma forma de libertação momentânea da verdade predominante e do sistema sócio-políticoeconômico vigente.
Para ratificar a carnavalização como aspecto de análise no texto que compõe o corpus
desse trabalho, é importante relacionar o conceito de polifonia e dialogismo ao contexto
discursivo do riso. Para Mikhail Bakhtin, o termo “polifonia” é um modo diferente de narrar,
e não pode ser relacionado à realidade heterogênea da linguagem quando vista pelo ângulo da
pluralidade das “línguas sociais”, e, por isso, não deve ser confundido com os termos
“heteroglossia” ou “plurivocidade”. Polifonia é um universo em que todas as vozes e
consciências são imiscíveis e equipolentes, isto é, plenas de valor, mantendo com outras vozes
do discurso uma relação de plena igualdade. De acordo com Bakhtin (2002. p. 4):
A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a
autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a
peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. [...] é precisamente
a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui
combinam numa unidade de acontecimento, mantendo sua imiscibilidade.
Os discursos que circulam na sociedade apresentam pesos políticos diferenciados, em
função dos jogos de poder. As vozes possíveis de serem percebidas nos textos polifônicos
aparecem em oposição às vozes que tentam passar despercebidas nos textos monofônicos,
produzindo um efeito de “apagamento”, em um grande esforço de impor determinados
discursos como centro das relações de poder.
A partir dos poderes que envolvem a multiplicidade de vozes, a carnavalização dos
personagens do Auto da Compadecida provoca o riso, que, ao subverter esses poderes, por
meio de várias estratégias de linguagem, como as “réplicas dos diálogos”, por exemplo,
congrega vozes distintas, colocando a polifonia em destaque. O dialogismo, de acordo com a
teoria bakhtiniana, “é um princípio constitutivo da linguagem, não sendo esse diálogo,
necessariamente, um ponto de convergência, mas, sim, um espaço de lutas entre os sujeitos do
discurso, pois onde começa a consciência começa o diálogo” (BAKHTIN, 2002, p. 42). O
sujeito é definido pela alteridade, através do outro, que é fundamental para a constituição
dialógica. Daí, o dialogismo tendo sua força máxima expressa na polifonia.
No primeiro ato do Auto da Compadecida, o palhaço é o apresentador:
Palhaço, grande voz: Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um
sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade.
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Toque de clarim.
Palhaço: A intervenção de Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da misericórdia, Auto da
Compadecida!
Toque de clarim.
A Compadecida: A mulher que vai desempenhar o papel desta excelsa Senhora, declara-se indigna de
tão alto mister.
Toque de Clarim.
Palhaço: Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser
representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho
catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo,
baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre e tem direito a certas
intimidades.
Toque de clarim.
Palhaço: [...] Auto da Compadecida! Uma história altamente moral e um apelo à misericórdia.
(SUASSUNA, 2005, p.15-16)
Neste trecho da peça, o palhaço representa o próprio autor, que sonha ligar-se
novamente ao povo e aliviar a feroz realidade do sertanejo com o riso. O sentimento vivido
que habita entre dor e riso é desenhado pelas marcas da memória individual e coletiva, que
constroem um sertão moldado pelo desejo, tido como espelho das paixões. O humor é usado
por Ariano Suassuna como mecanismo de defesa, o que denota uma recusa em defrontar-se
com o sofrimento, uma maneira de enfrentar o real, e a manutenção de uma íntima ligação
com a infância.
O personagem João Grilo foi criado a partir de reminiscências de duas pessoas
conhecidas por Ariano Suassuna na vida real. Primeiro, um sujeito chamado pelo apelido de
“Piolho” e que morava em Taperoá, cidade da Paraíba onde a peça é ambientada, e o outro,
sujeito bastante esperto e meio mau-caráter, chamado João, que vivia no Recife e tinha
exatamente o apelido de “João Grilo”, colocado nele por causa de suas espertezas e trapaças.
Aproximações idênticas podem se fazer a respeito de outros personagens do Auto da
Compadecida, pois eles são retrabalhados pela imaginação criadora do autor, como se feitos
de pedaços e retalhos reunidos pela observação. Os personagens têm uma parte do real e uma
parte herdada da Literatura popular. O personagem “Chicó”, por exemplo, também é baseado
em personagem real, um sujeito que tinha o mesmo nome, Chicó de Berto. A característica de
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mentiroso, presente no personagem, é indispensável em inúmeros contos populares do
Nordeste, que são a fonte contínua do Romanceiro regional.
O mentiroso revela-se nos moldes de Chicó, no Auto da Compadecida:
Chicó: Foi uma velha que me vendeu barato, porque ia se mudar, mas recomendou todo cuidado,
porque o cavalo era bento. E só podia ser mesmo, porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha
visto. Uma vez corremos atrás de uma garrota, das seis da manhã até as seis da tarde, sem parar nem
um momento, eu a cavalo, ele a pé. Fui derrubar a novilha já de noitinha, mas quando acabei o serviço
e enchocalhei a rês, olhei ao redor, e não conhecia o lugar em que estávamos. Tomei uma vereda que
havia assim e saí tangendo o boi...
João Grilo: O boi? Não era uma garrota?
Chicó: Uma garrota e um boi.
João Grilo: E você corria atrás dos dois de uma vez?
Chicó irritado: Corria, é proibido?
João Grilo: Não, mas eu me admiro é eles correrem tanto tempo juntos, sem se apartarem. Como foi
isso?
Chicó: Não sei, só sei que foi assim. Saí tangendo os bois e de repente avistei uma cidade. Você sabe
que eu comecei a correr da ribeira do Taperoá, na Paraíba. Pois bem, na entrada da rua perguntei a um
homem onde estava e ele me disse que era Propriá, de Sergipe.
João Grilo: Sergipe, Chicó?
Chicó: Sergipe, João. Eu tinha corrido até lá no meu cavalo. Só sendo bento mesmo!
João Grilo: Mas Chicó, e o rio São Francisco?
Chicó: Só podia estar seco nesse tempo, porque não me lembro quando passei... E nesse tempo todo o
cavalo ali comigo, sem reclamar nada!
(SUASSUNA, 2005, p. 19-20)
Na cena a seguir, as falas encontram-se em um estado de interação e de embate
“tenso” e contínuo, o que proporciona jogos linguísticos e discursivos provocados pelo
desenvolvimento de um qüiproquó no Auto da Compadecida, em razão de um plano de João
Grilo que deixa o Padre João em uma situação complicada com o Major Antônio Moraes. O
padre fala no intuito de benzer o cachorro, que é da mulher do padeiro, mas que João Grilo
afirma-lhe ser do Major. Este, por sinal, fala sobre seu filho que está doente e vai para o
Recife tratar-se.
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Padre: É o que eu vivo dizendo, do jeito que as coisas vão, é o fim do mundo! Mas que coisa o trouxe
aqui? Já sei, não diga, o bichinho está doente, não é?
Antônio Moraes: É? Já sabia?
Padre: Já, aqui tudo se espalha num instante! Já está fedendo?
Antônio Moraes: Fedendo? Quem?
Padre: O bichinho!
Antônio Moraes: Não. Que é que o senhor quer dizer?
Padre: Nada, desculpe, é um modo de falar!
Antônio Moraes: Pois o senhor anda com uns modos de falar muito esquisitos!
Padre: Peço que desculpe um pobre padre sem muita instrução. Qual é a doença? Rabugem?
Antônio Moraes: Rabugem?
Padre: Sim, já vi um morrer disso em poucos dias. Começou pelo rabo e espalhou-se pelo resto do
corpo.
Antônio Moraes: Pelo rabo?
Padre: Desculpe, desculpe, eu devia ter dito “pela cauda”. Deve-se respeito aos enfermos, mesmo que
sejam os de mais baixa qualidade.
Antônio Moraes: Baixa qualidade? Padre João, veja com quem está falando. A igreja é uma coisa
respeitável, como garantia da sociedade, mas tudo tem um limite!
Padre: Mas o que foi que eu disse?
Antônio Moraes: Baixa qualidade! Meu nome todo é Antônio Noronha de Britto Moraes e esse
Noronha de Britto veio do Conde dos Arcos, ouviu?
Padre: Ah bem e na certa os antepassados do bichinho também vieram nas caravelas, não é isso?
Antônio Moraes: Claro! Se meus antepassados vieram, é claro que os dele vieram também. Que é que
o senhor quer insinuar? Quer dizer por acaso que a mãe dele procedeu mal?
Padre: Mas, uma cachorra?
Antônio Moraes: O quê?
Padre: Uma cachorra!
Antônio Moraes: Repita!
Padre: Não vejo nada de mal em repetir, não é uma cachorra, mesmo?
Antônio Moraes: Padre, não o mato agora mesmo porque o senhor é um padre e está louco [...]
(SUASSUNA, 2005, p. 32-34)
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Na cena retratada anteriormente, a situação propícia ao riso é instaurada por meio das
polissemias e da “falha” presente na linguagem, já que para o Padre João, era o cachorro
(animal) do Major que estava doente, e para o Major Antônio Moraes, sua mulher estava
sendo ofendida pelo padre. O riso é provocado em função de as réplicas dos diálogos estarem
situadas em contextos diferentes, o que causa uma desarmonia entre as falas dos personagens.
Assim, o “encaixe” das falas permite que o qüiproquó funcione, causando efeitos de sentido
diferentes para cada sujeito da cena enunciativa. De acordo com Bakhtin (2006, p. 109):
As réplicas de um diálogo são um exemplo clássico disso. Ali, uma única e
mesma palavra pode figurar em dois contextos mutuamente conflitantes. É
evidente que o diálogo constitui um caso particularmente evidente e
ostensivo de contextos diversamente orientados. Pode-se, no entanto, dizer
que toda enunciação efetiva, seja qual for a sua forma, contém sempre, com
maior ou menor nitidez, a indicação de um acordo ou de um desacordo com
alguma coisa.
As fronteiras da língua e seus lugares de transgressões podem ser observados através
de uma situação de quiproquó. Ao determinar o deslizamento de sentidos como regra, o
quiproquó coloca em cena a comicidade, estabelecendo inter-relações de ordens gramatical,
ideológica, social, cultural etc. Nos jogos linguísticos, essas ordens, ao serem acionadas,
sofrem uma mutação através dos deslocamentos, que têm como consequência o riso.
O primeiro ato da peça Auto da Compadecida é encerrado com o enterro do cachorro
realizado em latim pelo Sacristão, mediante a promessa de ser beneficiário de um testamento
deixado pelo animal. No segundo ato, desenvolvem-se as confusões eclesiásticas em função
das peripécias de João Grilo, dentre elas a do gato que “descome” dinheiro, e da visita do
Bispo, além da invasão da cidade pelos cangaceiros, que resulta na morte de João Grilo, do
Padre João, do Bispo, do Sacristão, do Padeiro, da sua Esposa e de Severino, o chefe dos
cangaceiros, que é enganado por João Grilo com a história da gaita “ressuscitadora”.
O terceiro ato é composto pelo julgamento final dos personagens. A visão cristã da
vida presente no Auto da Compadecida traz uma concepção da religião como algo simples e
agradável, e não como uma coisa formal e solene. O personagem João Grilo é constantemente
adjetivado, pelos outros personagens da peça, de “amarelinho”. Amarelo é luz, que se
transfigura na obra em algo menor, negação do luminoso. Ao mesmo tempo, o próprio João
Grilo se auto-resgata como ser iluminado, uma vez que é o responsável pela reversão e
absolvição de todos os personagens da ida ao inferno.
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Os personagens mortos na invasão dos cangaceiros, ao entrarem na sala de
julgamento, são recebidos pelo diabo, que se coloca no lugar de promotor, tentando enviar os
pecadores ao inferno. Nesse momento, João Grilo pede por um julgamento justo e é atendido.
Entra em cena Manuel (Jesus Cristo), no papel de juiz. Ao longo do julgamento, os
cangaceiros são absolvidos. João Grilo, ao apelar para a Compadecida (Nossa Senhora),
consegue destinar o Padeiro e sua Esposa, o Padre, o Sacristão e o Bispo para o purgatório.
Ao final, ele consegue retornar ao mundo real.
No Auto da Compadecida, a polifonia é constatada por meio da projeção do herói
carnavalizado João Grilo, que não para de aprontar, inventando a vida e recuperando
ininterruptamente o dom do maravilhoso e da graça. Durante o julgamento, as artimanhas do
herói permitem a percepção de vozes que permeiam o texto, devido à mistura de elementos
opostos, configurando o encontro entre o sagrado e o profano, o pecado e a justiça, com o
intuito de julgar os mortos. O leitor, ao entrar em contato com o texto, deve identificar as
vozes que permeiam a cena enunciativa, possibilitando um diálogo interno do próprio leitor
diante do processo de carnavalização ao qual o riso é submetido na obra em análise.
João Grilo se refere ao Encourado como “filho de chocadeira”, porque uma coisa tão
ruim como ele só poderia não ter mãe. Essa designação do Encourado por parte de João Grilo
representa o aspecto carnavalesco, através da desclassificação, rebaixamento e do recurso
carnavalizador de autoritarismo presente no personagem Encourado. Dessa forma, o riso tem
o papel de deslocar o medo sentido por João Grilo e pelos outros personagens de irem ao
inferno.
A percepção de vozes que formam a cena enunciativa no Auto da Compadecida e seus
entrecruzamentos causam o riso. Tais vozes colocam em destaque, no terceiro ato da peça, o
discurso jurídico e o religioso. O processo de carnavalização é caracterizado pelo ritual do
julgamento, em que João Grilo, o Padeiro, sua Esposa, o Bispo, o Padre, o Sacristão e os
Cangaceiros São os réus, o Encourado (diabo) é o promotor, Nossa Senhora é a advogada de
defesa e Manuel (Jesus) é o juiz. As relações de poder estabelecidas entre os personagens
provocam uma crítica à ordem social existente. A seguir, um trecho da obra que retrata essa
constatação:
Encourado: Protesto.
Manuel: Eu já sei que você protesta, mas não tenho o que fazer, meu velho. Discordar de minha
mãe é que não vou.
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Encourado: Grande coisa esse chamego que ela faz pra salvar todo mundo! Termina desmoralizando
tudo.
Severino: Você só fala assim porque nunca teve mãe.
João Grilo: É mesmo, um sujeito ruim desse, só sendo filho de chocadeira!
A Compadecida: E pra que foi que você me chamou, João?
João Grilo: É que esse filho de chocadeira quer levar a gente pra o inferno. Eu só podia me pegar,
mesmo, com a senhora.
Encourado: As acusações são graves. Seu filho disse que há tempo não via tanta coisa ruim, junta!
A Compadecida: Ouvi as acusações.
Encourado: E então?
João Grilo: E então? Você ainda pergunta? Maria vai-nos defender. Padre João, puxe aí uma AveMaria!
(SUASSUNA, 2005, p. 146-147)
O novo se sobrepõe ao passado, pondo em destaque a “lógica das coisas ao avesso”. O
Encourado é, ao mesmo tempo, a representação do mal e da justiça. Essa ambivalência é o
que provoca o riso. O diabo aponta os erros de João Grilo e tenta ordená-lo para o inferno,
sem que o réu tenha um julgamento digno, mas é impedido pela Compadecida de executar tal
ato.
Portanto, o riso provocado na obra Auto da Compadecida serve como instrumento de
persuasão, fazendo-nos tomar uma coisa por outra, já que o riso pode aliviar as tensões
humanas, servindo como liberação de ideias e pensamentos que se encontram reprimidos no
inconsciente, como desconstruir situações aparentemente estáveis no ambiente social ao qual
estamos inseridos.
Nas palavras de Bergson (1980, p. 50):
A comicidade é aquele aspecto da pessoa pelo qual ela parece uma coisa,
esse aspecto dos acontecimentos humanos que imita, por sua rigidez de um
tipo particularíssimo, o mecanismo puro e simples, o automatismo, enfim, o
movimento sem a vida. Exprime, pois, uma imperfeição individual ou
coletiva que exige imediata correção. O riso é essa própria correção. O riso é
certo gesto social, que ressalta e reprime certo desvio especial dos homens e
dos acontecimentos.
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CONCLUSÃO
O riso é um mecanismo social. Quando um texto tem por finalidade fazer rir, o autor
deve levar em consideração a posição social que o leitor em foco ocupa. Dessa forma, o riso
aparece no Auto da Compadecida como um mecanismo desestruturador, que deve ser
encarado com seriedade, porém isso não impossibilita o leitor de usufruir o que há de risível
no texto.
À medida que as réplicas dos diálogos são situadas em contextos diferentes no Auto da
Compadecida, ocasionando um desacordo entre as falas dos personagens, ocorre um deslize
de sentidos, o riso é colocado em prática e produz efeitos de linguagem que aumentam as
possibilidades de interpretação e compreensão dos enunciados.
O riso é verdadeiramente uma espécie de trote social, na maioria das vezes, um tanto
humilhante para quem é objeto dele. Na comédia, os personagens da vida real nos causam
graça por demonstrarem seus desempenhos e atitudes em forma de espetáculo, ao qual
assistimos da plateia e rimos por um prazer exclusivamente estético e totalmente desprendido.
Isso porque junta-se ao riso uma intenção inconfessada de humilhar, e, certamente, corrigir
aquilo que se assiste. Daí a razão pela qual a comédia estar situada mais perto da vida real que
o drama, por exemplo.
Portanto, a obra Auto da Compadecida apresenta um jogo semântico formado pelas falas
e diálogos entre os personagens, produzindo para os enunciados significados diferentes
daqueles tidos como convencionais. O autor Ariano Suassuna busca ressaltar o valor do
Romanceiro Popular Nordestino, com o qual teve estrito contato desde a sua infância. E sua
comicidade vem da recuperação e reprodução de mecanismos narrativos da comédia medieval
e renascentista da Europa e da comédia popular do Nordeste. Os episódios criados por Ariano
na obra em estudo apresentam uma mecânica narrativa simples e divertida, afinal, o riso é
posto no seu ambiente natural, que é a sociedade, correspondendo assim às reflexões advindas
da vida comum.
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REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2 ed., São Paulo: Martins Fontes, 1997.
________ . A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. Brasília: Hucitec, 1993.
________. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo Paulo Bezerra.
3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
________./VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12 ed., São Paulo: Hucitec,
2006.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Tradução de Nathanael C.
Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas – SP: Editora da UNICAMP,
1996
NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado: Ariano Suassuna e a
universalidade da cultura. São Paulo: Palas Athena, 2002.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 35 ed. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
VASSALO, Ligia. O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
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