VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013.
A imagem do palhaço como emissora de
pulsões invocantes e escópicas:1
Faces desejantes de um signo
Guilherme Henrique de Oliveira Cestari2
Resumo
Este trabalho utiliza os conceitos de máscara, transe, duplo-vínculo e pulsões
invocante, escópica e de morte para mapear usos e percursos da imagem de um
palhaço em dois espetáculos de entretenimento que têm como bases comuns ilusão e
imersão principalmente por meio da profusão de estímulos luminosos e sonoros. Os
shows analisados são vinculados à dupla de DJs The Chemical Brothers. O palhaço,
que aparece apenas como imagem projetada nas telas da primeira festa, comparece
pessoalmente no segundo evento; o personagem grotesco traz à tona comportamentos
hedonistas e vocaliza autoritariamente desejos profanos. Neste sentido, uma
apresentação videográfica pode constituir um elogio dinâmico e eletrônico ao delírio
e, simultaneamente, uma matriz generativa de condutas e hábitos urbanos.
Palavras-chave
duplo-vínculo; pulsão invocante; pulsão escópica; pulsão de morte; palhaço.
O corpus deste trabalho consiste nas manifestações de um personagem que se
mostra, primeiramente, nas projeções em um show de música eletrônica e,
posteriormente, protagoniza presencialmente uma festa. Têm-se duas apresentações
videográficas cujo aspecto comum, a aparição, ora virtual ora em carne e osso, do
personagem, é estudado. Ambos os eventos compõem a obra da dupla de Disc
Jockeys britânica The Chemical Brothers. Descrição e análise se concentram na figura
de um palhaço, cuja imagem aparece no show dos DJs e que, segundamente, foi tema
principal de uma edição do Adidas Underground Experience, festa e ação de
marketing promovida pela multinacional de equipamentos esportivos e que aconteceu
em Londres em agosto de 2012. Os eventos foram registrados, respectivamente, na
1
Trabalho apresentado no GT 1 - Arte, Imagens, Estéticas e Tecnologias da Comunicação do VI
Congresso de Estudantes de Pós-Graduação em Comunicação, na categoria pós-graduação. UERJ, Rio
de Janeiro, outubro de 2013.
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Graduado em Design Gráfico pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), mestrando em
Comunicação pela mesma instituição. Bolsista Capes.
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forma de vídeo-documentário musical3 e de fotografias4 divulgadas pelo Facebook e
na mídia especializada. Nas imagens disponíveis no DVD, referentes a um show do
The Chemical Brothers acontecido em Tóquio no fim de 2010, o palhaço aparece
como imagem projetada no écran; já no evento patrocinado pela Adidas, grande parte
dos participantes é maquiada conforme o palhaço e um dos atores que interpreta o
personagem nas telas conduz o espetáculo in loco, pessoalmente. Sabendo que os
registros configuram recortes intencionais da realidade, não se empreendem, neste
artigo, análises do vídeo-documentário-musical ou das fotos, mas sim dos fenômenos
empíricos aos quais tais documentos permitem, ainda que restrito, o acesso; são
analisadas as festas e as imagens ali articuladas, as fotos e vídeos permitem o contato
indireto do pesquisador com o acontecido.
Na música eletrônica, o nome The Chemical Brothers adquiriu projeção
internacional; a dupla não trabalha desamparada e tampouco age somente em função
de intenções expressivas e artísticas; junto a sua equipe de suporte e desenvolvimento,
consideram-se interesses mercadológicos e pecuniários. Espetáculos e peças
audiovisuais de entretenimento assinados pelo DJs pretendem compor uma marca
cujo discurso concentra-se na imersão da audiência em realidades extáticas. Ao
patrocinar um evento temático, a Adidas apropria-se do aspecto ritual e mágico do
palhaço para satisfazer seus próprios interesses comerciais. O ambiente de
entretenimento deixa-se transpassar por outros campos da atividade social. O
tratamento marcante dado ao palhaço inaugura, no público, conotações corporais não
convencionais embasadas na performance e na tecnologia; da hibridização emergem
interferências identitárias.
O fazer-se do signo e da poesia
A experiência é elementar à conformação do signo. Para Coelho Netto (2010,
p.67), nem tudo é signo, mas, quando experienciável e posto em relação com a mente,
3
Disponível no DVD Don’t think, 2012.
4
Disponível em: <facebook.com/ChemicalBros/photos_stream?ref=ts>. Acesso em: 18 jan. 2013.
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qualquer coisa pode produzir signos. A realidade não constitui, em si, signo, mas é
ponto de partida para a significação; contém, em si, potencialidades para a construção
de imagens. É por meio da imagem (fragmento ficcional, fenômeno discursivo) que o
signo (processo contíguo que é partícula desencadeadora do pensamento e da
compreensão) se manifesta. O fenômeno que incorre no signo pode ser interpretado
como fruto de decisões diante de uma demanda empírica, um percurso traçado entre
variáveis. Supõe-se a imagem como matriz que sintetiza, condensa, dispõe, compara e
organiza signos.
Minuciar operações que dizem respeito aos usos não convencionais da
linguagem pode respaldar a criação de novos e enriquecedores modelos de articulação
simbólica. A poesia é lugar de seleção e combinação estranhas, de diferenciação, de
pronunciação inusitada. O impulso poético de um vídeo mantém-se análogo a sua
capacidade de reorientar leituras, de conduzir para surpreender. Condutas que
escapam à intenção, à voluntariedade e à consciência: atos-falhos, sonhos, lapsos,
tropeços, espasmos e alucinações, operam na condição de poéticas. O propósito
escapa, o inconsciente atua, emerge desejante, manifesta-se ambíguo, constrangedor,
grotesco. Num momento de desconcentração, da literalidade despontam apropriações
não usuais, rebeldes; a predisposição criativa faz com que do aparentemente exato
emanem figurações e ambivalências. À lógica linear, denotativa, impregnam-se
significados alternativos originando analógicas oblíquas, enigmáticas e deslizantes:
conotações (observar CHALHUB, 2002, p.41-47).
Durante uma apresentação videográfica escolhem-se diferentes conteúdos que
são organizados, com ajuda da tecnologia e de figuras de linguagem, de acordo com a
coerência de um fluxo de edição. Acerca dos recursos linguísticos: a metáfora é
processo de associação por similaridade, opera por substituição utilizando a
semelhança como critério. A metonímia pauta-se pela convenção, por uma ordem
aparentemente unilateral e uníssona, toma a parte pelo todo (CHALHUB, 2002, p.58).
A anáfora diz respeito à repetição de palavras ou vocativos no princípio de versos
consecutivos, envolve e convence porque opera de forma rítmica e insistente;
regularidade e previsibilidade instigam o leitor a acompanha-la. A sonoridade em The
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Chemical Brothers é particularmente anafórica, exaustiva. Os papeis atribuídos à
linguagem influem na percepção da realidade, e vice versa. Durante a leitura, o objeto
referenciado torna-se presente, o tempo verbal é tempo de ação, iniciativa, atitude,
conduta. A constituição poética possui caráter eminentemente polifônico,
memorialista (PANICHI e CONTANI, 2003, p.131) e mesmo esquizofrênico. Na
apresentação audiovisual, o uso estratégico de figuras de linguagem potencializa a
influência de algumas imagens na mente e na conduta dos intérpretes.
O vínculo contraditório
O uso da bricolagem como recurso criativo inicia movimentos entrópicos,
origina poluições. A transitoriedade descentraliza. Experimentação audiovisual e
projeção videográfica podem ser classificadas como componentes de uma cultura
emergente (observar CANEVACCI, 1990, p.9). A performance videográfica tem a
capacidade de suscitar, no espectador, um comportamento semelhante ao do
esquizofrênico, ao passo que este se coloca e desloca diante da realidade ficcional
proposta pela tele imagem vertiginosa e continuamente atualizada. Quando um
indivíduo vê-se num impasse entre ordens ambivalentes emitidas por um interlocutor,
encontra-se num estado eminentemente incômodo, de indeterminação. A ligação
contraditória com o emissor, chamada duplo vínculo (observar CANEVACCI, 1990,
p.24, 33), é fruto da corrupção de hábitos mentais, da subversão contínua de
expectativas. Como o esquizofrênico, o observador tende à indistinção entre interior e
exterior, eu e outro, realidade e ficção; acontece uma confusão entre verdade e
discurso, uma perversão dos sentidos por causa do apelo metonímico da linguagem.
Cerimônias de caráter ritualístico orientam-se pelo mesmo tipo de princípio, em que
fenômenos psicológicos e linguísticos adquirem, por meio de alucinações, transes
e/ou estímulos repetitivos e desnorteantes, estatuto de experiência sobrenatural e
mágica. A alucinação insistente –anafórica- é capaz de incutir personagens, símbolos,
valores, crenças, histórias e mitos no fluxo de consciência do indivíduo imerso
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temporariamente na experiência, que, além de luminosa e audiovisual, emula
condições sinestésicas5 e psicóticas6.
Em seu movimento, o signo luminoso escapa da tela e impregna corpos e
paredes, adorna, decompõe, coloniza e confunde a urbe num exercício onírico, de
escrita poética eminente e efêmera; criam-se e dirigem-se, com luz, novas
correspondências, identidades anabolizadas. A conotação incita o desejo, instaura, no
âmago
da
audiência
metropolitana,
perturbações,
tensões
multipolares,
estabelecedoras e catalisadoras de duplos-vínculos; hedonisticamente introduz o
indivíduo à possibilidade de satisfação; faz, da ilusão, lembrança, traz falsas
memórias do gozo ideal a corpos e mentes que, violados e convulsivos, contorcem-se.
Pulsões e tensões panoramáticas
Para refletir acerca da fruição por meio de estímulos sensoriais, adotam-se
pressupostos empíricos; entende-se que contatos entre consciência e invocação imperativo subversivo presente na voz do outro- ocorrem por meio da experiência.
Conforme Vives (2009, p.330), manifestações de súplica (pedido, apelo) revelam
necessidades, ambições, vontades; são exteriorizações que partem de oposições
internas. A pulsão vociferante, força coerciva canalizada pela fala de outro,
proporciona um encontro entre ego e dimensões inquietantes do discurso externo; em
momentos de pulsão, a voz do outro adquire potências que emudecem o eu, tal
manifestação mostra-se, normalmente, agressiva, esquiva, insistente e hiperbólica. O
chamamento cativante vocaliza impulsos concernentes ao ouvinte, demandas
animalescas, hedonistas; a voz exótica e irreconhecível do outro ordena o gozo, toma
forma de um desejo interior até então latente no receptor, é invocação instintiva,
5
União, mistura, junção ou confusão de diferentes sensações. Condição neurológica em que dois ou
mais planos sensoriais não se distinguem. Figura de linguagem que sugira ou designe a união de dois
ou mais planos sensoriais.
6
A psicose é um termo psiquiátrico genérico que se refere a um estado mental em que há perda de
contato com a realidade. Falta de crítica, desorganização do pensamento e delírio caracterizam a
experiência psicótica (observar VIVES, 2009, p.339).
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mortífera, amoral, ilusória e imediata, avessa à demora, à crítica e à negociação
racionais. O locutor, superego corrompido, feroz e obsceno, utiliza-se de seu
gigantismo persuasivo para apresentar tentações ao recebedor; o prazer ilimitado é
corrupto, é miragem tensionante; para o receptor, a ideia de morte passa a ser
alternativa para um suposto alívio.
A locução comovente e sedutora promete a
anulação do sujeito por meio da satisfação; adesão e acomodação ao ímpeto insistente
requerem renúncias por parte do leitor, que pode ser levado a render sua subjetividade
a temporalidades míticas, arcaicas e rituais. O ego, acuado pela pressão vocal
superegoica, é impulsionado a abrir mão de parte de sua constituição identitária e
mnésica. “A linguagem perfura o corpo, marca o vivo e implica a apropriação do
sujeito pela linguagem e não o contrário.” (VIVES, 2009, p. 336). A fala de outrem se
utiliza de recursos tecnológicos e linguísticos para gerar incômodo e, para ser
suportada em sua estridência, exige iniciativa –esforço, movimento- dos corpos e
mentes que com ela se relacionam. A voz retumbante, ecoante, suscita pulsões
escópicas, provoca o olhar em direção à vertigem.
Na apresentação audiovisual, o ponto de vista individual é incapaz de abarcar a
tela em sua totalidade, as fronteiras do écran diluem-se nos limites do olhar,
mudanças no vídeo determinam os movimentos oculares. O espectador não pode ver
tudo de uma vez, utiliza seus gestos corporais para explorar mutações simultâneas que
se fazem horizonte, que não cabem no campo de visão; a vontade de visão total é
ilusão total, figura envolvente que incita o leitor a esquecer-se da materialidade da
superfície telemática. A imagem-paisagem compõe-se de formas distorcidas, deforma
referentes, planos e pontos-de-fuga em detrimento da captura da atenção; o panorama
delega novas posições aos objetos, multiplica as perspectivas (DUBOIS, 2005, p.218).
Numa cúpula audiovisual, ambiente fechado e, em sua escuridão, colorido, brilhante e
iluminado, a disposição perspectivada das telas faz com que o vídeo conquiste o
estatuto de firmamento, ficção fundante do ato de olhar. A imagem do palhaço que
aparece ao público nas projeções em Don’t think restringe-se a uma cabeça flutuante
que emerge da escuridão (observar Figuras 2 e 3). Iluminação e enquadramento não
fazem ver vestígios de corpo ou membros. Graças à superexposição videográfica do
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rosto, à enormidade do símbolo facial, a percepção conflui em direção à vertigem e à
hipnose. A exibição panorâmica das rugas intervém em favor da desumanização, da
objetificação e da reprodutibilidade da face mascarada (CANEVACCI, 1990, p.59).
A máscara (fantasia, mimese, imitação, mimicry) é recurso lúdico que permite a
portabilidade identitária; a fisionomia artificial, facilmente incorporável, serve de
disfarce e dá margem a atitudes não convencionais, inclusive ao desvario. A máscara
pretende ser ego cambiante e identidade indestrutível. O transe (espasmo, estado de
vertigem, síncope, convulsão, subversão e desordem da percepção sensorial, ilynx)
mostra-se alcançável, dentre outros, na ingestão de substâncias alucinógenas e/ou por
meio do olhar fixo em luzes estroboscópicas; desvia-se da normalidade neurológica, o
sistema nervoso é submetido a condições de estresse. A experiência transcendental
frequentemente é relacionada a capacidades sobrenaturais de comunicação, à busca
pelo gozo e a íntimas imersões impulsivas, oníricas e fugazes na inconsciência
(CAILLOIS, 1990, p.107). Abre-se mão da racionalidade cartesiana num elogio
temporário à demência.
No inconsciente o signo ainda não atingiu sua completude, é bastante instável,
incompleto, indeterminado; há apenas uma espécie de “sopa” de conceitos, uma
reunião não delimitada de querências desorganizadas. A mobilização que transforma
potências desejantes em signo é protagonizada, na ocasião da pulsão, pelo superego,
que, na forma de outro, elege conceitos e desejos advindos do id e, se utilizando de
tecnologia e de figuras de linguagem, lhes atribui referenciais familiares. Linguagem
e técnica são modelos (ferramentas) de planejamento e disposição conceitual que,
utilizados pelo emissor da pulsão, tornam específicas, pontuais e experienciáveis as
ambições oriundas do inconsciente. O desejo emerso da inconsciência torna-se signo
por meio da intervenção superegoica e, simultaneamente, detalha-se e esculpe-se em
estímulo sensorial por meio do emprego de recursos linguísticos e tecnológicos
(observar Figura 1).
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Figura 1: Dinâmicas e relações entre pulsão, signo e mente.
Fonte: Elaborado pelo autor.
O esquema propõe traduções em instância universal; para análises pontuais,
convêm considerar especificidades que permeiam evocação, recepção e memoração
durante a encenação imagética. A partir das ideias gerais apresentadas pelo gráfico,
podem derivar-se especificações, relativizações, subversões, reapropriações e
releituras orgânicas. Em sua flexibilidade, o modelo, de caráter eminentemente
descritivo e generalista, pode se adaptar a variantes contextuais; hão de se mapear e
compreender distinções, especialidades, repertórios, variâncias e pluralidades
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identitárias, bem como vivências culturais e tecnológicas inerentes, individualmente,
a cada participante. As relações que cada leitor estabelece entre ficção, tecnologia e
experiência são particulares e subjetivas; em exposição inicialmente não específica, o
diagrama, ao oferecer critérios e direções para descrições e análises menos
abrangentes, serve de ponto de partida para estudos de processos codificadores das
linguagens e de mecanismos expressivos da interferência pulsante.
Considerando a vibração ondulante do signo panorâmico tecnológico
metropolitano, as pulsões invocante e escópica dizem respeito a um tipo de variação
da frequência sígnica; as pulsões se referem a uma intensidade especial,
particularmente elevada, da força transformadora e persuasiva do signo, constituem
uma especificidade, ocorrem sob condições determinadas. As pulsões canalizam
potencialidades do inconsciente em detrimento de um imperativo animalesco, são um
modo de organizar os movimentos conceituais até então caóticos e diluídos, flutuantes
no id. As pulsões invocante –sonora, vocal- e escópica –ocular- são, além de pontos
de partida para o estabelecimento da relação de duplo-vínculo, estopins para
ritualização e alucinação. Tecnologia e funções de linguagem contribuem para o
agigantamento panorâmico do superego; são meios, não fins, para a alteração do
comportamento e das faculdades mentais. Tal qual o impulso suicida, a máscara é
alternativa para lidar com desconforto e insustentabilidade inerentes ao duplo vínculo
e à pulsão de morte. O disfarce mostra-se, literalmente, uma tentativa ilusória de
resgate identitário e mnésico. Máscara e transe tornam-se, simultânea e
ambivalentemente, esconderijos e tentativas de recuperação da subjetividade. Mimicry
e ilynx possibilitam, ainda, uma espécie de ressureição do sujeito, que, reencarnado,
quando emerge da vertigem, ao término da apresentação, retorna órfão do prazer
ilimitado, recobra sua consciência e redescobre cotidiano e racionalidade.
Palhaço, signo produtor de signos
Em sua primeira manifestação, no início espetáculo (faixa 1) documentado no
DVD Don’t think, o palhaço reitera com expressão irônica, em sintonia com a música,
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a ordem “Just get yourself high7” (Figura 2). O personagem de trejeitos faciais
incisivos parece olhar fixamente para o público, exprimindo o imperativo com
convicção e malícia. Os aparecimentos são fantasmagóricos e fugazes, a imagem
pisca, desvia de possíveis olhares analíticos; o palhaço sem nome não se demora na
vocalização do ditame, desaparece rapidamente para emergir em outro ponto da tela
depois alguns segundos de escuridão. A luz branca que emana da imagem é a única a
iluminar a audiência. O locutor autoritário exprime um desejo íntimo do ouvinte, a
pulsão inquietante estimula a busca pelo prazer, traz à tona a possibilidade e o desejo
de fruição e satisfação plenas. Entre a primeira e a segunda aparição o show
prossegue com projeções variadas sem nenhuma relação direta com o palhaço.
Figura 2: Mosaico com frames-chave da aparição do palhaço nas projeções relacionadas à música Just
get yourself high.
Fonte: Adaptado de Don’t think (2012).
Ainda em Don’t think, na transição entre as músicas Superflash e Leave home
(faixas 9 e 10), próximo ao fim da apresentação, acontece outra manifestação,
também de caráter pulsante, do palhaço, desta vez em duas etapas (Figura 3). No
primeiro estágio, um coral infantil clownesco entoa “You’re all my children...”; à
medida que suas vozes adquirem frequência mais aguda, outros rostos pueris
despontam na tela, como em uma constelação; os palhacinhos não encaram
diretamente o espectador, têm seu olhar disperso, não fixo. A transição para o
segundo momento se dá de forma abrupta, um grande palhaço adulto toma o lugar dos
meninos e completa a frase com voz gutural e robótica: “You’re all my children
7
Em tradução livre, “Apenas fique alto”; incentivo explícito ao transe e à vertigem, a frase reforçada
exaustiva e ritmicamente autoriza e convida para o gozo.
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now8”. A enunciação do fim da apresentação é complementar à do começo; ao
cumprirem a ordenação dada no início do show, “ficando altos”, entregando-se ao
transe, os participantes veem-se compulsória e ambivalentemente filiados a uma
entidade grotesca, sedutora, profana, mascarada e demoníaca. Nos leitores, este uso
da pulsão instaura um novo desconforto, que, desta vez, se refere ao estabelecimento
irrevogável de um vínculo. Após três músicas, sem nenhuma outra aparição
clownesca, o show disponibilizado no DVD se encerra.
Figura 3: Mosaico com frames-chave da aparição do palhaço na transição entre as
canções Superflash e Leave home.
Fonte: Adaptado de Don’t think (2012).
A participação crescente da visualidade nos espetáculos de música eletrônica
inaugurou, na língua inglesa, uma maneira de se referir ao ato da apresentação. Com
tratamento semelhante ao empregado para a exibição de obras cinematográficas,
alguns anúncios de festas e shows não mais utilizam o termo “playing at”, mas sim a
expressão “screening at”, denotando a importância da tela (screen) para experiência
8
“Vocês são todos meus filhos agora”, em tradução livre.
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proposta pela performance. Em descrições acessáveis pela internet, a Adidas
Underground Experience, num texto anterior à realização da festa, se apresenta como
(tradução e grifos do autor):
Uma experiência imersiva e psicodélica trazida para você pelos produtores
do filme (e do show ao vivo do The Chemical Brothers). [...] Apenas por
uma noite.
O [conteúdo disponibilizado no] filme será incrementado com momentos
adicionais em que os efeitos visuais literalmente ganham vida; em que
você se encharca de luzes coloridas em movimento (programadas
especialmente para o filme e para a música); onde os recursos visuais do
show ao vivo te surpreendem E te engolem; onde todos, sem exceção,
usam a mesma maquiagem de palhaço. (Disponível em
<facebook.com/events/247123242072356/?ref=22>. Acesso em 18 jan.
2013).
As tecnologias empregadas na busca pela ilusão catártica declaradamente
convertem-se em atrativos, em chamarizes para o acontecimento festivo. Promessas
geram expectativa. O participante almeja imergir na experiência “underground” –
alternativa, fora dos padrões – patrocinada pela Adidas. O panorama pretende
fagocitar um público ansioso pela surpresa, para, ao final do espetáculo, regurgitá-lo,
forçando-o a reencontrar a convencional materialidade do cotidiano. Autonomia e
monumentalidade dos efeitos visuais recebem destaque em texto divulgado após a
festa, no qual se lê (tradução e grifos do autor):
[...] o espaço #adidasunderground foi transformado para receber um dos,
indiscutivelmente, mais energéticos e esperados eventos dos últimos
tempos. O espaço foi palco de uma experiência incrivelmente imersiva, a
exibição de DON’T THINK, filme do The Chemical Brothers. [...] O
diretor do filme, Adam Smith, conseguiu registrar a experiência
ridiculamente alucinante tão característica do show do The Chemical
Brothers.
Para o #adidasunderground, o desafio foi acrescentar algo ao filme, que
mostra um intenso bombardeio de luz, som e música, sem diminuir ou
depreciar a experiência inicialmente proposta. [...] Num lugar
transformado, entre amplas telas HD, o filme foi exibido com um sistema
de som que te faz esquecer de que não está realmente testemunhando os
eventos ao vivo, um conjunto de lasers e luzes, ainda, mimetizou tempo e
sequência do show ao vivo.
Com mais de 50 maquiadores, a equipe do #adidasunderground foi além ao
requerer que todos os participantes pintassem seus rostos como palhaços
para imitar as imagens do filme. Além disso, o evento [...] concedeu a cada
participante um agasalho Adidas. O resultado foi um baile de máscaras
psicodélico e orquestrado que deixou os participantes reconhecíveis
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apenas pelo sapato, que serviu como pequena referência para a
diferenciação.
(Disponível em: <hypebeast.com/2012/8/adidasunderground-the-chemicalbrothers-dont-think-live-film-experience-day-4>. Acesso em: 18 jan.
2013).
A imagem do DVD serviu como referencial - ponto de partida - para a
realização festa; não aconteceu uma mera recriação, mas uma releitura empírica,
coletiva e presencial do vídeo. O evento orbita e propõe a constituição de um
panorama telemático para que os referentes virtuais da imagem fílmica possam,
ilusoriamente, presentificar-se e atualizar-se. A exibição simulatória propõe um lapso
espaço-temporal, pretende convencer o público de que sua consciência transportou-se
para um nível empírico oblíquo mais ou menos definido pela montagem intencional e
ficcional do filme. Para análises e comentários acerca deste fenômeno, de 138
fotografias publicadas na internet, selecionaram-se seis (Figuras 4 e 5). As pulsões
emitidas pela imagem do palhaço são capazes de produzir um desconforto latente,
disfarçado; a audiência suporta, vê-se submetida, até certo ponto, a uma relação
instável, de dependência e repugnância, característica do duplo-vínculo. Em Adidas
Underground Experience, a aplicação de maquiagens-máscara nos participantes,
ambivalentemente, confirma a filiação do público à busca incessante pelo prazer e, ao
mesmo tempo, alivia a tensão instaurada na coletividade pelas pulsões invocante e
escópica. O palhaço é mensageiro da desordem, portador da contravenção, da
corrupção e da entropia; sua imagem, oportunista e chamativa, se destaca diante do
ordinário. O personagem, agora anfitrião personificado, recebe seus “filhos”
devidamente caracterizados e os encaminha a uma condição provisória de
descompasso com a percepção sensorial cotidiana.
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Figura 4: Palhaço apresentando-se presencialmente na edição de Adidas Underground Experience.
Fonte: Montagem elaborada pelo autor utilizando fotografias disponíveis em:
<facebook.com/ChemicalBros/photos_stream?ref=ts>. Acesso em 18 jan. 2013.
Figura 5: Por meio da maquiagem e da máscara, participantes da Adidas Underground Experience
filiam-se ao palhaço, figura central do evento.
Fonte: Montagem elaborada pelo autor utilizando fotografias disponíveis em:
<facebook.com/ChemicalBros/photos_stream?ref=ts>. Acesso em 18 jan. 2013.
A atuação grotesca do palhaço é matriz que produz imperativos; tais
desdobramentos não são apenas de natureza mimética, possuem também caráter
combinatório, generativo e inovador. A criação de um personagem como este resulta
de articulações sintáticas, manejos formais, a partir da seleção e combinação de
elementos advindos de coleções desejantes de aspecto amplo e desencontrado. A
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manifestação ficcional revela sobreposições, entrecruzamentos; no momento de
transe, intencionalidades imbricam-se e transitam hibridamente. O personagem existe
na e para a emergência do gozo. Tanto no show documentado no DVD quanto no
evento patrocinado pela Adidas, o palhaço, produtor grotesco de trejeitos e
inconveniências, por meio do imperativo pulsante, conduz um espetáculo tecnológico
cujo público submete-se sensorial e emocionalmente a imagens panorâmicas e
vibrantes; por vezes, a hiperestimulação subverte o caráter figurativo da imagem, o
impulso autoritário e fugaz torna a interferência eminentemente abstrata. Fenômenos
como o descrito respaldam reflexões e provocações acerca do ímpeto modificador do
signo, sobretudo, em manifestações metropolitanas e tecnológicas. Buscar
compreender as funções sociais exercidas por máscara e transe no contexto do
entretenimento não consiste em simplesmente vincular o uso de tais recursos lúdicos a
uma prática social rígida e constante; o mapeamento, sempre incompleto, de
percursos emocionais e desejantes – portanto, espontâneos e que podem, a qualquer
momento, fugir ao planejamento – permite a reflexão crítica sobre a atual condição da
retórica intrínseca à interferência imagética; o estabelecimento de vínculos inusitados
pode confluir para a criação de particularidades interpretativas que embasem o
estabelecimento de problemáticas e investigações heterodoxas.
Referências bibliográficas
CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições
Cotovia, 1990.
CANEVACCI, Massimo. Antropologia da comunicação visual. São Paulo:
Brasiliense, 1990.
CHALHUB, Samira. Funções da linguagem. São Paulo: Editora Ática, 2002.
COELHO NETTO, J. Teixeira. Semiótica, informação e comunicação. São Paulo:
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DUBOIS, Philippe. A fotografia panorâmica ou quando a imagem fixa faz sua
encenação. In: SAMAIN, Étienne (Org.). O fotográfico. São Paulo: SENAC, Hucitec,
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PANICHI, Edina; CONTANI, Miguel L. Pedro Nava e a construção do texto.
Londrina: EDUEL; São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
VIVES, Jean-Michel. Para introduzir a questão da pulsão invocante. Revista
Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v.12, n.2, p.329-341,
jun. 2009.
Referência audiovisual
Don’t think. SMITH, Adam. Japão e Reino Unido: 2012, 88 minutos.
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A imagem do palhaço como emissora de pulsões