“VAMOS BRINCAR DE CIRCO?” AS BRINCADEIRAS DAS CRIANÇAS DA
ESCOLA “BRINCANDO DE CIRCO” E DO REALITY CIRCUS.
Foto 1 – Lona de Circo
Fonte: Alexsandra de Souza (Iª SEPEX – UFSC / 2000)
ALEXSANDRA DE SOUZA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
“VAMOS BRINCAR DE CIRCO?” AS BRINCADEIRAS DAS CRIANÇAS DA
ESCOLA “BRINCANDO DE CIRCO” E DO REALITY CIRCUS.
ALEXSANDRA DE SOUZA
ORIENTADORES:
PROF. DR. JOÃO JOSUÉ DA SILVA FILHO
PROFª. Drª. GILKA ELVIRA PONZI GIRARDELLO
FLORIANÓPOLIS
2004
ALEXSANDRA DE SOUZA
“VAMOS BRINCAR DE CIRCO?” AS BRINCADEIRAS DAS CRIANÇAS DA
ESCOLA “BRINCANDO DE CIRCO” E DO REALITY CIRCUS.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação
em
Educação
da
Universidade Federal de Santa Catarina,
como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em Educação, sob a
orientação do Prof. Dr. João Josué da
Silva Filho e da Profª. Drª. Gilka Elvira
Ponzi Girardello.
FLORIANÓPOLIS
2004
Foto 2 – Caroline sorrindo e fazendo pose
Fonte: Alexsandra de Souza (09/04/03)
“Há sempre um pouco de circo no coração de toda criança. Há sempre um
pouco de criança no coração de todo adulto. Dentro de nós despertam ecos
as facécias do palhaço, o encanto da bailarina a cavalo, as proezas do
trapézio, o destemor do homem que enfrenta leões e tigres... O fascínio que
aureola nossas recordações, vem do resto de infância que – felizmente! –
ainda ficou em nós. E enquanto houver, ressoando alegre e contagiante, um
riso de criança, haverá sempre um grito entusiástico pronto a explodir: Viva o circo!”
(Roberto Ruiz)
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AGRADECIMENTOS
“Uma amizade verdadeira é o ingrediente de
sentimentos felizes e das lembranças importantes
que marcaram a nossa vida”. (A. D.)
Nos 2 anos em que estive no mestrado passei por muitas dificuldades e
acredito que outras também passaram, e como diz Maria Ester de Freitas*:
“somos todos iguais nessa tese..., VIVER A TESE É PRECISO!”.
E neste caminho trilhado, muitas pessoas apoiaram-me com gestos,
telefonemas, cartas, bilhetes, que expressaram amizade, carinho, amor,
compreensão..., e foram esses pequenos gestos, essas pequenas palavras, que
fortaleceram-me para continuar a caminhada.
Acredito, que a todo caminho precisamos de uma força maior, que nos
impulsiona e não nos deixa desfalecer jamais. E esta força veio do alto, de um
Amor Supremo, capaz de superar qualquer barreira. Obrigada Senhor, por
iluminar a minha vida!
E nesta caminhada, quero agradecer...
...aos meus pais, Manoel e Isabel, verdadeiros e eternos amigos, tenho
muito a agradecer por tudo o que vocês têm feito e fizeram por mim. Amo Muito
Vocês!
...ao Flávio, por ter ajudado-me nas filmagens e acompanhado-me em
vários circos, e o mais importante, por ser compreensivo, paciente, companheiro
em todos os momentos de alegria, tristeza, angústia e ansiedade... Foi com ele
que desabafei, chorei, lamentei meu cansaço, meu sofrimento, minhas limitações
*
FREITAS, Maria Ester de. Viva a tese: um guia de sobrevivência. São Paulo: ED. FGV, 2001.
e foram as suas palavras de carinho e de compreensão que acalentaram-me.
Você me faz muito feliz e agradeço a Deus por você fazer parte de minha vida. Te
amo muito!
...à minha irmã Juliane, a minha tia Deomarina, a minha tia Fátima e a
minha prima Vanissi por terem ajudado-me nos momentos em que muito precisei.
Obrigada pelo apoio que vocês me deram!
...às amigas: Karla, Daiany, Elizângela, e principalmente uma amiga muito
especial, Rosângela, amiga para todos os momentos, uma amizade verdadeira,
baseada no carinho e na compreensão. Obrigada a todas!
... à Ana Luiza Bernardes de Borja por ter ajudado-me a escanear as fotos.
...aos orientadores Josué e Gilka,
por serem pacientes, amigos,
compreensivos, respeitaram os meus limites, e pelas contribuições nas quais
ajudaram-me a conhecer as crianças e o mais importante, aprender a ouvi-las.
...aos membros da banca de qualificação do projeto, Profª Deborah Sayão,
Prof. Maurício R. da Silva e Profª Gilka Girardello, por terem aceito a ajudar-me. O
meu muito obrigada!
...aos professores do PPGE com quem tive contato, Ana Beatriz (Bea),
Josué, Eloísa, Jucirema e Maria Luiza Belloni. Obrigada pelas discussões
realizadas em aula e no Núcleo de Estudos e Pesquisas da Educação de 0 a 6
anos (NEE 0 a 6).
...às colegas de turma, Fernanda Tristão, Nilva Bonetti, Keila Gonzalez,
Ilona Rech, Karine Antunes, Arlete de Costa e Maria Luisa Schneider. Obrigada
pelos momentos compartilhados, pelas palavras certas nas horas certas!
...às funcionárias da secretaria da pós-graduação, Sônia, Patrícia e
Maurília. Muito obrigada por sempre atenderem-me com carinho e dedicação.
...à coordenadora, às professoras e principalmente às crianças da escola
“Brincando de Circo” e à família do Reality Circus. Muito obrigada pela
disponibilidade e oportunidade de aprendizagem que tive com as crianças!
...à psicóloga Carla. Obrigada por ter escutado-me e aconselhado-me, para
que eu aprendesse a conviver e a superar os momentos difíceis em que passei!
...à CAPES pela concessão da bolsa de estudos que possibilitou as
condições para a realização desta pesquisa.
à todas as pessoas que, diretamente ou indiretamente ajudaram-me
durante a caminhada.
Foto 3 – Vitor e Lucas brincando com o prato
Fonte: Alexsandra de Souza (21/05/03)
Dedico este trabalho às crianças da Escola
“Brincando de Circo” e do Reality Circus por
mostrarem que o riso, a alegria e as
brincadeiras fazem parte do seu mundo e de
todos que as cercam. À minha família pelo
amor que sempre me deram e pelo incentivo
na busca de minha realização profissional. E
ao Flávio pelo carinho, apoio e compreensão
nos momentos difíceis desta caminhada.
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RESUMO
O objetivo desta dissertação é identificar o sentido e o significado que as crianças
atribuem às brincadeiras na escola "Brincando de Circo" e no "Reality Circus".
Para tanto, foram realizadas observações, fotografias e filmagens das crianças,
revelando suas representações sobre o brincar nesses dois "palcos". As crianças,
consideradas personagens principais e protagonistas das suas ações, revelaram
por meio de gestos, olhares, movimentos, risos, palavras, silêncio e brincadeiras,
a importância que o circo tem para elas, e o valor que dão às atividades
circenses.
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ABSTRACT
This dissertation seeks to identify the sense and the meaning atributted by
children to their play at the school “Brincando de Circo” and at the “Reality Circus”.
The work was conducted through observations, photos and filming of the children,
revealing the representations of play which can be found in those two “stages”.
Children, here considered main characters and protagonists of their actions,
showed in their gestures, movements, laughter, words, silence and play the
importance the circus has in their lives, and the value they give to the activities
related to the circus.
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SUMÁRIO
“... a vida é de fato escuridão, exceto lá onde
houver impulso, e todo impulso é cego, exceto
onde houver sabedoria, e toda sabedoria é vã,
exceto onde há trabalho, e todo trabalho é
vazio, exceto onde há amor, e quando você
trabalha com amor, você se liga com você
mesmo e com o outro, e com Deus”.
Khalil Gibran
ABREM-SE AS CORTINAS... E COMEÇA O ESPETÁCULO!
Introdução..............................................................................................................01
Aspectos Metodológicos........................................................................................07
Nos Bastidores do Fazer Investigativo...................................................................15
1 – SENHORAS E SENHORES, COM VOCÊS... O CIRCO E SUA HISTÓRIA!
1.1. A História do Circo..........................................................................................22
1.2. Os Elementos do Circo...................................................................................26
2 - APRESENTANDO... OS PALCOS ONDE TUDO ACONTECEM...
2.1. A Escola “Brincando de Circo”........................................................................30
2.2. O Reality Circus..............................................................................................34
2.3. Os Personagens Principais: As Crianças da Escola “Brincando de Circo” e do
Reality Circus.........................................................................................................46
2.4. As Brincadeiras das Crianças da Escola e do Circo.......................................64
3 – UM BREVE ESTUDO SOBRE INFÂNCIA, CRIANÇA E BRINCADEIRA
3.1. Concepção de Infância e Criança...................................................................88
3.2. O Brincar e sua Importância...........................................................................91
FECHAM-SE AS CORTINAS... E ENCERRA-SE O ESPETÁCULO!
Considerações Finais.............................................................................................98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................102
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA.........................................................................107
ANEXOS
O Projeto Arte de Circo
ABREM-SE AS CORTINAS...
E COMEÇA O ESPETÁCULO!
Figura 1 – O palhaço
Fonte: http://puccamp.aleph.com.br/circo/circo1.htm
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ABREM-SE AS CORTINAS... E COMEÇA O ESPETÁCULO!
Introdução
“No palco, na praça, no circo, num banco de
jardim, correndo no escuro, pichado no muro,
você vai saber de mim. Mambembe, cigano,
debaixo da ponte, cantando, por baixo da terra,
cantando, na boca do povo, cantando.
Mendigo, malandro, moleque, molambo, bem
ou mal. Escravo fugido ou louco varrido, vou
fazer meu festival. Poeta, palhaço, pirata,
corisco, errante judeu, dormindo na estrada,
não é nada, não é nada, e esse mundo é todo
meu.”
1
Chico Buarque
O terceiro soar de um gongo convoca o público. As luzes se apagam e os
holofotes anunciam o espetáculo que vai começar. É a magia do circo, que
renasce e se transforma.
A paixão pelo circo faz parte de minha vida desde criança. Lembro-me que
ficava muito feliz quando um circo chegava em minha cidade natal (Florianópolis)
e que pedia entusiasticamente a meus pais que me levassem para assistir ao
espetáculo. Eram muitos os comentários na escola sobre o circo que havia
1
Buarque, Chico. Parte da letra da música “Mambembe”,
www.mpbnet.com.br/canto.brasileiro/marcia.tauil/letras/mambembe.htm
retirada
do
site:
chegado na cidade, e esperávamos o final de semana ansiosos. Parecia uma
eternidade, e quando chegava o dia de irmos ao circo, a alegria reinava em minha
casa - e acredito que na casa de outras crianças também. Fui a muitos circos.
Grandes,
pequenos;
alguns
tinham
animais,
números
de
equilibrismo,
malabarismo, mas do que eu mais gostava mesmo eram os palhaços. Ah, os
palhaços! Eles faziam-nos rir, dar boas gargalhadas, eram eles, naqueles
momentos, que construíam ali uma pequena sociedade mais alegre, afetiva e
generosa.
Mas, o tempo foi passando e cada vez menos se via circos na cidade.
Ainda criança me perguntava: onde estão os circos? Para onde eles foram, que
não vieram mais à minha cidade? Essas e outras perguntas ficaram guardadas
para sempre em minha infância. Somente mais tarde, com algumas leituras, é que
pude compreender melhor os “desaparecimentos” dos circos.
O livro “O Circo no Brasil”, de Antônio Torres (1998), é um grande marco
da história circense no país; nele o autor nos fala que a memória do circo da
primeira metade do século XX corria o risco de perder-se, porque as pessoas que
eram suas depositárias estavam, literalmente, morrendo, e seus descendentes
diretos não mais garantiam a continuidade de seus saberes, pelo menos nos
moldes de uma transmissão grupal, comunitária e familiar.
Percebe-se que o circense brasileiro não se preocupou em deixar registros
escritos e testemunhos pessoais sobre sua história de vida ou de trabalho.
Existem fotografias, recortes de jornais e alguns livros de circenses, escritos a
partir dos anos de 1960 e 1970, mas são raros os registros escritos, por exemplo,
sobre árvores genealógicas ou origens familiares. Torres afirma que os circenses
“tradicionais” relatam que o único e importante registro de sua história, que
“deixavam de herança” para seu filho, era o saber circense transmitido por meio
dos seus ensinamentos e registrados pela memória.
Portanto, não podemos negar que haja a continuidade da transmissão de
saberes, embora de forma distinta de outros modos de transmissão do saber
coletivo. O circo, como um todo, não mais se “responsabiliza” pela continuação do
ensino artístico da geração seguinte, este passou a ser responsabilidade de cada
família, que escolhe onde seus filhos vão estudar; na escola formal ou no circo.
É a partir dos anos 1940 e 1950 que muitas famílias circenses brasileiras
começaram a ter uma preocupação maior com os seus filhos, com a educação,
com os estudos que queriam dar a eles. Então é que muitas crianças e
adolescentes foram mandados para as casas de parentes que possuíam
residência fixa, que não pertenciam ao mundo circense, para que assim
iniciassem os seus estudos e construíssem um “futuro diferente”, “melhor” que a
vida que seus pais haviam herdado.
Hoje é comum entre as famílias de circo que os pais prefiram que seus
filhos se dediquem aos estudos, ao invés de dedicarem-se apenas à arte
circense. Os pais passaram a perceber que, com estudo, seus filhos continuariam
trabalhando no circo, mas agora como proprietários de uma empresa, e não
apenas como artistas. Esta atitude acabou trazendo duas conseqüências: a
primeira diz respeito à visão que estes “novos empresários” têm do circo. Menos
sentimentais, para eles o circo é um negócio que tem que dar lucro. A segunda é
que, para suprir a demanda de artistas, já que as famílias circenses agora
cuidavam da administração, surgiram as escolas de circo, que formam novos
artistas. (Silva, 1996).
E foi com a ruptura na transmissão deste saber circense que alguns
artistas, preocupados em continuar transmitindo os seus saberes, em fazer a
profissão renascer, fundaram as chamadas escolas de circo, porém agora não
apenas os filhos de circenses participavam, mas também outras crianças,
adolescentes e adultos que tinham uma grande paixão pelo circo. Antes o circo se
restringia às famílias circenses, mas com o tempo ele passou também a fazer
parte de espaços alternativos como escolas, academias, projetos sociais e até
mesmo os sinais de trânsito das cidades.
Esse processo ocorreu em vários países ao mesmo tempo, não só no
Brasil. Na França, a primeira escola de circo foi a Escola Nacional de Circo Annie
Fratellini. Annie era descendente da maior família de palhaços franceses, os
Fratellini. A escola surgiu com o apoio do governo francês, em 1979. Ligados à
escola ou não, começaram a surgir vários outros grupos.
Em 1982, surgiu em Québec o Club des Talons Hauts, grupo de artistas em
pernas de pau e malabaristas. É esse grupo que em 1984 realizou o primeiro
espetáculo do Cirque du Soleil. Em decorrência do grande sucesso no Canadá,
eles receberam apoio do governo para a primeira turnê nos Estados Unidos. A
segunda turnê, em 1990, foi assistida por 1.300.000 espectadores só no Canadá
e excursionou por 19 cidades americanas. Surgiu assim a grande empresa de
espetáculos, que atualmente tem mais de 700 artistas contratados.
A primeira escola de circo que se instalou no Brasil chamava-se Piolin, em
São Paulo, no estádio do Pacaembu (1977). Em 1982, surgiu a Escola Nacional
de Circo, no Rio de Janeiro, na qual jovens de todas as classes sociais têm
acesso às técnicas circenses. Formados, os ex-alunos vão trabalhar nos circos
brasileiros ou no exterior, ou formam grupos que se apresentam em teatros,
ginásios e praças.
Foi a partir dos anos de 1990 que algumas escolas regulares incluíram em
seus currículos atividades diferenciadas, como “circo” por exemplo, e uma dessas
escolas é a “Brincando de Circo2”, em Florianópolis, cujo Projeto Arte de Circo3 foi
incluído no currículo a partir do primeiro semestre de 2002, sendo trabalhado por
duas professoras nas quartas-feiras das 18h30min às 19h45min, e contando na
época da pesquisa de campo com 10 crianças entre 4 e 9 anos.
Uma das professoras4 dessa escola afirma que:
A idéia de circo tem um leque muito grande de possibilidade de expressão,
podendo trabalhar várias formas, várias abordagens com a criança,
procurando outras formas de se movimentar, um pouco diferente do que
normalmente costuma-se passar para as crianças, ampliando um pouco a
movimentação delas, o modo como elas vêem o mundo e direcionar isso com
a linguagem circense, buscando a arte, a leitura corporal, tudo junto com uma
proposta bem lúdica, abordando sempre o circo.
As professoras ainda relatam a importância das atividades de circo para as
crianças, ressaltando que o mais importante é elas “estarem bem”, “brincarem
bastante”, “experimentarem várias formas de utilizar os materiais” que elas
oferecem às crianças. As professoras procuram, assim, fornecer o máximo de
2
Nome fictício.
Para saber mais sobre esse projeto, apresento uma cópia do mesmo no item anexos deste
trabalho. Vale ressaltar que a cópia foi fornecida pelas professoras/autoras do projeto.
4
Em uma das conversas com a pesquisadora, em 02/04/2003.
3
possibilidades. Afirmam também que nas aulas elas procuram incentivar a
criatividade das crianças e a imaginação, por meio de desafios e ludicidade, para
que elas (as crianças) experimentem de várias formas os materiais, como
equilibrar objetos, andar “como um animal pequeno”, “grande”, “bravo”, equilibrar
o corpo, fazer malabarismos, conhecer e superar seus próprios limites.
De acordo com Roman e Steyer (2001):
A construção do conhecimento e a formação da criança objetivam uma
melhor disponibilidade do indivíduo a partir de vivências que possibilitem a
conscientização das limitações e facilidades que cada um apresenta na
relação consigo mesmo, com os outros, com o meio e o conhecimento. (p.42)
Já no “Reality Circus” a construção do conhecimento circense e a formação
das crianças se dá de um modo diferente. De acordo com Sarmento5, na teoria da
reprodução a criança é levada a reproduzir as normas e valores sociais a partir
das agências de reprodução social, especialmente a escola e a família. Como
exemplo disso, um integrante da família Los Henriques, do Reality Circus, diz: “as
crianças circenses aprendem por meio da imitação devido à convivência
permanente que elas têm com a sua família”. Segundo ele, a mesma forma de
vida permite, portanto, que as crianças se iniciem na arte, brincando de circo no
próprio circo, familiarizando-se com os aparelhos e despertando assim, suas
vocações.
Sarmento ainda ressalta as teorias estruturais e a corrente interpretativa: a
primeira diz que a infância constitui “uma forma estrutural particular”, ou seja, a
infância está exposta às mesmas forças que os adultos, as crianças são coconstrutores da infância e da sociedade. E a segunda diz que as crianças
participam na sociedade de modo criativo e inovador, contribuindo assim para a
produção e mudança cultural no quadro dos constrangimentos das estruturas
sociais. Portanto, o que o autor quer nos dizer é que todas as crianças, - inclusive
as crianças circenses, acrescentamos, - são produtoras de cultura, se expressam,
participam, são atores e autores do seu contexto.
5
Sarmento, Manuel Jacinto. Palestra no Seminário Especial: Sociologia da Infância e Educação:
Questões Emergentes, realizado entre os dias 30/06/03 a 04/07/03, no Centro de Educação (CED)
da UFSC.
No quadro dessas
reflexões iniciais,
elegi
como principal
objetivo
identificar o sentido e o significado que dois grupos de crianças atribuem às
brincadeiras circenses, buscando pistas desse sentido na análise de seus relatos
e de fotos das atividades. Os objetivos específicos do trabalho são: examinar e
discutir as brincadeiras e os conceitos de circo que têm as “crianças circenses”
da escola “Brincando de Circo” e as do Reality Circus; apresentar a história,
os elementos e a cultura dos circos em geral, num quadro teórico em que se
destacam os elementos circo, brincadeira, criança e infância. Para tanto, busco
responder às seguintes questões norteadoras: Em que o circo pode contribuir
para as crianças que participam de atividades circenses, dentro e fora do circo?
Qual o significado que as crianças estudadas dão para o circo? O que as crianças
fazem e constróem no espaço circense? Como as crianças se organizam nesses
ambientes? Quais são as suas brincadeiras? O que é circo para essas crianças?
O trabalho está estruturado da seguinte forma:
Na introdução apresento a caracterização do estudo, os sujeitos da
pesquisa e minha chegada até o campo da pesquisa.
No primeiro capítulo destaco a história do circo, os seus elementos e sua
cultura.
No segundo capítulo apresento o trabalho na escola “Brincando de Circo” e
no Reality Circus e as crianças desses dois campos. As brincadeiras das
“crianças circenses” são o foco de reflexão, desenvolvida com apoio em
observações, fotos e relatos das crianças.
No terceiro apresento um breve estudo sobre a concepção de infância,
criança e sobre o brincar e sua importância.
E nas considerações finais, realizo algumas sínteses que o estudo
possibilitou.
Aspectos Metodológicos
“É preciso construir a necessidade de construir
caminhos, não receitas que tendam a destruir o
desafio de construção”.
6
Pedro Demo
Partindo de uma perspectiva de abordagem qualitativa, optei pela pesquisa
participante, utilizando a revisão de literatura como forma de qualificar e
problematizar as diferentes técnicas de que lancei mão na busca de apoiar uma
compreensão sobre as brincadeiras das “crianças circenses”. Como técnicas,
utilizei observações, registros fotográficos, diário de campo, filmagens e
conversas com as crianças e com os adultos.
A escolha da abordagem qualitativa para a realização desta pesquisa pode
ser compreendida com apoio na seguinte colocação de Minayo (1999):
A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se
preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser
quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos,
aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço
mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não
podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (p.21-22)
Minha escolha de observação participante se justifica com esta reflexão de
Azanha (1992):
Um dos pressupostos da pesquisa participante é de que a convivência do
investigador com a pessoa ou grupo estudado cria condições privilegiadas
para que o processo de observação seja conduzido e dê acesso a uma
compreensão que de outro modo não seria alcançável. Admite-se que a
experiência direta do observador com a vida cotidiana do outro, seja ele
indivíduo ou grupo, é capaz de revelar, na sua significação mais profunda,
ações, atitudes, episódios, etc., que, de um ponto de vista exterior, poderiam
permanecer obscurecidas ou até mesmo opacas. (p.92)
O mesmo autor declara que os pesquisadores da educação têm que
prestar mais atenção à vida cotidiana das instituições de educação, afirmando
que pouco se registra e se conhece sobre essa realidade. Porém, ele aponta o
perigo de que os estudos do cotidiano possam cair no mero empirismo. Menciona
a importância da realização das pesquisas embasadas à luz de teorias, ou seja,
de que estas indiquem o quê e como descrever e analisar os fatos do cotidiano.
Ao acima descrito, Azanha (1992) acrescenta:
A potencialidade reveladora dos objetos da cotidianidade precisa ser
teoricamente ativada para que as possíveis revelações ocorram. De nada
adiantaria simplesmente postular a fecundidade do estudo da vida cotidiana
para o conhecimento do homem sem indicar como é possível obter esse
conhecimento a partir da cotidianidade. Para isso, é indispensável a
formulação de teorias que indiquem seletivamente o que e como descrever e
analisar aquilo que, sem elas, seria caos factual. (p.66)
Sendo assim, o pesquisador não deve restringir suas preocupações ao
conjunto de procedimentos ou técnicas de coleta de dados que pretende usar,
pois embora o “método” de coleta possa resultar bastante difícil, o que interessa
mesmo é como estabelecer uma conexão entre os diferentes fatos do cotidiano
pesquisado, como identificar os nexos reveladores da realidade que propomos
compreender.
No estudo da produção científica na área, procurei contemplar estudos que
abordassem a história do circo e a cultura circense, bem como um breve estudo
sobre idéias de alguns autores sobre a concepção de infância, criança, e o brincar
e sua importância.
Como campo dessa pesquisa, elegi uma escola em Florianópolis – aqui
denominada “Brincando de Circo” – que contempla brincadeiras de circo, e um
circo “de verdade”, chamado Reality Circus. Para tanto, utilizei os documentos da
instituição escolar; entrevistas semi-estruturadas com os adultos da escola e do
6
Demo, Pedro. Pesquisa: princípio científico e educativo. São Paulo: Cortez; Autores
circo, conversas com as crianças, observações das brincadeiras/atividades
circenses, registros escritos (diário de campo), fotográficos e algumas filmagens.
A entrevista semi-estruturada, conforme Lüdke e André (1986:34) “se
desenrola a partir de um esquema básico, porém não aplicado rigidamente,
permitindo que o entrevistador faça as necessárias adaptações”. Sendo assim, o
entrevistador tem a liberdade de percurso no andamento da entrevista. Vale
ressaltar, que as entrevistas realizadas com os sujeitos da escola e do circo
tiveram essa liberdade, entretanto foram mediadas por um roteiro.
É de suma importância salientar que, após as conversas com os adultos
selecionados (professoras e coordenadora da escola e os artistas de circo), foi
dado um retorno aos mesmos, no qual conversamos e discutimos o registro. Foi
muito importante esse retorno, pois eles puderam complementar algumas das
idéias que tinham expresso naquele primeiro momento, assim como retirar algo
que acreditavam não estar respondendo às questões que lhes foram colocadas.
Foi uma experiência muito boa e rica, uma troca de cumplicidade, confiança e
informações. O retorno dado às professoras e à coordenadora aconteceu na
própria escola, numa forma descontraída e prazerosa, sem formalidades. Da
mesma forma se fez presente essa descontração quanto ao retorno dado aos
adultos do circo, com quem conversei.
Rabitti (1999) nos fala sobre a importância de estar discutindo as
observações e entrevistas com os sujeitos interessados, pois assim o
pesquisador:
(...) tem a oportunidade de confrontar suas impressões com as das pessoas
envolvidas, de redimensionar alguns aspectos ou de colocar outros em
relação com determinadas situações. Ninguém pode pretender ir a uma
escola e compreender de imediato mais do que aqueles que lá trabalham,
talvez há muitos anos. Ocorre, porém, de o pesquisador – que, não podemos
esquecer, é um profissional em seu campo e possui, portanto, experiência de
implicações teóricas, de instrumentos e de situações reais – ver ângulos e
detectar aspectos e ligações que não são percebidos por quem está
envolvido quotidianamente em uma experiência. O seu trabalho, assim, ajuda
a aumentar a compreensão do fenômeno nas pessoas envolvidas. (p.34)
Associados, 1990.
Quanto à observação, Lüdke e André (1986) salientam que:
A observação possibilita um contato pessoal e estreito do pesquisador com o
fenômeno pesquisado, o que apresenta uma série de vantagens. A
experiência direta é, sem dúvida, o melhor teste de verificação da ocorrência
de um determinado fenômeno. (p.38)
Assim, a investigação feita por meio da observação, me permitiu chegar
mais perto da perspectiva dos sujeitos, ou seja, acompanhei as experiências das
crianças no que diz respeito às suas brincadeiras, e dos adultos quanto as
informações mais gerais sobre a escola e sobre o circo. Além de ter me
aproximado dos sujeitos da pesquisa, tinha também o propósito de estar
apreendendo a visão de mundo deles, ou seja, o significado que eles atribuem à
realidade que os cerca e as suas próprias ações. Acredito ter alcançado a meta
desejada. Em muitos momentos me emocionei com o que os adultos e as
crianças falaram, com o que elas (as crianças) fizeram, e afirmo que aprendi
muito sobre elas, e o mais importante, aprendi muito com elas.
No que diz respeito à observação, Fernandes (1991:78-79) também nos
aponta uma grande contribuição. Ele afirma que, “durante a pesquisa, o
importante não é o que se ‘vê’, mas o que se observa com método, de forma que
a observação transcenda a mera constatação dos dados”. Ele relata que o
processo de observação nas ciências sociais abrange três momentos distintos:
um primeiro de acúmulo de dados brutos, no caso de pesquisas de campo é a
observação das ocorrências empíricas; a segunda operação permite selecionar e
identificar dados relevantes no universo de material coletado na primeira etapa; e
finalmente o terceiro, que abrange os procedimentos propriamente analíticos.
Com isso, a realidade pesquisada, como afirma Fernandes (1991:84) “deixa de
ser percebida como algo caótico e ininteligível, podendo ser descrita pelo sujeitoinvestigador,
por
propriedades
ou
atributos
essenciais,
coerentes
e
interdependentes”.
As observações que fiz foram mediadas por fotografias e filmagens, bem
como por registros escritos já mencionados, (diário de campo), os quais
ajudaram-me a sistematizar os dados que passaram a ser descritos e analisados.
Segundo Oliveira (2001:37) “O registro em vídeo, que já é um recurso
metodológico utilizado em pesquisas que ajustaram seus focos nas crianças
(Batista, 1998; Prado, 1998; Bufalo, 1997; Quinteiro, 2000; Telles, 1998)...”,
permitiu registrar as imagens das crianças e dos adultos, bem como a produção
das crianças mediante as brincadeiras de circo nesses dois campos que foram
pesquisados.
As filmagens foram um dos recursos que me trouxe mais informações
sobre as crianças, pois a filmadora capta boa parte dos detalhes. Digo “boa parte”
porque percebi que eu precisava de mais uma filmadora além daquela que eu
estava utilizando, pois quando eu pedia para o Flávio (que me auxiliou em todas
as filmagens) filmar tal brincadeira, por exemplo, em outro momento estavam
acontecendo situações muito interessantes com as outras crianças. São detalhes,
informações importantes que consegui em alguns momentos registrar no diário de
campo, mas que valeria a pena terem sido filmadas.
Uma situação em que isso aconteceu foi a seguinte: em uma das
brincadeiras as professoras falaram para as crianças passarem por debaixo das
pernas de quem não fazia parte das atividades de circo. Algumas crianças
passaram por debaixo de minhas pernas, e esse momento foi filmado, porém
houve uma criança que passou por debaixo das pernas do Flávio e ele não
conseguiu filmar. A criança percebeu isso e falou a ele: “você não conseguiu me
filmar,” e saiu sorrindo. As outras crianças e nós, adultos, também sorrimos
bastante, foi uma situação muito engraçada que poderia ter sido filmada se eu
tivesse mais uma filmadora naquele momento. Mas, como falei anteriormente, a
filmagem me trouxe informações muito importantes sobre as interações das
crianças nas brincadeiras, bem como com as outras crianças e com os adultos.
A autora nos relata que o emprego da filmagem é, tanto quanto os demais
procedimentos, uma forma importante de obtenção de dados, e completa citando
Batista (1998), dizendo que a contemplação desta forma de registro dá-se
também :
(...) pela possibilidade de resgatar através da filmagem a organização do
tempo e do espaço, situações de vivência entre as crianças, entre crianças e
adultos, entre crianças e objetos no contexto educacional pedagógico da
creche sem perda de detalhes que outras metodologias poderiam deixar de
registrar. (p.20)
Foto 4 – Crianças e o contato com a filmadora mediado por Flávio
Fonte: Alexsandra de Souza (02/07/03)
Quanto ao registro fotográfico, Oliveira (2001) também nos dá uma
contribuição. Em sua pesquisa ela nos conta que o registro fotográfico é: “(...) um
outro meio de apreender a realidade investigada e apresentá-la através de
imagens. Imagens que expressam um espaço/tempo e as situações ali vividas, de
forma diferente da palavra escrita”. (p.39)
Foto 5 – Maria Clara sorrindo
Fonte: Alexsandra de Souza (09/04/03)
Lopes apud Oliveira (2001) nos fala sobre a leitura da imagem:
Como um método de aproximação da realidade, ao particular, do fragmento,
enfocado por diferentes ângulos e pontos de vista, em que é possível
desvendar as leis do todo, do universal, da totalidade. Rever as fotos
possibilita o desencadeamento do processo de rememoração da história
vivida, pelas imagens e nas imagens. (p.39)
Na minha acepção, fazer uma análise mais interpretativa de fotos não é
fácil. Muitas vezes observei as fotos e me perguntava, por exemplo: “o que esta
criança quer me mostrar com essa brincadeira? O que representa, o que significa
esta imagem para mim? O que elas estão querendo me dizer?” De algumas
imagens consegui apreender o significado, outras me fizeram (e ainda me fazem)
repensar várias possibilidades, vários significados que elas demonstram.
Compartilho com o que a autora acima citada fala sobre aquilo que rever as fotos
nos possibilita. Ao revê-las, minha imaginação fluiu. “Fui e voltei” várias vezes ao
circo e à escola. O olhar fixo nas imagens me reportava aos momentos vividos
nesses dois lugares. Posso afirmar que é um momento “mágico”, permeado pela
imaginação e também pela dimensão real. Quero dizer que ao mesmo tempo é
real e palpável, estar vendo uma fotografia, e ao mesmo tempo é um momento
imaginário, reportar-me aos momentos observados no circo e na escola. A isso
Vygotsky (1984) nos dá uma contribuição dizendo que, a imaginação e o
pensamento realista não são opostos, mas complementares, tanto nas crianças e
em nós, adultos.
No horizonte teórico de minha pesquisa estão as conclusões de estudos
recentes sobre as crianças e suas culturas (Prado, 1998; Faria, 1999; Quinteiro,
2000; Oliveira, 2001, Coutinho, 2002, Rocha, 1999, Pinto e Sarmento, 2002), que
contribuem para a construção de um percurso metodológico que possibilita um
contato mais profundo com as crianças e sua produção cultural.
Pinto e Sarmento apud Coutinho (2002) afirmam que, se considerarmos as
crianças como produtoras de uma cultura própria da infância e se as tomamos
como sujeitos plenos de direitos, temos que:
(...) partir das crianças para o estudo das realidades de infância. Isto significa,
no essencial, duas coisas: primeira, o próprio objeto da pesquisa, a partir do
qual se estabelecem as conexões com seus diferentes contextos e campos de
ação; em segundo lugar, que as metodologias utilizadas devem ter por principal
escopo a recolha da voz das crianças, isto é, a expressão da sua ação e da
respectiva monitoração reflexiva. (p.12)
Coutinho também nos dá uma contribuição quanto às observações das
crianças. Ela ressalta que devemos partir de suas ações para que possamos
compreender o que elas criam, recriam, re-significam, reproduzem e manifestam
na relação com as outras crianças e com os adultos. A autora também nos fala
que, “observar as crianças não significa que serão consideradas apenas as suas
ações, mas sim que mediante a totalidade de suas expressões serão tecidas as
relações necessárias para conhecê-las”. (Coutinho, 2002:12).
Ainda a mesma autora (2002) relata que:
Esta idéia da criança como centro, seja nas investigações ou nas ações
pedagógicas, incomoda ainda a muitos, por acharem que ao colocá-la nessa
posição propõe-se a desconsideração dos demais elementos. No entanto,
esta perspectiva visa a trazer mais elementos para que se conheçam as
crianças e assim se possa propor uma educação mais condizente com as
suas necessidades e desejos. Além disso, a sistemática da observação das
crianças não desconsidera o contexto em que elas estão inseridas, pois,
embora a preocupação esteja no conhecimento das crianças e das suas
infâncias, sabe-se que a sua constituição está vinculada a tudo e a todos que
com elas interagem quotidianamente. (p.12)
Para finalizar, cito Oliveira apud Coutinho (2002:52) que diz o seguinte: “se
há cem modos de ser criança, deve haver diversas formas de conhecê-la”.
Contudo, Coutinho (2002) nos fala que, considerando que ser criança implica
ações que são próprias de seus saberes, o conhecimento destes exige, então,
olhares múltiplos, que possibilitem ao adulto que a observa a contemplação de
suas diversas formas de manifestação.
Nos Bastidores do Fazer Investigativo
“Pesquiso
para
constatar,
constatando,
intervenho, intervindo educo e me educo.
Pesquiso para conhecer o que ainda não
conheço e comunicar ou anunciar a novidade”.
7
Paulo Freire
Enquanto os “personagens principais” (as crianças) dessa pesquisa
ocupavam os “palcos”, davam os seus “shows”, eu-pesquisadora ficava nos
bastidores, observando, fotografando, filmando, bem como ouvindo os relatos
desses “atores”.
E é neste tópico que relato os momentos nos bastidores, ou seja, a
travessia da investigação. Primeiramente, selecionei a escola. Eu sabia que
nessa escola, “Brincando de Circo”, havia um professor que trabalhava com as
brincadeiras circenses, então, no final do mês de março de 2003, liguei para a
escola e, para minha surpresa, fiquei sabendo que o professor não fazia mais
parte do quadro docente, porém havia duas professoras que tinham assumido o
projeto das atividades de circo. Então, perguntei à coordenadora se eu poderia ir
até a escola para conversar com ela e falar do meu propósito em estar
pesquisando
naquela instituição.
Ela respondeu-me
que
eu poderia ir em
qualquer dia e horário. A primeira visita foi realizada no dia 2 de abril, com o
objetivo de conhecer o ambiente físico e a proposta da escola, como também
apresentar a idéia de realizar uma pesquisa de Mestrado. Naquele dia entreguei
para a coordenadora um ofício de autorização, assinado pela pesquisadora e
pelo primeiro orientador da pesquisa, explicitando os motivos e objetivos do
7
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 8ª ed.
São Paulo: Paz e Terra, 1998.
trabalho, e na mesma semana
tive resposta da coordenadora, aceitando a
realização do trabalho. Ela recebeu-me com muita atenção, prestando todos os
esclarecimentos e apresentando um breve comentário sobre o funcionamento da
escola. Maiores detalhes sobre a escola serão apresentados mais adiante no
trabalho.
Por eventualidade, este era o dia da semana (4ª feira) em que ocorriam as
atividades de circo, então perguntei às professoras se eu poderia ficar para
observar a aula, falei de meu propósito em estar ali e marcamos para os dias 10
e 11 de abril uma conversa mais formal. A entrevista foi realizada em duas
etapas, uma com as duas professoras e a outra individualmente. Perguntei para
elas se me autorizariam a observar as atividades de circo, e responderam-me que
sim, que eu poderia ficar à vontade para estar realizando o meu trabalho. Fui bem
acolhida, tanto pela coordenadora, quanto pelas professoras, e isso é muito bom
para um pesquisador.
As conversas foram realizadas com sucesso, tanto com a coordenadora
quanto com as professoras. A conversa com a coordenadora foi realizada em
uma manhã no pátio da escola, um lugar maravilhoso, e o canto dos passarinhos,
que faz parte do cotidiano da escola, proporcionou-nos um momento muito
descontraído. As conversas com as professoras foram realizadas em dois
momentos: no dia 10 de abril na escola e em conjunto, e no dia 11
individualmente. Com a professora Jeovana, a conversa ocorreu no Centro de
Desportos da UFSC e, com a professora Mariana, no Centro de Artes da
UDESC8.
É importante ressaltar também que as brincadeiras de circo nessa escola
eram realizadas somente nas quartas-feiras, das 18h30min às 19h45min. As
observações foram realizadas do dia 2 de abril ao dia 17 de dezembro de 2003.
Ao todo, foram realizadas 36 observações, todas registradas em diário de
campo e fotografias. As observações dos dias 2/7/03, 9/7/03 e 30/7/03 foram
gravadas em vídeo. Todos os pais assinaram o pedido de autorização para a
realização de gravações e fotografias sem nenhum problema, mas fizeram
8
Gostaria de deixar claro que foi perguntado para as professoras se preferiam que seus nomes
não fossem citados no trabalho e elas afirmaram que poderiam, sim, ser citados, sem problema
algum.
questão de ter um retorno do trabalho, o que é muito justo, e respondi que todos
terão o retorno, inclusive a escola.
As observações foram muito prazerosas, divertidas e descontraídas. Com o
passar dos dias, a convivência das crianças com a pesquisadora foi tornando-se
tão próxima, que quando eu precisava ausentar-me por alguns minutos do local
em que estavam brincando, as crianças vinham me perguntar onde eu ia, e,
quando não me viam sair, perguntavam para a professora onde eu estava. Foi a
partir
desse
momento
que
comecei
a
conversar
mais
diretamente
e
individualmente com as crianças, “brincando de entrevistá-las”, com muita
descontração e alegria, e o mais interessante é que elas levaram muito a sério a
brincadeira de entrevista. De fato, não levaram a sério somente esta brincadeira,
mas todas as outras, pois sabemos que o brincar para as crianças é coisa séria,
afinal, como afirma Santos (2002:115), “brincar é viver”.
Percebi
nas
palavras
das
crianças
muita
seriedade,
sinceridade,
criatividade, imaginação, sensibilidade e doçura. Vale salientar que as entrevistas
foram realizadas com 9 crianças entre 4 e 9 anos e ocorreram na própria escola,
no horário das atividades de circo. Perguntei às crianças se eu poderia conversar
com elas naquele momento das atividades, e todas responderam que sim.
Escolhemos a escadaria que ficava próxima do ambiente onde brincavam. A
conversa foi individualmente e não se estendeu muito, até porque elas queriam
mesmo era brincar e não ficar respondendo àquelas perguntas.
Com relação às fotografias e gravações em vídeo, em nenhum momento
as crianças ficaram tímidas diante da máquina, pelo contrário: faziam muitas
poses e pediam para que fossem fotografadas e filmadas. Quero ressaltar que as
fotografias apresentadas nesta pesquisa “falam” mais que muitas palavras,
demonstram a realidade das crianças, suas brincadeiras e suas emoções.
Fotos 6 e 7 – Poses e sorrisos
Fonte: Alexsandra de Souza (09/04/03)
Quanto ao outro campo de investigação, foi um pouco difícil encontrar um
circo em que eu pudesse realizar a pesquisa. Fui a vários circos, entre eles o
Circo Marcos Frota, do Rio de Janeiro, que esteve em Florianópolis no mês de
fevereiro de 2003; o Circo Sena, que esteve em Biguaçu no mês de maio de
2003; e o Circo Estrela, que esteve em Palhoça no mês de junho de 2003. No
entanto, não pude realizar a pesquisa nesses circos porque não havia crianças
que moravam nos circos, como era meu objetivo pesquisar. Nos circos onde havia
crianças, elas eram muito pequenas e ainda não participavam do picadeiro.
Em setembro de 2003 fiquei sabendo que um circo tinha chegado à cidade
de Antônio Carlos, o Reality Circus. Fui até lá, e, para minha surpresa, o primeiro
número do espetáculo foi apresentado por crianças! Havia muitas crianças e
fiquei muito feliz, afinal, tinha encontrado um circo em que eu poderia realizar a
minha pesquisa. Ao final do espetáculo, fui conversar com o responsável pelo
circo e falei a ele do meu propósito em realizar uma pesquisa no circo, que seria
mais diretamente voltada às crianças, e ele falou que eu poderia realizar sem
nenhum problema. Perguntei onde eles estariam no final de semana seguinte, já
que aquela era a última semana deles em Antônio Carlos; ele respondeu-me que
iriam para Biguaçu, e uma semana depois lá eu estava, só que não consegui falar
com as crianças naquele dia, porque depois da apresentação das 17h, as
crianças, assim como os adultos, tinham o tempo reservado para tomar banho,
jantar e se arrumar para o próximo espetáculo, que era às 20h30. Passaram-se
duas semanas, e o circo foi para São José, onde assisti mais uma vez ao
espetáculo, mas onde também não consegui falar com as crianças. Somente em
Garopaba, a última cidade em que eu acompanhei o Reality Circus, é que
consegui falar com as crianças, no dia 07/12/2003. Das vezes em que eu não
conseguia falar com as crianças, quando eu chegava no local, o dono do circo, o
Sr. Josemar Dantas, não se encontrava, e eu não me sentia à vontade em pedir
para entrar no circo, já que as pessoas com quem falava não me convidaram para
entrar, me diziam apenas que o esperasse. Ele e outras pessoas do circo saíam
pelas redondezas anunciando o espetáculo e só chegavam perto das 17h; esta
era a hora do primeiro espetáculo, e as crianças já estavam se arrumando para as
apresentações. Nessas minhas idas ao circo, que foram somente 6 e apenas nos
finais de semana, consegui observar uma vez as crianças brincando de vôlei ao
lado da lona. Amarraram uma corda que simbolizava a rede e ali brincavam,
meninas e meninos muito alegres.
Quase não se via as crianças fora de seus trailers, e isso dificultou um
pouco a minha observação, que ficou restrita somente ao espetáculo e à conversa
que tive com elas. Não consegui fotografar nenhum momento da brincadeira
delas, apenas as apresentações no palco, o que não deixa de ser também, em
alguns momentos, uma brincadeira para elas. Mesmo assim, acredito que
valeram muito os momentos em que estive com as crianças do circo.
Duas crianças do Reality Circus não queriam conversar comigo de início,
falaram que estavam “com vergonha”, porém fui conversando com elas, até que
aceitaram estar participando do meu trabalho. A conversa aconteceu no próprio
circo, antes de começar o espetáculo das 17h. Sentamos nas cadeiras que
estavam dispostas para o público assistirem o espetáculo e deixamos as palavras
fluírem. Afirmo que a conversa foi muito boa, descontraída e em alguns
momentos muito alegre. Foi maravilhoso ter conhecido um pouco sobre a vida
das crianças circenses, seu dia-a-dia e suas brincadeiras preferidas. Depois de
conversar com as crianças, conversei também com dois adultos, um dos donos
do circo, o Sr. Josemar Dantas e a Srª Cecília, que prestaram todos os
esclarecimentos quanto à história do Reality Circus, bem como compartilharam
um pouco do que é viver num circo, as suas dificuldades, o seu dia-a-dia, as suas
experiências de vida. Confesso que emocionei-me muito quando conversei com a
Srª Cecília. A maneira como ela fala do circo é muito linda e sincera, o circo é a
sua vida. A fala da Srª Cecília está transcrita no capítulo 2 – “Os palcos onde tudo
acontece”.
As observações que se limitaram ao espetáculo foram registradas por meio
do diário de campo e de fotografias, e as conversas que tive com as crianças e
com os adultos foram gravadas em fitas cassete e posteriormente foram
transcritas, constando também no capítulo 2.
Esses foram os campos de investigação dessa pesquisa: a escola
“Brincando de Circo” e o Reality Circus. Foi muito prazeroso e gratificante ter
passado esses momentos com as crianças. Mesmo que tenham sido alguns
meses ou apenas alguns dias, aprendi muita coisa com elas e sobre elas.
SENHORAS E SENHORES, COM VOCÊS...
O CIRCO E SUA HISTÓRIA!
Figura 2 – “Anunciando o circo”
Fonte: Alexsandra de Souza (20/05/2000)
_________________________________________________________________
SENHORAS E SENHORES, COM VOCÊS... O CIRCO E SUA HISTÓRIA!
“Fantasia de palhaço, sempre termina quando
a luz do palco pisca e a cortina de sonhos se
abaixa. Feito máscara derretida, que confunde
minha alma dourada, com o gosto amargo do
dia e da lágrima que teima em cair. Pelos
palcos, pela vida, pelas suas bocas pintadas,
pela dor de um palhaço sem circo, pelo mistério
da mágica, que sai de mim”.
9
Luiza Albuquerque
Em artigo para a revista O Correio da UNESCO, o autor Coxe (1988:05)
afirma ter notícia de que existem mais de 16.000 livros sobre circo. Considerando
todos estes livros, e o muito que se tem falado e escrito sobre o “fantástico mundo
do circo” em romances e poemas, filmes, programas de televisão, novelas,
pinturas, acreditamos que este mundo ocupe um lugar importante no imaginário
social, principalmente no imaginário infantil. Entretanto, no Brasil, pouco se
escreveu e se escreve sobre o circo.
As publicações acadêmicas, em grande parte ligadas à Antropologia e à
Sociologia trazem, em seu conjunto, informações históricas sobre a chegada do
circo no Brasil, sobre o modo como foram se constituindo os espetáculos, suas
mudanças, entre outras. Dadas as suas perspectivas teóricas e metodológicas,
analisam o objeto da forma como este se apresenta no momento de cada
pesquisa. É interessante observar o momento em que estas pesquisas são
realizadas: a maioria foi escrita nos anos de 1970 e início dos anos de 1980,
sendo raros os trabalhos anteriores ou posteriores a este período. A produção
historiográfica sobre circo é mais reduzida ainda.
1.1. A História do Circo10
O circo veio de longe na história. Nasceu em Roma, mais de 200 anos
antes de Cristo. Primeiro, ir ao circo significava ir a uma festa religiosa ao ar livre.
Depois, o circo virou um lugar para competições de homens com homens,
animais com animais e homens com animais.
No circo também aconteciam corridas de charretes que começavam de
manhã e só terminavam à noite. Sua estrutura era composta por 3 partes: a arena
ou pista, onde o espetáculo acontecia; a arquibancada, onde a platéia se divertia,
e as cavalariças, onde carros e animais eram guardados. O maior dos circos
romanos chamou-se Maximus. Era feito de pedra e tinha capacidade para
milhares de pessoas. Hoje o que resta do Maximus são somente seus escombros.
O circo em Roma dava aos pobres um divertimento que não precisava ser
pago; assim eles esqueciam da tristeza, rindo muito de tudo o que viam. Os
acidentes nos circos eram um grande perigo, tanto para os que faziam o show
quanto para a platéia que, às vezes, era atingida por charretes que capotavam
sem controle. Os corredores, para compensar o perigo do show, ganhavam muito
dinheiro em moedas de cobre. A platéia apostava quem seria o vencedor e usava
túnicas com as cores iguais às das túnicas de seus corredores favoritos. Faziam o
que hoje conhecemos por torcida organizada, igual à dos times de futebol. A
platéia era uma parte do espetáculo. Quem lutava com as feras eram os
prisioneiros de guerra, escravos ou malucos que queriam arriscar suas vidas por
causa da emoção. (Torres, 1998).
É na Idade Média que surgem os primórdios do que hoje chamamos de
circo, pois nessa época saltimbancos, malabaristas, acrobatas, atores e
dançarinos viajavam, individualmente ou em grupos, pela Europa, Ásia e África.
9
Albuquerque, Luiza. Fonte: Jornal de poesia, site: http://www.secrel.com.br/jpoesia/luiz05.html
Este histórico foi baseado no site: http://puccamp.aleph.com.br/circo/circo1.html e nos livros dos
autores Antônio Torres, 1998 e Alice Viveiros de Castro, 1998. Referência completa desses livros
ver no item Bibliografia desta dissertação.
10
Exibiam-se em castelos de nobres, festas populares ou feiras. Sabe-se que o rei
Alfredo da Inglaterra (fins do século X) divertiu-se certa vez com uma exibição de
animais selvagens. Já Guilherme o Conquistador, rei da Inglaterra (século XI), fez
com que trupes itinerantes de dançarinos, acrobatas e contorcionistas franceses
se apresentassem na Inglaterra.
Na quase totalidade, os velhos homens de circo eram maçons ou rosacruzes e, talvez por isso, houve tempo em que não eram bem vistos pelo clero.
No entanto, acrobatas, mágicos, malabaristas e outros circenses apresentavamse em castelos, mercados, feiras e praças em troca de moedas. Quando os
artistas eram bons no espetáculo e tinham sorte, podiam ficar amigos dos nobres,
e assim fazer show só para eles, tendo em troca uma recompensa: dinheiro e
casa para morar. (Torres, 1998).
A partir do final da Idade Média, quando as feiras perderam a relevância
que até então tinham como centros de comércio, tornando-se sobretudo locais de
diversão – ganhou corpo a associação de artistas, animais e outras
características que terminariam por constituir o circo moderno.
Philip Astley, inglês, ex-sargento-mor, descobriu em 1768 que se
galopasse de pé sobre um cavalo, num círculo, a força centrífuga o ajudava a
manter o equilíbrio. Mas até então ninguém usava a palavra circo. O nome só
surgiu em 1782, quando o Royal Circus foi montado perto do picadeiro de Astley
por um de seus cavaleiros. Uma outra circunstância, no século XVIII, ajudou no
desenvolvimento do circo: muitas das famosas feiras estavam em franco declínio,
e muitos saltimbancos passaram a se exibir em circos. Além disso, malabaristas,
acrobatas e outros artistas perceberam que seus números eram apreciados
melhor num picadeiro, onde todos podiam verificar que não havia fraude no que
faziam. Foi também mais ou menos nessa época que tornou-se norma o picadeiro
de 13 metros de diâmetro, uma dimensão até hoje conservada pela maioria dos
circos.
Os historiadores consideram que Astley foi quem iniciou o circo moderno.
Segundo Castro (1998:20):
É consenso entre os historiadores reconhecer que o pai do circo moderno foi
Philip Astley, suboficial inglês que comandava apresentações da cavalaria.
Em seu circo, além das atrações com cavalos, Astley colocou saltimbancos,
saltadores e palhaços. Entretanto, este circo tinha uma estrutura fixa,
diferente dos circos modernos atuais.
De acordo com Castro (1998) Astley começou a difundir o circo moderno
por todos os cantos da Europa e da América em pouquíssimo tempo e abriu uma
filial em Paris, após convite para apresentar-se para o rei da França. Só mais
tarde, alguns países da Europa como Suécia, Espanha, Alemanha e Rússia,
começaram a desenvolver sua arte circense. Em apenas cinqüenta anos o circo
moderno já tinha se espalhado por todo o mundo. Neste circo havia espetáculo de
cavalos,
malabaristas,
equilibristas,
aramistas,
contorcionistas,
músicos,
acrobatas, domadores de feras e adestradores de diferentes animais, além do
teatro.
Torres (1998) nos fala que no Brasil os primeiros circos se organizaram na
segunda metade do século XVIII. Manuel Antônio da Silva foi um dos primeiros
cavaleiros de sucesso, tendo em 1828 realizado um espetáculo de danças sobre
um cavalo a galope, numa residência particular. No século XIX o Brasil foi visitado
por diversas companhias estrangeiras, inclusive pelo Circo Olímpico, que
influenciaram a organização de elencos nacionais. Muitos artistas estrangeiros
ficaram no Brasil e formaram algumas das mais conhecidas famílias circenses do
país. Entre eles, portugueses, espanhóis, italianos, japoneses, argentinos etc.
Entre os brasileiros os nomes mais famosos são: Manuel Peri, Galdino Pinto,
Narciso de Abreu, Sérvulo Rocha, Nestor de Freitas, Juvenal Pimenta, as famílias
Martinelli, Nogueira etc. O mais conhecido dos palhaços foi Piolim, nome artístico
de Abelardo Pinto (Ribeirão Preto SP, 1897 – São Paulo SP, 1973).
No Brasil, como diz Castro (1998), o circo “tropicalizou” algumas atrações.
Segundo ela:
o palhaço brasileiro falava muito, ao contrário do europeu, que era mais
mímico. Era mais conquistador e malandro, seresteiro, tocador de violão, com
um humor picante. O público também apresentava características diferentes:
os europeus iam ao circo apreciar a arte; no Brasil, os números perigosos eram
as atrações: trapézio, animais selvagens e ferozes.
As famílias circenses ganharam prestígio a partir do século XIX. De
geração a geração, os membros de uma família eram treinados desde a mais
tenra infância, adquirindo a qualificação e a disciplina necessárias para alcançar a
perfeição numa determinada especialidade ou num grupo de especialidades
correlatas.
Em todo o mundo, os circos enfrentaram sérias dificuldades a partir de
meados do século XX. Com o surgimento dos grandes centros urbanos e o
desenvolvimento
tecnológico,
apareceram
também
novas
formas
de
entretenimento, como televisão, cinema, teatro, parques de diversão, vídeogames e computadores, afastando assim, as pessoas do circo. Com isso, os
ingressos se tornaram cada vez mais baratos. Seria correto dizer que o circo
estava mudando. Podia estar em declínio, porém resistia de todas as formas.
As mudanças ocorridas no circo moderno ajudaram a criar também uma
nova categoria de circo. Conhecidas como "novo circo", estas companhias não
têm picadeiro, nem lona, nem arquibancadas e se apresentam, na maioria das
vezes, em teatros ou casas de espetáculo. Nas apresentações, há inovações na
linguagem, com a incorporação de elementos de dança, teatro e música. Um
exemplo desse tipo de circo é o Cirque du Soleil, do Canadá. No Brasil, há vários
grupos desse gênero, como o Intrépida Trupe, os Acrobáticos Fratelli, o Teatro de
Anônimos, os Parlapatões, os Patifes e Paspalhões, o Nau de Ícaros, o Circo
Mínimo, o Circo Escola Picadeiro, o Linhas Aéreas, dentre outros, que formam o
Circo Contemporâneo Brasileiro.
Porém, à margem de todas estas grandes transformações, ainda há os
pequenos circos, que não conseguiram se "modernizar", mas que resistem,
fazendo apresentações nas pequenas cidades do interior e bairros da periferia
das grandes cidades. Nesses circos, com pequenas estruturas, as famílias ainda
trabalham como antigamente, fazendo de tudo. Os espetáculos são simples. São
raras as apresentações com animais, que custam caro, ou com equipamentos
grandes e sofisticados. Esses pequenos circos, ainda com sentimentalismo e,
certamente, um pouco de saudosismo, continuam no picadeiro, com a certeza de
que fazer sorrir ainda é o melhor remédio para não deixar a tradição acabar.
1.2. Os Elementos do Circo
Todos os integrantes de um circo são responsáveis por muitas tarefas...,
até os elefantes, que, além de se apresentarem no picadeiro, muitas vezes
ajudam a montar e desmontar a lona do circo. Equilibristas, trapezistas e
malabaristas, palhaços, mágicos e domadores..., entre uma apresentação e outra,
sob a luz dos refletores, cada qual tem de fazer o espetáculo continuar!
O livro “O Mundo Fantástico do Circo” (1989), elaborado pela equipe
editorial da Enciclopédia Britânica do Brasil, relata que cavalos e cavaleiros de
grande destreza sempre foram uma das marcas registradas do circo moderno.
Figura 3 – Acrobacias eqüestres
Fonte: http://puccamp.aleph.com.br/circo/circo1.htm
Uma das maiores atrações do circo são as acrobacias aéreas. Um
acrobata pula sobre uma catapulta, arremessando ao ar um outro, que executa
um salto mortal de costas e vai cair sobre os ombros de um terceiro, ou dois
acrobatas pulam e outro se coloca no topo de uma pirâmide humana, esses são
exemplos de números apresentados pelos acrobatas.
Figuras 4 e 5 – Acrobacias aéreas
Fonte: http://puccamp.aleph.com.br/circo/circo1.htm
Além das acrobacias aéreas, outro número muito apreciado pelo público
são os malabares, como mostram as figuras abaixo.
Figuras 6 e 7 – Malabarismos
Fonte: http://puccamp.aleph.com.br/circo/circo1.htm
Uma das principais coisas que o circo tem a oferecer é “a constatação de
que uma pessoa é capaz de alcançar um controle verdadeiramente assombroso
sobre o corpo” (idem, p:45). A platéia identifica-se com um artista que tenta uma
proeza perigosa ou difícil. Ao ver completado um duplo salto mortal ou uma
pirâmide humana, o público é tomado de satisfação e alívio. Um passo em falso
de um equilibrista na corda parece perturbar mais os espectadores do que o
próprio artista. E o espetáculo não está gravado em filme ou fita, não há como
repetir uma tomada para consertar um erro. Todos temos consciência da
fragilidade e das deficiências humanas, mas o circo mostra o ser humano no
apogeu da realização física e da coordenação motora.
Quando a capacidade humana de estupefação, emoção e suspense
aproxima-se do limite, é aí que o circo lança no picadeiro seus palhaços, que
“desanuviam” a atmosfera e dissipam a carga emocional. São eles que provocam
o riso da platéia. O grande ator do circo é o palhaço. Para muitos é a alma e
mesmo o símbolo do espetáculo circense, com roupa colorida e larga, sapatos
imensos, careca reluzente, cabelos de lã colorida, rosto pintado com cores vivas,
sobrancelhas pretas e grandes, boca larga e pintada. O grande palhaço possui
também todas as qualidades de um ginasta ou acrobata, tirando partido da
agilidade física para seus números cômicos.
Em alguns circos, há uma certa hierarquia de palhaços: os menos
importantes são os que entram em todos os intervalos, divertindo o público,
enquanto os maquinistas desmontam um número e preparam o próximo. Os
grandes, entretanto, são muitas vezes a atração central do espetáculo. Os
palhaços divertem a platéia. Riem, contam piadas, cantam e dançam. A música
faz parte de seu número!
Figura 8 – Os palhaços
Fonte: http://puccamp.aleph.com.br/circo/circo1.htm
A música é muito importante no circo. A orquestra, uma bandinha ou
mesmo a música gravada é que estabelecem o ritmo do espetáculo e o clima
emocional, dão o tom dos diversos números e ocupam o vazio durante a
mudança de cenários. Com o passar do tempo, a música circense adquiriu
características muito próprias, fixando-se em formas típicas, como a marcha, o
galope, a polca, o tango e nas mais variadas peças de caráter nacional (cf. idem).
Para muita gente, a vida dos circenses pode parecer uma existência
nômade, sem o conforto de uma residência permanente ou a segurança de um
emprego convencional. Por outro lado, conhecer a vida do circo equivale a ver
aparentes desvantagens se transformarem em fontes de força. Uma vida
itinerante constitui atração para muitas pessoas, nas quais se torna fortíssimo o
vínculo forjado na superação diária de dificuldades comuns.
OS PALCOS ONDE TUDO ACONTECE
Fotos 8 e 9 – O local destinado às atividades de circo na escola “Brincando de Circo” e o Reality Circus.
Fonte: Alexsandra de Souza (02/04/03 e 08/11/03)
_________________________________________________________________
OS PALCOS ONDE TUDO ACONTECE...
“As crianças que entram na escola, antes
disso, correm, saltam, riem, brincam de todas
as coisas e, depois nos bancos escolares,
tornam-se alunos, despojados de todas as
coisas que possuíam. Talvez o erro esteja em
achar que aquelas coisas de fora da escola são
da natureza; e as da escola, da sociedade. Eu
diria que nem uma coisa nem outra. Aquelas
coisas de fora da escola são a cultura da
criança que nunca é matriculada, e as coisas
da escola não são bem as coisas da
sociedade”.
11
João Batista Freire
2.1. A Escola “Brincando de Circo”12
A escola localiza-se no bairro Coqueiros no município de Florianópolis,
sendo esta sua única sede. Foi criada em 1983, completou 20 anos em dezembro
de 2003 e tem como uma das fundadoras a atual coordenadora da escola.
Começou como uma escola particular e se chamava escola “Mundo Mágico”13,
tendo funcionado assim durante três anos. A partir de então, a escola foi se
11
Freire, João Batista apud Daolio, Jocimar. Educação Física e o conceito de cultura. São
Paulo: Autores Associados, 1995.
12
Entrevista concedida pela coordenadora pedagógica das séries iniciais, em 15/04/03.
13
Nome fictício.
constituindo como uma associação, sem que os profissionais da escola se
dessem conta disso. E uma das coisas que determinaram esse processo, como
afirma a coordenadora, foi a “consciência de que o princípio do lucro não é
compatível com a proposta de educação como a que a gente pretendia realizar”.
Ela continua: “então, o caminho foi buscar uma saída para rever a estrutura
administrativa da escola que assegurasse a viabilidade desse projeto. Primeiro,
isso aconteceu entre os professores, informalmente, não foi oficializado na
comitiva de professores, então era um grupo de trabalho que discutia os
encaminhamentos da escola, e no terceiro ano então, a idéia de associação foi
amadurecendo. A gente fez contatos com outras escolas, na época tinha o Anabá
que era uma associação, o Sarapiquá, que é uma escola onde eu já tinha sido
mãe no primeiro ano da escola, eu já tinha essa vivência, e fomos então
oficializando a estrutura associativa. Então, desde 1997, a nossa escola funciona
como associação, associação de pais e professores que mantém a escola e daí
ela precisou mudar de nome, passando a ser chamada Escola ‘Brincando de
Circo’”.
Faço agora uma longa citação da fala da coordenadora, por entender que
ela ajuda a contextualizar o trabalho realizado com o circo: “durante um tempo a
gente só trabalhou com a Educação Infantil e a partir de 1987 implantamos as
Séries Iniciais. No primeiro ano (1983), o projeto da escola era de período
integral, em um período as crianças ficavam com suas turmas e no outro tinham
oficinas, então tinha uma professora de Educação Física que fazia oficinas de
jogos
e
brincadeiras,
construindo
brinquedos,
explorando
esse
espaço
maravilhoso com as crianças; tinha também professora de Artes, de Dança e na
época tínhamos também professor de Karatê. Depois de 1987, a gente entrou
com a Capoeira junto com as aulas de Educação Física. Em 1984, a escola
passou a ser uma escola regular, não de período integral porque não houve
procura, e a gente viu que era uma estrutura muito cara e a demanda mesmo era
para as crianças ficarem em um dos períodos na escola, então a gente
desmontou aquela estrutura maior e os professores daí foram ‘absorvidos’ pelo
outro projeto. A professora de Artes ficou com uma turma, a professora de
Educação Física ficou com outra e manteve essa integração de atividades, a
gente fazia muita coisa juntos, os grupos se misturavam bastante; a escola ainda
era pequena, mas já funcionando como escola regular. Durante o tempo todo,
tivemos a preocupação e o cuidado com o trabalho contínuo de formação de
professores, e o interessante da época era que as pessoas não tinham formação
especificamente em Pedagogia, a gente tinha um grupo multidisciplinar, um era
jornalista, outra era psicóloga, até porque não havia uma legislação muito rigorosa
para trabalhar com a Educação Infantil, e a gente percebia que o curso de
Pedagogia não dava conta dessa formação mais ampla que um professor
precisava ter para trabalhar nesse projeto. Aos poucos, o curso de Pedagogia foi
tornando mais consistente em termo de formação e o grupo que foi ficando, que
foi entrando, já tinham a formação em Pedagogia ou já estavam cursando.
Atualmente, quase todos os professores são pedagogos formados e quem não é,
está cursando. A formação dos professores foi uma das grandes questões na
constituição desse projeto, porque era muito difícil conseguir pessoas,
principalmente nas Séries Iniciais, na Educação Infantil é mais fácil ousar, não
existe o rigor do currículo, então as pessoas estão mais abertas até pela própria
característica do trabalho, é mais lúdico, é menos formatado, então, nas Séries
Iniciais foi um trabalho bem árduo, selecionar, contratar e trabalhar com os
professores sem livro didático, trabalhando com projetos interdisciplinares dá
muito trabalho, muito mais trabalho do que ter um livro ou uma apostila; o
professor tem que pesquisar muito junto com as crianças, tem que fazer a leitura
do grupo, tem que saber se colocar como autoridade sem ser autoritário, tem que
lidar com outra forma de avaliação que não passa por nota e nem conceito, então
foram muitas as dificuldades nesse processo, mas, também, muitos ganhos”.
Assim surgiu a escola, cujo trabalho pedagógico se fundamenta hoje num
fazer conjunto, que procura não separar teoria e prática. A proposta é fazer um
trabalho pedagógico democrático, pautado pela realidade que o cerca,
observando o contexto, os significados e histórias de cada um e do grupo. É uma
escola que desenvolve um projeto alternativo em relação à escola tradicional, ou
seja, tem como proposta a construção do conhecimento em oposição à simples
transmissão de conteúdos. Sendo assim, a escola pretende formar indivíduos
com inteligência crítica e emocional, capaz de fazer escolhas conscientes diante
aos desafios do mundo.
Segundo a coordenadora, ”a elaboração do projeto político pedagógico é
construída coletivamente, a elaboração do planejamento de ensino parte dos
conteúdos curriculares, incluindo outros conteúdos de caráter humanístico e que
vão compondo ao longo de cada ano, o planejamento a ser trabalhado com cada
turma”.
A escola dispõe de amplo espaço físico, incluindo árvores de várias
espécies e animais, o que permite o desenvolvimento de projetos especiais,
associando aprendizagem e meio ambiente.
No período da pesquisa de campo, a escola atendia cerca de 202 crianças,
compreendendo a Educação Infantil com 73 crianças, com turmas do Infantil 1 ao
Infantil 5, e o Ensino Fundamental com 129 crianças, com 8 turmas, das Séries
Iniciais até a 8ª série, funcionando nos dois turnos. A escola tem 33 professores e
3 coordenadoras, sendo uma da Educação Infantil, uma das Séries Iniciais e uma
do Ensino Fundamental (5ª a 8ªsérie). Do quadro de professores, 2 são
professores de Educação Física, sendo que a professora trabalha na Educação
Infantil e o professor trabalha no Ensino Fundamental. Há também outros projetos
na escola, como a capoeira, coral, culinária, I-ching, inglês, violão, projetos
encontros e arte de circo, o que evidencia o interesse em ampliar o repertório de
experiências culturais das crianças.
Neste último, o projeto Arte de Circo, trabalham duas professoras, sendo
que uma delas é formada em Educação Física pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) e a outra professora tem a primeira habilitação em
Filosofia e atualmente está cursando a faculdade de Artes na Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC).
No projeto, as professoras falam que: “entendendo a necessidade de
relacionar o movimento corporal enquanto movimento expressivo, com a
educação, através de diferentes manifestações artísticas buscamos a concepção
do circo como aglutinador de artes, para o desenvolvimento do projeto”. Os
objetivos deste projeto são: trocar e construir conhecimento; facilitar uma boa
comunicação entre o grupo, num trabalho interativo, vivenciado de corpo inteiro;
vivenciar situações que estimulem a formação de indivíduos autônomos,
cooperativos, confiantes, persistentes, críticos, sensíveis, criativos, equilibrados e
com uma boa auto-estima; dramatizar, brincar, dançar, jogar e fazer circo,
buscando uma consciência corporal; criar dinâmicas de auto-conhecimento que
propiciem a cada um, uma relação de prazer e alegria em suas atividades, e,
organizar a partir dos indivíduos, um coletivo estruturado e consistente para
realização
das
atividades,
vivenciando
situações
e
possibilitando
o
desenvolvimento de suas potencialidades cognitivas, físicas, afetivas e sociais,
dentro de uma proposta lúdica.
A turma das atividades de circo era composta por 9 crianças
compreendendo as idades de 4 a 9 anos, sendo oferecida todas às quartas-feiras,
das 18h30min às 19h45min.
O local onde aconteciam as atividades de circo nos meses em que realizei
a pesquisa tem o formato de um circo, sua estrutura é de cimento e o centro do
chão – o “picadeiro” – é de madeira. Soares (2001:39) nos dá uma contribuição
dizendo: “a arquitetura do circo, arredondada, com sua arena central, permite que
o olhar passeie por todos os lados e que olhe nos olhos de outros espectadores.
Este palco centrado se oferece cheio de luz, de ação”.
2.2. O Reality Circus
Começar cada dia num lugar diferente é a rotina das famílias circenses. O
circo Reality Circus, no período de 19/09/03 a 22/11/03, esteve nas cidades da
Grande Florianópolis (Antônio Carlos, Biguaçu e São José) e também em
Garopaba, onde tive oportunidade de acompanhá-lo.
Para viajar, o circo toma algumas providências. Primeiro é preciso contatar
a prefeitura da cidade e pedir autorização. Autorizados pela prefeitura, eles
partem para a nova praça à procura de um local adequado para a instalação do
circo. Os circos às vezes encontram lugar adequado para instalar-se, mas há
cidades onde isso não acontece. Como explica a pesquisadora Alice Viveiros de
Castro, “entre os problemas enfrentados nos dias de hoje estão os terrenos caros
e há cidades que não permitem a montagem de circos, pois seus prefeitos
temem estes ‘forasteiros’”14. Aí, o jeito é armar a lona onde dá. O Reality Circus
não teve problemas quanto às suas instalações desta vez, por onde passou em
Santa Catarina, encontrou bons lugares para sua acomodação.
O Reality Circus nasceu no Brasil há três anos, em Sorocaba - SP, e sua
primeira estréia foi em 03/03/2001. Desde então, já percorreu várias cidades
14
Fonte: Castro, Alice Viveiros de. Site: www.centraldocirco.art.br
pelos estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina, e seus integrantes
pretendem ir para o Mato Grosso, Goiás, Brasília e outros lugares.
O Reality Circus foi fundado pela família Dantas, família circense de 4ª
geração. Os irmãos Josemar Dantas e Anderson Dantas são sócios, compraram
todos os equipamentos e montaram o seu próprio circo. A família já trabalhou em
vários circos, de parentes próximos e inclusive de não-parentes, porém, como um
dos entrevistados declarou: “toda a vontade do circense é ter o seu próprio circo”.
Atualmente no Reality Circus há seis famílias, a saber: duas famílias
Dantas, família Ferrante, família Henriques, família Alves Viana e família Miguel.
As famílias são numerosas, e segundo Josemar, “todos trabalham aqui no circo, é
uma equipe, administração, armação, transporte, artista, eletricista, encanador,
mecânico, todos ajudam um pouco. Para viver no circo, é preciso saber de tudo
um pouco”.
A desmontagem do circo geralmente é feita na segunda-feira à noite e a
viagem é feita na terça-feira. O jovem Weverton Dantas, de 14 anos, descrevenos esses momentos: “A gente começa a desmontar o circo na segunda-feira à
noite, depois do último espetáculo, tira tudo de dentro da lona, aí na terça-feira a
gente desmonta tudo, por fora e por dentro, e começa a levar tudo para o
caminhão, e a gente vai para outra cidade e aí chega na quarta-feira. Aí a gente
levanta os mastros, bate as estacas, ajeita as casas, os trailers. E aí na quintafeira ergue a lona e sexta-feira arruma por dentro, as arquibancadas, a entrada e
estreamos o espetáculo. As estréias são sempre nas sextas-feiras, quando
quinta-feira é feriado em alguma cidade daí a gente estréia na quinta, senão é
sempre na sexta-feira”.
Conforme a fala de Weverton, assim que o circo chega, a primeira
preocupação é definir o espaço físico do acampamento, onde vão ficar os trailers,
a entrada do circo e as arquibancadas. O próximo passo é descarregar: lona,
mastro, grades e arquibancadas e/ou cadeiras. Agora, é só começar a montagem
do circo.
Na montagem, a primeira providência é levantar a cerca. O trabalho é
manual, sem auxílio de qualquer máquina. Como requer força física, são os
homens que executam essa tarefa.
A montagem do circo leva todo o dia e, às vezes, ainda sobra trabalho para
o dia seguinte. Durante esse período, as mulheres continuam suas atividades
domésticas: arrumar os trailers, lavar louça, lavar roupa, cozinhar e cuidar dos
filhos. As crianças maiores também ajudam na montagem, como arrumar as
cadeiras uma do lado da outra. Já as crianças menores ficam brincando ou
assistindo TV em seus trailers.
A próxima tarefa dos homens é levantar o mastro. Weverton nos fala que,
num primeiro esforço, um grupo apoia o mastro numa forquilha de madeira,
amarrada com arame. O segundo passo é atar uma corda ao pico do mastro e
puxá-la até o mastro ficar aprumado.
A cobertura do circo é formada por dois semi-círculos de lona, unidos por
cordas. No mastro central existe uma argola de metal que prende a cobertura. Na
ponta da lona existem cordas que são atadas às estacas fixadas no chão. Além
disso, pequenos mastros de ferro também auxiliam na sua sustentação. Após
amarradas as cordas e fixados os mastros pequenos, a lona é erguida através de
um mecanismo de cordas e roldanas.
O último passo é montar a estrutura interna: cadeiras e/ou arquibancadas
de madeira, cortina de palco, equipamento para as apresentações, aparelhagem
de som e iluminação. Terminado tudo isso, o circo está pronto para o espetáculo.
O dia-a-dia das famílias circenses não é muito diferente do cotidiano das
famílias que possuem residência fixa. O dia no circo começa cedo. Por volta das 7
horas as pessoas começam a se levantar. A primeira providência é a higiene
pessoal. No circo, a água geralmente é oferecida pelas casas vizinhas, e é tarefa
dos homens carregar os baldes d’água. Para as mulheres, a primeira obrigação
do dia é preparar o café.
O café da manhã é simples, cada família faz as refeições em seu trailer.
Algumas vezes elas se reúnem para comerem juntas. Após o café, há um período
de atividades domésticas. Entre 8h e 11 h, as mulheres lavam louça, roupa,
arrumam os trailers e cuidam da higiene das crianças. No acampamento, cada
qual cumpre uma atividade. Aos homens, cabe cuidar da manutenção do circo.
Todas as crianças do Reality Circus acima de 7 anos estão matriculadas na
escola. Algumas estudam no período matutino, outras no período vespertino. Esta
divisão é feita pelos próprios pais. Cecília, uma das mães, é responsável pelas
matrículas das crianças nas escolas. Todos os pais preocupam-se com a
educação das crianças. Eles comentam que, estudando, os filhos terão melhores
condições de sobrevivência, caso decidam sair do circo. Vale ressaltar que há
uma lei federal que facilita a matrícula de crianças circenses nas escolas públicas
em qualquer período do ano letivo. Algumas crianças têm dificuldades na
aprendizagem devido ao fato de que estão sempre mudando de escola.
Realmente não deve ser fácil para elas, a cada 15 dias estão numa escola
diferente, numa cultura diferente. Na maioria das vezes as crianças estudam
juntas, sempre com um adulto presente para ajudá-las.
As atividades que exigem maior força física são sempre executadas pelos
homens. Para a manutenção, não existem tarefas fixas, elas vão sendo realizadas
de acordo com a necessidade e a possibilidade. Se é preciso pintar a grade, e há
dinheiro para a tinta, então, mãos à obra. A lona recebe cuidado especial por
duas razões: porque custa muito caro, e porque, além de ajudar na propaganda,
ela dá status ao circo. “Uma lona nova e bonita atrai o público”, comentam os
circenses.
No final da manhã, as atividades vão abrindo espaço para um rápido
descanso. Trabalho, somente para as mulheres, preparando o almoço. Após
almoçarem, as mulheres lavam a louça e arrumam a cozinha. Os homens ficam
sentados à sombra conversando ou vão dormir um pouco. As crianças se
dividem: as maiores ajudam as mães no serviço e as menores ficam brincando.
Quando terminam as tarefas domésticas, as mulheres têm um período de
descanso. É um momento descontraído e bastante familiar, onde elas cuidam “da
beleza” – o que afinal faz parte de seu trabalho de artistas em um espetáculo – e
se juntam à conversa do marido e dos filhos. Mas, em geral, a conversa não dura
muito e logo todos estão dormindo. Dormir depois do almoço é um hábito
cultivado pelo pessoal do Reality Circus, o que se compreende, levando em conta
que fazem espetáculos noturnos. Como o início da tarde é geralmente muito
quente e os trailers ficam abafados, é comum as pessoas descansarem sobre
lençóis, esteiras ou redes colocadas ao ar livre.
A partir do meio da tarde, o circo começa a movimentar-se outra vez, e
vive-se mais um período de lazer: homens e mulheres conversam, contam piadas,
relembram números circenses e brincam com os filhos. É neste momento de
descontração que as crianças têm os primeiros contatos com a arte do circo.
Ao fim da tarde os homens retomam suas atividades. Agora, além de
cuidar da limpeza do circo, já como preparativo para o espetáculo da noite, eles
cuidam também dos equipamentos.
A propaganda dos espetáculos é feita durante o dia. Os circenses colocam
as caixas de som em cima do automóvel e saem percorrendo a cidade,
anunciando o preço, os horários e os números de sucesso do espetáculo.
Ao mesmo tempo que é feita a propaganda nas ruas, no circo é realizada
uma grande limpeza. Esta tarefa, que inclui varrer as arquibancadas, limpar as
cadeiras, recolher o lixo do espetáculo da noite anterior, fica a cargo dos adultos.
Assim que o circo está arrumado, os artistas começam o ensaio, mas não o
fazem todos os dias. Porém, mesmo quando o ensaio acontece, não há o objetivo
de aperfeiçoar a técnica ou acrescentar novos números ao espetáculo, é apenas
um "aquecimento", feito antes do espetáculo. Nos circos pequenos como o
Reality, há poucos equipamentos técnicos e muita coragem. Vale ressaltar que,
numa família de circo, as habilidades começam a ser desenvolvidas logo cedo,
com as brincadeiras na infância. Não há professores de circo, nem livros, e o
aprendizado é prático. Raros artistas passam pelas escolas de circo para
aperfeiçoar os seus números. O circo é a escola!
No início da noite, após o ensaio, é a hora do banho e da janta. Após o
banho, enquanto as mulheres cuidam de fazer o jantar e os doces para vender no
espetáculo, os homens cuidam dos últimos ajustes para a apresentação. Checam
o som, a luz e os equipamentos.
A partir das 19h30 horas, a música vai ao ar, atraindo o público para o
espetáculo. A bilheteria, que funciona em um dos trailers, também é aberta. O
preço varia. Nos primeiros dias, o ingresso geralmente tem o seu preço um pouco
elevado. Mas, quando o circo deixa de ser novidade, o preço pode baixar até pela
metade. Na temporada de 2003, o ingresso do Reality Circus custava R$ 6,00, o
que dá idéia da dificuldade material que as famílias circenses enfrentam,
considerando-se que um ingresso de cinema custava na mesma época em
Florianópolis o dobro disso.
É chegada a hora, 20h30, todos ansiosos para que comece o espetáculo.
“Boa noite senhoras e senhores! Boa noite meninada! É com muita alegria
que o circo Reality Circus apresenta mais um grande espetáculo”. São essas as
palavras do mestre de cerimônia – Marotti – que dão início às apresentações.
Neste instante, abrem-se as cortinas e Weverton Dantas, de 14 anos, começa o
espetáculo com o número denominado “cesto”. Com uma bicicleta, ele pedala no
cesto que é suspenso até o teto da lona, emocionando o público e recebendo
muitos aplausos.
Foto 10 - O cesto
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Logo em seguida, para diminuir a tensão do público, entram os palhaços
dançarinos interpretados por crianças entre 02 a 14 anos de idade. Muita música
e diversão, o público acompanha a melodia cantando e batendo muitas palmas.
A coreografia é montada por um adulto (Cristina) e as crianças ensaiam
duas ou três vezes por semana. Em alguns momentos percebi que os
movimentos das crianças eram repetitivos, o “domínio” sobre o corpo fazia parte
do contexto. Para as crianças, esse momento era considerado o seu trabalho,
queriam mostrar sua técnica, a perfeição dos movimentos. Porém, em outras
situações elas pareciam à vontade, com movimentos espontâneos e muita
alegria. Nessa hora, a dança era considerada como uma brincadeira, uma
diversão, principalmente quando dançavam com a criança menor, de apenas 2
anos. Aqui fica clara a dualidade: de um lado, a “disciplina” do corpo, o controle
preciso dos movimentos das crianças; e do outro lado, o protagonismo e a
liberdade do improviso em alguns momentos.
Sobre essa questão “corpo disciplinado”, Vigarello (apud Silva, 1999:24)
nos diz: “o corpo é o primeiro lugar onde a mão do adulto marca a criança, ele é o
primeiro espaço onde se impõem os limites sociais e psicológicos atribuídos a sua
conduta, ele é o emblema onde a cultura vem inscrever seus signos tanto quanto
seus brasões”.
Fotos 11 e 12 – “Palhaços-crianças” dançando
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Foto 13 – “Palhaços-crianças” dançando
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Em seqüência, entra no picadeiro o domador Josemar Dantas junto com
um animal tradicional nas apresentações circenses: o macaco, nesse caso
chamado Jack. O macaco anda de bicicleta, equilibra-se na bola, na corda bamba
e num mastro. Segundo o domador Josemar, “para ensinar os bichos, é preciso
começar desde cedo. A repetição do número todo dia é que vai fazer com que
eles aprendam”. A afirmação de Josemar, me faz repensar também o treinamento
das crianças do Reality Circus. Muitas delas começaram no picadeiro muito cedo,
como a menina de 2 anos, Mariana, que interpreta a palhacinha dançarina, por
exemplo. A questão da repetição do número, várias vezes por dia, também faz
parte do treinamento das crianças, principalmente quando o número é
considerado muito difícil e que requer muita dedicação e persistência, como é o
caso do menino Rafael de 13 anos que realiza os malabares. A princípio, o que
Josemar falou sobre “começar ensinar desde cedo” e a “repetição do número
todos os dias” com relação aos animais, não se diferencia do treinamento das
crianças, pois algumas crianças também começam no picadeiro desde cedo e
treinam todos (ou quase todos) os dias, a distinção se dá pelo modo como esse
treinamento é feito, com que finalidade ele é realizado, podendo ser permeado a
questão do lúdico, da brincadeira, como também a “disciplinarização” do corpo.
As fotos abaixo revelam as proezas que o macaco Jack realiza no
picadeiro, junto com seu domador, Josemar.
Foto 14 - Macaco Jack andando de bicicleta
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Foto 15 - Macaco Jack equilibrando-se no mastro
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Foto 16 - Macaco Jack equilibrando-se na corda bamba
Foto 17: Macaco Jack equilibrando-se na bola
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
"E aí vem eles! A alma do circo..." É assim que o mestre de cerimônia
anuncia a entrada dos palhaços Xereta e Chaminé. Esse número é o mais
esperado pelo público. Segundo os próprios artistas, “o circo que não tem um
bom palhaço não vai para frente”. Além de alegrar o público, Xereta e Chaminé
são o termômetro do espetáculo: se os números não estão agradando, eles
entram em cena mais cedo. E se o espetáculo está muito corrido, eles prolongam
as suas apresentações. O número do palhaço é o que mais permite o improviso.
As apresentações do palhaço são geralmente histórias contando situações
cotidianas. Herdado dos circos maiores, esse número é de fácil entendimento:
tem poucos personagens e um final engraçado. Nos pequenos circos, esses
números são tradicionalmente apresentações de números já famosos dos circos
maiores, passados de geração para geração. Dificilmente se faz algum tipo de
ensaio para estes números coletivos. Segundo os artistas do Reality Circus, “o
problema é que não há um ‘ensaiador’ que dirija o espetáculo, como existe nos
grandes circos”.
Fotos 18 e 19 - Palhaços: Xereta e Chaminé
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Foto 20 - Palhaços: Chaminé e Xereta
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Outro número que o público aprecia muito é o jogo de malabares, um dos
mais tradicionais do espetáculo. Os malabares são de origem chinesa, e exigem
reflexo e dedicação, muitas horas seguidas de ensaios para sua execução. Este
número é realizado por Rafael Alexandre Henriques Duran, de apenas 13 anos.
Para realizar esse número, ele utiliza claves, aros/argolas, bolinhas, e tochas em
fogo. Rafael aprendeu esse número com um integrante de um circo do Chile,
onde morou por algum tempo. Rafael ensaia bastante, geralmente duas horas por
tarde, mas os ensaios não acontecem todos os dias.
Fotos 21 e 22 - Malabares com claves e tochas de fogo.
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Mais um número com palhaços, agora são os palhaços músicos que se
apresentam no picadeiro. Geralmente eles entram para criar uma atmosfera mais
alegre, depois da concentração que predomina durante as apresentações de
habilidades.
Foto 23 - Palhaços músicos
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Após muitas gargalhadas e descontração, surge no picadeiro o equilibrista
Márcio Alessandro Miguel e sua partner Ilca Miguel, para prender a atenção do
público. Andar de monociclo é um número circense famoso e tradicional. E é com
esta apresentação que Márcio Alessandro recebe muitos aplausos do público.
Além de andar de monociclo (com a altura normal de uma bicicleta), ele também
anda em um monociclo de 3 metros e 50 centímetros de altura, emocionando todo
o público. Mais impressionante ainda é ver Márcio Alessandro se equilibrando na
corda bamba em cima do monociclo menor, e, ainda na corda bamba, realizando
malabares com claves.
Foto 24 - Equilíbrio no monociclo
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Foto 25 - Equilíbrio no monociclo alto
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Foto 26 - Equilíbrio na corda bamba com o monociclo
Foto 27 - Equilíbrio na corda bamba fazendo malabares
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Para amenizar a tensão do público, entram no picadeiro os palhaços
dramatizando a história do “taxixi”: uma família (Lilico, Lilica e Xereta) queria ir
para a cidade e, como não tinham locomoção própria, resolveram chamar um táxi.
Toda a história se passa entre a família, o táxi e o dono do táxi. Em seguida os
palhaços Xereta e Chaminé dramatizam uma outra história, “o fantasma do
cemitério”.
Nesses dois momentos, o público, principalmente as crianças,
participam ajudando os palhaços a saírem das confusões em que eles próprios se
metem. Esse número é muito divertido e envolvente!
Foto 28 - “Taxixi”
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Foto 29 - “Fantasma do cemitério”
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
O último número é o mais esperado por todos, o globo da morte. Segundo
Josemar Dantas, o globo da morte veio para o Brasil entre 1933 e 1935 com um
trio que se apresentava em praças e em festas: Guido, Bianchi e Nespoli, todos
italianos. Esse número é apresentado no Reality Circus por Josemar Dantas e
seu filho de 15 anos, Weverton Dantas, cada um com sua moto. É um número
muito emocionante e que envolve o público, aumentando a adrenalina de todos.
Foto 30 - O globo da morte
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Fecha-se a cortina, depois de uma hora e trinta minutos de espetáculo, e o
mestre de cerimônia, Marotti, encerra, dizendo: “E assim, o Reality Circus finaliza
um grande espetáculo. Agradecemos a presença de todos e desejamos uma
ótima noite. Vão em paz e que Deus os acompanhe."
Depois do espetáculo, os adultos guardam os equipamentos, limpam o
local da apresentação, e depois, junto com as crianças, seguem para os seus
trailers. Alguns adultos e crianças ainda assistem TV, outros vão dormir.
2.3. Os Personagens Principais: As Crianças da Escola “Brincando de
Circo” e as do Reality Circus
“Falamos muito sobre a criança, mas não
falamos com a criança”.
15
Françoise Dolto
Para iniciar este tópico, trago uma citação de Sirota (2001:19) que diz o
seguinte:
As crianças devem ser consideradas como atores em sentido pleno e não
simplesmente como seres em devir. As crianças são ao mesmo tempo
produtos e atores dos processos sociais. Trata-se de inverter a
proposição clássica, não de discutir sobre o que produzem a escola, a
família ou o Estado mas de indagar sobre o que a criança cria na
intersecção de suas instâncias de socialização.
Sabemos que as crianças têm muito a nos dizer, e nós, adultos, temos
muito o que aprender com elas: é a partir delas mesmas que devemos realizar o
estudo das realidades da infância.
Segundo Pinto e Sarmento (1997:25):
(...) o estudo das crianças a partir de si mesmas permite descortinar uma
outra realidade social, que é aquela que emerge das interpretações infantis
dos respectivos mundos de vida. O olhar das crianças permite revelar
fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na penumbra ou
obscurece totalmente.
Esses autores afirmam que, se considerarmos as crianças produtoras de
uma cultura própria da infância e se as tomarmos como sujeitos plenos de
direitos, teremos então que:
15
Dolto, Françoise. La cause des enfants. Laffont, 1985.
(...) partir das crianças para o estudo das realidades de infância. Isto significa,
no essencial, duas coisas: primeira, o próprio objeto da pesquisa, a partir do
qual se estabelecem as conexões com seus diferentes contextos e campos
de ação; em segundo lugar, que as metodologias utilizadas devem ter por
principal escopo a recolha da voz das crianças, isto é, a expressão da sua
ação e da respectiva monitorização reflexiva. (op. cit.:24)
E é a partir deste momento que trago a voz das crianças da escola
“Brincando de Circo” e do Reality Circus, que falaram sobre suas ações,
fantasias, imaginação, seus modos de ser, sentir e agir, diante das vivências das
brincadeiras circenses.
Foi perguntado a elas o que é circo, vejamos o que as crianças da escola
têm a nos dizer:
“É brincar, é se divertir, é observar, é ouvir, é ser criança, é rir, é comer”.
(Olga, 6 anos).
“É se divertir, é fazer a criança sorrir, fazer a criança brincar e olhar os
apresentadores”. (Maíra, 6 anos).
“Não sei! É brincadeira, ele pode fazer um monte de coisas, malabarismo,
perna de pau...” (Maria Clara, 7 anos).
“Circo é uma coisa que a gente aprende a brincar, né?, melhor, né? E
aprender mais as coisas do circo, sobre o circo. A gente se exercita bastante
correndo, fazendo alongamentos, o problema é que dói um pouco a coluna”.
(Caroline F., 7 anos).
“É um negócio que a gente fica gastando muita energia, que a gente fica
fazendo muitas coisas, em posições, esticando os braços, esticando as pernas,
ficando em pé, ficando sentado, ficando ajoelhado, pra mim é isso”. (Amanda, 6
anos).
“É brincar muito, aprender coisas diferentes como o trapézio, as argolas,
essas coisas”. (Júlia, 7 anos).
“Ai, essa é difícil! Um lugar grande que tem vários espetáculos engraçados,
emocionantes e tudo o que acontece dentre dele a platéia sente, sabe? Daí eu
acho que é isso. Eu também acho que é diversão, tensão, admiração e sorrir”.
(Victor, 9 anos).
“Pra mim as brincadeiras de circo são muito divertidas, a gente faz coisas
divertidas, a gente aprende mágica, a fazer um monte de coisas, é aprender a
fazer coisas legais, é brincar”. (Lauren, 7 anos).
“Circo é uma diversão pra mim, é uma brincadeira, não sei dizer mais
nada”. (Caroline R., 7 anos).
Fotos 31 e 32 – As crianças da escola “Brincando de Circo”
Fonte: Alexsandra de Souza (28/05/03)
Foi perguntado também para as crianças do circo, o que é circo para elas,
e responderam o seguinte:
“O circo pode dar alegria, o povo fica bem animado com o que aparece no
picadeiro, os palhaços, tem palhaço engraçado que faz as pessoas dar risadas. O
circo tem vezes que dá emoção, quando você vê um trapezista parece que vai
cair e não cai, dá alegria, dá felicidade quando o número dá tudo certo, dá alegria
dos palhaços que são bem engraçados que fazem dar risadas, você no picadeiro
o povo que vai participar com os palhaços, é bem legal. O circo pode dar alegria
para a platéia, pode dar emoção, bastante coisa, felicidade, porque tem muita
gente que nunca foi no circo e vai e gosta, é bem legal. Circo é uma coisa legal,
que você pode ajudar no circo, pode ensaiar, aprender coisas com o circo,
números, e se ensaiar bastante você pode ser um bom artista”. (Stefany, 10
anos).
“Pra mim o circo é um trabalho, levo muito a sério o circo. O circo pode
proporcionar muita coisa, ele tem cultura, arte, acho legal isso. O circo é muito
importante pra mim. O circo proporciona para o público alegria e diversão. Circo é
uma diversão, um trabalho, é uma coisa séria”. (Vanessa D., 11 anos).
“O circo pode me dar tudo. O circo é tudo o que você imaginar, ele pode
dar a vida, a alegria, tudo.
O circo é minha casa. Na minha opinião o circo
demonstra para o público o que as pessoas podem fazer com muito treino, pode
fazer diferente, uns não conseguem fazer, mas de outra maneira conseguem, daí
a gente treina bastante e pode fazer, tem dificuldade, mas com o tempo aprende
treinando. Circo para mim é minha casa, meu lugar de trabalho, onde vive a
minha família, circo para mim é tudo”. (Weverton, 14 anos).
“O circo pode me oferecer trabalho, quando eu ser grande ganhar dinheiro,
trabalhar bem, ter um número bom, e é bem legal o circo, a gente aprende
bastante no circo. É bem legal trabalhar no circo, brincar no circo, fazer todas as
coisas que eu faço, armar e desarmar o circo, todos ajudam a armar e desarmar o
circo, é bem legal. O circo pode dar alegria, pode dar muita felicidade para todos
que vem assistir o circo, é bem legal assistir o circo, dá muita alegria, as pessoas
sempre saem falando que a gente trabalha bem, faz as coisas bem direitinho, a
gente gosta das coisas que a gente faz. Circo para mim é uma brincadeira, é
trabalhar, é ajudar, conhecer muitas famílias, é bem legal o circo”. (Rafael, 13
anos).
“Quando a gente está se apresentado, como falou o Rafael, a gente brinca
e trabalha na mesma hora, porque para o povo é uma diversão e para nós
também é uma diversão e trabalho. A gente está no circo desde que nascemos,
então ele é tudo para mim. Ele traz humor, diversão para as cidades, tem cidade
pequena e a gente vai nessa cidade levar o circo, um pouco de brincadeira,
palhaço, animais, bastante coisas para a cidade. O circo é uma arte, humor. Circo
é tipo uma brincadeira para o povo, para a gente é trabalho, circo é arte, é cultura,
essas coisas”. (Charles, 14 anos).
“Circo é alegria, não sei mais o que é circo. O circo me dá alegria, paz,
prazer em morar aqui, porque eu gosto”. (Joelma, 14 anos).
“Circo é um negócio que a gente vive desde pequeno, né? A gente vai
aprendendo as coisas desde pequeno, acho legal, é onde vivo e trabalho. Às
vezes eu tenho vontade de sair do circo, mas tem vezes que não. Eu queria fazer
faculdade de música. A gente combina nós aqui do circo de sairmos juntos para
fazer faculdade. O circo me ensina bastante coisa, podemos aprender um monte
de coisas com ele, é legal, aprender os números do circo. Ele é importante para
mim, porque a gente trabalha nele, a gente ganha as coisas. Ele dá alegria para a
platéia, eu quando vou em algum circo diferente eu acho legal, a gente vai em
outros circos também, quando a gente conhece o dono do circo, quando a gente
fica perto de outro circo”. (Vanessa, 13 anos).
Fotos 33 e 34 – Crianças do Reality Circus
Fonte: Alexsandra de Souza (11/10/03)
Percebe-se nas falas das crianças do circo e da escola, que o conceito de
circo é associado nos dois casos a brincadeira, diversão, alegria, aprendizado,
emoção, tensão, prazer e admiração. É visível também que as crianças estão
falando de coisas diferentes. As crianças do circo, além daquilo, também falaram
que o circo é sua vida, sua casa e seu trabalho. As crianças do circo, enquanto
estão se apresentando, vivem essa dicotomia, trabalho e brincadeira, ora
movimentos repetitivos e coreografados, ora movimentos espontâneos.
Com relação às brincadeiras preferidas (e algumas não preferidas), as
crianças do circo falaram que:
“Não gosto de brincar muito, mas de vez em quando brinco com as outras
crianças do circo de pega-pega, esconde-esconde, pular corda e vôlei”. (Vanessa
D., 11 anos).
“Sobra tempo para o meu lazer, Sábado e Domingo, porque daí só
começa trabalhar às 5 horas da tarde. A gente vai na praia que nem hoje, nós já
fomos (praia de Garopaba). Estudo de manhã, e de tarde não tem nada para
fazer, às vezes estudo, e depois vou para a rua brincar. Gosto de jogar bola com
meus amigos, jogar vídeo-game, porque a gente tem televisão, vídeo-game”.
(Weverton, 14 anos).
“Sobra bastante tempo para eu brincar, eu jogo bola, ando de bicicleta,
converso com meus os amigos, jogo vídeo-game”. (Rafael, 13 anos).
“Tem vezes que sobra tempo para brincar, tem vezes que não, porque a
gente tem que estudar, ensaiar para os espetáculos. Gosto de brincar, as
brincadeiras que mais gosto é pular corda, pega-pega, esconde-esconde, jogar
vídeo game”. (Vanessa, 13 anos).
“Sobra bastante tempo para o meu lazer, gosto de jogar futebol com os
amigos, jogar vídeo-game, dá tempo para fazer um monte de coisas”. (Charles,
14 anos).
“Sobra bastante tempo para eu brincar, uh, um montão, porque eu não
ensaio, então eu fico brincando, Sábado e Domingo principalmente, que dá para
brincar. Às 5h não pode brincar por causa que vem a matinê, não dá, depois da
matinê dá para brincar um pouco, porque só 8h da noite começa o espetáculo e
durante a semana eu brinco depois que eu chego da escola. Gosto de brincar de
vôlei, boneca Barbie, vídeo-game e tem vezes que eu fico chorando para brincar
com eles de vídeo-game e eles não deixam, e brincar com as minhas amigas,
né?, brincar de esconde-esconde, pega-pega”. (Stefany, 10 anos).
“A gente vai para a escola de manhã, chegamos em casa, almoçamos e
de tarde a gente brinca, eu gosto brincar de esconde-esconde, pega-pega”.
(Joelma, 14 anos).
Percebe-se aqui a diferença que as crianças fazem entre “circo” (trabalho)
e “brincadeira” (lazer). Um exemplo são as próprias falas delas: “Às 5 horas não
pode brincar por causa que vem a matinê”, e “sobra bastante tempo para eu
brincar (...) porque eu não ensaio”.
Vejamos quais são as brincadeiras preferidas (e algumas não preferidas)
pelas crianças da escola:
“Gosto de brincar no trapézio, gosto também da pirâmide e da argola. Eu
não gosto da corda, porque é muito difícil por causa que eu não consigo subir,
porque escorrega e depois a mão fica ‘queimando’”. (Amanda, 6 anos).
“Eu só gosto de subir na corda”. (Maíra, 6 anos).
“Gosto de brincar no trapézio, na argola e de subir na corda. Pular corda
que eu não gosto muito”. (Caroline R., 7 anos).
“Eu gosto de todas, mas o que eu gosto mais é da argola, da corda e do
trapézio, porque é muito legal”. (Maria Clara, 7 anos).
“Gosto de brincar de pega-pega, quero-ver-quem-pega, subir na escada e
na corda, só não gosto de ser ajudante nas brincadeiras, é muito chato”. (Olga, 6
anos).
“Eu gosto da corda, do trapézio e de ficar de cabeça pra baixo na parede”.
(Lauren, 7 anos).
“Eu gosto da argola e do trapézio. Eu não gosto muito do quero-ver-quempega, do esconde-esconde e de pega-pega””. (Caroline F., 7 anos).
“Gosto do trapézio, da argola e da corda, porque eles trabalham mais em
alturas e eu gosto de trabalhar nas alturas. Todas as brincadeiras são essenciais
pra gente aprender o circo, então eu gosto de todas”. (Victor, 9 anos ).
“Adoro brincar na corda, no trapézio e na argola, porque é muito legal.
Gosto também de brincar de árvore, pedra e ponte”. (Júlia, 7 anos).
Nas falas das crianças ficou evidente que para as crianças da escola o
“circo” é sempre associado a brincadeira, ao contrário das crianças circenses,
para quem a brincadeira é o que está “fora do circo”.
Foto 35 – O trapézio: brincadeira preferida pelas crianças da escola
Fonte: Alexsandra de Souza (30/07/03)
Fotos 36 e 37 – A corda e a argola: brincadeiras preferidas pelas crianças da escola
Fonte: Alexsandra de Souza (02/04/03 e 27/08/03)
As crianças do circo, fora do picadeiro, brincam das mesmas brincadeiras
que as crianças da escola, inclusive de vídeo-game, já que são crianças como
quaisquer outras, apesar das diferenças culturais. Assim como as crianças da
escola gostam muito das brincadeiras de circo, demonstrando o desejo de
“trabalhar nas alturas”, como disse um dos meninos.
As professoras das atividades de circo também relatam, sob o ponto de
vista delas, as brincadeiras preferidas pelas crianças. Segundo a professora
Jeovana: “as crianças gostam bastante do trapézio, argola, rolamento, quero ver
quem pega, e desafio (passar por debaixo de alguma coisa...)”. A professora
Mariana complementa: “as crianças encaram como brincadeiras, o momento de
relaxar, não tem cobranças, notas, é por opção, porque gosta, a maioria das
crianças optam pelo o que é mais gostoso e o que está associado a brincadeira.
Com a música elas se envolvem bastante, elas se sentem artistas, associam
diretamente com o circo. Eles adoram mostrar o que sabem fazer, é mais do que
estar superando um desafio, superando uma dificuldade, é mostrar que tem uma
habilidade específica. E por mais que a gente direcione para o lado da
brincadeira, por mais que a gente veja como brincadeira, a gente não pode
esquecer que toda a criança encara a brincadeira com seriedade, encara a
brincadeira como obstáculo a ser superado, e nesse sentido eles estão sempre
buscando melhorar para si mesmo, provar que são capazes, para si, para os
professores e para os pais. O lado de ter uma associação direta com o circo, de
se ver artista e o lado da brincadeira de ser vista com seriedade, de fazer parte do
processo de desenvolvimento das crianças. O circo tem uma magia, porque ele
cativa as pessoas, principalmente as crianças”.
Foi perguntado às crianças da escola se gostavam das aulas de circo.
Vejamos o que elas responderam:
“Sim, porque eu gosto das brincadeiras”. (Olga, 6 anos).
“Sim, porque tem várias brincadeiras legais”. (Maíra, 6 anos).
“Gosto, porque quando a gente chega em casa não sente nenhuma dor
nas costas, quando a gente vai dormir a gente não sente nada”. (Maria Clara, 7
anos).
“Gosto, porque a gente brinca bastante, a gente aprende mais a se
alongar”. (Caroline, F., 7 anos).
“Gosto, só a primeira vez que eu não tava acostumada, daí eu não quis
ficar em nenhuma brincadeira, porque era muito difícil pra mim e depois eu fiquei
dois meses mais ou menos sem ficar no circo, daí eu falei para a minha mãe que
eu queria fazer circo de novo e daí ela ficou um pouco desconfiada, né?, porque
na primeira vez eu não fiz, daí eu estou até hoje e não quis sair ainda. Eu gosto
da aula de circo porque parece que eu me ligo numa tomada assim (demonstrou
balançando a cabeça e os braços) e fico o dia inteiro assim, daí eu gasto muita
energia, daí eu fico mais cansada e daí acaba a pilha. Daí eu chego em casa e
durmo logo”. (Amanda, 6 anos).
“Adoro, porque acho muito legal. As brincadeiras são muito legais. Quando
eu crescer, eu acho que quero ser artista de circo”. (Júlia, 7 anos).
“Eu gosto, porque a gente brinca bastante e aprende brincando, sabe? Daí
eu gosto”. (Victor, 9 anos).
“Sim, porque tem brincadeiras legais, tem coisas bem legais”. (Lauren, 07
anos).
“Sim, por causa que a gente brinca bastante”. (Caroline R., 7 anos).
A resposta das crianças foi um coro unânime: sim! Gostam das aulas de
circo pelo simples fato de que as brincadeiras propostas pelas professoras são
“legais”, “divertidas”, “aprendem muitas coisas com elas” e porque “brincam
bastante” nesses momentos.
Quando perguntei para as crianças da escola se elas já tinham ido em
algum circo e do que mais gostaram e não gostaram do circo, elas responderam
o seguinte:
“Sim, em vários. Gostei do palhaços. Eu não gostei do apresentador, ele
era muito chato, não era interessante para as crianças”. (Olga, 6 anos).
“Já fui muitas vezes. Gostei dos palhaços, do mágico, dos malabaristas e
do bambolê”. (Maíra, 6 anos).
“Já. Gostei do mágico. O que eu não gostei muito foi só da piada que o
mágico falou, não foi engraçada”. (Maria Clara, 7 anos).
“Já fui sim. Gostei do trapézio e da corda bamba. Não gostei muito dos
palhaços. Eles não eram engraçados, eu não ria muito, sabe? Só das piadas um
pouquinho.” (Caroline F., 7 anos).
“Já. O que eu gostei foi que um dia que eu fui lá no Beto Carrero e eles
colocaram um gatinho na almofada e ele pulou lá de cima, ele era filhotinho ainda
por cima. Não gostei muito foi do palhaço, porque ele ficou jogando água na gente
e quando eu saí do circo eu tava encharcada”. (Amanda, 6 anos).
“Já. Gostei mais dos palhaços. Eu não gostei muito dos pássaros que tinha
lá”. (Júlia, 7 anos).
“Já. O que eu mais gostei foi dos palhaços, mas depende do circo. O que
eu não gostei muito foi do..., não sei, acho que do elefante que sobe no
banquinho”. (Victor, 9 anos).
“Já. Gostei da bailarina que ela tava dançando com uma bandeira fazendo
que era um xale por cima dela e atrás era a bandeira do Brasil. Não tem nada que
eu não gostei. Eu gostei de tudo”. (Lauren, 7 anos).
“Já. Eu gostei mais foi do tecido. Eu não lembro do que eu não gostei”.
(Caroline R., 7 anos).
Todas as crianças responderam que já tinham ido a algum circo, e as
respostas quanto ao que gostaram ou não foram diversificadas. Algumas crianças
gostaram dos palhaços, outras não muito. O mágico, os malabaristas, os
trapezistas, o número da corda bamba, a bailarina, o número do tecido acrobático,
foram citados como os mais preferidos pelas crianças.
Na conversa com as crianças do circo, perguntei a elas se poderiam falar
um pouco sobre como é morar no circo, onde nasceram, que personagens
assumem no picadeiro, e como é a relação delas com as escolas em que
freqüentam. Elas responderam-me:
“Eu nasci aqui no Brasil. Por enquanto não trabalho no circo, mas tenho
muita vontade em me apresentar no picadeiro, no trapézio. Desde pequena moro
no circo e gosto muito. Quero trabalhar no circo como a minha família. Quero
começar no picadeiro com 13 anos. Estou na 5ª série na escola, gosto de ir para a
escola. Acho legal estar mudando de escola de duas em duas semanas, pois
estou sempre conhecendo novas pessoas. Para fechar o ano, tenho que pegar
todas as notas do ano das escolas em que acompanhei, as professoras dão uma
nota e daí no final do ano, a última escola faz a média final. Eu consigo aprender
todas as matérias nas escolas em que vou”. (Vanessa D., 11 anos).
“Nasci no Brasil e no circo, desde pequeno estou no circo. Faço palhaço,
globo da morte e o cesto com a bicicleta. Gosto de trabalhar e morar no circo,
porque desde pequeno estou nesse meio e então acostuma. Já morei em
residência fixa, mas prefiro circo. Nós temos casa fixa em São Paulo. Vou para a
escola e estou na 7ª série, gosto de estudar, em toda a cidade estou em escola
diferente. Às vezes é meio difícil estar em escola diferente, mas já estou
acostumado, quando estou em cidades perto, a matéria é praticamente igual, e
quando são cidades distantes é um pouco diferente, mas a gente tem que
aprender. A gente vai para a escola, faz as provas, ganha nota e no final do ano a
escola que a gente tiver, a gente apresenta as notas ali e passa de ano. Não
tenho dias para treinar as atividades do circo. A gente treina no primeiro dia, um
pouquinho antes para ver se está tudo certo, mas não temos dia fixo para treinar.
Nós de circo não é como muitos pensam que não faz nada, a gente trabalha, leva
a vida normal, tem casa, tem conta em banco, tem tudo, tudo o que uma pessoa
de cidade tem, nós temos tudo também, só que a gente muda de uma cidade
para outra, toda semana, todo mês. Tem região que é mais difícil para a gente se
habituar, povo que não vai muito com a cara da gente, mas a gente vai vivendo e
trabalhando. Hoje em dia tem cinema, teatro, shopping, praia e esquecem do
circo. Hoje em dia quem vem mais no circo são os idosos, as crianças preferem
ficar jogando no computador”. (Weverton, 14 anos).
“Nasci em São Paulo, mas sou filho de chilenos. Faço palhaço com
instrumentos musicais, malabares com claves, aros, bolinhas, e com fogo. Gosto
de trabalhar no circo, morar, é bem legal, é diferente, a gente conhece muitas
pessoas, escolas, é muito divertido. Desde pequeno moro no circo. Vou para a
escola, estou na 6ª série. Gosto de estudar muito, é bem legal conhecer alunos,
professores de outra cidade, é bem legal. Faço muita amizade, sou acostumado a
ir em escolas diferentes, é mais difícil, mas é mais legal. Às vezes tenho um
pouco de dificuldade em aprender alguma matéria, mas não é muito, a gente
sempre aprende rapidinho. Treino bastante malabares, que é o mais difícil,
porque você tem que ter reflexo para não errar na hora do espetáculo, treino duas
horas de tarde, treino bastante. Tem dias que treino, tem dias que não”. (Rafael,
13 anos).
“Nasci no Brasil. O que eu faço no circo é o palhaço. Ensaio o número do
palhaço de vez em quando. Gosto de trabalhar e morar no circo. A gente nasceu
e foi criado no circo desde pequeno e isso daqui é o nosso futuro. Vou para a
escola e estou na 7ª série. Gosto de estudar, precisa, né? Já estou acostumado
de mudar de escola de duas em duas semanas, acho legal, tem cidade que a
gente estuda 3 dias. É que nós nascemos para esse tipo de coisa, a gente está
acostumado.” (Charles, 14 anos).
“Sou partner, ajudo o Rafael no malabares e faço o palhaço também. Além
de fazer o palhaço e partner, eu queria fazer o número do bambolê, rodar o
bambolê na cintura, na mão, no pé, e no final pode jogar ele para cima e pegar no
pé, pode ser diferente, rodar 20 bambolês na cintura. Desde 4 anos estou no
picadeiro. Gosto de morar e trabalhar no circo porque é legal, quando uma
pessoa precisa de outra, vai lá e ajuda, eu gosto de ser do circo, é bem legal. Vou
para a escola, estou na 4ª série, gosto mais ou menos de estudar, é chato, a mãe
chama a gente para ir tomar banho para ir para a escola e lá a gente faz tarefa, e
quando chega em casa tem que fazer tarefa de novo para levar para a professora,
e isso é muito chato. É legal mudar de cidade, de escola de duas em duas
semanas, porque vai conhecendo bastante cidades, escolas, fazendo bastante
amizades, é bem legal, depois a gente volta para a cidade de antes e vê os
amigos de novo, é bem legal. É um pouco ruim para aprender, a gente tá numa
escola, estuda um pouco nessa escola e depois vai para outra, e quando chega
na última semana que estamos na cidade daí tem um monte de provas, é muito
chato, todo dia tem prova, porque tem que ficar a tarde inteira estudando para as
provas, isso é coisa chata”. Falando sobre o irmão: “o Rafael antes ele não fazia
muito bem o malabares porque ele era pequeno, quando ele era pequeno, ele
ensaiava muito mais e não fazia grande coisa, agora que ele tá ficando grande ele
não ensaia quase nunca e faz bastante coisa, entendeu?, tá tudo do lado errado,
tudo ao contrário.” (Stefany, 10 anos)
“Nasci no Brasil. Eu faço o palhacinho, dançarina e partner. Tem dia que a
gente ensaia, tem dia que não dá. Tem uma moça, a Cristina, mulher do Márcio,
que ensaia a gente. Gosto de trabalhar e morar no circo, desde pequena estou no
circo, já estou acostumada, eu gosto, a família é toda do circo. Estou na 7ª série,
no primeiro dia é meio chato, a gente não conhece ninguém, depois é legal,
acostuma, quando a gente tem que ir embora é ruim, porque tem que deixar as
amigas, mas eu gosto de ficar mudando de cidade. Tem amigas que acham legal
a gente morar no circo, outras olham meio estranho para a gente”. (Joelma, 14
anos).
“Eu faço o número dos palhacinhos. Gosto de morar no circo porque a
gente aprende um monte de coisas, conhece bastante cidades, amigas. Eu quero
fazer contorcionismo e corda, aqui no circo não tem ninguém que faz, eu estou
treinando, ainda não estou preparada para apresentar no picadeiro. Vou para a
escola, estou na 4ª série, gosto de estudar. É legal mudar de escola, só que tem
algumas escolas que são chatas, outras são legais, o ruim é deixar as amigas. É
fácil fazer amizades.” (Vanessa, 13 anos).
As crianças vivem no circo desde pequenas e gostam muito do que fazem,
de ser um (a) circense, até porque já se acostumaram, como alguns relataram.
Outras já pensaram em sair do circo para fazer uma faculdade, mas não
gostariam de ter que “largar” o circo. A maioria já se apresenta no picadeiro, e as
crianças que ainda não o fazem têm muita vontade de se apresentar. Todas as
crianças acima de 7 anos vão para a escola e, conforme seus relatos, gostam de
estudar, algumas têm dificuldades em acompanhar a turma, outras nem tanto.
Gostam de mudar de cidade para cidade, porém não gostam muito quando têm
que deixar as novas amizades que fizeram.
Além de conversar com as crianças do circo, também conversei com dois
adultos, Cecília e Josemar, e perguntei a eles se poderiam falar sobre como é
morar num circo, o que é circo, o que ele pode proporcionar para as crianças e
para a platéia em geral, sobre o conhecimento circense. Acredito ser importante
apresentar aqui as falas desses adultos, para que assim possamos compreender
um pouco mais sobre o “mundo circense”.
O primeiro depoimento é de Cecília, que tem 36 anos, mãe de Rafael e
Stefany. Ela faz o número dos palhaços músicos junto com o irmão Charles (14
anos) e com o filho Rafael (13 anos) e nas horas do intervalo do espetáculo, ela
vende arco de anteninhas. Ela diz que: “O circo chega na cidade para
proporcionar ao público alegria, algumas horas de divertimento, porque tem
famílias que estão nas suas casas com problemas, como todos nós temos
problemas, que vêm para o circo para tentar esquecer os seus problemas, então
vêm para se distrair. Então essa é a idéia do circo, de entreter o público, entreter
as crianças, trazer aquela alegria, aquela fantasia que tem no circo, o circo é uma
fantasia, uma ilusão, você vai no circo você vai ver palhaço, malabarista,
trapezista, globo da morte, então tudo isso o circo traz, um pouco de alegria e
descontração para o povo. Então essa é a fantasia do circo que o público vem
buscar, cada pessoa, cada adulto que vem ao circo se torna uma criança.
Geralmente quando alguns adultos que vem trazer as crianças e conversam com
a gente falam: ‘eu trago o meu filho e lembro quando o meu pai me levou pela 1ª
vez no circo e quero que o meu filho sinta a mesma alegria que eu senti quando
eu fui pela 1ª vez no circo’, então eles trazem as crianças para elas sentirem a
mesma coisa que eles sentiram quando foram pela 1ª vez no circo. Então isso é
a magia que o circo tem, então isso é bem legal.
Quando a gente chega na cidade, o povo fala assim: a vida de vocês é
boa. É boa, sim, entre aspas, a gente gosta, o circo é a vida da gente, a gente
vive disso aqui, vive do circo. Mas também tem as suas horas difíceis, também
temos momentos ruins, também temos os nossos problemas, as nossas
dificuldades. Cada família tem o seu trailer, cada um cozinha, mas de vez em
quando combinamos de fazer um almoço todo mundo junto, porque nós somos
uma família. Às vezes não são todos familiares do dono do circo, mas tem as
famílias, e todos juntos, vira um família, às vezes a gente fica sabendo do
problema do outro, vai lá e ajuda, aquela união que tem dentro do circo, das
famílias do circo. É legal viver no circo, porque a gente conhece vários lugares,
viaja muito, por esse lado é bonito, mas por outro lado a gente passa por várias
dificuldades também. Mas não largo o circo por nada.
Faz 6 meses que eu, meus filhos e meu irmão estamos no Reality Circus.
Eu desde pequena estou no circo, nasci e me criei no circo, meu pais já eram de
circo, meu avô também era, minha avó não era de circo, era de cidade, e meu avô
conheceu minha avó na cidade, meu avô era trapezista, e minha avó tinha 13
anos, se apaixonou pelo meu avô, largou a família dela, largou tudo para ir
embora com o circo junto com o meu avô, e aí continuou a família. Meu avô é
tradicional de circo, minha avó não, mas aí já veio o meu pai, minha mãe, meus
tios, e são tudo de circo. Meus tios ainda trabalham no circo, tenho uma tia
trabalhando num circo nos Estados Unidos, um tio que vai para lá agora, o meu
irmão está trabalhando num circo no Chile, tudo isso por parte da minha mãe, e
por parte do meu pai, ele é falecido, estão todos lá no Chile, trabalhando em circo
também, toda a família é de circo. Eu comecei a trabalhar no circo foi no Chile, eu
cheguei aqui no Brasil eu tinha 6 anos, nasci no Chile e me criei aqui no Brasil.
Trabalhei no Chile também, faz 1 ano que eu voltei do Chile, fomos eu, meus
filhos e meu irmão para lá trabalhar com a nossa família, só que a gente não se
acostumou com o sistema de vida de circo de lá, é diferente daqui do Brasil, é
totalmente diferente, porque lá no Chile é muito frio, tem neve, então o circo lá
trabalha, por exemplo: no verão eles trabalham o verão inteiro até maio, daí já
pára o circo e fica “invernando“, depois quando chega na primavera daí eles saem
de novo para trabalhar, a gente não se acostumou com isso, porque aqui no
Brasil a gente trabalha o ano inteiro e lá no Chile a gente tem que parar para
“invernar“ e o dinheiro que a gente ganha no verão a gente tem que guardar para
se manter no inverno. Então os meninos não acostumaram, eu não acostumei,
então resolvemos voltar para o Brasil, nós todos já estamos acostumados aqui no
Brasil. Nasci em Illapel, no norte do Chile.
No Reality Circus tem 9 crianças no total, entre 6 meses até 14 anos, e
acho que tem uns 20 adultos. Cada pessoa que mora aqui no circo exerce uma
função, por exemplo, eu faço o número do palhaço com instrumentos, junto com
meu filho e meu irmão, vendo arco de anteninhas, minha mãe que não trabalha
mais no picadeiro, mas vende pipoca lá na frente, outro vende fichinha, outro
ajuda nos bastidores, então cada um tem uma função aqui no circo, todo mundo
se ajuda. Em dia de semana a gente trabalha com o espetáculo às 9 da noite,
depois vamos dormir, no outro dia a gente acorda não muito cedo, porque a gente
vai dormir meia-noite, 1h, até terminar de arrumar tudo, então a gente acorda
umas 8h30, 9h da manhã. Daí a gente faz almoço, lava roupa, arruma a casa,
depois a tarde a gente tem livre, levamos as crianças para a escola, vamos fazer
compras, conhecer a cidade, conhecer os pontos turísticos e depois voltamos
para trabalhar. Os espetáculos de 2ªfeira a 6ª feira são apresentados às 9h da
noite e nos finais de semana e feriados são às 5h da tarde e às 9h da noite.
Aqui nós somos uma família, por exemplo: se a gente vê uma criança
fazendo alguma coisa errada, você vai lá e chama a atenção, ‘não faz isso que
está errado’, então tem aquela relação de um cuida do outro, todos se ajudam, é
uma relação bem gostosa, boa, todo mundo se dá bem com todo mundo.
O conhecimento circense, a arte circense, é passada de pai para filho.
Vamos passando para as crianças todas as histórias do circo do pai, do avô, do
tio e assim por diante, como era o circo antigamente, como está hoje em dia,
como ele está evoluindo, o circo tem que evoluir cada vez mais, porque hoje em
dia tem muita internet, TV a cabo, todas essas coisas, então o povo fala: estou
vendo o circo na minha casa, na minha televisão, então para que eu vou no circo
assistir? Então o circo hoje em dia tem que melhorar cada vez mais, falo para as
crianças que temos que melhorar cada vez mais, tem que mostrar coisa nova,
pode até ser o mesmo número que tinha há 15 anos, 20 anos, mas sempre
renovando, fazendo coisa nova, mas sempre preservando a cultura do circo,
levando o circo adiante. Vamos passando para as crianças as coisas que
sabemos de anos atrás, mas que hoje em dia tem que ser modernizado, mas
atual. E o conhecimento, a arte é passada desde pequenos.
Meu pai era músico, o circo antigamente tinha banda, orquestra, hoje em
dia a gente não se vê mais isso no circo, acho muito lindo, meu pai tocava na
orquestra do circo, e ele nunca foi palhaço, ajudava a arrumar o circo, daí quando
ele chegou no Brasil, convidaram ele para ser o palhaço do circo, ele começou a
ser palhaço e colocou o nome de Sonrisal, aí ele juntou a questão da música com
o palhaço e criou esse número que a gente faz, que são os palhaços músicos,
então disso que ele fazia, passou para mim, para o meu irmão, passei para os
meus filhos, então vai indo. O Josemar do globo da morte também, o pai dele
passou para ele que passou para o seu filho e um dia ele vai passar para o filho
dele também, então é isso, a arte circense é passada de geração para geração.
As crianças tem também as horas de lazer, bastante, porque acordam de
manhã e algumas crianças vão para a escola, outras estudam à tarde, então
jogam bola, jogam vôlei, depois à tardinha começam se arrumar para o
espetáculo. Eu sou responsável de levar os papéis na escola e matriculá-los,
cada família ajuda os seus filhos, quando alguém não sabe, pede ajuda para o
outro. São 7 crianças que estão na escola atualmente. Quando chego na escola
e digo que tem 7 crianças no circo que precisam estudar, eles falam, ‘nossa tudo
isso?’. Eu falo, ‘moça não fica preocupada, não, porque antes eram 12 crianças,
agora são só 7 crianças, porque uma família saiu do circo’. O circo contribui
muito, porque ele ensina para as crianças a arte do circo, a cultura, eles estão
aqui dentro e trabalham, estudam, eles não estão na rua pensando em drogas,
violência. Então isso que beneficia muito as crianças do circo, eles não saem
sozinhos na rua, sempre saem com um adulto, aqui no circo nunca teve
problemas de drogas, violência na família, de crianças serem maltratadas, nada
disso. É um mundo nosso aqui. Na escola as crianças ficam pouco tempo, como
ficamos pouco tempo em cada cidade, então não dá tempo para que as crianças
se envolvam com as outras crianças que têm problemas de drogas ou que são
violentas, por exemplo, e isso é bom para nós. A gente sempre conversa com as
crianças, sobre tudo, sobre sexo, doenças, drogas, violência, conversamos
livremente. O circo ajuda bastante.
Uma hora antes a gente começa a se arrumar para o espetáculo. Circo
para mim é minha vida, parece que a gente tem serragem nas veias, não temos
sangue, temos serragem nas veias, circo é tudo para mim, é minha vida isso aqui.
A vida inteira trabalhando no circo, e você (referindo-se à pesquisadora) por
exemplo, você que estudou, tem sua profissão, tem seu diploma. O diploma da
gente é isso aqui, é o circo, então é a vida da gente, o circo para a gente é tudo,
se eu sair do circo eu vou trabalhar de empregada doméstica, varredora de rua,
lógico que é uma profissão, uma profissão honesta, mas o circo é tudo para a
gente, se a gente sair do circo eu não vou ter um diploma para dizer, olha eu sou
um advogado, sou um engenheiro, sou um médico, e aqui a gente pode falar, eu
sou circense, trabalho como palhaço no circo, então esse é o meu diploma, então
isso para nós é tudo, é a nossa vida.
O circo proporciona para a platéia ilusão, alegria, fantasia, o circo
proporciona tudo isso para as pessoas, adultos e crianças, as pessoas vêm aqui e
olham os palhaços, os malabaristas, os trapezistas, e esquece da vida, esquece
dos problemas que você tem, então o circo proporciona tudo isso e espero que
continue proporcionando muito mais, porque falam que o circo está acabando,
mas a gente não quer que acabe. Hoje em dia tem muita internet, TV a cabo,
então isso está acabando um pouco com o circo, do público vir até o circo. E outra
que é culpa do circo, é que ele tem que melhorar cada vez mais, tem que ter
alguma coisa diferente, que chame a atenção das pessoas, boa iluminação, bom
som. Tem que ter muita magia, para a arte do circo não acabar. Enquanto existir
um sorriso de uma criança, o circo será eterno. E Deus queira que seja assim!”
Josemar, além de ser o dono do circo junto com seu irmão Anderson,
também realiza alguns números no picadeiro. Ele apresenta o número do macaco
e do globo da morte junto com seu filho Weverton de 14 anos. Perguntei a ele o
que é circo, e respondeu-me: “Circo para mim é tudo, é a nossa vida, a nossa
profissão, nós nascemos, circo faz parte da nossa vida, é o que a gente sabe
fazer, a gente não sabe fazer outra coisa além de circo, tá no sangue, 4ª geração,
circo é nossa vida, tá na veia, é tudo, é isso. As crianças tem opção de seguir
com o circo, de ser artista circense, tem a chance de estudar também, podem
fazer uma faculdade, a gente tem residência fixa, mas 99% eles ficam no circo,
mesmo que eles estudem, façam faculdade, depois eles retornam para o circo. O
circo dá para o público a emoção do circo, é ao vivo e a cores, enquanto existir
uma criança, o circo não morre, as crianças ficam fascinadas com as cores da
lona, com tudo. Circo é um encanto”.
Nas falas de Cecília e Josemar, ambos declararam que “enquanto existir
uma criança o circo não morre”, um ditado bem entranhado na cultura circense e
que faz a relação entre a criança e o circo. Ficou evidente também que, as
crianças que vivem no circo têm laços muito fortes com seus familiares. Segundo
a fala de uma das mães, “as crianças não saem sozinhas na rua, quando querem
sair para conhecer a cidade, ou ir ao mercado próximo do circo, tem sempre um
adulto junto com elas”. As crianças como também os adultos demonstraram em
suas falas a importância que dão para o circo, o orgulho de ser circense, apesar
das dificuldades que encontram no caminho. O circo para eles é tudo!
2.4. As Brincadeiras das Crianças da Escola e do Circo
“A brincadeira intui a essência da beleza e da
poesia. Possui uma lógica imaginativa, lógicolúdica, que não vem de dentro nem tampouco
de fora: faz-de-conta...”.
16
Marina M. Machado
Sendo a brincadeira atividade essencial na infância, faz-se necessário que
a criança tenha a liberdade e o direito de brincar, visto que deve ser concebida
como sujeitos de direitos. Direito à brincadeira, como maior fonte de
conhecimento, de ampliação e qualidade de movimento, sensibilidade e emoção.
Isso é apontado nas propostas em educação infantil brasileiras que chamam
atenção para a necessidade do reconhecimento da criança como ser social,
produtor de cultura.
Conforme Faria et ali (2002:99), “as brincadeiras são reveladoras de um
espaço de cultura, espaço de totalidade das qualidades e produções humanas,
distinto do mundo natural, que produz e veicula projetos da vida humana”. Por
tanto, a partir deste momento passo a descrever as brincadeiras observadas
nesses dois espaços culturais distintos, a escola “Brincando de Circo” e o Reality
Circus.
No Reality Circus, como foi mencionado anteriormente, consegui observar
apenas uma brincadeira fora do espaço do espetáculo. Era uma tarde de sábado,
meninos e meninas brincavam juntos de vôlei. Tinham amarrado uma corda em
um dos ferros que sustentava a lona do circo e ali a magia da brincadeira reinava.
Como também já foi relatado, não consegui fotografar esse momento, estava com
a máquina em minhas mãos e a vontade de registrar era muito grande, porém eu
não tinha autorização do dono do circo para fotografar naquele dia. O que ficou
combinado entre eu e o Sr. Josemar é que, quando eu chegasse no circo,
primeiramente teria que conversar com ele, para então realizar o meu trabalho ali
16
Machado, Marina Marcondes. A poética do brincar. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
no circo. Confesso que isso dificultou a realização das minhas observações, já
que ele quase não se encontrava no circo, pois saía para anunciar o espetáculo16.
Durante os espetáculos, percebi que as crianças quando estavam se
apresentando, num mínimo espaço de tempo, elas brincavam umas com as
outras por troca de olhares, sorrisos e movimentos, mas faziam isso com uma
certa sutileza, que para quem as observassem teria que estar muito atento para
perceber este fato. Em um dos momentos em que a brincadeira esteve presente
foi quando as crianças maiores dançavam com a criança de 2 anos, Mariana.
Neste instante é perceptível a descontração, os movimentos espontâneos, a
alegria, o sorriso e a interação entre as crianças. Com relação à brincadeira,
Wajskop (1997:28) nos fala que é um “espaço privilegiado de interação infantil e
de constituição do sujeito-criança como sujeito humano, produto e produtor de
história e cultura”.
Já na escola “Brincando de Circo”, foram observadas diversas brincadeiras,
e relato o que vi por meio de fotos e de alguns momentos reveladores do mundo
da brincadeira que registrei no diário de campo.
Diário de campo, 02/04/2003.
Hoje, nas atividades de circo, estavam as professoras Jeovana e
Mariana. Tinha 8 crianças que brincaram entusiasmadas, sempre pediam para
repetir as brincadeiras, e a professora Jeovana disse que iria fazer tudo
novamente na próxima quarta-feira.
A primeira brincadeira foi a cambalhota, preferida por todas as
crianças. A professora colocou os colchões no chão e propôs às crianças que
rolassem tentando fazer a cambalhota. Aquelas que não conseguiam fazer
sozinhas, a professora ajudava.
16
Acredito que as limitações que o dono do circo impôs com relação ao nosso acerto, foi porque
era a primeira vez que alguém estava fazendo um trabalho de pesquisa no circo dele, e eu,
querendo ou não, era uma pessoa “estranha” no cotidiano deles, e isso impossibilitou a realização
das observações de forma mais independente.
Foto 38 – Amanda fazendo a cambalhota
Fonte: Alexsandra de Souza (02/04/03)
Outra brincadeira que foi realizada neste dia e de que as crianças
gostam muito foi subir na corda que estava amarrada no teto, e que as
crianças denominaram “escalar a montanha”. Nesta brincadeira a professora
auxilia todas as crianças, porém, algumas dispensam a sua ajuda, dizendo que
conseguem subir sozinhas, e realmente, algumas conseguiam.
Foto 39 – Maria Luiza subindo na corda
Fonte: Alexsandra de Souza (02/04/03)
A terceira brincadeira foi o equilibrismo, também muito preferida pelas
crianças. A professora colocou uma escada no chão na posição horizontal. Uma
criança de cada vez andava em cima da escada segurando um objeto escolhido
por ela e realizava vários movimentos com ele, tais como: colocar o objeto
acima da cabeça; tentar equilibrá-lo apenas com um dedo, ou com a palma da
mão, pular como um canguru, dentre outros.
Foto 40 – Caroline andando na escada equilibrando um objeto
Fonte: Alexsandra de Souza (02/04/03)
Nesta brincadeira, a professora chamou a Maíra para brincar, só que a
professora em vez de falar Maíra, falou Maísa, e ela e todas as outras
falaram: “não é Maísa, é Maíra” e esta falou para a professora: “repete mil
vezes o meu nome”. E a professora sorriu e começou a falar: “Maíra, Maíra,
Maíra...”.
A última brincadeira foi o malabarismo. Todas as crianças sentadas no
chão em círculo, a professora distribuiu as bolinhas e explicou o que iriam
fazer. Ela foi dirigindo a brincadeira, falando o que tinham que realizar, como:
“joguem a bolinha para o alto e tentem pegá-la; joguem a bolinha de uma mão
para a outra; agora joguem para o alto, batam palmas uma vez e peguem a
bolinha”. Em seguida a professora propôs que cada criança fizesse os
malabares da maneira que quisesse.
Neste momento presenciei uma cena muito interessante de duas
crianças, Amanda e Maíra. Elas pegaram a bolinha, colocaram-na debaixo do
braço e começaram a embalar a bolinha, dizendo: “dorme filhinha, dorme
filhinha”, elas riram muito do que estavam fazendo, foi notória a troca de
cumplicidade entre as duas, e naquele momento o mundo imaginário das duas se
sobrepunha o que a professora estava propondo.
Quanto ao mundo da fantasia, Freire (1992:37) nos fala que: “viajando pela
fantasia, a criança vai longe. Conhece coisas que nós, adultos, já vivemos e
esquecemos, e muitas vezes vai além de quase todos os adultos”. E continua
dizendo que para quem fantasia, como as crianças, os objetos podem ser
revividos e transformados em algum objeto importante em suas brincadeiras. .
Ainda sobre o mundo da fantasia, Freire relata que: “caixas de papelão
transformam-se em casa, pedaços de madeira viram mesas, cadeiras, armários,
tampinhas de garrafa convertem-se em galinhas, pintinhos, chapéus. Não há o
que não ganhe vida, nome e significado na atividade incessante do brinquedo e
trabalho das crianças na primeira infância” (idem).
As brincadeiras observadas nesses dias tiveram esse caráter. Para as
crianças da escola as aulas de circo são também um espaço de “faz-de-conta”: o
“faz de conta” que são artistas de circo, que se apresentam a um respeitável
público, que viajam de um lado para outro conhecendo o mundo e gente nova.
Pude perceber também que as crianças gostam muito de virar cambalhota, subir
na corda, de equilibrar-se ou equilibrar algum objeto e de fazer malabarismos,
pois as crianças pediam incessantemente à professora essas brincadeiras.
Diário de campo, 09/04/2003.
Neste dia só estava a professora Mariana, e percebi que as atividades
foram mais calmas. As crianças brincaram de “quero-ver-quem-pega”;
passaram pelos objetos que estavam colocados como obstáculos; equilibraramse em cima de uma corda; viraram cambalhota no colchão e brincaram de
“pique-congela” (também conhecida como pega-congela) com estátua (as
crianças correm no espaço delimitado pela professora, uma ou mais crianças
têm que pegar os amiguinhos, se alguma criança for pega, ela tem que parar e
fazer uma pose, como estátua, e outra criança tem que passar por debaixo da
perna para “descongelar”, e esta passa a correr com as demais).
Foto 41 – Maíra equilibrando-se em cima da corda
Fonte: Alexsandra de Souza (09/04/03)
Lucas, que não tinha ido na semana passada, estava um pouco isolado do
grupo, brincava mais sozinho. Enquanto as outras crianças brincavam de uma
determinada brincadeira, ele brincava com um bambolê, sozinho, saltando por
dentro do bambolê, depois escondeu-se atrás dos colchões que estavam
encostados na parede. Ele brincou um pouco com o grupo, voltou a isolar-se,
depois saiu do ambiente das brincadeiras e ficou brincando sozinho sentado
num círculo de cimento localizado no pátio.
Foto 42 – Lucas brincando sozinho no pátio
Fonte: Alexsandra de Souza (09/04/03)
Diário de Campo, 14/05/2003.
Neste dia 9 crianças e as duas professoras estavam presentes. Cheguei
na escola uma hora antes do horário das atividades e as crianças já estavam
brincando no local destinado às brincadeiras de circo, e fiquei observando-as.
Estavam brincando de imitar as professoras (representação de papéis). Júlia
estava representando a professora Mariana, e Caroline representava a
professora Jeovana. As duas falavam sobre as brincadeiras para as outras
crianças fazerem, como as professoras faziam. Ainda assumindo o papel de
professora, Júlia sugeriu a brincadeira do “pique-congela” e Caroline (também
“como professora”) não quis esta brincadeira, quis a brincadeira do “querover-quem-pega”. Então Júlia falou que não, e mostrou a língua para Caroline,
que disse: “nossa, que língua grande que você tem e pontuda”, e sorriu, e a
Júlia falou: “ó, eu consigo encostar a língua no meu nariz”, demonstrando e
sorrindo, e Caroline falou: “meu Deus, que grande!”, e todas começaram a rir.
Este fato nos revela e confirma ao mesmo tempo, que as crianças são
autênticas, são verdadeiras, se elas não gostam de algo, elas falam mesmo,
porém, não são rancorosas, não guardam mágoas, brigam na hora, mas depois
está tudo bem, voltam a brincar e a sorrir.
As crianças continuaram brincando e alguns minutos depois as
professoras chegaram. Antes de iniciarem as atividades, as professoras
colocaram uma toalha no chão para que as crianças fizessem um lanche.
Neste dia as crianças tiveram uma brincadeira que elas adoram, brincar
com a perna de pau. A alegria foi contagiante quando as professoras disseram
que iriam pegar as pernas de pau para elas brincarem. Algumas saíram
correndo dizendo que iriam ajudar as professoras a trazerem as pernas de
pau.
Foto 43 – Maria Clara e o contato com as pernas de pau
Fonte: Alexsandra de Souza (14/05/03)
Primeiramente as crianças brincaram livremente com as pernas de pau,
em seguida as professoras propuseram alguns “desafios”, como por exemplo:
andar em cima da perna de pau para frente, para trás, para o lado e depois
falaram para as crianças brincarem da forma que quisessem, cada um no seu
ritmo e no seu jeito. Percebi que as crianças gostam muito dos “desafios”
propostos pelas professoras, porém, gostam mais ainda, quando elas próprias
(as crianças) criam as suas maneiras, os seus modos de interagir na
brincadeira e com os amigos.
Foto 44 – Maíra andando na perna de pau
Fonte: Alexsandra de Souza (14/05/03)
Na seqüência, as crianças brincaram de imitar posições. A professora
falou: “quem sabe imitar a posição da ponte? Como é a ponte?” As crianças
demonstraram. E a professora continuou falando as posições e as crianças
demonstrando. “Agora a posição da montanha, do cisne, da tartaruga, da
mesa”. Nesta hora Maria Luiza falou: “mesa tem cadeira, né?”, ninguém
respondeu nada a ela. Uma outra criança, Lauren, sugeriu a posição da gangorra
e todas as outras crianças também fizeram a gangorra.
Foto 45 – Maria Clara realizando a posição da ponte
Fonte: Alexsandra de Souza (14/05/03)
Enquanto estava acontecendo a brincadeira das posições, o único menino
presente neste dia chegou perto das professoras e perguntou: “por que na aula
de circo não tem menino?” e a professora Mariana respondeu: “convida os teus
amigos para virem fazer a aula de circo conosco”. E o menino respondeu: “então
tá, eu vou convidar um monte de meninos”.
Para terminar a aula, as professoras chamaram todas as crianças e
pediram para que dessem um abraço coletivo e depois falassem em tom alto a
palavra “circo”.
Foto 46 – Crianças se abraçando
Fonte: Alexsandra de Souza (14/05/03)
É importante ressaltar que as crianças, as professoras, os pais e a escola
como um todo, reconhecem as atividades de circo como “aulas de circo”. Ficou
evidente nas falas das crianças da escola, que circo para elas é uma brincadeira,
uma atividade física, ou até mesmo ginástica, como algumas crianças falaram.
Fica também evidente o quanto o significado da palavra circo para as crianças da
escola é bem diferente do significado que tem para as crianças que vivem no
circo, isso se dá pelo contexto sócio-histórico onde as crianças estão incluídas.
Outro ponto importante a ser comentado diz respeito ao sentido artístico
que as crianças atribuem ao circo. Para as crianças da escola, o lado artístico
também está presente. Nos momentos que observei, houve brincadeiras em que
uma criança apresentava um número, o do mágico, por exemplo, e as demais
observavam atentamente. Os aplausos faziam parte da finalização de todas as
brincadeiras. Enquanto uma criança estava tendo a sua experiência no trapézio,
por exemplo, as outras crianças a observavam, ficavam atentas para ver como e
se ela conseguia realizar a atividade. No final do ano houve uma apresentação na
escola, para os pais e demais crianças. Pude perceber que naquele dia as
crianças se sentiram como artistas circenses mesmo, algumas pediam até
aplausos para a platéia (pais, professoras e outras crianças). Foi um momento
muito prazeroso e alegre, tanto para as crianças e professoras quanto para os
pais.
Diário de Campo, 21/05/2003
Hoje, 9 crianças e as duas professoras estavam presentes. Neste dia
também cheguei um pouco mais cedo. Fiquei observando as crianças brincarem
livremente pelo pátio da escola e também no espaço destinado para as
atividades de circo. Algumas crianças brincavam de “pega-pega”, “piquecongela”, outras brincavam com “tazos”, e outras encontravam-se conversando
sentadas no espaço destinado ao “circo”.
Percebi que as crianças, tanto nos intervalos quanto nos momentos das
atividades de circo, brincavam à vontade, com muito prazer e envolvimento, até
mesmo quando as professoras propuseram as brincadeiras. Se elas gostavam,
elas se entregavam totalmente, davam sugestões, faziam comentários positivos
com relação às brincadeiras, mas, se as crianças falavam que não estavam afim
de fazer, elas não faziam mesmo, falavam que não gostavam, ou que tal
brincadeira era “chata”, por exemplo. E as professoras davam a liberdade de
escolha para as crianças, respeitando assim, a individualidade de cada criança, o
seu tempo, suas vontades e necessidades.
A primeira brincadeira realizada foi novidade para todas as crianças: o
prato, que faz parte do equilibrismo dentro das categorias do circo.
Primeiramente as professoras falaram um pouco sobre esse objeto. Falaram
que ele faz parte do circo, mas, poucos são os circos que o utilizam no
espetáculo, porém são utilizados outros objetos no número do equilibrismo,
como: sombrinhas, bastões, etc. Num primeiro momento, o prato foi passado
de mão em mão para que as crianças o sentissem e observassem mais de perto.
Cada criança fazia algo com o prato, umas giraram em torno dos dedos, outras
colocaram na cabeça e outras apenas olharam. As professoras perguntaram a
elas, se sabiam como manusear o prato. Algumas se dispuseram e
demonstraram como achavam que era equilibrar o prato, e o resultado foi
muito legal, várias formas foram criadas pelas próprias crianças. Foi uma
experiência muito interessante. Depois uma das professoras demonstrou o
equilíbrio do prato, e todas as crianças quiseram vivenciar (e vivenciaram) o
equilíbrio do prato na maneira da professora.
Foto 47 – Júlia com o prato na cabeça
Fonte: Alexsandra de Souza (21/05/03)
Foto 48 – Caroline equilibrando o prato
Fonte: Alexsandra de Souza (21/05/03)
Na seqüência as crianças brincaram de pirâmide humana. Primeiramente
a professora Jeovana demonstrou essa brincadeira junto com outra criança.
Foto 49 – Pirâmide humana
Fonte: Alexsandra de Souza (21/05/03)
Nesta brincadeira observei um momento bem interessante. As meninas
Júlia e Maria Luiza fizeram a posição da pirâmide e sua colega Caroline entrou
por debaixo do corpo de Júlia que estava no chão. Achei muito legal porque foi
uma criação delas, as professoras não tinham demonstrado e nem comentado
essa possibilidade.
Foto 50 – Pirâmide humana das crianças
Fonte: Alexsandra de Souza (21/05/03)
Diário de Campo, 04/06/2003
Neste dia as duas professoras estavam presentes e havia 9 crianças na
turma. Por estímulo das professoras, as crianças começaram a brincar
imitando as sensações de frio, calor, os sentimentos de tristeza e de alegria,
fazer que estavam limpando-se e limpando o amigo também. Depois brincaram
de equilibrar-se na corda segurando um objeto escolhido por cada criança.
Foto 51 – Maria Luiza equilibrando-se na corda
Fonte: Alexsandra de Souza (04/06/03)
Percebi que as crianças gostaram muito dessa brincadeira. Realizaram-na
várias vezes, não queriam mudar de brincadeira, talvez por ser desafiadora, pois,
as crianças tinham que equilibrar-se na corda e além disso, tinham também, que
equilibrar o objeto que estava em sua mão.
Outra brincadeira de que as crianças também gostaram muito foi a
seguinte: as professoras, com uma corda na mão, cada uma segurando numa
ponta, corriam atrás das crianças, e estas tinham que fugir, não deixando que
a corda encostasse em seu corpo. Nessa brincadeira, todas as crianças riram
muito, acharam engraçado as professoras correrem atrás delas, tentando
pegá-las com a corda. As professoras realizaram algumas variações nessa
brincadeira, como: passar por debaixo da corda, pular por cima. Em seguida
fizeram brincadeiras no colchão, rolamento, ponte. Em um dos momentos que
presenciei, as crianças estavam de pé em cima do colchão, e uma das crianças
passava por debaixo das pernas das outras. Amanda estava passando por
debaixo das pernas das outras crianças, quando parou e falou, olhando para os
seus amiguinhos: “tomara que não tem nenhum cheiro aí!” e Maria Clara falou:
“não solta pum, heim?” e todas as crianças começaram a rir. Outra brincadeira
que as crianças gostaram foi de passar por debaixo do corpo dos amigos que
estavam um do lado do outro no colchão, formando um túnel.
Foto 52 – Caroline no “túnel”
Fonte: Alexsandra de Souza (04/06/03)
A última brincadeira deste dia foi o pega-pega com corrente. Uma
criança começava pegando; a criança que fosse pega ajudava a outra, e assim
sucessivamente, formando uma corrente. As crianças riram muito nessa
brincadeira, porque a criança que ficava na ponta da direita ia para uma lado e
a criança que ficava na ponta da esquerda ia para o outro, tentando pegar as
outras crianças. A criança que estava no meio não sabia para onde ir e assim a
“corrente arrebentava”, o que era motivo de muitos risos para as crianças.
No final das brincadeiras, a menina Lauren veio em minha direção e
perguntou-me: “por que você vem sempre nas aulas de circo?” Respondi que
estava fazendo um trabalho para depois apresentar na minha “escola” que é
muito grande (referindo-me à UFSC). E ela perguntou-me: “grande assim?”,
demonstrando o tamanho da escola abrindo os braços o máximo que pôde. E eu
falei: “é bem maior que esta escola”. E ela falou: “nossa, é muito grande
mesmo”.
Diário de campo, 11/06/2003
Nesse dia só estava a professora Jeovana e tinha 9 crianças. As
atividades de circo começavam às 18h30 e por volta das 19h, quando descia as
escadas do espaço que as crianças brincavam, pisei por acaso em uma pedra e
logo caí ao chão, sentindo muita dor no tornozelo, que inchou rapidamente.
Fiquei um bom tempo agachada no chão e nisso uma das crianças, Maria Clara,
veio me perguntar: “o que você está fazendo aí no chão?”, então respondi que
tinha caído e machucado o pé. E ela disse: “também já aconteceu isso comigo, e
tive que colocar gesso” e complementou: “não fica triste não, vai passar!”.
Todos os dias que fui observar as crianças das atividades de circo, elas me
surpreenderam. Fizeram-me sorrir em todas as horas e até nos momentos em
que eu não estava bem.
Diário de Campo, 02/07/2003, 09/07/2003 e 30/07/2003
Nestes dias, além de ter utilizado a máquina fotográfica como registro,
também utilizei a filmadora e as crianças adoraram ser filmadas, sorriram
bastante e fizeram muitas poses em frente à câmera.
Primeiramente foi filmado o espaço onde aconteciam as brincadeiras. O
local tem o formato do circo, sua estrutura é de cimento e o centro do chão
(“o picadeiro”) é de madeira, como já falei anteriormente. Neste momento as
crianças estavam brincando de correr, pegar, “virar” estrela. Em um dos
cantos tinha duas crianças que trocavam “tazos” e outras brincavam de rolar
pneus na escada. Para iniciar as brincadeiras, a professora Jeovana convidou
as crianças para brincar, dizendo: “quem faz circo põe o pé na madeira”.
Apenas Caroline foi até o local que a professora falou, as demais
permaneceram em suas brincadeiras. Novamente a professora falou: “quem faz
circo coloca a mão na cabeça, na orelha”, somente Caroline e Laura que estava
sentada no chão na parte de cimento fizeram o que a professora falou. Lucas
chegou perto da professora e perguntou: “com uma mão ou com as duas?” E a
professora respondeu: “com as duas”. As crianças não queriam brincar com a
professora: para elas, as suas brincadeiras estavam mais interessantes e
prazerosas. A professora pediu para que guardassem os “tazos” e que viessem
brincar de circo com ela. Caroline falou para a professora: “paramos com a mão
na orelha”, demonstrando. Ela e a professora se olharam e sorriram. Em
seguida a professora falou para as crianças que a aula hoje iria ser filmada.
Victor apontou para a câmera e falou: “ele está ali”, referindo-se ao Flávio, que
ajudou-me nas filmagens. As crianças pularam de alegria e falaram: “eu vou ser
filmada, eu vou ser filmada”, e olharam para o Flávio que estava filmando.
Acredito que as crianças ficaram alegres e fascinadas por estarem sendo
filmadas, pois se sentiram importantes, valorizadas em suas brincadeiras, assim
como as crianças do circo são vistas pelo público, com muita admiração. Naquele
momento elas estavam brincando não apenas pelo simples prazer de fazer, mas
sim para serem vistas, notadas, assim como num espetáculo de circo.
As professoras sugeriram a brincadeira de passar por debaixo da perna
de alguém que não fazia circo. Algumas crianças falaram: “ichi”, demonstrando
dificuldade em achar alguém, e outras falaram: “uhuuu”, gostando da idéia.
Algumas vieram em minha direção e perguntaram se poderiam passar por baixo
de minhas pernas e eu falei que sim. Maria Luiza ainda não tinha passado, então
Júlia sugeriu que passasse por baixo das pernas do Flávio que estava filmando,
e foi uma cena muito engraçada, pois todas as crianças disseram a ele: “você
não conseguiu filmar”, e todas sorriram, inclusive nós, adultos.
Em seguida a professora Jeovana falou para as crianças que elas iriam
brincar no trapézio. A alegria foi geral, elas falaram: “oba, trapézio!; que legal,
eu gosto de brincar no trapézio!”. As crianças foram correndo para perto do
trapézio. A professora estava arrumando o trapézio e enquanto as crianças
esperavam a sua vez, conversavam sobre o que iriam fazer no trapézio. Júlia
perguntou para Maria Clara: “o que tu vai fazer no trapézio?” Maria Clara
respondeu: “ainda não sei! O que tu vai fazer?”
Júlia disse: “quero subir
sozinha, sem a ajuda das professoras e quero me balançar um monte!”. E Maria
Clara falou: “eu também vou fazer isso!” Lucas que estava sentado no chão
falou para Júlia e Maria Clara: “eu vou ficar de cabeça para baixo!”. As meninas
falaram: “que legal, Lucas, mas é muito difícil”
E Lucas complementou: “é
difícil, mas eu consigo, vocês vão ver!”.
Aqui podemos perceber a importância do desafio motor no interesse da
criança pela brincadeira, ou seja, o desafio em querer superar os limites do seu
próprio corpo, e para a criança é fascinante querer chegar lá, querer descobrir e
experimentar o novo, realizar o difícil. Nos circos vimos muito isso, os circenses
alcançando todo o seu potencial, dando o máximo de si, quando estão no trapézio
ou na corda bamba, por exemplo.
A professora perguntou para as crianças se estava boa a altura que ela
tinha colocado o trapézio. As crianças falaram: “não, põe mais alto, põe mais
alto!”. E a professora ajustou o trapézio conforme a solicitação das crianças. A
brincadeira começou com Caroline, depois Júlia, Victor que tentou ficar em pé
no trapézio e depois de cabeça para baixo, mas as professoras não o deixaram.
Elas disseram que não podia ficar de pé no trapézio e que não era a hora de
fazer aquilo. Então apenas se balançou. Lucas foi o próximo a brincar no
trapézio. Ele tentou segurar-se sozinho no trapézio, mas não conseguiu, teve a
ajuda das professoras e logo que conseguiu subir ficou de cabeça para baixo e
balançou-se devagar, e Amanda perguntou: “Lucas, estás nos olhando de
cabeça para baixo?” e Lucas respondeu: “estou, é bem legal!”, depois ele
sentou-se e balançou-se novamente, realizou vários movimentos, e as
professoras apenas o segurava para que ele não caísse.
Foto 53 – Lucas no trapézio
Fonte: Alexsandra de Souza (09/07/03)
Depois da brincadeira do trapézio, as crianças brincaram com as pernas
de pau. Algumas crianças conseguiram subir sozinhas nas pernas de pau, outras
pediram ajuda para as professoras, outras não estavam conseguindo subir, mas
também não pediram ajuda, tentaram várias vezes, até que as professoras
perguntaram para elas se queriam ajuda e elas responderam que sim. Victor,
que sabia andar com as pernas de pau muito bem, ficava andando e fazendo
vários movimentos na frente da filmadora, aonde o Flávio ia, ele também ia,
queria mostrar a sua habilidade diante da câmera. Enquanto as outras crianças
andavam com as pernas de pau, Lucas colocou as pernas de pau com que estava
brincando no chão, deixou um espaço entre as duas e pulou sobre elas, realizou
esse movimento várias vezes. Depois de um bom tempo, ele pegou-as e
começou a andar.
Foto 54 – Crianças andando com a perna de pau
Foto 55 – Lucas pulando sobre a perna de pau
Fonte: Alexsandra de Souza (09/07/03)
Fonte: Alexsandra de Souza (09/07/03)
Em seguida guardaram as pernas de pau e brincaram de imitar o
movimento um do outro por sugestão das professoras.
Enquanto as crianças brincavam de imitar os movimentos um do outro,
Lucas e Laura estavam observando uma formiga que estava perto deles no
chão. Lucas falou para Laura: “eu acho que ela está procurando a casinha dela”.
E Laura perguntou: “onde é a casinha dela?” A professora Mariana que estava
perto respondeu: “a casinha dela é dentro de um buraquinho aqui no chão”.
Nesse momento, todas as crianças e as professoras encontravam-se
agachadas, observando a formiga que se movimentava no chão. O Lucas falou:
“olha, ela tem a cabeça preta e a cauda dela é vermelha!” As outras crianças
falaram: “é mesmo, que legal!”. Nesse momento a brincadeira de imitar o outro
foi deixada de lado, pois, a formiga era “novidade” para as crianças naquele
momento, e depois de um tempo a professora falou para elas voltarem a
brincar de imitar o outro, porém, Lucas e Laura continuaram observando
atentamente a formiga. Aonde ela ia, os dois iam também, até que a formiga
entrou num dos buracos no chão, e Laura falou: “acho que ela encontrou a
casinha dela!” e Lucas completou: “é, essa é a casinha dela!”
Vale salientar que as professoras davam às crianças a liberdade de
participar das brincadeiras ou não. Algumas situações inesperadas aconteceram
enquanto eu estava observando lá na escola, como o exemplo da formiga, que
naquele momento despertou a atenção de todas as crianças, e as professoras
perceberam que a atração não era mais estar realizando o rolamento no colchão,
mas sim apenas ficar observando a formiga no chão.
Depois os dois voltaram para o grupo que estavam brincando de
rolamento no colchão. Chegou a vez do Lucas, ele fez o rolamento só que
demorou para sair do colchão e então Júlia falou: “anda Lucas, sai logo desse
colchão, parece uma lesma”, Lucas e as outras crianças deram boas
gargalhadas.
Enquanto as crianças e a professora Mariana brincavam de fazer
rolamentos no colchão, a professora Jeovana e o menino Victor estavam
sentados na escada. A professora estava lhe ensinando uma mágica. Ela disse
que depois ele iria apresentá-la para as outras crianças. Nesse momento,
aparecem os dois junto ao grupo. A professora Jeovana, então, pediu que todas
as crianças sentassem no colchão para assistirem à mágica que o Victor iria
fazer. As crianças sentaram no colchão e esperaram ansiosas pelo momento.
Júlia, a pedido da professora, apresentou o “mágico” Victor, dizendo:
“apresentando, o maior mágico do mundo, Victor!”. As crianças e as
professoras sorriram e aplaudiram. Victor começou a fazer a mágica, e em um
momento ele virou-se de costas para as crianças (acredito que algo não estava
dando certo), quando Amanda falou: “isso é mágica, virado de costas?” Virouse de frente para os amigos, sorriu e disse: “não deu, mas vou fazer de novo”.
As crianças ficaram olhando atentamente para Victor, que conseguiu realizar a
mágica. Recebeu muitos aplausos do público (os amigos), e Victor falou: “mais
aplausos, mais aplausos”, e agradeceu.
Nesta atividade foi notória a vivência pelas crianças do ritual simbólico do
circo, do seu roteiro de espetáculo, e não apenas de treinamento de habilidades
físicas. O faz-de-conta esteve presente neste momento e em outros também.
Foto 56 – O “mágico” Victor e a platéia
Fonte: Alexsandra de Souza (02/07/03)
Outra brincadeira proposta pelas professoras foi o malabarismo com
bolinhas. As crianças adoram essa brincadeira. Primeiramente começaram com
uma bolinha apenas, jogavam-na para o alto, depois passaram a bolinha por
debaixo da perna jogando-a para cima e por último realizaram o malabarismo
com duas bolinhas.
Foto 57 – Caroline fazendo malabares e Lauren fazendo pose
Fonte: Alexsandra de Souza (30/07/03)
Nesse momento, Maria Clara veio em minha direção, olhou para o meu
caderno, olhou para mim e perguntou-me: “o que você está escrevendo?” E eu
respondi: “eu estou escrevendo o que vocês estão fazendo e falando”, e Maria
Clara disse: “ah, tá!”.
Depois fomos assistir a uma fita de vídeo da apresentação dos artistas
do Cirque du Soleil. As crianças ficaram fascinadas com as habilidades dos
artistas, e Júlia, quando viu o número do tecido acrobático, logo falou: “o meu
sonho é ser artista de circo, quero fazer igual essa moça do filme”.
Victor
disse que viu esse número no circo do Marcos Frota. Quando passou o número
da pirâmide as crianças falaram: “essa a gente já fez”.
As crianças adoraram o vídeo, fizeram vários comentários a respeito.
Algumas ficaram deslumbradas com a capacidade de execução dos movimentos
dos artistas. O propósito das professoras de estarem mostrando o vídeo foi para
que as crianças conhecessem mais o lado artístico do circo, assim como também
alguns números, apresentados nos circos, que as crianças não vivenciam nas
atividades de circo na escola.
Diário de Campo, 20/08/2003
Cheguei no local, as crianças estavam brincando de pegar e a professora
Mariana estava arrumando os materiais para começar as atividades. Havia 7
crianças neste dia. A professora convidou as crianças para sentarem no círculo
de madeira e falou que elas iriam fazer uma apresentação no final do ano na
escola, e elas adoraram a idéia. E de imediato Amanda falou: ”para a gente se
apresentar, nós temos que ter roupas bonitas, porque eu fui num circo e as
pessoas que se apresentavam tinham roupas com brilho”. Cada criança falou o
que queria fazer na apresentação, algumas falaram que queriam fazer o
malabarismo, Victor disse que queria fazer o mágico. Lucas disse que só vai se
apresentar se tiver uma máscara. E a professora perguntou: “por quê? Você
tem vergonha?” Ele respondeu que sim. E a professora disse que não precisava
ter vergonha porque cada um ia escolher o que quisesse fazer. Ela também
falou que eu (Alexsandra) tinha uma surpresa para mostrar para elas. A
professora me chamou para junto das crianças para que eu falasse sobre a tal
surpresa. Disse a elas que gostaria de mostrar as fotos que tirei delas
brincando de circo e mostrar também as filmagens, elas ficaram muito felizes,
demonstrando o contentamento com palmas e sorrisos. As crianças viram as
fotos e o vídeo, elas gostaram muito de terem se visto na televisão, Maíra
disse: “parece que nós somos artistas de circo de verdade” e as outras
crianças também concordaram.
Acredito que este momento foi muito importante para as crianças, elas
estarem se vendo na televisão, fazendo associações com o dia em que assistiram
o vídeo do Cirque du Soleil, de estarem se imaginando como artistas circenses. O
faz-de-conta, o mundo da fantasia presenciava-se nessa hora. Ao contrário das
crianças do circo, para quem o espetáculo tem uma dimensão bem realista, de
trabalho, de seriedade, ainda que possa ser prazeroso e em alguns momentos
como uma brincadeira.
Diário de Campo, 27/08/2003
Neste dia estavam presentes apenas 6 crianças e somente a professora
Jeovana. A primeira brincadeira proposta foi a do bambolê. Cada criança podia
fazer o que quisesse com o bambolê no espaço delimitado pela professora. As
crianças giraram o bambolê no braço, mudaram para a outra mão, bambolearam
na cintura, na cabeça, colocaram a mão na parede e bambolearam com a perna,
jogaram o bambolê para cima e deixaram caí-lo passando pelo corpo. Laura deu
uma sugestão aos amigos: “vamos bambolear na orelha?” e Maria Clara falou:
“não dá, a minha orelha é muito pequena”. E Amanda completou: “só se a gente
tivesse a orelha do Dumbo”.
Depois teve a brincadeira da argola, as crianças também gostam muito
dessa atividade. Lauren pediu-me para que tirasse uma foto sua na argola, e
falei a ela que o filme tinha terminado. Ela falou: “então escreve o que eu
estou fazendo” e eu respondi: “estou escrevendo”, e sorri a ela que também
retribuiu-me com um sorriso. Quando ela saiu da argola, ela falou aos amigos:
“cadê os aplausos?” As crianças sorriram e a aplaudiram.
Vale salientar que as crianças não realizam as atividades todas ao mesmo
tempo. Primeiro uma criança realiza a atividade e as demais ficam observando,
por isso a questão da platéia, dos exaustivos pedidos dos aplausos.
Foto 58 – Victor na argola e Caroline observando
Fonte: Alexsandra de Souza (27/08/03)
Para finalizar as atividades, como era de praxe, as crianças abraçavamse e gritavam: “VIVA O CIRCO!”
Fotos 59 e 60 – Grito das crianças: “VIVA O CIRCO!”
Fonte: Alexsandra de Souza (27/08/03)
Esse foi o mundo da brincadeira das crianças nas atividades de circo na
escola, apresentado pelas falas e fotos das mesmas. É a magia se cumprindo no
reino da brincadeira, nessa relação imagens-lembranças-memória-fantasia, num
contexto lúdico que recupera e cria momentos verdadeiramente mágicos. As
crianças, por meio das trocas com os seus pares e com
os adultos, vão
interiorizando os valores e as idéias do grupo e incorporando esses elementos em
sua personalidade e por extensão em suas brincadeiras. (Fantin, 2000).
INFÂNCIA, CRIANÇA E BRINCADEIRA
Foto 61 – Crianças brincando
Fonte: Alexsandra de Souza (09/04/03)
_______________________________________________________________
UM BREVE ESTUDO SOBRE INFÂNCIA, CRIANÇA E BRINCADEIRA
“Brincar não é perder tempo, é ganhá-lo. É
triste ter meninos sem escola, mas mais
triste é vê-los enfileirados em salas sem ar,
com exercícios estéreis, sem valor para a
formação humana”.
17
Carlos Drummond de Andrade
3.1. Concepção de Infância e Criança
Para entendermos o caráter histórico da construção do conceito de
infância, reporto-me inicialmente aos estudos iconográficos18 feitos pelo
pesquisador francês Philippe Ariès (1981), em seu clássico trabalho sobre a
história da infância.
Os seus estudos apontam que a produção social do conceito de criança,
tal qual a concebemos hoje, surge simultaneamente ao sentimento de família e
ao desenvolvimento da educação escolar, como resultado da organização das
relações sociais de produção da sociedade industrial. Segundo o autor, até a
Idade Média não havia registros significativos que pudessem ressaltar algum
valor atribuído à infância. Não havia nenhuma forma que identificasse a
criança com características específicas. A imagem que a representava estava
relacionada com a imagem determinada pela Igreja Católica. As crianças,
17
Retirado do site: http://centrorefeducacional.pro.br/jogomais.html.
Estudo iconográfico: elaborado a partir do exame de pinturas, antigos diários de família,
testamentos, igrejas e túmulos. Kramer, Sônia. A política da pré-escola no Brasil: a arte do
disfarce. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982.
18
então, apareciam em forma de “anjos”, com aparência de um rapaz muito
jovem, do Menino Jesus ou de Nossa Senhora menina.
Conforme os estudos desse autor, a concepção de infância começa a
mudar com a transformação da sociedade agrária-mercantil em sociedade
urbano-industrial. Essa transformação paradigmática ocorrida historicamente,
referente ao conceito de criança, está relacionada diretamente às mudanças
ocorridas nas formas de organização da sociedade. O conceito de infância,
nesse caso, é determinado historicamente pela modificação das formas de
organização da sociedade.
Kramer (1982:19) comenta as idéias de Ariès:
A idéia de infância, como se pode concluir, não existiu sempre, e nem
da mesma maneira. Ao contrário, ela aparece com a sociedade
capitalista, urbano-industrial, na medida em que mudam a inserção e o
papel social da criança na comunidade. Se, na sociedade feudal, a
criança exercia um papel produtivo direto (“de adulto”) assim que
ultrapassava o período de alta mortalidade infantil, na sociedade
burguesa ela passa a ser alguém que precisa ser cuidada, escolarizada
e preparada para uma atuação futura.
Portanto, a idéia de infância nem sempre existiu e, a partir do momento
que passou a existir, não tem sido sempre a mesma.
Filósofos e educadores do final da Idade Média e início da Idade
Moderna trazem novas contribuições ao que, naquele momento, se
compreendia
por
infância.
Estes
estudiosos
fundamentaram-se
nas
características da “natureza infantil”, que atribuía à criança aspectos de
dualidade, ou seja, se por um lado a criança era dotada de capacidades inatas,
de potencialidades naturais, de outro era ser incompleto e imaturo: precisaria
ser modelado, ensinado e educado.
Em função disto, a criança deixa de conviver com os adultos e passa a
ser mantida à distância, separada deles, num processo de enclausuramento
denominado escola. Tal fato vai caracterizar fortemente o século XVIII,
evidenciando, desta forma, a existência de um mundo próprio e autônomo da
infância.
Trabalhar a concepção de infância em uma perspectiva histórica
demanda compreendê-la como fruto das relações sociais de produção que
engendram as diversas formas de ver a criança e produzem a consciência da
particularidade infantil. Neste sentido, a concepção de infância varia de acordo
com a cultura onde ela é concebida. Portanto, a concepção de criança parte de
uma noção historicamente construída e consequentemente vem mudando ao
longo dos tempos, não se apresentando de forma homogênea nem mesmo no
interior de uma mesma sociedade e época.
Segundo Sarmento & Pinto (1997:17):
(...) ’ser criança’ varia entre sociedades, culturas e comunidades, pode
variar no interior da fratria de uma mesma família e varia de acordo com a
estratificação social. Do mesmo modo, varia com a duração histórica e
com a definição institucional da infância dominante em cada época.
Sarmento também ressalta a consolidação da Sociologia da Infância,
que identifica as crianças como seres plurais, ricos na diversidade e produtoras
de cultura. Para construir um novo paradigma, para o estudo da infância,
James e Prout (apud Montandon, 2001:51) consideram necessário levar em
conta uma série de proposições, a saber:
-
A infância é uma construção social;
-
A infância é variável e não pode ser inteiramente separada de outras
variáveis como a classe social, o sexo ou o pertencimento étnico;
-
As relações sociais das crianças e suas culturas devem ser
estudadas em si;
-
As crianças são e devem ser estudadas como atores na construção
de sua vida social e da vida daqueles que as rodeiam;
-
Os métodos etnográficos são particularmente úteis para o estudo da
infância;
-
A infância é um fenômeno no qual se encontra a “dupla
hermenêutica” das ciências sociais evidenciada por Giddens, ou seja,
proclamar um novo paradigma no estudo sociológico da infância é se
engajar num processo de “reconstrução” da criança e da sociedade.
As crianças possuem uma natureza singular, que as caracteriza como
seres que sentem e pensam o mundo de um jeito muito próprio. Nas interações
que estabelecem desde cedo com as pessoas que lhe são próximas e com o
meio que as circunda, as crianças revelam seu esforço para compreender o
mundo em que vivem, as relações contraditórias que presenciam e, por meio
das brincadeiras, explicitam as condições de vida a que estão submetidas,
seus anseios e desejos. No processo de construção do conhecimento, as
crianças se utilizam das mais diferentes linguagens e exercem a capacidade
que possuem de terem idéias e hipóteses originais sobre aquilo que buscam
desvendar. Nessa perspectiva, as crianças constróem o conhecimento a partir
das interações que estabelecem com as outras pessoas e com o meio em que
vivem.
Para a criança, conhecer o mundo envolve o afeto, o prazer e o
desprazer, a fantasia, o brincar e o movimento, a poesia, a música e a
linguagem. Para ela, a brincadeira é uma forma de linguagem, assim como a
linguagem é uma forma de brincadeira.
III.2. O Brincar e sua importância
Brincar é uma das atividades fundamentais para o desenvolvimento da
identidade e da autonomia. A criança, desde muito cedo, pode se comunicar
por meio de gestos, sons e, mais tarde, representar determinado papel na
brincadeira, ao mesmo tempo que desenvolve sua imaginação (porque não é
bem causa e conseqüência, mas processos paralelos). Nas brincadeiras as
crianças podem desenvolver algumas capacidades importantes, tais como a
atenção, a imitação, a memória e a imaginação. Amadurecem, também,
algumas capacidades de socialização por meio da interação e da utilização e
experimentação de regras e papéis sociais.
Segundo o Referencial Curricular Nacional Para a Educação Infantil –
RCNEI (1998:28), o brincar envolve várias categorias de experiências:
-
O
movimento
e
as
mudanças
da
percepção
resultantes
essencialmente da mobilidade física das crianças;
-
A relação com os objetos e suas propriedades físicas assim como a
combinação e associação entre eles;
-
A linguagem oral e a gestual, que oferecem vários níveis de
organização a serem utilizados para brincar;
-
Os conteúdos sociais, como papéis, situações, valores e atitudes que
se referem à forma como o universo social se constrói;
-
Os limites definidos pelas regras, constituindo-se em um recurso
fundamental para brincar.
Segundo o RCNEI (1998) estas categorias de experiências podem ser
agrupadas em três modalidades básicas, a saber: brincar de faz-de-conta ou
com papéis, atividade considerada fundamental, da qual se originam todas as
outras; brincar com materiais de construção e brincar com regras. E essas
brincadeiras (faz-de-conta, os jogos de construção e aqueles que possuem
regras, como os jogos de sociedade – também chamados de jogos de tabuleiro
–, jogos tradicionais, didáticos, corporais, etc.), propiciam a ampliação dos
conhecimentos infantis por meio da atividade lúdica.
A diferenciação de papéis se faz presente sobretudo no faz-de-conta,
quando as crianças brincam como se fossem o pai, a mãe, o filho, o médico, o
paciente, heróis e vilões, etc., imitando e recriando personagens observados ou
imaginados nas suas vivências. A fantasia e a imaginação são elementos
fundamentais para que a criança aprenda mais sobre a relação entre as
pessoas, sobre o eu e sobre o outro.
Pela oportunidade de vivenciar brincadeiras imaginativas e criadas por
elas mesmas, as crianças podem acionar seus pensamentos para a resolução
de problemas que lhe são importantes e significativos. Propiciando a
brincadeira, portanto, cria-se um espaço no qual as crianças podem
experimentar o mundo e internalizar uma compreensão particular sobre as
pessoas, os sentimentos e os diversos conhecimentos. (RCNEI, 1998).
Assim, nas brincadeiras, as crianças transformam os conhecimentos que
já possuíam anteriormente em conceitos gerais com os quais brinca. Para
assumir um determinado papel numa brincadeira, por exemplo, a criança deve
conhecer alguma de suas características. Seus conhecimentos provêm da
imitação de alguém ou de algo conhecido, de uma experiência vivida na família
ou em outros ambientes, do relato de um colega ou de um adulto, de cenas
assistidas na televisão, no cinema ou narradas em livros, etc. A fonte de seus
conhecimentos é múltipla, mas estes encontram-se, ainda, fragmentados. É no
ato de brincar que a criança estabelece os diferentes vínculos entre as
características do papel assumido, suas competências e as relações que
possuem com outros papéis, tomando consciência disto e generalizando para
outras situações. (RCNEI, 1998).
Quando a criança brinca, ela se apropria de um mundo, onde pode
intervir de modo a criar e recriar situações de seu cotidiano. Ela manifesta a
sua independência, pois cabe a ela escolher as brincadeiras, os brinquedos e
outros materiais, assim como os pares. Nesta interação com os pares, a
criança se confronta com situações, nas quais o brincar propicia as resoluções
de conflitos, as negociações, submetendo a brincadeira à aprovação ou não.
Portanto, para brincar é preciso que as crianças tenham certa independência
para escolher seus companheiros e os papéis que irão assumir no interior de
um
determinado
tema
e
enredo,
cujos
desenvolvimentos
dependem
unicamente da vontade de quem brinca.
O brincar é uma atividade “voluntária e de livre escolha”, como destaca
Wajskop (1995:119). “Assim, a criança decide como, com quem, com o que e
até quando ela quer brincar”, completa a autora. No faz-de-conta, as crianças
aprendem a agir em função da imagem de uma pessoa, de um personagem, de
um objeto e de situações que não estão imediatamente presentes e
perceptíveis para elas no momento e que evocam emoções, sentimentos e
significados vivenciados em outras circunstâncias. Brincar funciona como um
cenário no qual as crianças tornam-se capazes não só de imitar a vida como
também de transformá-la.
Segundo o RCNEI (1998:22-23):
Ao brincar de faz-de-conta, as crianças buscam imitar, imaginar,
representar e comunicar de uma forma específica que uma coisa pode
ser outra, que uma pessoa pode ser um personagem, que uma criança
pode ser um objeto ou um animal. Portanto, brincar é um espaço no qual
se pode observar a coordenação das experiências prévias das crianças e
aquilo que os objetos manipulados sugerem ou provocam no momento
presente. Pela repetição daquilo que já conhecem, utilizando a ativação
da memória, atualizam seus conhecimentos prévios, ampliando-os e
transformando-os por meio da criação de uma situação imaginária nova.
Brincar constitui-se, dessa forma, em uma atividade interna das crianças,
baseada no desenvolvimento da imaginação e na interpretação da
realidade, sem ser ilusão ou mentira. Elas também tornam-se autoras de
seus papéis, escolhendo, elaborando e colocando em prática suas
fantasias e conhecimentos, sem a intervenção direta do adulto, podendo
pensar e solucionar problemas de forma livre das situações da realidade
imediata.
Quando utilizam a linguagem do faz-de-conta, as crianças enriquecem
sua identidade, pois podem experimentar outras formas de ser e pensar,
ampliando suas concepções sobre as coisas e pessoas ao desempenhar vários
papéis sociais ou personagens. Na brincadeira, vivenciam concretamente a
elaboração e negociação de regras de convivência, assim como a elaboração
de um sistema de representação dos diversos sentimentos, das emoções e das
construções humanas. Isso ocorre porque a motivação da brincadeira é sempre
individual e depende dos recursos emocionais de cada criança, que são
compartilhados em situações de interação social.
O principal indicador da brincadeira, entre as crianças, é o papel que
assumem enquanto brincam. Segundo o RCNEI: (1998:27) “ao adotar outros
papéis na brincadeira, as crianças agem frente à realidade de maneira nãoliteral, transferindo e substituindo suas ações cotidianas pelas ações e
características do papel assumido, utilizando-se de objetos substitutos”.
A brincadeira favorece a auto-estima das crianças, auxiliando-as a
superar progressivamente suas aquisições, de forma criativa. Sendo assim,
brincar contribui para a interiorização de determinados modelos de adulto, no
âmbito de grupos sociais diversos. Essas significações atribuídas ao brincar
transformam-no em um espaço singular de constituição infantil. (RCNEI, 1998).
Wajskop (1997) define a brincadeira como uma atividade infantil a partir
de alguns critérios, a saber:
-
A criança pode assumir outra personalidade, representando papéis,
como se fosse outra criança, adulto, boneco, animal, etc.;
-
A criança realiza ações que representam as interações, os
sentimentos e conhecimentos presentes nas sociedades em que
vive;
-
As regras cognitivas dos temas que orientam a brincadeira devem
ser respeitadas.
Das propostas críticas às mais tradicionais, não há contestações entre
os autores sobre a importância e o valor da brincadeira. Porém, é importante
ressaltar que as brincadeiras numa determinada cultura envolvem costumes e
valores e muitas vezes trazem implícitos conflitos e contradições existentes em
nossa sociedade, como: poder, autoritarismo, discriminações sociais, raciais e
de credo. É de suma importância a intervenção do educador, cabe a ele fazer
esclarecimentos às crianças sobre questões políticas, sociais e culturais.
É portanto o adulto, na figura de educador, que, nas instituições, ajuda a
estruturar o campo das brincadeiras na vida das crianças. Consequentemente
é ele que organiza sua base estrutural, por meio da oferta de determinados
objetos, fantasias, brinquedos ou jogos, da delimitação e arranjo dos espaços e
do tempo para brincar. O educar deve garantir espaços onde o componente
lúdico da cultura infantil se manifeste. Espaços estes, que precisam ser
gerados dialeticamente no processo histórico, e nos quais a criança possa
manifestar sua cultura. Assim, o educador garantirá um processo educativo de
qualidade, voltado para os interesses e necessidades das crianças.
Os adultos (educadores e pais) podem ser brilhantes observadores de
crianças, que se preocupam com o que elas estão fazendo e com o que são
capazes de fazer. Estes adultos são capazes de envolver as crianças em
atividades, brincadeiras e experiências relevantes, que ampliarão suas
capacidades. Da mesma forma, eles são mediadores das trocas entre as
crianças e o mundo, entre as crianças e o outro, apoiando a aprendizagem sem
disciplinarizá-la.
Segundo o RCNEI (1998:28), “por meio das brincadeiras os professores
podem observar e constituir uma visão dos processos de desenvolvimento das
crianças em conjunto e de cada uma em particular, registrando suas
capacidades de uso das linguagens, assim como de suas capacidades sociais
e dos recursos afetivos e emocionais que dispõem”.
A intervenção intencional baseada na observação das brincadeiras das
crianças, oferecendo-lhes material adequado, assim como um espaço
estruturado para brincar, permite o enriquecimento das competências
imaginativas, criativas e organizacionais infantis. Cabe ao educador organizar
situações para que as brincadeiras ocorram de maneira diversificada,
propiciando às crianças a possibilidade de escolherem os temas, papéis,
objetos e seus pares para brincar e assim elaborarem de forma pessoal e
independente suas emoções, sentimentos, conhecimentos e regras sociais.
Portanto, acredito que o educador que consegue se entregar à
brincadeira de maneira a vivenciar a ludicidade junto à criança é que pode
alcançar os objetivos de atender constantemente os interesses e necessidades
delas.
FECHAM-SE AS CORTINAS...
E ENCERRA-SE O ESPETÁCULO
Figura 10 – A despedida do palhaço
Fonte: http://puccamp.aleph.com.br/circo/circo1.htm
_______________________________________________________________
FECHAM-SE AS CORTINAS... E ENCERRA-SE O ESPETÁCULO!
“É sabido que o dizer não é apenas a
expressão do pensamento, mas também
sua realização. Do mesmo modo, o
caminhar não é apenas a expressão do
desejo de alcançar uma meta, mas também
sua realização”.
Walter Benjamin19
Quero inicialmente esclarecer que, não se trata, neste momento, de
concluir o trabalho, pois tenho a certeza de que um estudo nunca se encerra
verdadeiramente, visto que, na condição de inacabamento que segundo Paulo
Freire, faz parte de nossa condição humana, sempre se estará em busca de
novas etapas a serem vencidas ou superadas. O estudo não se encerra aqui,
pois almejo a que ocorram outros avanços, uma vez que a “história é tempo de
possibilidade e não de determinismo”. (Paulo Freire, 1998:21).
Ter encontrado o Reality Circus (assim como o Circo Sena e o Circo
Estrela) mostrou-me que o circo ainda continua vivo na cultura brasileira, ainda
que enfrentando dificuldades. Continua vivo não só enquanto imaginário – a
idéia de circo – que alimenta propostas como as da escola “Brincando de
Circo”, mas também continua vivo como um modo de vida e como uma forma
de arte e cultura nas pequenas cidades e arredores das capitais.
Com relação ao vivido e produzido pelas crianças do circo e pelas
crianças da escola “Brincando de Circo”, inicialmente cito Florestan Fernandes
(1979) que em sua pesquisa pioneira já enfatizava a cultura que as crianças
produzem:
19
Fonte: www.wbenjamin.org/walterbenjamin.html.
a cultura infantil, aquela que se expressa por pensamentos e sentimentos
que chegam até nós, não só verbalmente, mas por meio de imagens e
impressões que emergem do conjunto da dinâmica social, reconhecida nos
espaços das brincadeiras e permeada pela cultura do adulto, não se
constituía somente em obras materiais, mas na capacidade das crianças
de transformar a natureza e, no interior das relações sociais, de
estabelecer múltiplas relações com seus pares, com crianças de outras
idades e com os adultos, criando e inventando novas brincadeiras e novos
significados. (Fernandes, 1979, apud Prado (2002:101).
Um dos resultados que a pesquisa mostrou diz respeito ao importante
papel que as crianças assumem na cultura circense, primeiro como público,
que pudemos ver nas falas dos dois adultos: “enquanto houver um sorriso de
uma criança, o circo sempre viverá”; segundo como participantes importantes
da vida cotidiana no circo. O circo é espaço de socialização das próprias
crianças que vivem ali. Para elas, o “circo é sua escola”, sua vida, sua casa,
sua família, seu trabalho, o qual o encaram com muita seriedade. Porém, ao
mesmo tempo, o circo também é considerado por elas como diversão, prazer,
alegria, emoção, admiração, tensão, brincadeira. Tudo isso, permeado pelo
desafio do aprendizado dos números e dos saberes circenses em geral. Para
as crianças da escola, circo é mais uma possibilidade de brincadeira, de
diversão, de alegria, de aprendizado, de emoção, de tensão, de prazer, de
admiração.
Percebe-se que o conceito de “circo” das crianças que vivem no circo e
das crianças que brincam de circo tem algumas semelhanças como também
diferenças. Uma das diferenças a ser ressaltada é que para as crianças do
circo, o circo é também trabalho, enquanto que para as crianças da escola,
circo é sinônimo de brincadeira, lazer, apesar de ser uma brincadeira
organizada no espaço institucional da escola.
As crianças do circo relataram que enquanto estão se apresentando no
picadeiro estão trabalhando, levam muito a sério, mas em alguns momentos
pude perceber que elas também brincavam umas com as outras, essas
brincadeiras se davam mais com trocas de olhares e sorrisos aos movimentos.
É preciso, portanto, considerar o contexto sócio-histórico em que essas
crianças (do circo e da escola) estão inseridas. As crianças do Reality Circus
moram no próprio circo, portanto, sua realidade é muito diferente da das
crianças da escola “Brincando de Circo”. Porém, a compreensão exata da
relação criança-circo-trabalho-lazer, requereria um novo estudo, uma vez que
esse assunto não era o foco principal da pesquisa. Contudo, fica o indicativo
para uma futura investigação.
Com relação às brincadeiras preferidas pelas crianças, foi constatado
que as crianças do circo gostam de brincar de pega-pega, esconde-esconde,
pular corda, vôlei, jogar bola, brincar com boneca, andar de bicicleta e jogar
vídeo-game, brincadeiras estas nas quais as crianças da escola também
brincam fora do espaço do circo. Já as crianças da escola gostam muito de
brincar no trapézio, na corda e na argola, pelo fato desses equipamentos
serem tão representativos do espetáculo, e, acredito que a alegria, o prazer, a
diversão de estarem brincando nesses aparelhos as remeta para o mundo
imaginário do circo.
De acordo com as respostas apresentadas, vale ressaltar o que Faria
nos fala sobre as brincadeiras: “as brincadeiras são reveladoras de um espaço
de cultura, espaço de totalidade das qualidades e produções humanas, distinto
do mundo natural, que produz e veicula projetos da vida humana” (2002:99).
Assim, as expressões das crianças decorrem da relação com a cultura que as
cerca.
E para finalizar, compartilho com vocês, a fala do circense Weverton
Dantas de 14 anos, que expressa o seu sentimento, sua cultura em relação ao
circo:
“O circo é tudo o que você imaginar, ele pode dar a vida, a alegria, tudo.
O circo é minha casa. Na minha opinião o circo demonstra para o público o que
as pessoas podem fazer com muito treino, pode fazer diferente, uns não
conseguem fazer, mas de outra maneira conseguem, daí a gente treina
bastante e pode fazer, tem dificuldade, mas com o tempo aprende treinando.
Circo para mim é minha casa, meu lugar de trabalho, onde vive a minha
família, circo para mim é tudo”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Figura 11 – O “bobo da corte”
Fonte: http://puccamp.aleph.com.br/circo/circo1.htm
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é participar da
aventura de conhecer o mundo
através de diversos caminhos
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“De tudo, ficaram três
coisas:
A certeza de que estamos
sempre começando...
A certeza de que
precisamos continuar...
A certeza de que seremos
interrompidos antes de
terminar...
Portanto, devemos:
Fazer da interrupção, um
caminho novo...
Da queda, um passo de
dança...
Foto 62: Maria Luiza equilibrando-se no tronco da
árvore
Fonte: Alexsandra de Souza (28/05/03)
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte...
Da procura, um encontro...”
(Fernando Sabino)
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vamos brincar de circo? - Repositório Institucional da UFSC