VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. A imagem do palhaço como emissora de pulsões invocantes e escópicas:1 Faces desejantes de um signo Guilherme Henrique de Oliveira Cestari2 Resumo Este trabalho utiliza os conceitos de máscara, transe, duplo-vínculo e pulsões invocante, escópica e de morte para mapear usos e percursos da imagem de um palhaço em dois espetáculos de entretenimento que têm como bases comuns ilusão e imersão principalmente por meio da profusão de estímulos luminosos e sonoros. Os shows analisados são vinculados à dupla de DJs The Chemical Brothers. O palhaço, que aparece apenas como imagem projetada nas telas da primeira festa, comparece pessoalmente no segundo evento; o personagem grotesco traz à tona comportamentos hedonistas e vocaliza autoritariamente desejos profanos. Neste sentido, uma apresentação videográfica pode constituir um elogio dinâmico e eletrônico ao delírio e, simultaneamente, uma matriz generativa de condutas e hábitos urbanos. Palavras-chave duplo-vínculo; pulsão invocante; pulsão escópica; pulsão de morte; palhaço. O corpus deste trabalho consiste nas manifestações de um personagem que se mostra, primeiramente, nas projeções em um show de música eletrônica e, posteriormente, protagoniza presencialmente uma festa. Têm-se duas apresentações videográficas cujo aspecto comum, a aparição, ora virtual ora em carne e osso, do personagem, é estudado. Ambos os eventos compõem a obra da dupla de Disc Jockeys britânica The Chemical Brothers. Descrição e análise se concentram na figura de um palhaço, cuja imagem aparece no show dos DJs e que, segundamente, foi tema principal de uma edição do Adidas Underground Experience, festa e ação de marketing promovida pela multinacional de equipamentos esportivos e que aconteceu em Londres em agosto de 2012. Os eventos foram registrados, respectivamente, na 1 Trabalho apresentado no GT 1 - Arte, Imagens, Estéticas e Tecnologias da Comunicação do VI Congresso de Estudantes de Pós-Graduação em Comunicação, na categoria pós-graduação. UERJ, Rio de Janeiro, outubro de 2013. 2 Graduado em Design Gráfico pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), mestrando em Comunicação pela mesma instituição. Bolsista Capes. www.conecorio.org 1 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. forma de vídeo-documentário musical3 e de fotografias4 divulgadas pelo Facebook e na mídia especializada. Nas imagens disponíveis no DVD, referentes a um show do The Chemical Brothers acontecido em Tóquio no fim de 2010, o palhaço aparece como imagem projetada no écran; já no evento patrocinado pela Adidas, grande parte dos participantes é maquiada conforme o palhaço e um dos atores que interpreta o personagem nas telas conduz o espetáculo in loco, pessoalmente. Sabendo que os registros configuram recortes intencionais da realidade, não se empreendem, neste artigo, análises do vídeo-documentário-musical ou das fotos, mas sim dos fenômenos empíricos aos quais tais documentos permitem, ainda que restrito, o acesso; são analisadas as festas e as imagens ali articuladas, as fotos e vídeos permitem o contato indireto do pesquisador com o acontecido. Na música eletrônica, o nome The Chemical Brothers adquiriu projeção internacional; a dupla não trabalha desamparada e tampouco age somente em função de intenções expressivas e artísticas; junto a sua equipe de suporte e desenvolvimento, consideram-se interesses mercadológicos e pecuniários. Espetáculos e peças audiovisuais de entretenimento assinados pelo DJs pretendem compor uma marca cujo discurso concentra-se na imersão da audiência em realidades extáticas. Ao patrocinar um evento temático, a Adidas apropria-se do aspecto ritual e mágico do palhaço para satisfazer seus próprios interesses comerciais. O ambiente de entretenimento deixa-se transpassar por outros campos da atividade social. O tratamento marcante dado ao palhaço inaugura, no público, conotações corporais não convencionais embasadas na performance e na tecnologia; da hibridização emergem interferências identitárias. O fazer-se do signo e da poesia A experiência é elementar à conformação do signo. Para Coelho Netto (2010, p.67), nem tudo é signo, mas, quando experienciável e posto em relação com a mente, 3 Disponível no DVD Don’t think, 2012. 4 Disponível em: <facebook.com/ChemicalBros/photos_stream?ref=ts>. Acesso em: 18 jan. 2013. www.conecorio.org 2 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. qualquer coisa pode produzir signos. A realidade não constitui, em si, signo, mas é ponto de partida para a significação; contém, em si, potencialidades para a construção de imagens. É por meio da imagem (fragmento ficcional, fenômeno discursivo) que o signo (processo contíguo que é partícula desencadeadora do pensamento e da compreensão) se manifesta. O fenômeno que incorre no signo pode ser interpretado como fruto de decisões diante de uma demanda empírica, um percurso traçado entre variáveis. Supõe-se a imagem como matriz que sintetiza, condensa, dispõe, compara e organiza signos. Minuciar operações que dizem respeito aos usos não convencionais da linguagem pode respaldar a criação de novos e enriquecedores modelos de articulação simbólica. A poesia é lugar de seleção e combinação estranhas, de diferenciação, de pronunciação inusitada. O impulso poético de um vídeo mantém-se análogo a sua capacidade de reorientar leituras, de conduzir para surpreender. Condutas que escapam à intenção, à voluntariedade e à consciência: atos-falhos, sonhos, lapsos, tropeços, espasmos e alucinações, operam na condição de poéticas. O propósito escapa, o inconsciente atua, emerge desejante, manifesta-se ambíguo, constrangedor, grotesco. Num momento de desconcentração, da literalidade despontam apropriações não usuais, rebeldes; a predisposição criativa faz com que do aparentemente exato emanem figurações e ambivalências. À lógica linear, denotativa, impregnam-se significados alternativos originando analógicas oblíquas, enigmáticas e deslizantes: conotações (observar CHALHUB, 2002, p.41-47). Durante uma apresentação videográfica escolhem-se diferentes conteúdos que são organizados, com ajuda da tecnologia e de figuras de linguagem, de acordo com a coerência de um fluxo de edição. Acerca dos recursos linguísticos: a metáfora é processo de associação por similaridade, opera por substituição utilizando a semelhança como critério. A metonímia pauta-se pela convenção, por uma ordem aparentemente unilateral e uníssona, toma a parte pelo todo (CHALHUB, 2002, p.58). A anáfora diz respeito à repetição de palavras ou vocativos no princípio de versos consecutivos, envolve e convence porque opera de forma rítmica e insistente; regularidade e previsibilidade instigam o leitor a acompanha-la. A sonoridade em The www.conecorio.org 3 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. Chemical Brothers é particularmente anafórica, exaustiva. Os papeis atribuídos à linguagem influem na percepção da realidade, e vice versa. Durante a leitura, o objeto referenciado torna-se presente, o tempo verbal é tempo de ação, iniciativa, atitude, conduta. A constituição poética possui caráter eminentemente polifônico, memorialista (PANICHI e CONTANI, 2003, p.131) e mesmo esquizofrênico. Na apresentação audiovisual, o uso estratégico de figuras de linguagem potencializa a influência de algumas imagens na mente e na conduta dos intérpretes. O vínculo contraditório O uso da bricolagem como recurso criativo inicia movimentos entrópicos, origina poluições. A transitoriedade descentraliza. Experimentação audiovisual e projeção videográfica podem ser classificadas como componentes de uma cultura emergente (observar CANEVACCI, 1990, p.9). A performance videográfica tem a capacidade de suscitar, no espectador, um comportamento semelhante ao do esquizofrênico, ao passo que este se coloca e desloca diante da realidade ficcional proposta pela tele imagem vertiginosa e continuamente atualizada. Quando um indivíduo vê-se num impasse entre ordens ambivalentes emitidas por um interlocutor, encontra-se num estado eminentemente incômodo, de indeterminação. A ligação contraditória com o emissor, chamada duplo vínculo (observar CANEVACCI, 1990, p.24, 33), é fruto da corrupção de hábitos mentais, da subversão contínua de expectativas. Como o esquizofrênico, o observador tende à indistinção entre interior e exterior, eu e outro, realidade e ficção; acontece uma confusão entre verdade e discurso, uma perversão dos sentidos por causa do apelo metonímico da linguagem. Cerimônias de caráter ritualístico orientam-se pelo mesmo tipo de princípio, em que fenômenos psicológicos e linguísticos adquirem, por meio de alucinações, transes e/ou estímulos repetitivos e desnorteantes, estatuto de experiência sobrenatural e mágica. A alucinação insistente –anafórica- é capaz de incutir personagens, símbolos, valores, crenças, histórias e mitos no fluxo de consciência do indivíduo imerso www.conecorio.org 4 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. temporariamente na experiência, que, além de luminosa e audiovisual, emula condições sinestésicas5 e psicóticas6. Em seu movimento, o signo luminoso escapa da tela e impregna corpos e paredes, adorna, decompõe, coloniza e confunde a urbe num exercício onírico, de escrita poética eminente e efêmera; criam-se e dirigem-se, com luz, novas correspondências, identidades anabolizadas. A conotação incita o desejo, instaura, no âmago da audiência metropolitana, perturbações, tensões multipolares, estabelecedoras e catalisadoras de duplos-vínculos; hedonisticamente introduz o indivíduo à possibilidade de satisfação; faz, da ilusão, lembrança, traz falsas memórias do gozo ideal a corpos e mentes que, violados e convulsivos, contorcem-se. Pulsões e tensões panoramáticas Para refletir acerca da fruição por meio de estímulos sensoriais, adotam-se pressupostos empíricos; entende-se que contatos entre consciência e invocação imperativo subversivo presente na voz do outro- ocorrem por meio da experiência. Conforme Vives (2009, p.330), manifestações de súplica (pedido, apelo) revelam necessidades, ambições, vontades; são exteriorizações que partem de oposições internas. A pulsão vociferante, força coerciva canalizada pela fala de outro, proporciona um encontro entre ego e dimensões inquietantes do discurso externo; em momentos de pulsão, a voz do outro adquire potências que emudecem o eu, tal manifestação mostra-se, normalmente, agressiva, esquiva, insistente e hiperbólica. O chamamento cativante vocaliza impulsos concernentes ao ouvinte, demandas animalescas, hedonistas; a voz exótica e irreconhecível do outro ordena o gozo, toma forma de um desejo interior até então latente no receptor, é invocação instintiva, 5 União, mistura, junção ou confusão de diferentes sensações. Condição neurológica em que dois ou mais planos sensoriais não se distinguem. Figura de linguagem que sugira ou designe a união de dois ou mais planos sensoriais. 6 A psicose é um termo psiquiátrico genérico que se refere a um estado mental em que há perda de contato com a realidade. Falta de crítica, desorganização do pensamento e delírio caracterizam a experiência psicótica (observar VIVES, 2009, p.339). www.conecorio.org 5 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. mortífera, amoral, ilusória e imediata, avessa à demora, à crítica e à negociação racionais. O locutor, superego corrompido, feroz e obsceno, utiliza-se de seu gigantismo persuasivo para apresentar tentações ao recebedor; o prazer ilimitado é corrupto, é miragem tensionante; para o receptor, a ideia de morte passa a ser alternativa para um suposto alívio. A locução comovente e sedutora promete a anulação do sujeito por meio da satisfação; adesão e acomodação ao ímpeto insistente requerem renúncias por parte do leitor, que pode ser levado a render sua subjetividade a temporalidades míticas, arcaicas e rituais. O ego, acuado pela pressão vocal superegoica, é impulsionado a abrir mão de parte de sua constituição identitária e mnésica. “A linguagem perfura o corpo, marca o vivo e implica a apropriação do sujeito pela linguagem e não o contrário.” (VIVES, 2009, p. 336). A fala de outrem se utiliza de recursos tecnológicos e linguísticos para gerar incômodo e, para ser suportada em sua estridência, exige iniciativa –esforço, movimento- dos corpos e mentes que com ela se relacionam. A voz retumbante, ecoante, suscita pulsões escópicas, provoca o olhar em direção à vertigem. Na apresentação audiovisual, o ponto de vista individual é incapaz de abarcar a tela em sua totalidade, as fronteiras do écran diluem-se nos limites do olhar, mudanças no vídeo determinam os movimentos oculares. O espectador não pode ver tudo de uma vez, utiliza seus gestos corporais para explorar mutações simultâneas que se fazem horizonte, que não cabem no campo de visão; a vontade de visão total é ilusão total, figura envolvente que incita o leitor a esquecer-se da materialidade da superfície telemática. A imagem-paisagem compõe-se de formas distorcidas, deforma referentes, planos e pontos-de-fuga em detrimento da captura da atenção; o panorama delega novas posições aos objetos, multiplica as perspectivas (DUBOIS, 2005, p.218). Numa cúpula audiovisual, ambiente fechado e, em sua escuridão, colorido, brilhante e iluminado, a disposição perspectivada das telas faz com que o vídeo conquiste o estatuto de firmamento, ficção fundante do ato de olhar. A imagem do palhaço que aparece ao público nas projeções em Don’t think restringe-se a uma cabeça flutuante que emerge da escuridão (observar Figuras 2 e 3). Iluminação e enquadramento não fazem ver vestígios de corpo ou membros. Graças à superexposição videográfica do www.conecorio.org 6 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. rosto, à enormidade do símbolo facial, a percepção conflui em direção à vertigem e à hipnose. A exibição panorâmica das rugas intervém em favor da desumanização, da objetificação e da reprodutibilidade da face mascarada (CANEVACCI, 1990, p.59). A máscara (fantasia, mimese, imitação, mimicry) é recurso lúdico que permite a portabilidade identitária; a fisionomia artificial, facilmente incorporável, serve de disfarce e dá margem a atitudes não convencionais, inclusive ao desvario. A máscara pretende ser ego cambiante e identidade indestrutível. O transe (espasmo, estado de vertigem, síncope, convulsão, subversão e desordem da percepção sensorial, ilynx) mostra-se alcançável, dentre outros, na ingestão de substâncias alucinógenas e/ou por meio do olhar fixo em luzes estroboscópicas; desvia-se da normalidade neurológica, o sistema nervoso é submetido a condições de estresse. A experiência transcendental frequentemente é relacionada a capacidades sobrenaturais de comunicação, à busca pelo gozo e a íntimas imersões impulsivas, oníricas e fugazes na inconsciência (CAILLOIS, 1990, p.107). Abre-se mão da racionalidade cartesiana num elogio temporário à demência. No inconsciente o signo ainda não atingiu sua completude, é bastante instável, incompleto, indeterminado; há apenas uma espécie de “sopa” de conceitos, uma reunião não delimitada de querências desorganizadas. A mobilização que transforma potências desejantes em signo é protagonizada, na ocasião da pulsão, pelo superego, que, na forma de outro, elege conceitos e desejos advindos do id e, se utilizando de tecnologia e de figuras de linguagem, lhes atribui referenciais familiares. Linguagem e técnica são modelos (ferramentas) de planejamento e disposição conceitual que, utilizados pelo emissor da pulsão, tornam específicas, pontuais e experienciáveis as ambições oriundas do inconsciente. O desejo emerso da inconsciência torna-se signo por meio da intervenção superegoica e, simultaneamente, detalha-se e esculpe-se em estímulo sensorial por meio do emprego de recursos linguísticos e tecnológicos (observar Figura 1). www.conecorio.org 7 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. Figura 1: Dinâmicas e relações entre pulsão, signo e mente. Fonte: Elaborado pelo autor. O esquema propõe traduções em instância universal; para análises pontuais, convêm considerar especificidades que permeiam evocação, recepção e memoração durante a encenação imagética. A partir das ideias gerais apresentadas pelo gráfico, podem derivar-se especificações, relativizações, subversões, reapropriações e releituras orgânicas. Em sua flexibilidade, o modelo, de caráter eminentemente descritivo e generalista, pode se adaptar a variantes contextuais; hão de se mapear e compreender distinções, especialidades, repertórios, variâncias e pluralidades www.conecorio.org 8 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. identitárias, bem como vivências culturais e tecnológicas inerentes, individualmente, a cada participante. As relações que cada leitor estabelece entre ficção, tecnologia e experiência são particulares e subjetivas; em exposição inicialmente não específica, o diagrama, ao oferecer critérios e direções para descrições e análises menos abrangentes, serve de ponto de partida para estudos de processos codificadores das linguagens e de mecanismos expressivos da interferência pulsante. Considerando a vibração ondulante do signo panorâmico tecnológico metropolitano, as pulsões invocante e escópica dizem respeito a um tipo de variação da frequência sígnica; as pulsões se referem a uma intensidade especial, particularmente elevada, da força transformadora e persuasiva do signo, constituem uma especificidade, ocorrem sob condições determinadas. As pulsões canalizam potencialidades do inconsciente em detrimento de um imperativo animalesco, são um modo de organizar os movimentos conceituais até então caóticos e diluídos, flutuantes no id. As pulsões invocante –sonora, vocal- e escópica –ocular- são, além de pontos de partida para o estabelecimento da relação de duplo-vínculo, estopins para ritualização e alucinação. Tecnologia e funções de linguagem contribuem para o agigantamento panorâmico do superego; são meios, não fins, para a alteração do comportamento e das faculdades mentais. Tal qual o impulso suicida, a máscara é alternativa para lidar com desconforto e insustentabilidade inerentes ao duplo vínculo e à pulsão de morte. O disfarce mostra-se, literalmente, uma tentativa ilusória de resgate identitário e mnésico. Máscara e transe tornam-se, simultânea e ambivalentemente, esconderijos e tentativas de recuperação da subjetividade. Mimicry e ilynx possibilitam, ainda, uma espécie de ressureição do sujeito, que, reencarnado, quando emerge da vertigem, ao término da apresentação, retorna órfão do prazer ilimitado, recobra sua consciência e redescobre cotidiano e racionalidade. Palhaço, signo produtor de signos Em sua primeira manifestação, no início espetáculo (faixa 1) documentado no DVD Don’t think, o palhaço reitera com expressão irônica, em sintonia com a música, www.conecorio.org 9 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. a ordem “Just get yourself high7” (Figura 2). O personagem de trejeitos faciais incisivos parece olhar fixamente para o público, exprimindo o imperativo com convicção e malícia. Os aparecimentos são fantasmagóricos e fugazes, a imagem pisca, desvia de possíveis olhares analíticos; o palhaço sem nome não se demora na vocalização do ditame, desaparece rapidamente para emergir em outro ponto da tela depois alguns segundos de escuridão. A luz branca que emana da imagem é a única a iluminar a audiência. O locutor autoritário exprime um desejo íntimo do ouvinte, a pulsão inquietante estimula a busca pelo prazer, traz à tona a possibilidade e o desejo de fruição e satisfação plenas. Entre a primeira e a segunda aparição o show prossegue com projeções variadas sem nenhuma relação direta com o palhaço. Figura 2: Mosaico com frames-chave da aparição do palhaço nas projeções relacionadas à música Just get yourself high. Fonte: Adaptado de Don’t think (2012). Ainda em Don’t think, na transição entre as músicas Superflash e Leave home (faixas 9 e 10), próximo ao fim da apresentação, acontece outra manifestação, também de caráter pulsante, do palhaço, desta vez em duas etapas (Figura 3). No primeiro estágio, um coral infantil clownesco entoa “You’re all my children...”; à medida que suas vozes adquirem frequência mais aguda, outros rostos pueris despontam na tela, como em uma constelação; os palhacinhos não encaram diretamente o espectador, têm seu olhar disperso, não fixo. A transição para o segundo momento se dá de forma abrupta, um grande palhaço adulto toma o lugar dos meninos e completa a frase com voz gutural e robótica: “You’re all my children 7 Em tradução livre, “Apenas fique alto”; incentivo explícito ao transe e à vertigem, a frase reforçada exaustiva e ritmicamente autoriza e convida para o gozo. www.conecorio.org 10 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. now8”. A enunciação do fim da apresentação é complementar à do começo; ao cumprirem a ordenação dada no início do show, “ficando altos”, entregando-se ao transe, os participantes veem-se compulsória e ambivalentemente filiados a uma entidade grotesca, sedutora, profana, mascarada e demoníaca. Nos leitores, este uso da pulsão instaura um novo desconforto, que, desta vez, se refere ao estabelecimento irrevogável de um vínculo. Após três músicas, sem nenhuma outra aparição clownesca, o show disponibilizado no DVD se encerra. Figura 3: Mosaico com frames-chave da aparição do palhaço na transição entre as canções Superflash e Leave home. Fonte: Adaptado de Don’t think (2012). A participação crescente da visualidade nos espetáculos de música eletrônica inaugurou, na língua inglesa, uma maneira de se referir ao ato da apresentação. Com tratamento semelhante ao empregado para a exibição de obras cinematográficas, alguns anúncios de festas e shows não mais utilizam o termo “playing at”, mas sim a expressão “screening at”, denotando a importância da tela (screen) para experiência 8 “Vocês são todos meus filhos agora”, em tradução livre. www.conecorio.org 11 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. proposta pela performance. Em descrições acessáveis pela internet, a Adidas Underground Experience, num texto anterior à realização da festa, se apresenta como (tradução e grifos do autor): Uma experiência imersiva e psicodélica trazida para você pelos produtores do filme (e do show ao vivo do The Chemical Brothers). [...] Apenas por uma noite. O [conteúdo disponibilizado no] filme será incrementado com momentos adicionais em que os efeitos visuais literalmente ganham vida; em que você se encharca de luzes coloridas em movimento (programadas especialmente para o filme e para a música); onde os recursos visuais do show ao vivo te surpreendem E te engolem; onde todos, sem exceção, usam a mesma maquiagem de palhaço. (Disponível em <facebook.com/events/247123242072356/?ref=22>. Acesso em 18 jan. 2013). As tecnologias empregadas na busca pela ilusão catártica declaradamente convertem-se em atrativos, em chamarizes para o acontecimento festivo. Promessas geram expectativa. O participante almeja imergir na experiência “underground” – alternativa, fora dos padrões – patrocinada pela Adidas. O panorama pretende fagocitar um público ansioso pela surpresa, para, ao final do espetáculo, regurgitá-lo, forçando-o a reencontrar a convencional materialidade do cotidiano. Autonomia e monumentalidade dos efeitos visuais recebem destaque em texto divulgado após a festa, no qual se lê (tradução e grifos do autor): [...] o espaço #adidasunderground foi transformado para receber um dos, indiscutivelmente, mais energéticos e esperados eventos dos últimos tempos. O espaço foi palco de uma experiência incrivelmente imersiva, a exibição de DON’T THINK, filme do The Chemical Brothers. [...] O diretor do filme, Adam Smith, conseguiu registrar a experiência ridiculamente alucinante tão característica do show do The Chemical Brothers. Para o #adidasunderground, o desafio foi acrescentar algo ao filme, que mostra um intenso bombardeio de luz, som e música, sem diminuir ou depreciar a experiência inicialmente proposta. [...] Num lugar transformado, entre amplas telas HD, o filme foi exibido com um sistema de som que te faz esquecer de que não está realmente testemunhando os eventos ao vivo, um conjunto de lasers e luzes, ainda, mimetizou tempo e sequência do show ao vivo. Com mais de 50 maquiadores, a equipe do #adidasunderground foi além ao requerer que todos os participantes pintassem seus rostos como palhaços para imitar as imagens do filme. Além disso, o evento [...] concedeu a cada participante um agasalho Adidas. O resultado foi um baile de máscaras psicodélico e orquestrado que deixou os participantes reconhecíveis www.conecorio.org 12 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. apenas pelo sapato, que serviu como pequena referência para a diferenciação. (Disponível em: <hypebeast.com/2012/8/adidasunderground-the-chemicalbrothers-dont-think-live-film-experience-day-4>. Acesso em: 18 jan. 2013). A imagem do DVD serviu como referencial - ponto de partida - para a realização festa; não aconteceu uma mera recriação, mas uma releitura empírica, coletiva e presencial do vídeo. O evento orbita e propõe a constituição de um panorama telemático para que os referentes virtuais da imagem fílmica possam, ilusoriamente, presentificar-se e atualizar-se. A exibição simulatória propõe um lapso espaço-temporal, pretende convencer o público de que sua consciência transportou-se para um nível empírico oblíquo mais ou menos definido pela montagem intencional e ficcional do filme. Para análises e comentários acerca deste fenômeno, de 138 fotografias publicadas na internet, selecionaram-se seis (Figuras 4 e 5). As pulsões emitidas pela imagem do palhaço são capazes de produzir um desconforto latente, disfarçado; a audiência suporta, vê-se submetida, até certo ponto, a uma relação instável, de dependência e repugnância, característica do duplo-vínculo. Em Adidas Underground Experience, a aplicação de maquiagens-máscara nos participantes, ambivalentemente, confirma a filiação do público à busca incessante pelo prazer e, ao mesmo tempo, alivia a tensão instaurada na coletividade pelas pulsões invocante e escópica. O palhaço é mensageiro da desordem, portador da contravenção, da corrupção e da entropia; sua imagem, oportunista e chamativa, se destaca diante do ordinário. O personagem, agora anfitrião personificado, recebe seus “filhos” devidamente caracterizados e os encaminha a uma condição provisória de descompasso com a percepção sensorial cotidiana. www.conecorio.org 13 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. Figura 4: Palhaço apresentando-se presencialmente na edição de Adidas Underground Experience. Fonte: Montagem elaborada pelo autor utilizando fotografias disponíveis em: <facebook.com/ChemicalBros/photos_stream?ref=ts>. Acesso em 18 jan. 2013. Figura 5: Por meio da maquiagem e da máscara, participantes da Adidas Underground Experience filiam-se ao palhaço, figura central do evento. Fonte: Montagem elaborada pelo autor utilizando fotografias disponíveis em: <facebook.com/ChemicalBros/photos_stream?ref=ts>. Acesso em 18 jan. 2013. A atuação grotesca do palhaço é matriz que produz imperativos; tais desdobramentos não são apenas de natureza mimética, possuem também caráter combinatório, generativo e inovador. A criação de um personagem como este resulta de articulações sintáticas, manejos formais, a partir da seleção e combinação de elementos advindos de coleções desejantes de aspecto amplo e desencontrado. A www.conecorio.org 14 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. manifestação ficcional revela sobreposições, entrecruzamentos; no momento de transe, intencionalidades imbricam-se e transitam hibridamente. O personagem existe na e para a emergência do gozo. Tanto no show documentado no DVD quanto no evento patrocinado pela Adidas, o palhaço, produtor grotesco de trejeitos e inconveniências, por meio do imperativo pulsante, conduz um espetáculo tecnológico cujo público submete-se sensorial e emocionalmente a imagens panorâmicas e vibrantes; por vezes, a hiperestimulação subverte o caráter figurativo da imagem, o impulso autoritário e fugaz torna a interferência eminentemente abstrata. Fenômenos como o descrito respaldam reflexões e provocações acerca do ímpeto modificador do signo, sobretudo, em manifestações metropolitanas e tecnológicas. Buscar compreender as funções sociais exercidas por máscara e transe no contexto do entretenimento não consiste em simplesmente vincular o uso de tais recursos lúdicos a uma prática social rígida e constante; o mapeamento, sempre incompleto, de percursos emocionais e desejantes – portanto, espontâneos e que podem, a qualquer momento, fugir ao planejamento – permite a reflexão crítica sobre a atual condição da retórica intrínseca à interferência imagética; o estabelecimento de vínculos inusitados pode confluir para a criação de particularidades interpretativas que embasem o estabelecimento de problemáticas e investigações heterodoxas. Referências bibliográficas CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições Cotovia, 1990. CANEVACCI, Massimo. Antropologia da comunicação visual. São Paulo: Brasiliense, 1990. CHALHUB, Samira. Funções da linguagem. São Paulo: Editora Ática, 2002. COELHO NETTO, J. Teixeira. Semiótica, informação e comunicação. São Paulo: Perspectiva, 2010. DUBOIS, Philippe. A fotografia panorâmica ou quando a imagem fixa faz sua encenação. In: SAMAIN, Étienne (Org.). O fotográfico. São Paulo: SENAC, Hucitec, 2005. www.conecorio.org 15 VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. PANICHI, Edina; CONTANI, Miguel L. Pedro Nava e a construção do texto. Londrina: EDUEL; São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. VIVES, Jean-Michel. Para introduzir a questão da pulsão invocante. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v.12, n.2, p.329-341, jun. 2009. Referência audiovisual Don’t think. SMITH, Adam. Japão e Reino Unido: 2012, 88 minutos. www.conecorio.org 16