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A potência do humor e do riso na escola.
Resumo
Este texto aborda falas de professores de teatro sobre as vivências com o humor e o riso
na escola. O humor e o riso estão presentes em diversos eventos que habitam o espaço
institucional, mas nem sempre estão autorizadas dentro do processo pedagógico.
Usualmente deixado ao acaso, nos procedimentos esporádicos do professor ou incidentes
de sala de aula, o evento cômico e o ato do riso podem ganhar um aspecto positivo
criando a comunidade em torno de um código cultural compartilhado. As subcategorias
do cômico, como a ironia, a sátira e a paródia, podem se tornar tanto recursos refinados
da linguagem quanto vetores do preconceito, do menosprezo e da desqualificação de
professores e alunos.
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A potência do humor e do riso na escola.
O trabalho de pesquisa sobre o humor e o riso se desenvolveu entre janeiro de
2005 e maio de 2007 no curso de Doutorado em Educação/Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, sob orientação do Prof. Carlos Skliar, professor e pesquisador da área da
Educação da FLACSO/Buenos Aires. Durante o ano letivo de 2005-2006, com apoio da
Bolsa-Sanduíche (PDEE) da Capes-Ministério de Educação (Brasil), a pesquisa foi
orientada pelo Prof. Jorge Larrosa, na Faculdade de Educação da Universidade de
Barcelona (UB). Entre maio de 2005 e abril de 2006, foram realizados estudos dirigidos
no Instituto de Teatro de Barcelona, com levantamento de textos históricos sobre o
humor e o riso. Durante o ano letivo, foram programadas visitas a escolas de ensino
regular com registro de práticas escolares. Nessa etapa, também foram feitos contatos
com professores de teatro trabalhando com Escola Primária e Secundária na Espanha, e
professores do Ensino Fundamental e Médio, em Porto Alegre e Esteio, RS. Ao longo do
ano letivo 2005-2006, em Barcelona, foram realizados diversos registros no atelier de
formação de atores “Estudis de Teatre Berty Tovías”, observando a pedagogia de estilos,
como o melodrama, a tragédia e o bufão.
No período de maio de 2006 a janeiro de 2007, em Porto Alegre e Esteio (RS),
participaram dos encontros professores de teatro e de outras áreas. Nas conversas com
os professores eram abordados os temas do riso e do humor na educação escolar, a
partir de episódios da história do riso e com exemplos de algumas cenas cômicas que
costumam ocorrer nesses espaços. A partir dessa introdução, os professores narraram
alguns eventos cômicos em sala de aula e falaram das maneiras peculiares de uso do
humor para uma aproximação com os alunos ou para abordagem de algum conteúdo
específico. Os encontros propiciaram aos professores um momento de exposição de suas
abordagens do riso, reportando, por vezes, às suas próprias vivências como alunos e
lembrando outros professores que marcaram significativamente as suas experiências
escolares.
Nas abordagens iniciais, em conversas com professores sobre o cômico nos
espaços escolares, houve sempre respostas favoráveis – o riso é um aliado quando se
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trabalha em busca de um bom humor, faz parte do lugar comum. No entanto, ao operar
como phármakon, podendo ser cura ou veneno, pede um mediador qualificado para as
diferentes dosagens. A atitude a favor do humor é, de forma bem usual, sustentada pelo
aspecto de “sanidade”: o bom humor está relacionado à inteligência e à alegria, ajuda a
manter o ânimo diante das dificuldades, cria distensões, relaxa, favorece a
comunicação, compõe com o trágico uma forma de ser humano que se conta em
movimento, em aístesis. Ao mesmo tempo, essa ação bem ou mal-humorada solicita
uma noção de ética muito apurada e “rápida” – estabelecer as fronteiras móveis pela
compreensão de um humor compartilhado, e sua aceitação como trânsito possível na
escola, como linguagem.
Apesar da acolhida positiva do humor e do riso nas atividades escolares e do
entusiasmo com o tema, os professores contatados estavam encerrando o ano letivo, no
período inicial da pesquisa. E esse contexto é similar tanto em Porto Alegre quanto em
Barcelona. As manifestações de desânimo, de estresse e de mau humor em relação à
escola, aos alunos e às práticas pedagógicas (ou a sensação do fracasso dessas propostas)
eram tão veementes – inscritas nos corpos, na fala, na desolação – que criavam sempre
um contraponto em relação ao aspecto positivo da sanidade psicofísica, tão enfatizada
nas primeiras impressões desses professores. Algo que poderia ser cura se tornava
indesejado, pela sua ameaça ao controle e à disciplina, já tão esgotados em suas
operações, tanto no Brasil quanto na Espanha, em vias de “falência múltipla dos
órgãos”. Alguns professores diziam que estavam “cremats” (queimados, torrados), dando
idéia do cansaço, da mudança de ânimo com a fadiga pelo calor do verão e impotentes
diante da falta de limite dos alunos, uma forma de esgotamento. Os meios de
comunicação divulgavam, nesse período, estatísticas de afastamento do trabalho,
licença-saúde devido ao estresse dos professores. Havia sempre uma manifestação de
“desgaste” em relação à profissão de tal modo que nem mesmo a idéia de um bom
humor ou do uso de recursos da categoria do cômico poderia suplantar uma baixa de
ânimo geral. Passado o período de férias, no retorno às aulas, pude contatar professores
dispostos à observação dos eventos cômicos em suas atividades escolares. Criamos uma
pauta conjunta, tendo o riso como expressão evidente desses eventos ou algum outro
traço de humor em distintas categorias – as formas de menosprezo, desqualificação e
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preconceito.
Esse possível conhecimento – aprender a rir, demanda um estado alerta para uma
ética deslizante, no cotidiano. Como deslizar em comunidade, pelos campos do humor?
Quais as linguagens na formação do professor que estão á disposição para essa
experiência? As manifestações positivas, aquele humor que torna o ambiente favorável
ao processo de trabalho, aparecem reiteradas em algumas conversas com professores.
Mirela é professora de teatro para turmas de séries iniciais do Ensino Fundamental há
seis anos, em Porto Alegre. Mirela explica que entra “em jogo” criando personagens,
tratando de amenizar os desgastes disciplinares através de acordos com os alunos:
Uma coisa que surgiu muito forte no grupo é que eu, às vezes, quando entro na aula, ou entro
brincando ou entro fazendo uma voz diferente, faço um personagem, prá chamar a atenção
deles, prá ser um catalisador e funciona tri-bem... e eles começaram a querer fazer também. A
gente instituiu um momento prá se fazer uma coisa engraçada.
O exercício da sensibilidade para o cômico solicita uma atenção e uma escuta
para alguns aspectos que estão diante de nós, mas passam despercebidos ou
desvalorizados na sala de aula. A sensibilidade para a escuta e olhar argutos que
perscrutam o momento do “aqui e agora”, em busca do cômico, atentos para o como e
quando ele ocorre, podem contribuir para uma alteração nas atitudes e nos sentidos
constituídos na relação dos professores com os alunos. A professora Ana trabalha com
crianças e com adolescentes, numa escola federal. Ela diz que
a questão do riso como afetividade é básico, a partir do momento em que tu permites rir de ti
mesma, tu podes rir deles, eles podem rir de ti, acho que fazes um caminho de afetividade em
que eles vão se relacionar muito mais facilmente contigo. O que ando aprendendo mais aqui [na
escola] é essa relação entre o limite e a afetividade, o quanto o limite é afetividade. Então esse
riso, esse brincar tem uma regra, é regrado mas a partir de concordâncias comuns, de acertos e
ajustes diários. Acho que o maior aprendizado aqui foi isso: até que ponto desse riso se constrói
uma regra comum, uma regra que seja do acordo de todos prá manter o trabalho em
andamento. A função do trabalho do clown (palhaço) para mim é muito claro porque daí tu
mesclas o jogo, tu mesclas a brincadeira, a ironia, que são recursos do meu clown e que eu
utilizo [na sala de aula].
Em Barcelona, Tatiana, professora de inglês para crianças e adolescentes, me
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conta que ela não faz uso do cômico como um recursos dramático. No entanto,
relutante, admite que o humor é um bom aliado na sala de aula. Ainda que tenha
alguma resistência a pensar no humor como recurso, através de algo cômico, aposta nas
interações que abrem espaço para “subversões” rápidas, em sala de aula. O seu próprio
deslocamento para fora de um papel usual do professor lhe serve como mobilizador das
interações, a favor de uma comunicação eficaz que se manifesta pelo riso. A professora
observa episódios cômicos e organiza os fatos em duas categorias: riso e humor. Para
Tatiana, o humor é “como uma produção intelectual, mais elaborada, para fazer rir. Há
uma intenção”. O riso, por outro lado, é algo que ocorre sem intenção, quando algo “dá
errado”, um acidente, e cita o uso de um CD de canções que sempre falha: “isso é muito
engraçado, eles riem ouvindo uma canção toda arranhada”. Outro momento curioso de
riso espontâneo é quando Tatiana diz que dança diante dos alunos, nomeando em inglês
as partes do corpo. Quando ela dança, provoca o riso dos alunos. Sua atitude está fora
das normas adequadas e dos procedimentos habituais para um professor nesse momento
e lugar. Em outras circunstâncias, Tatiana cria personagens com falas irônicas para
contrapor algumas “desculpas” dos alunos, quando não cumprem suas tarefas.
José, palhaço profissional (clown) e professor de inglês, conta que tem um
“personagem” que ele aciona quando deseja enfatizar alguns cuidados com a língua
inglesa. Brinca de provocar o temor: muda a voz, configura determinadas expressões
faciais indicando estar brabo ou muito sério e gesticula com o dedo em riste. José joga
com uma pequena ilusão, uma rápida ficção em meio aos procedimentos didáticos,
inventando esse personagem sisudo que procura alterar a situação real, diante da
dificuldade dos alunos no aprendizado da língua estrangeira. José ameaça com castigos
aquele que incorrer no erro gramatical, trabalhado inúmeras vezes. O professor brabo
condena a falta de memória e cobra atenção. Algumas das situações improvisadas na
sala de aula, como a criação de um personagem, um corpo e uma voz diferentes do
habitual, não são necessariamente teatrais, no sentido de se direcionarem para algum
espetáculo. A ficção cotidiana, uma breve invenção, é que se arma nesse cenário. É o
campo de ação pedagógica, no caso de professores em sala de aula, que se torna
habitado por esses personagens paródicos, os quais se manifestam esporadicamente, na
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linguagem usual ou formal, como um “jeito de ser” tradicional, uma atitude
“professoral” distanciada no tempo. O professor em ação está representando como se
estivesse num jogo, aproximando-se do palhaço ou do bufão, quando os recursos da sua
linguagem circulam pelo humor, pela paródia, inclusive acolhendo a gag acidental ou
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não.
José fala a verdade através de outra voz, jogando com a paródia e com a ironia do
seu texto. Como diz Chantal Maillard, “a ironia segue assumindo o sério no sorriso que
provoca. Mas assume o sério, apresentando-o como um marco que ressalta sua condição
efêmera e o trato que tem todo o “real” com a “sorte”: sua entrega não à morte, mas à
mudança” (MAILLARD, 1998, p. 48). É a mudança na atitude que José quer provocar,
implicando seus alunos num jogo através de uma máscara, através de uma intenção
lúdica, através de um breve momento verdadeiro e “irreal”. José se dá conta, em
seguida, de que aciona as máscaras e provoca o riso. E conclui que a sua representação
de um papel ficcional, de forma acidental, é uma habilidade usada, em momentos
oportunos, para falar sério através do cômico.
Nas falas de alguns professores também surgiu, como bordão, a questão de
“mostrar ou não os dentes” para os alunos. A imagem é tentadora: sorrir ou “ladrar”,
algo que pode ganhar uma dimensão hostil ou acolhedora, uma imagem de abertura
através do riso. “Mostrar os dentes” aponta diretamente para o corpo em evidência,
lembrando de um gesto que precisa ser controlado, que traduz um rigor disciplinar para
que a abertura “da boca” permita um contato adequado a determinadas formas de
educar, sem que se perca no deleite e no prazer do riso. “Mostrar os dentes” como riso
é baixar a guarda, implicando uma possibilidade de tomada do lugar pelo outro, que
deveria estar em posição subordinada. “Mostrar os dentes” sorrindo abre espaço para
que “eles tomem conta”, marcando um limite que condena a feição que o humor mostra
e não se detém sobre o tema que provoca o riso. Como nos indica a trajetória histórica,
o riso toma o lugar do menosprezo, serve à correção moral, é típico do devaneio dos
tolos, é um gesto de humilhação do outro que está em situação de ridículo, é censura
àquele que desconhece a sua ignorância. O riso está próximo do pecado mundano, é
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coisa do demônio e evidencia a insanidade daqueles que perderam o siso.
A hospitalidade ou a hostilidade ao riso nos reporta à história do pensamento
ocidental, relacionando com o rechaço ao risco do ridículo, o temor por sua potência
mobilizadora e corrosiva. A resistência, o “anti-riso”, digamos assim, é uma proteção
contra a extrapolação ou a desordem que o evento cômico pode provocar. O ideal do
anti-riso, outrora a atitude do agelastos 1 grego, se fundamenta no controle do silêncio e
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na correção da palavra. A disciplina é a sua lei, e a sua virtude é a obediência silenciosa
à palavra do mestre. Se o mestre deseja a ordem rígida, o silêncio total e a fala apenas
autorizada, deve manter-se longe do evento cômico, para não provocá-lo, para não
autorizar a excitação do riso dentro dos lugares da educação. No entanto, que o mestre
não esqueça que há movimento nas brechas da palavra das verdades, há sempre um furo
no discurso monológico, uma rachadura por onde o humor vaza.
Por seu caráter transgressor, subversivo, mobilizador da crítica a todos os
poderes, o riso ressurge nos intervalos em que o controle “abre um respiro”, nas falhas e
equívocos que também nos constituem como seres humanos e insuficientes. Investir no
humor e no riso implica compreender e incorporar um fundo trágico da existência,
tornando nosso discurso mais cético e não menos lúdico. O humor que cria um território
instável em parceria com a dimensão trágica se torna mais lúcido, ousaria dizer. E refina
o discurso poético.
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Sergio Andrés Lulkin
Departamento de Ensino e Currículo, Faculdade de Educação, UFRGS
[email protected]
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