UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Daniela Félix Carvalho Martins PERSEGUINDO AS CONTINGÊNCIAS: Uma proposta metodológica para a análise do espetáculo de palhaço Salvador 2012 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Daniela Félix Carvalho Martins PERSEGUINDO AS CONTINGÊNCIAS: Uma proposta metodológica para a análise do espetáculo de palhaço Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Socias da UFBA como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais. Orientador Prof. Dr. Paulo César Borges. Salvador 2012 ______________________________________________________________________ M386 Martins, Daniela Félix Carvalho, Perseguindo as contingências: uma proposta metodológica para a análise do Espetáculo de palhaço / Daniela Félix Carvalho Martins. - Salvador, 2012. 109f.: il. Orientador: Prof. Dr. Paulo César Borges. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2012. 1. Sociologia - Arte. 2. Artes cênicas. 3. improvisação (cultural). 4. Artistas circenses - Entretenimento. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. II. Borges, Paulo César. III. Título. CDD - 301 Aos olhares cintilantes de Duva e Tatay Agradecimentos Apenas os inseguros acreditam que realizam algo sozinho, o receio de confiar em outros cegam seu espírito. Não sofro desse mal, a certeza de cada passo é compartilhada com felicidade entre tantos amigos e familiares, a eles agradeço o apoio e a lembrança de que há vida além da dissertação. Agradeço e peço desculpas para os que vivenciaram também os momentos difíceis, Rose, companheira de muitas jornadas que depois de mim foi quem mais sofreu com o peso de um argumento que apenas se esboçava. Meus pais que sempre me apoiaram mesmo em silêncio; Vó Duva, tia Deda e Teté (In Memoriam), seres inspiradores; meus irmãos pelo simples deleite de tê-los. Ao meu orientador Paulo César pela avidez de seu pensamento e por acreditar nessa aventura. Miriam Rabelo co-orientadora “pirata”, sempre lendo com tanta atenção o que lhe enviava, com ela brotaram os primeiros argumentos dessa pesquisa. Ao ECSAS pelos textos, debates, conversas e bares, principalmente às queridas Clara e Zonzon. Aos amigos Alexandre Coutinho, Luana Malheiro, Lucyllane Silva, Priscila Andreatta, Adriana Prates. Aos palhaços entrevistados, principalmente Alexandre Luis Casalli, Thiago Enoque, Pinduca, Teatro de Anônimos e ao grande parceiro e interlocutor Demian Reis. A todos: obrigada! Inclusive aos esquecidos. Se tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando, falei muitas vezes como um palhaço, mas jamais duvidei da sinceridade da plateia que sorria. Charles Chaplin Resumo O presente trabalho trata de uma discussão metodológica a cerca da experiência do palhaço em espetáculo. Serão apresentadas as técnicas de investigação e os pressupostos teórico-metodológicos utilizados na pesquisa. Para tanto foi realizada uma breve incursão a cerca do legado histórico dessa arte, além de uma reorientação do aspecto do riso na filosofia de Henri Bergson. Foram realizadas observações sistemáticas em atividades, como também entrevistas antes e após as exibições utilizando o recurso de audiovisual tendo como objetivo: a) identificar quais os modelos pré-fixados para um determinado espetáculo; b) após a exibição, analisar que mudanças ocorreram durante a apresentação. O palhaço opera com um roteiro sucinto aberto para o improviso, a característica flexível dos roteiros viabiliza as ações improvisadas e essas atualizam os roteiros. A relação improviso/roteiro é antes um processo de atualização dos esquemas que uma dicotomia; o improviso e o roteirizado estão entrelaçados na arte do palhaço, os próprios esquemas ao serem construídos não excluem a possibilidade do inesperado. O que nos interessa é a contingência como uma dimensão constituinte da realidade. Essa contingência se dá em articulação com a forma, o roteiro, em um processo de conquista do artista em relação ao seu público. Ao mesmo tempo em que se reserva ao público um espaço na construção da própria obra através de sua participação e reações. E não só o público, recuperando o paradigma ecológico proposto por Tim Ingold elas, as contingências, são frutos da realização organismo-pessoa-em-seu-mundo-da-vida, há um ambiente ou uma paisagem que “atua” juntamente com o palhaço solicitando um movimento de atenção, no caso analisado poderíamos elencar o cachorro, os objetos de cena e uma imponderabilidade de “expressões” desse embodied landscapes. Abstract The present work deals with a methodological discussion of the experience of the clownshow, presenting its research techniques and the theoretico-methodological assumptions used in the research. To do so, a brief exposition of the historical legacy of this art form is undertaken, as well as a presentation of the question of laughter as thought by Henri Bergson. Systematic observation of the of these shows was made, as well as interviews before and after performances using audiovisual resources. This aimed to: a) identify the pre-show models established for a given performance, and b) analyze after the performance what transformations this pre-show model underwent. While the clown performs according to a pre-given script, the flexible characteristics of these scripts also allow improvised action throughout their realization. This improvisation /script relationship is firstly a process of transforming schemes rather than antagonistic dichotomy; the improvised and the scripted become intertwined in the art of the clown, where the formation of schemes never excludes the possibility of the unexpected. What interests us is contingency as a constitutive dimension of reality. Contingency becomes assimilated to the script's realization unfolding as a process of conquest by the artist of their audience, while at the same time, through their own participation and reactions, a space is reserved for the public in the creation of the clown's work. Not only this public but, recuperating the ecological paradigm proposed by Tim Ingold, the contingencies, express of the implications of the "organism-person-in-its-lifeworld".That is to say, there is an environment or a landscape "acting" jointly with the clown, and stimulating the creation of new expressive intentions and possibilities. In the case analyzed by us, we may list the dog, the scenic objects, and the imponderable of the "affects" of these embodied landscapes, in this category. Sumário Introdução 1 Capítulo 1 - Sobre o entendimento de palhaço 5 1.1 Trickster, um parente distante 5 1.2 Percursos: uma breve história 10 Capítulo 2- Do riso mecânico à encarnação do risível 27 2.1 Esboço para uma teoria da sensibilidade 34 2.2 Seguindo outros ruídos 39 Capítulo 3 – O jogo das lentes 3.1 - As Ciências Sociais e sua caixa enigmática 3.1.1 - Robert Flaherty: o início pelo olhar de um romântico 53 53 55 3.1.2 - Margaret Mead e a busca da objetividade: a câmera como um “olho espião” 3.1.3 - John Marshall e Robert Gardner: entre as polêmicas 58 da representação do outro 60 3.1.4 Timothy Ash e a técnica de evento-sequência 63 3.1.5 David e Judith Macdougall: do cinema observacional ao cinema intertextual 65 3.1.6 Filmes etnográficos feitos por mulheres 68 3.1.7 Jean Rouch: o outro como sujeito em vez de objeto 69 3.2 O caminho percorrido 3.2.1 Descrição do espetáculo 72 80 Considerações Finais 103 Referências bibliográficas 106 Introdução A dissertação Perseguindo as contingências: uma proposta metodológica para a análise do espetáculo de palhaço é desdobramento da pesquisa iniciada em 2007, por ocasião do trabalho monográfico. Desde a primeira fase da pesquisa, foram reconhecidos três aspectos que possibilitaram uma investigação acerca da arte do palhaço: o grotesco, o riso e o improviso. De caráter exploratório e demasiadamente teórico, a monografia, O riso, o grotesco e o improviso: um estudo empírico e teórico da palhaçaria, estabelece o rendimento analítico destas categorias para a realidade pesquisada, ou seja, como estas categorias emerge nas situações da realização de um espetáculo de palhaço, principalmente as articulações das respostas desse artista às contingências no ato de exibição de um espetáculo. Como resultado deste empreendimento surgiu a necessidade de construir uma metodologia que viabilizasse o reconhecimento desses aspectos na dimensão empírica da pesquisa. Assim, esta dissertação é um exercício metodológico que busca definir uma técnica de investigação adequada para refletir sobre a experiência da apresentação de um espetáculo de palhaço e as situações que esta experiência envolve: ensaios, estabelecimento de esquemas de ação, utilização de material cênico, figurino, a conquista de um público, etc. Como consequência deste procedimento, a apreensão dos processos de realização do espetáculo e como se produz suas articulações, resultou a insurgência de um novo estatuto para os sujeitos pesquisados, a dizer, foi fundamental o estabelecimento de uma qualidade de relação entre pesquisadora e sujeitos da pesquisa para além da relação formal pesquisadora/informante; por meio das técnicas empregadas, produziu-se espaço de interlocução entre a pesquisadora e os atores, colaboradores da pesquisa. Tal interlocução se tornou condição fundamental para o desenvolvimento da investigação, já que os parâmetros utilizados para a análise dos espetáculos resultou do próprio olhar dos atores sobre sua experiência e não a importação de referencial teórico externo. Assim, a análise do espetáculo não é fruto de sobredeterminação teórica à realidade de pesquisa, mas seguindo a trilha da fenomenologia, a investigação seguiu métodos práticos desenvolvidos pelos atores na experiência com o mundo. Desse modo, não se trata aqui de análise semiótica ou semiológica do espetáculo de palhaço, o interesse não é analisar os signos que se organizam e se estruturam através de 1 parâmetros de uma teoria já dada, mas sim as práticas, as urgências e os métodos que esses atores levam em consideração para consumar uma experiência As técnicas metodológicas foram empregadas em quatro casos distintos, contudo foi selecionado um caso, já que o objetivo da pesquisa é apresentar uma possível metodologia para a análise dos espetáculos que seja capaz de considerar horizontes de expectativas desses artistas e contingências inerentes da experiência humana. Para tanto foi utilizado registro audiovisual como instrumento de coleta e análise. Durante um ano e meio, acompanhei cerca de sete palhaços que atuam na cidade de Salvador, capital da Bahia; também pesquisei o festival internacional de palhaço Anjos do Picadeiro, realizado em 2010, na cidade do Rio de Janeiro com a presença de 30 artistas nacionais e estrangeiros. Em uso dos instrumentos de pesquisa – câmera de vídeo – registrei não apenas entrevistas e espetáculos como também articulei esses eventos, ou seja, as entrevistas tinham como solo comum os espetáculos apresentados. Tal articulação permitiu registrar fragmentos do processo de apresentação e recepção. No que tange à metodologia de registro audiovisual, os procedimentos seguiram três etapas: a primeira antecedia os espetáculos e dizia respeito ao relato do artista sobre as expectativas da apresentação que está prestes a realizar e quais os esquemas de ações que estão previamente articulados; a segunda empreendia o registro da realização da apresentação e uma terceira etapa consistia no registro do encontro entre a pesquisadora e o palhaço durante a exibição da apresentação gravada anteriormente com o objetivo de identificar transformações, atualizações e permanências dos esquemas pré-estabelecidos. O objetivo fundamental era investigar as respostas improvisadas dadas diante das contingências experienciais de um espetáculo. Todavia, esse empreendimento metodológico solicitou um olhar atento sobre as categorias colocadas no início da pesquisa – o riso, o grotesco e o improviso – principalmente o riso adquiriu novos contornos nesse processo de atualização conceitual. Foi necessário redefinir concepções clássicas sobre essas categorias, principalmente o riso, de modo que o referencial teórico descrevesse a realidade empírica observada. Outra necessidade foi um delineamento mais claro, 2 apesar de que ainda difuso, do que foi considerado palhaço para os propósitos da presente pesquisa. Ou seja, que palhaço é esse com quem é estabelecido dialálogo nesta pesquisa? Qual o universo que assumidamente os atores da pesquisa reconheceram como antecessor de seus trabalhos? Estes são temas que são aqui discutidos. No que tange a organização dos capítulos, o texto dissertativo foi organizado em três etapas. A primeiro, Sobre um entendimento de palhaço, foi dividida em duas secções, uma primeira aponta semelhanças entre a concepção contemporânea de palhaço e a categoria trickster que possui longa tradição nos estudos da Antropologia Social. Não foi estabelecida nenhuma associação direta entre o trickster e o palhaço, apenas foram recuperadas características desse campo de estudo que possibilitaram melhor delineamento sobre o conceito de palhaço. A segunda secção dialoga com bibliografia mais específica sobre o palhaço e apresenta trajetórias e eventos que viabilizaram uma linguagem artística específica, a arte do palhaço, considerando aquelas biografias de artistas que os sujeitos de pesquisa assumiram algum tipo de alinhamento. Desse modo, a secção não se pretende materializar uma história social do palhaço, mas produz um panorama histórico que permite selecionar características fundamentais a serem consideradas para definir a arte do palhaço. O segundo capítulo apresenta uma conceituação de riso e mostra como tais conceitos operam na elaboração da presente pesquisa. Ao invés de realizar empreendimento exclusivamente teórico concernente a um mapeamento das concepções mais em voga sobre o riso, a pesquisa – devido a um trabalho de campo intenso – delineia tal definição recuperando situações que surgiram durante as observações em campo. As concepções clássicas sobre riso, principalmente a do filósofo Henri Bergson, tendem a compreender o riso como mecanismo, excluindo aspectos que remontam a criatividade e que emerge na experiência da realização de um espetáculo de palhaço que, por uma intensa relação entre artista/plateia, assim como o ambiente, solicita uma série de respostas improvisadas no sentido de garantir o sucesso de sua performance. A dramaturgia clownesca tem como característica operar com esquemas de ações sempre abertos; existe uma dimensão do espetáculo que é construída durante a apresentação, assim 3 foi necessário redefinir a concepção clássica sobre o riso de modo que ele atendesse a realidade pesquisada. O terceiro capítulo, novamente seccionado em duas partes, demonstra a utilização das técnicas empregadas. A primeira secção trata da apresentação dos diversos modos de utilização do audiovisual para as Ciências Sociais e como contribuíram para, possivelmente, tornar as atividades de pesquisa na área mais reflexivas. Já a segunda secção demonstra como esta pesquisa se apropria do audiovisual e quais os desdobramentos epistemológicos suscitados em consequência das técnicas empregadas. Para os objetivos aqui já pontuados, foi selecionado o caso do palhaço Biancorino – Alexandre Luis Casalli – a quem, ao longo da pesquisa de campo, acompanhei por período mais extenso. Assim, a presente pesquisa se delineia como estudo de caso, não tendo, portanto, a pretensão de atingir a generalidade dos aspectos analisados, mas apreender um procedimento metodológico que possa explorar métodos práticos desenvolvidos pelos atores em experiência com o mundo Sem dúvida, as incursões de campo, bem como os estudos teóricos que fundamentaram a produção desta dissertação, operaram como aventura epistemológica; como aposta em produzir um conjunto integrado entre teoria, metodologia e técnicas que estivesse a serviço de uma problemática desafiadora: a viabilidade de um conhecimento a partir das contingências, improvisações, levando em consideração os horizontes de expectativas e os métodos práticos desenvolvidos por palhaços nessas experiências. Assim, dentre outras, a principal questão de pesquisa foi, como, a partir das Ciências Sociais é possível pensar elementos criativos e indeterminados da experiência humana? Esse mesmo instrumental pode ser utilizado em diferentes realidades, inclusive para além do campo da arte, já que a improvisação cultural e a criatividade são constitutivas do cotidiano, do mundo-da-vida. 4 Capítulo 1 - Sobre o entendimento de palhaço 1.1 Trickster, um parente distante. O objetivo central deste primeiro capítulo é estabelecer a concepção de palhaço que pauta o escopo desta pesquisa. A definição será estabelecida, primordialmente, em diálogo com a historiografia disponível sobre o tema, os aspectos elencados para a definição foram aqueles que apareceram com mais permanência ao longo das trajetórias e biografias demonstradas nos estudos elencados, ou seja, trajetórias que apontam para o estabelecimento de um tipo de arte dramatúrgica: a palhaçaria. Contudo, vale ressaltar que o percurso historiográfico aqui proposto se relaciona com trabalhos de Ciências Sociais, principalmente da Antropologia Social, que refletem sobre a categoria de trickster. Ainda que não haja associação direta entre o que se delineou nesta pesquisa para uma definição de palhaço com a categoria de trickster, vale uma breve incursão interessada sobre esses estudos no sentido de reconhecer certa familiaridade entre elas de modo que esse reconhecimento pode ser promissor para os objetivos desta dissertação. Assim, esse primeiro capítulo se divide em duas partes: uma breve apresentação da categoria de trickster apontando a contribuição de estudos na área para a presente pesquisa e um diálogo com a bibliografia específica sobre palhaço. A categoria de trickster tem se constituído como categoria ampla, tanto em estudos dos relatos míticos das sociedades indígenas quanto na produção literária e o que mesmo se caracteriza como produção da Antropologia do Folclore. Tratase de um personagem liminar, ambíguo e contraditório; em princípio, o termo fora adotado para nomear apenas um número restrito de “heróis trapaceiros” presentes no repertório mítico de grupos indígenas norte-americanos. Todavia, em bibliografia antropológica atual, esse termo designa a pluralidade de personagens que possuem características semelhantes nas mais diversas culturas. Essa relativa diversidade conceitual sobre o termo é expressa inclusive na diversidade de temas com que se associam. Ao mesmo tempo, para alguns estudiosos, o termo trickster tem sido adotado para nomear a figura de “herói civilizador” que também é portador de traços egoístas, a-éticos e anti-sociais (CAROLL, 1981); outros 5 estudiosos, entretanto, rejeitam a exigência de “herói civilizador” e apontam que para caracterizar o tipo é suficiente a presença de poderes sobrenaturais, empregados em aventuras marotas (WESCOTT, 1962). Contudo, a falta de consenso continua, já que outros teóricos ainda afirmam que o termo pode ser associado a todo e qualquer personagem astuto e velhaco, não importando sua origem, ou seja, sobre essa categoria “guarda-chuva”, os estudiosos deveriam levar em consideração textos literários escritos, a fabulação de contos populares orais e mesmo os cartoons (ABRAMS & SUTTON-SMITH, 1977). Como característica geral desses estudos, o trickster é definido por herói ardiloso, cômico, embusteiro, pregador de peças, dependendo da narrativa; ele é o protagonista de façanhas que podem ocorrer tanto num passado mítico quanto no tempo presente: As aventuras do trickster são marcadas, amiúde, pela malícia, pelo desafio à autoridade e por uma série de infrações às normas e aos costumes: comete ou leva os homens a praticarem adultério, incesto ou parricidio, sendo definido, em alguns casos, como ladrão, assassino e profanador de locais sagrados. Com efeito, podemos constatar que Eshu-Elegba, trickster Yorubá, intermediário entre os deuses e os homens, é tido como o responsável pelos sonhos imorais e pelas relações adúlteras e ilícitas em que as pessoas se envolvem. (QUEIROZ, 1990, p. 3) 6 Na bibliografia consultada, não foi encontrado nenhum estudo que associe diretamente o palhaço a essa categoria, contudo, no artigo O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster (QUEIROZ, 1990), o antropólogo Renato da Silva Queiroz, ao apresentar a heterogeneidade de trabalhos sobre esse termo, sinaliza a semelhança com personagens cômicos considerando-os matrizes para o que se pode chamar de palhaço contemporâneo: O trickster colocaria em jogo, assim, o inesperado, o indefinido, desrespeitando, no nível do imaginário, a própria ordem social. Ainda segundo Balandier, o seu papel seria, sob muitos aspectos, semelhante ao de outros personagens - bufões, mascarados, bobos da corte - aos quais se concede licença para que possam zombar da ordem estabelecida, “quebrando aparências e desfazendo ilusões”. Muito embora as transgressões cometidas por tais figuras sejam autorizadas pela sociedade, a própria ordem acabaria sendo assim reforçada, por meio de um processo catártico, e ainda com o mérito de revelar aos seus integrantes a desordem que poderia se instaurar caso as normas, os códigos e os interditos viessem a se dissolver. Elemento, a um só tempo, perturbador e agente da ordem, decorreria disto a ambiguidade do trickster. (QUEIROZ, 1990, p.4) Este mesmo antropólogo reconhece conclusões semelhantes formuladas por Laura Makarius, para quem a figura do trickster é definida como representação mítica do violador de tabus: Os tabus não podem ser violados pelo conjunto do grupo, pois isto destruiria a ordem social que, negando o tabu, tornaria inoperante o ato de violá-los. A sociedade, que deseja violar sua própria lei não pode, então, fazê-lo senão por intermédio de um indivíduo que age como mediador, e no qual ela encontra seu herói. (MAKARIUS, 1974, p. 217). Victor Turner parece caminhar nesta mesma direção ao definir o trickster como figura que expressa diversos aspectos de liminaridade; este personagem desfrutaria, nas narrativas, de ampla liberdade de ação, como se normas morais ou sociais de condutas estivessem ausentes: [...] ao trickster expressam diversos aspectos da “liminaridade”, sendo a ambiguidade o traço fundamental do herói. Assim, o trickster não costuma ter idade ou sexo bem definidos. Apresenta, todavia, exageradas características fálicas em alguns casos, e o comum é que seja simultaneamente agressivo, dotado de espírito vingativo, errante, vaidoso, destrutivo, criativo, etc. [...] muito embora permaneça de certa forma alheio à humanidade, não deixa de ser familiar e simpático aos homens, pois realiza tudo aquilo que todos, secretamente, gostariam de fazer (TURNER, 1972, p. 576-582) 7 A relação ambígua que o trickster estabelece com a ordem social é a característica destacada para o desenvolvimento desta dissertação, já que em trabalhos mais específicos sobre a figura do palhaço tal característica tem sido também elencada, ou seja, alguns estudiosos como Paul Bouissac apontam a relação entre os palhaços contemporâneos e a violação ritual de tabus. Esta relação produz mecanismos de integração social ao produzir intensas energias emocionas. “A energia liberada pela violação de tabus considerados particularmente importantes – tabus sexuais, religiosos e outros – é bastante forte para reunir uma população frente às maiores provocações e dificuldades” (WORSLEY, p. 263) O antropólogo canadense Paul Bouissac, no artigo The profanation of the sacred in circus clown performance, destaca justamente essa relação de ambiguidade com a ordem social nos espetáculos de palhaços de circo nos Estados Unidos; define palhaço metaforicamente como um turista que vai visitar o castelo da rainha do Reino Unido e deita na cama real, correndo pois, entre outros riscos, o de perder o passaporte. (BOUISSAC, 1997) Ao descrever um número observado, em que um palhaço entra no picadeiro com um carrinho de bebê e começa a alimentá-lo com mamadeira, até esse momento as feições do bebê são mantidas em segredo, apenas ao retirar o suposto bebê do carrinho que é então revelado se tratar de um filhote de porco. A partir da observação deste espetáculo, afirma que: The operation performed in this act consists first of substituting a piglet for a human infant. Two powerful cultural themes are thus brought together: on the other hand the care that human have to take of their offspring as a prerequisite for the survival of the species and the ensuing sacralization of infants; on the other hand, an animal species, the pig, which is the focus of intense cultural attention in many parts of the world, including ours. (BOUISSAC, 1997, p. 200)1 Em direção oposta, mas atingindo o mesmo alvo, encontramos nas bibliografias específicas sobre o palhaço o reconhecimento de figuras míticas e ritualísticas as quais é possível facilmente associar ao termo de trickster como base originária do palhaço contemporâneo, conforme Alice Viveiro de Castro no livro O elogio da bobagem: palhaços no Brasil e no mundo, no qual afirmar que entre os Astecas havia espécies de 1 A operação realizada neste ato consiste em substituir um porco por uma criança humana. Dois poderosos temas culturais são reunidos: por um lado, o cuidado que o ser humano tem que tomar em relação a sua prole como um pré-requisito para a sobrevivência da espécie e a consequente sacralização das crianças em período de lactância; por outro, uma espécie animal, o porco , que é o foco de atenção cultural intensa em muitas partes do mundo, incluindo o nosso. (Tradução livre) 8 bufões que imitavam coxos, cegos, leprosos em grandes cerimônias que provocavam risos em todos os presentes. Segundo ela, era uma das maneiras das sociedades primitivas se protegerem do mal e do medo. De modo semelhante, na cultura Yorubá, as seis máscaras da cerimônia Egun-gun são um corcunda, um albino, um leproso, um prognata, um anão e um aleijado. Entre os índios norte-americanos encontra-se a figura dos heyokas, cuja principal função é a de lembrar a tribo o absurdo dos comportamentos humanos e a necessidade de não levar as regras demasiadamente a sério: Um heyoka monta no cavalo ao contrário, a cabeça voltada para o rabo do animal. Quando toda a tribo avança numa batalha, o heyoka corre na direção oposta . Ele dorme de dia e fica acordado de noite. Nas cerimônias rituais roda em sentido contrário ao de toda tribo. Quando alguém sonha com um raio, no dia seguinte deve tornarse um heyoka – sob o risco de morrer até o anoitecer daquele mesmo dia. O nome heyoka é a inversão do grito de guerra dos índios Plain: Hoca-hey! (VIVEIRO DE CASTRO, 2005, p.19) O objetivo não é interrogar se a figura do palhaço é um trickster ou não, mas delinear uma conceituação de palhaço e recuperar o papel da categoria trickster no percurso das dinâmicas conceituais que fundamentam a categoria palhaço na contemporaneidade. Essa liminaridade atribuída à figura do trickster parece ter sido de algum modo “reapropriada” nas produções dramatúrgicas dos palhaços contemporâneos, inclusive nas apresentações observadas no curso dos trabalhos empíricos da pesquisa. 9 1.2 Percursos: uma breve história. Este tópico apresenta um breve histórico da arte do palhaço. Não é objetivo do trabalho a construção de uma história social, mas produzir um panorama histórico dessa figura cômica por excelência com a finalidade de definir palhaço para as análises e reflexões que pautam este texto. Não há consenso sobre a origem do palhaço, muitas vezes dada de maneira fragmentada. Apenas a partir do século XVIII e, posteriormente com o circo moderno, fica perceptível uma narrativa histórica mais sistematizada. Essa dificuldade por parte dos autores, segundo Alice Viveiro de Castro, está na profusão de nomes que essa figura assume em cada lugar e momento. Bobo, clown, grotesco, truão, augusto, jogral, são alguns dos nomes mais comuns que usados para designar essa figura cômica, hoje consensualmente caracterizada por palhaço. Contudo, a historiografia aponta para eventos dispersos na Grécia Antiga. Entre os gregos existia a figura dos parasitas, que significava conviva, aquele que alegrava um banquete divertindo o anfitrião, poderia ele ser palhaço ou filósofo. Viveiro de Castro cita Philipos, exímio imitador que arrancava gargalhada de todos. Sócrates tentou calá-lo, mas o parasita imitou-o com tal perfeição que quem calou foi o filósofo. Há ainda os palhaços de Aristófanes que durante os momentos de improvisação eram incentivados a imitarem Hércules, e se especializaram em ridicularizar o herói. Possivelmente o grande legado grego são os palhaços dóricos, também chamados mimos os quais, ao contrário de hoje, faziam humor também com as palavras. Nesta época, o termo mimo tanto se referia ao ato de imitar quanto ao artista que se especializava em imitar tipos característicos e personalidades da sociedade que todos reconheciam em cena. Os personagens dessa comédia atravessaram e podem ser relacionados os que aparecem nas farsas Atelanas, em Roma; nas cenas dos saltimbancos; na Commedia dell`arte; em Moliére e nos picadeiros e praças dos dias de hoje (VIVEIRO DE CASTRO, 2005, p. 24). Na Grécia, encontra-se a matriz linguística do termo comédia, Komos. Era o nome dado às orgias noturnas nas quais os cavaleiros se entregavam à loucura, dançando, bebendo e amando em nome de Dionísio. Essa seria também a origem dos 10 espetáculos dóricos, com suas imensas barrigas e falos falsos com diálogos cheios de referências sexuais improvisadas na hora. Em Roma, é possível identificar as figuras dos bufões, em sua maioria anões e corcundas, que tinham nesse ofício a possibilidade de ascensão social; havia também os Cicirrus que originam aos bobos da corte e o stupidus, palhaço especializado em fazer imitações. Na Idade Média, com todo o fundamentalismo religioso, vemos emergir A Festa dos loucos e dos asnos em que o “mundo ficava ao contrário”. Conhecidas também como as Saturnais, tradição romana que havia sido banida pela Santa Igreja, retorna na mesma Roma: As Saturnais eram celebradas em Roma nas calendas de janeiro e, neste período, os escravos se vestiam como patrões, sentavam-se a mesa e celebravam a Idade de Ouro, aquela em que a igualdade imperava e todos os homens confraternizavam com harmonia. Na Europa Medieval, as Saturnais foram transformadas na Festa dos Loucos, quando estudantes e membros inferiores do clero invertem a hierarquia e instalam a esbórnia nas igrejas. Um bispo ou arcebispo dos Loucos era eleito, rezando uma missa cômica onde abundavam versões satíricas e picantes das rezas. Os padres se vestiam de modo extravagante, muitos com roupas femininas, e se punham a cantar, a comer salsichas […] dançando lascivamente […]. (VIVEIRO DE CASTRO, 2005, p. 28) Muitas autoridades da igreja protestaram contra o que tomavam como abusos cometidos nessas festas. Afonso X, rei de Castela, em 1274, estabelece seis diferentes tipos de jogral, estavam nas Ordenações Afonsinas e o objetivo era proibir aos clérigos qualquer forma de se expressarem à semelhança dos jograis estabelecidos. Afonso de Castela, devido ao protesto do alto clero, define a proibição da associação da igreja com quaisquer manifestações (jogral) vinculadas às Saturnais. Contudo, são essas festas que promovem o surgimento, ou o reaparecimento, já que foram perseguidos pela Igreja, de poetas e cômicos. A Idade Média é marcada pela presença dos bobos da corte que compartilhavam da intimidade das mais altas cortes europeias; ainda que os primeiros séculos da Idade Média tivessem sido difíceis para os artistas populares, não impossibilitou o surgimento dos saltimbancos que se fortaleceram com a consolidação das feiras a partir do século XII. 11 Mikhail Bakhtin (BAKHTIN, 1993), na obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, analisa justamente esse contexto, enfocando a significação do riso na Idade Média. O riso para Bakthin é regenerador, mantém ambivalência que não se reduz à pura ridicularização ou satirização, estabelecese pela coexistência de aspectos positivos e negativos. Ele carregaria consigo uma vitória contra o medo, sobre os “horrores do além, as coisas sagradas e a morte” como também a vitória contra o temor inspirado por todas as formas de poder. Em nome do caráter ambivalente do riso, Bakhtin alerta que “ninguém pode saber onde termina o medo dominado e onde começa a alegria despreocupada”. O riso para este autor apresenta vitória sobre a morte, não penas sua eliminação abstrata, mas consiste no seu destronamento, sua renovação, sua transformação em alegria. (KASPER, 2006) Bakhtin afirma que o riso na Idade Média opunha-se: à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc.- possuem uma unidade de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, una e indivisível. (BAKHITIN, 1993, p. 3-4) O autor aponta significativa importância ao sentido do corpo grotesco, corpo em que se projeta a boca aberta: Dentre todos os traços do rosto humano, apenas a boca e o nariz (esse último como substituto do falo) desempenham um papel importante na imagem grotesca do corpo. As formas da cabeça, das orelhas, e também do nariz, só tomam caráter grotesco quando se transformam em figuras de animais ou de coisas. Os olhos não tem nenhuma função. Eles exprimem a vida puramente individual, e de alguma forma interna, que tem a sua própria existência, a qual não conta para nada no grotesco. Esse só se interessa pelos olhos arregalados (por exemplo, cena do gago e do Arlequim), pois interessa-se por tudo que sai, procura sair, ultrapassa o corpo, tudo o que procura escapar-lhe. Assim todas as excrescências e ramificações têm nele um valor especial, tudo o que em suma prolonga o corpo reúne-o aos outros corpos ou ao mundo não-corporal. Além disso, os olhos arregalados interessam ao grotesco, porque atestam uma tensão puramente corporal. No entanto, para o grotesco, a boca é a parte mais marcante do rosto. A boca domina. O grotesco se resume afinal em uma boca escancarada, e todo o resto só serve para emoldurar essa boca, esse abismo corporal escancarado e devorador. (BAKHITIN, 1993, p. 276277) 12 O corpo grotesco é indeterminado, aberto ao mundo, não há limites explícitos entre ele e o mundo, mistura-se e confunde-se com ele, “a porta de duas folhas abertas sobre o subsolo do corpo”. O corpo grotesco é um inacabado e aberto à exterioridade, por isso a ênfase na boca, nos genitais e no ânus, já que trata de devorar, copular, são corpos excretos. “É um corpo prenhe, ligado à renovação. Corpo em movimento, em estado de criação”. (KASPER, p. 99) No carnaval, momento por excelência da ação grotesca, que se percebe a inversão da ordem do mundo por se estabelecer um estado peculiar deste, em que prevalece o renascimento e a renovação: Formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas 'ao avesso', 'ao contrário', das permutações constantes do alto e do baixo ('a roda'), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródia, travestis, degradações, profanações, coroamento e destronamentos bufões. A segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se de certa forma como paródia da vida ordinária, como um 'mundo ao revés'. (BAKHITIN, 1993 p. 10) Mikhail Bakthin reconhece o bufão como porta voz do grotesco,arauto do riso, anunciador do 'mundo ao revés'. O riso é cúmplice: […] do triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as reações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo das alternâncias e renovações. Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto. (BAKHITIN, 1993, p. 8-9) No Renascimento, aparece ainda a commedia dell` arte. No início do século XVI, surge o termo para diferenciar o tradicional espetáculo popular da commedia erudita, o teatro literário. A commedia dell`arte é herdeira da fábula Atelana que, por sua vez, é herdeira da comédia dórica grega e se caracteriza pela improvisação a partir das habilidades dos artistas. Com o passar do tempo, pelo caráter itinerante, a commedia dell`arte construirá, junto a tradição cômica inglesa, duas das grandes ingerências para a formação do clown: A pantomima inglesa se desenvolveu a partir da commedia dell`arte. As personagens da comédia italiana foram incorporadas em uma cena em que predominavam a mímica, acrescida de música e dança. [...] A tradição italiana encontrouse com a dos clowns ingleses, provocando uma aproximação de tipos. Desse encontro resultou uma sugestiva fusão que teve 13 como ponto terminal a concepção do clown moderno e circense. Isso se deu a partir da caracterização externa (indumentária e maquiagem, principalmente) e do estilo de interpretação dos atores. Em pouco tempo a estrutura da pantomima transformouse e este clown, resultado da união do anterior tipo inglês com as personagens da comédia italiana, passou a ser a personagem dominante. Essa transformação ocorreu no final do século XVIII e veio a se consolidar no XIX. (BOLOGNESI, 2003, p. 63) Segundo a bibliografia analisada, os termos clown e palhaço possuem distinções por surgirem de lugares diferentes, mas com um mesmo objetivo, sendo hoje irrelevante qualquer tentativa de distinção. Palhaço é uma derivação de pagliaccio, que significa homem-palha em italiano; na tradição cômica italiana, havia muitos saltos, quedas, encontrões e os artistas colocavam palha dentro de suas roupas para amortecerem a queda, daí vem o nome palhaço. (SILVA, 2007, p. 44) A matriz etimológica do clown reporta a colonus e clod que seria, em sentido aproximado, homem do campo, rústico. Na pantomima inglesa, o termo clown designava o cômico principal que tinha funções de serviçal. (BOLOGNESI, p. 62) Nesse contexto, surge Joey Grimaldi (1778-1837) tomado como a principal influência dos palhaços de circo. Apesar de Grimaldi ser contemporâneo à invenção do circo (1779), parece não haver se interessado em apresentar-se nos dois principais estabelecimentos desse tipo Astley Royal Amphitheatre of Arts, fundado por Astley em 1779, e o Royal Circus, fundado um ano depois por Charles Huges, ambos em Londres. (REIS, 2011). O pesquisador Demian Reis afirma que a possível causa do desinteresse de Grimaldi pelo circo estaria no público alvo que o segundo objetivava: a aristocracia decadente e a burguesia emergente. Grimaldi era conhecido como um clown extremamente popular em sua época, ele fundiu a máscara branca e plácida de Pierrô com a agressividade avermelhada e pontiaguda de Arlequim; foi o responsável pela ascensão do clown na pantomima inglesa. O clown era uma figura secundária que respondia ao Arlequim, Grimaldi, ao assumir o clown, suplantou o Arlequim e comandou o espetáculo, suas canções ficaram famosas e passaram a fazer parte das pantomimas mesmo depois da morte. Ele desenvolveu muitas técnicas, efeitos físicos, elementos de figurino, personalidade e atitudes, uso de objetos cênicos e canções cômicas, dos quais palhaços de circo logo se apropriariam. (RÉMY, 1997) 14 Acrobata notável e um apreciado dançarino cômico, Joey Grimaldi punha no ridículo os temores e as alegrias de seu tempo, com suas transformações e invenções. Suas canções cantadas com voz estrídula e chocante contribuíram para torná-lo famoso na Inglaterra com as faces brancas, manchadas de vermelho, a peruca de careca decorada com estranhos tufos de cabelos e a roupa colorida, ricamente enfeitada, que se tornariam o símbolo do clown. (SILVA, 2007, p. 46) Demian Reis, comediógrafo e palhaço, na tese Caçadores de risos: o mundo maravilhoso da palhaçaria (2011) analisa em detalhes aspectos técnicos de Joey Grimaldi e, de algum modo, causas possíveis para o significativo sucesso alcançado no período em que atuou. As fontes primárias de informações são as Memoirs de Grimaldi, editadas por Charles Dickens (1838), o qual recebeu críticas severas a este trabalho, além das publicações de Maurice Disher (1925) e Richard Findlater (1955). Reis destaca quatro aspectos fundamentais, o primeiro, já sinalizado anteriormente, é que ele lançava mão de técnicas de pantomima elaboradas e recriadas a partir da tradição da arlequinada, fruto da Commedia dell´arte italiana; ou seja, Grimaldi é reconhecido como o artista que realizou a fusão entre essas duas artes: Afirmar isso é dizer que estamos lidando com um repertório de técnicas corporais posto a serviço de uma dramaturgia teatral específica, isto é, cenas que improvisam situações dramáticas préestabelecidas pela tradição da Commedia dell´arte, mas que reservam amplo espaço para improvisação. A pantomima tem uma grande importância na história do teatro nos séculos XVII e XVIII, sendo um gênero muito em voga nos teatros ingleses, nas feiras francesas e na Europa em geral. É preciso lembrar que, independente das proibições e restrições ao uso de diálogo na apresentação dos artistas, os pantomimos tinham um público iletrado e fundamentalmente vinculado à cultura oral. Essas características incentivavam os pantomimos a adotarem um arsenal de estratégias teatrais extremamente diversificados, visualmente poderosos e cenicamente impactantes. Sobretudo quando se apresentavam para o público das ruas, pois precisavam gerar interesse logo nos primeiros minutos da apresentação. (REIS, 2011, p. 100) Como consequência, as aparições de Grimaldi possuem características que as diferem substancialmente da maioria das apresentações dos palhaços em nossa contemporaneidade. Primeiramente, vale destacar que Grimaldi não contracenava sozinho, realizava espetáculos em companhia de personagens como Arlequim, Colombina, Punchinelo. O segundo aspecto elencado por Reis era a inserção que Grimaldi tinha nos teatros londrinos Sadler’s Well, Drury Lane e Covent Garden. Para o pesquisador, isso possibilitou um refinamento técnico já que palhaços só descobrem 15 como seus números afetam as pessoas através da experiência da apresentação (REIS, p. 101). Ou seja, a experiência da apresentação, justamente pela característica interativa da arte do palhaço não é um produto final acabado, mas o próprio processo de aprendizagem e refinamento. Figura 1. Joseph Grimaldi como Clown, 1820. (http://en.wikipedia.org/wiki/Joseph_Grimaldi, acesso em 21 de março de 2011.) O terceiro aspecto revela uma das causas da grande inserção de Grimaldi no cenário londrino: o pai dele foi destacado artista da commedia dell’art. Assim, desde a infância, conviveu com a representação de truques fantásticos, chegando inclusive a representar postos como clown, macaco ou qualquer outra coisa que fosse esquisito e 16 ridículo, tanto fora como sobre o palco. O quarto e último aspecto: a oportunidade de trabalhar em parceria com diferentes dramaturgos e atuar em diversas peças. Ele dispunha de um leque de recursos emocionais mais ricos para usar do que outros clowns, e isso era devido ao talento adquirido de aplicar a personalidade do seu clown a essa ampla variedade de situações dramáticas exploradas pela participação em tantos espetáculos. O espectador Dutton Cook anotou esse aspecto de sua palhaçaria ao apontar que o humor de Grimaldi emergia de um esforço em expor seu coração em cada movimento, em vez de explorar quedas e cambalhotas. Cook se lembrou de sua experiência de assistir a Grimaldi, que este caía uma ou duas vezes, produzia o efeito de escorregar e deslizar em poucas ocasiões, não era o palhaço de cambalhota da escola moderna. Em sua lembrança, a presença de Grimaldi era mais silenciosa e sutil, ele gerava interesse através de olhares e gestos, da graça de suas caretas, de certa inocência do coração que marcavam cada movimento seu. (FINDLATER apud REIS, p.103) Apesar de termos destacado a figura de Grimaldi por apresentar as duas principais tradições da arte do palhaço, a commedia dell`arte e a pantomima inglesa, havia outras tradições (francesas, russas e norte-americanas) que, a partir do século XIX, conceberam inovações e influenciaram os palhaços até hoje. É possível ainda elencar sumarizadamente o caso dos Estados Unidos onde surge um tipo particular denominado tramp, figura marginalizada, um vagabundo errante. Alguns autores apontam a presença de certas características do tramp norte-americano nos augustos europeus. O tramp é resultado da Guerra de Secessão, que deixou milhares de vítimas maltrapilhas vagando pelas estradas americanas. Esse palhaço passou a ocupar o espetáculo, juntamente com o Augusto e o Clown Branco. Tal qual sua origem, ele permanecia à margem do picadeiro. (BOLOGNESI, 2003) 17 Figura 2. Emmett Kelly como tramp. ( http://latimesblogs.latimes.com/thedailymirror/2008/03/emmett-kelly--d.html acesso em 18 de março de 2012.) Na Rússia, até 1917, seguia o modelo europeu, que admitia a polaridade Clown Branco e Augusto2. Em torno da Revolução Bolchevique houve uma mudança significativa nos tipos cômicos do país. Esses artistas abandonaram as características até então em voga e procuraram novos caminhos, em conformidade com a realidade social e o sentimento de novos tempos, abriram mão dos velhos estigmas da arte clownesca e superaram a oposição elementar da comicidade circense: Essa busca levou-os ao encontro de personagens conhecidas, e Chaplin foi a principal delas. A arte clownesca associou-se à luta política, surgindo a figura do clown- tribuno, que participava das marchas populares e também das militares. Os russos amenizaram ou até mesmo retiraram por completo a maquiagem característica dos palhaços. (BOLOGNESI, 2003, p. 81) Muitos dos palhaços russos eram participantes dos movimentos de vanguarda, especialmente o cubo-futurismo. Maiakóvski estreia, por exemplo, Moscou em Chamas; não era um teatro encenado no circo, mas um espetáculo de circo utilizando todo o seu aparato técnico: A peça é uma espécie de síntese de todas as diversas experiências soviéticas de vanguarda do período, que aproximam o circo ao teatro. Concomitantemente, ela inaugura uma opção diferenciada de espetáculo de massa, uma forma cênica radical na sua opção política, 2 Dois tipos-palhaços que atuam em dupla e surgem no circo no último quartel do século XIX. 18 que procura na associação entre circo e teatro o meio de uma possibilidade renovada de espetáculo. (BOLOGNESI, 2003, p. 88) Na França, é possível elencar o desenvolvimento de pantomimas utilizando apenas a mímica corporal em resposta às rígidas regras e os privilégios dos teatros que só foram abolidos em 1863. Tais regras decretavam oficialmente que os diálogos e a representação de personagens com fala só eram permitidas aos oito teatros oficiais, assim, as apresentações de palhaços, em sua maioria, ocorriam nos circos. (BOLOGNESI, 2003) Apesar dessa breve ressalva a outros componentes que possibilitaram a arte do palhaço no formato dos dias atuais, é na figura de Grimaldi que os pesquisadores reconhecem a principal inflexão que viabilizou a arte do palhaço. A partir da análise realizada por Demian Reis é possível destacar a presença de dois aspectos fundamentais que transversalizam toda a análise do comediógrafo e que, por sua vez, compõem a definição de palhaço para esta pesquisa: a relação entre um repertório prévio de ações com as cenas improvisadas e a profunda interação estabelecida entre palco/plateia, artista/público. Esses processos interativos permitem a presença latente das contingências, forçando a todo tempo os palhaços a uma “espécie” de negociação com a imprevisibilidade. Esta operação ocorre com vistas a elucidar a complexidade do universo pesquisado, solicitando, inclusive uma postura inventiva do ponto de vista metodológico, já que o objetivo principal desta pesquisa é a produção de uma metodologia que possibilite uma análise do espetáculo de palhaço levando em consideração os mesmos dois aspectos: a relação entre um repertório prévio de ações com as cenas improvisadas e a profunda interação que se estabelece entre palco/plateia. Todavia, o exercício das técnicas metodológicas que permitiram uma análise de contingências produziram reflexões acerca destas técnicas, ou seja, a pesquisa não se reduz a aplicação de um procedimento metodológico, mas há um caráter de reflexividade, no sentido de apontar os limites dos procedimentos utilizados como também as modificações, adaptações e descobertas ao longo da pesquisa. Essas questões serão analisadas no terceiro capítulo da dissertação. Outro ponto fundamental a destacar é que a performance cênica do palhaço se configura em estruturada linguagem artística que passou por inovações e transformações ao longo do tempo, uma tradição, passível apenas de ser reconhecida como tal por um contínuo processo de atualização. Nestes 19 termos, é importante não tomar esses eventos em um sentido evolutivo e com fins determinados, mas atentar para o fato de que transformações históricas continuam ocorrendo pelo desenrolar de inúmeros artistas que se engajam nessa arte. De acordo com os acontecimentos, nesse panorama histórico é necessário destacar a importância do circo nessa arte, já que nem todos os palhaços atuantes nessa época recusaram o circo, como fez Grimaldi. É no circo que se concebe o lugar da grande inovação cômica, o palhaço de circo é construído a partir da reunião das diversas tradições cômicas europeias. “ […] a ele foi permitido mesclar o palhaço de tablado de feira; os diferentes tipos criados da Commedia dell`arte, as cenas tradicionais do clown inglês, o clown da pantomima e o jester shakesperiano.” (VIVEIRO DE CASTRO, 2005, p. 60) Em princípio, os palhaços encenavam números de cavalaria, números de corda, equilíbrios e saltos em uma relação exclusiva de paródia com os números apresentados pelos outros artistas circenses. A partir deste procedimento se desenvolveu outra forma de comicidade que, em pouco tempo, transformou-se em uma cena tradicional: o diálogo com o mestre de pista. O mestre de pista é um personagem fundamental para a estrutura de um espetáculo de variedades como é o circo tradicional. Muito mais do que um apresentador, ele é um diretor-em-cena, autoridade máxima no picadeiro, figura capaz de improvisar e garantir que o espetáculo siga seu curso mesmo diante dos mais insólitos. De início, esse papel era representado pelo próprio dono do circo e durante muitos anos, foi prerrogativa dos adestradores de cavalo. Como o espetáculo era centrado nas exibições equestres, o mestre de pista usava um longo chicote, um apito na boca e dirigia os animais em cena. Coerentemente com suas origens militares, o circo tradicional tinha no mestre de pista a figura símbolo do poder, o grande responsável pela ordem e pela tranquilidade do espetáculo. Uma figura que representa o poder, a ordem e o equilíbrio é o contraponto perfeito para o palhaço, símbolo máximo da estupidez, da anarquia, do insólito e da bobagem. Nasce a primeira dupla de cômicos tipicamente circense: o mestre de pista e o palhaço. (VIVEIRO DE CASTRO, 2005, p. 61) Essas conversas entre o palhaço e o mestre de pista surgem no circo como estratégia para suprir o vazio entre um número e outro. Na França, conforme anteriormente ressaltado, esta situação cômica era vetada e perseguida pelas rígidas regras e privilégios dos teatros. Em 1863, na França, foi decretado que os diálogos e a representação de personagens com fala só eram permitidos aos oito teatros federais. 20 Ao final do século XVIII, surge mais uma inovação, a relação do clown branco com o augusto. Existem muitas discordâncias entre os teóricos na tentativa de precisar o momento exato desse nascimento e mais ainda a da figura do augusto. Conforme já ressaltado, o intento deste trabalho não é discorrer exaustivamente sobre o desenvolvimento dos tipos, mas apenas uma apresentação dos tipos mais recorrentes, não se faz necessário, portanto, excesso de detalhamento. Assim, como já foi destacado, o tipo de palhaço responsável pelas reprises e o palhaço que atuava com o mestre de pista, agora será apresentado as duplas de palhaços que atuavam e atuam com pequenos esquetes e entradas. Essa dupla revela uma relação de poder que é a grande motivadora do conflito. De um lado, o clown branco, autoritário, dominador, representante da ordem e o augusto, o bobo, imbecil, completamente idiota; geralmente colocado como assistente do clown branco. É apresentado, pois um contraste: duas figuras completamente opostas que precisam se relacionar. Esse contraste é traduzido pelo figurino, a roupa do clown branco é brilhosa, sofisticada e o augusto tem sapatos grandes, mangas de paletós que cobrem as mãos. No início do século XX, era muito comum a representação dessas figuras como de um lado a burguesia, os detentores de poder e do outro o imigrante pobre, com roupas velhas, ora demasiadamente grandes, ora demasiadamente pequenas. O Clown Branco tem como característica a boa educação, refletida na fineza dos gestos e a elegância nos trajes e nos movimentos. Ele mantém o rosto coberto por uma maquiagem branca, com poucos traços negros, geralmente evidenciando sobrancelhas, e os lábios totalmente vermelhos. A cabeça é coberta por uma boina em forma de cone. A roupa traz muito brilho. O tipo assim, recupera, no registro cômico, a elegância da tradição aristocrática, presente na formação do circo contemporâneo. O termo augusto tem sua raiz na língua alemã e foi utilizado pela primeira vez em 1869, em Berlim, quando Tom Belling, um cavaleiro, teve uma apresentação desastrosa no picadeiro. O público, então gritou: ‘Augusto!, Augusto!’. August, em dialeto berlinense, designava as pessoas que se encontravam em situação ridícula, ou ainda que se faziam de ridículas. O Augusto é um tipo de palhaço que tem como marca característica o nariz avermelhado. Ele não cobre totalmente a face com a maquiagem, mas ressalta o branco nos olhos e na boca. Sua característica básica é a estupidez e se apresenta freqüentemente de modo desajeitado, rude e indelicado. No Brasil, encontra-se no termo palhaço o equivalente mais apropriado do Augusto, ainda que ele englobe outros tipos e possa, com isso, fundir-se ao clown. (BOLOGNESI, 2003, p. 72-74) 21 As máscaras eram diversas, mas algumas inovações de artistas caiam na moda e eram reproduzidas. Isso aconteceu com a máscara em que, nos dias atuais de uma maneira geral, configura a representação do palhaço, a cara toda pintada na escala de cores branca, negra e vermelha, usando um nariz também vermelho. Essa máscara foi criada pelo augusto Albert Fratellini, em 1910, que à época contracenava com mais três irmãos. Esta máscara ganha seguidores por todo o mundo: Seguindo a linha de Albert Fratellini logo começaram a surgir palhaços copiando sua máscara alucinada e suas atitudes. Em 1923, Lou Jacobs, nos Estados Unidos, assina contrato com o ' maior circo de todos os tempo', o Ringling's Brothers and Bailey`s Circus , e sua imensa boca vermelha, sua peruca estapafúrdia e seu nariz são espalhados por todo o mundo, criando uma verdadeira epidemia de cópias e inaugurando verdadeiramente a tal 'era do augusto' (VIVEIRO DE CASTRO, 2005, p. 71) Figura 3. Alberti Fratellini, François Fratellini e Paul Fratellini, 1910. (http://www.allposters.com.br acesso em 08 de março de 2012) No Brasil, é registrada uma profunda relação entre o palhaço e o circo, sendo Benjamim de Oliveira (1870 – 1954) possivelmente uma das figuras mais marcantes. Filho de escravos, encontra no circo a possibilidade de ganhar a vida e torna-se reconhecido como o principal fundador do Circo-Teatro, um gênero de teatro muito comum e de muito sucesso no Brasil do século XIX até meados de 1960. 22 O Circo-Teatro é marcado por companhias circenses de todos os tamanhos que se apresentavam em diversos municípios brasileiros, encenando textos teatrais de todos os gêneros: revistas, farsas, musicais, cômicos, dramas ou melodramáticos. A cada dia um novo texto era apresentado por companhias formadas geralmente por famílias circenses que viajavam pelo país. (SILVA, 2007) A forma de organização da teatralidade circense caracterizando circo-teatro levava a uma gama de cidades diversos gêneros teatrais, ritmos musicais, dança tanto clássica quanto àqueles modos ditos populares como lundu, maxixe, samba, fandango, entre muitas outras, acrobacias, capoeira, e, como os circenses escreviam em suas propagandas: “etc., etc. e etc”. O espetáculo circense do século XIX e boa parte do XX foi responsável pela divulgação e visibilidade das principais expressões artísticas nacionais e estrangeiras. (SILVA, 2007) Figura 4. Benjamim de Oliveira, 1909. (http://www.literal.com.br acesso em 24 de março de 2012) Muitas outras biografias, inovações e transformações poderiam ainda ser elencadas, a exemplo de Charles Chaplin, Buster Keaton, Picolino I e Picolino II, 23 Carequinha, etc. Contudo, como sinalizado por Demian Reis (2011), o fundamental é “perceber que a palhaçaria de hoje existe em grande medida devido às conquistas e contribuições desses artistas”. (REIS, 2011, p. 108) Trata-se, portanto, de reconhecer uma arte antiga que atravessou o tempo. Contudo, apesar das inovações e transformações, algumas características são passíveis de elencar, possibilitando, deste modo, certa unidade. Assim, é justamente a partir delas que esboçaremos uma definição. A bibliografia analisada preocupa-se em reconhecer os tipos cômicos, a indumentária até certo ponto sinaliza a pertença de cada artista em um desses estilos, contudo, atualmente, os estudiosos apontam para uma pulverização desses tipos, principalmente em apresentações solo. Reis (2011), por exemplo, em diálogo com o Tractatus Coislinianus de Aristóteles reconhece quatro polos: bufões, enganadores, brancos e augustos. Esses tipos são definidos como tipos éticos e reconhecidos ao longo da história do palhaço. O comediógrafo apresenta, assim, os polos cômicos: O augusto é o celeiro da ingenuidade, do caos inofensivo, do estado mais receptivo, e se coloca numa atitude dominada diante de seu público e de seu parceiro. É, na maioria das vezes, tímido e leve. Sua idade é a da criança que vê tudo como pela primeira vez. Seu clássico parceiro branco, em contraste com ele, tem os olhos irônicos do adulto, ama a ordem, carrega o peso da responsabilidade, e seu comportamento cênico é impositivo e dominador em relação ao parceiro e a sua plateia, além de exibir um autoapreço exagerado. O impostor é, sobretudo, um jogador, é extrovertido, usa muita lábia, paródia, malícia e sedução para conquistar seus propósitos e saciar seus desejos. Age e se movimenta sob o combustível da sensualidade, como quem vive numa eterna adolescência, pronto para embarcar na próxima conquista ou seduzir os outros a fazerem mais um dia de festa. É um mentiroso e fanfarrão nato, a sua verdade está na sua ousadia de usar a manipulação ao extremo para a alegria dos espectadores, que percebendo a sinceridade de sua intenção cômica, acabam amando ser enganados e às vezes até expostos ao ridículo por ele, mesmo quando esse demonstra ser mesquinho e inescrupuloso. [...] O bufão não tem mais nada a perder, é como um velho que já viveu todas as idades cômicas, das quais ele é uma síntese. De todos, é o que além de gostar de ser objeto de riso, desenvolveu o gosto de tornar a plateia seu objeto de riso, também. É o mais crítico de todos, e a sua mensagem é tão importante quanto à forma como ele a endereça. O seu caos, ao contrário do augusto, é ofensivo, e os bufões podem levar a agressividade ao extremo. Em relação ao público, são invasivos, dominadores e impositivos. (REIS, 2011, p. 301-302) É importante considerar ainda que esses tipos são categorias abertas, generalizações que têm função de guiar o olhar para o reconhecimento dos contrastes e 24 regiões cômicas que estão sendo acessados, e a partir de cada polo todo um universo cômico se abre, na associação desses polos uma infinidade de possibilidades são postas, ou seja, estas generalizações permitem a aproximação das particularidades dos tipos palhaços, esses tipos por sua vez, não são marcados por uma substância, mas assumem uma posição frente a relação entre outros tipos, é uma posição relacional mediante o jogo cênico. Essas regiões, todavia, não são fora do tempo ou do espaço, mas fruto das muitas experimentações de artistas com seu público, no cotidiano de levar a cabo um ofício, deste modo, os tipos cômicos participam de um legado. Assim, no esforço de definição do tipo de dramaturgia empregada na arte do palhaço, tomo de empréstimo a definição de palhaçaria do comediógrafo Demian Reis: Na acepção em que uso o termo palhaçaria, esta é a experiência cênica de um atuante (palhaço) que engaja a plateia (espectador) num estado de riso, com consciência(técnica), usando principalmente o dispositivo de expor (exposição) a si mesmo como objeto ou estímulo do riso do outro. Qualquer atuante que faz isso está usando, manejando e se movimentando no universo da palhaçaria. (REIS, 2011, p. 33) Deste modo, para o pesquisador, o palhaço é “um atuante que produz na plateia um efeito ou estado lúdico por meio de uma técnica consciente de exposição de aspectos da sua personalidade como objeto de riso, mediado por uma máscara ou não”. (REIS, 2011, p. 33) Para escopo deste trabalho, esta definição interessa como importante ponto de partida, contudo, é necessário ainda imprimir contornos mais delineados a dois aspectos. O primeiro é na dimensão constitutiva da relação palhaço/plateia, pontuar o palhaço como presença atuante que engaja o espectador em um estado de riso, mas, ao mesmo tempo, diminuir o peso constitutivo dessa relação, ou seja, uma reversibilidade entre atividade e passividade que se apresenta nesse tipo de espetáculo, já que muitas vezes os artistas são ‘surpreendidos’ com o engajamento do público em suas apresentações, e não apenas os engajamentos humanos, mas os não-humanos devem ser considerados, a exemplo do cachorro que surge no meio da roda ou a chuva que cai em espetáculos de rua, ou a iluminação e o som que não funcionam como deveriam no teatro e outras tantas situações. Ao longo da dissertação algumas dessas situações presenciadas em campo serão relatas, como o esforço do palhaço Biancorino, o “protagonista”, na negociação com a presença de um bêbado que interferia insistentemente na continuidade de um dos espetáculos. 25 Como consequência dessa ressalva está, sem dúvida, a intenção de retirar a exclusividade da atuação do palhaço nos procedimentos cômicos, reconhecendo que ele precisa ser visto em um contexto relacional: há momentos em que o palhaço está circunscrito no polo da passividade. Outro aspecto a ser enfatizado é a cumplicidade entre o roteiro, ou seja, esquemas pré-concebidos de ações, e o improviso; é constitutivo do espetáculo de palhaço esquemas abertos que possibilitam a relação entre ele e o público, não há uma “quarta parede”. Esses esquemas pré-concebidos estão em consonância com a questão da técnica artística elencada por Reis: o repertório técnico que envolve especificamente cada palhaço, mas, ao mesmo tempo, o ultrapassa e atira o espectador para um legado pouco delimitado, já que ao mesmo tempo em que o lança para uma universalidade, quando remete sua familiaridade _à categoria de trickster da Antropologia Social, remonta a uma particularidade, circunscrita em determinados contextos: Grimaldi, no século XVIII, em Londres; Benjamim de Oliveira, na belle époque brasileira; Biancorino, no século XXI, na Praça Campo Grande em SalvadorBA. Por fim, vale ressaltar que esse dispositivo de colocar-se a si próprio como objeto do riso do outro é uma característica que foi observada transversalmente nos casos pesquisados e que parece ser o aspecto central da definição proposta por Reis (REIS, 2011) e nos servirá enquanto solo para o caminho que se abre na pesquisa. 26 Capítulo 2 - Do riso mecânico à encarnação do risível Este capítulo apresenta o entendimento de riso em consonância com os objetivos desta pesquisa: primeiramente se estabelece um diálogo com a concepção clássica do filósofo Henri Bergson (2007). Como lente em reversibilidade sobre a leitura de Bergson estão observações de campo, assim, por meio deste jogo, é possível identificar a “falha cômica” na teoria desse filósofo. No livro O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade é compreendido por três artigos: I – Da comicidade em geral/ a comicidade das formas e a comicidade dos movimentos/ força de expansão da comicidade. II - A comicidade de palavras. III - A comicidade de caráter. Bergson (BERGSON, 2007, p. 1-48) apresenta três argumentos principais: o primeiro defende que na passagem do trágico para o cômico se estabelece o desvio da emoção para o corpo; o cômico é produzido exclusivamente por uma fisicalidade, é matéria pura, desprovida de espírito ou emoção. Por sua vez, o segundo argumento defende que o riso se dirige à inteligência pura, contudo nunca é isolado ou individual, mas social; o riso é um comportamento de um grupo, em instantes específicos e, ao mesmo tempo, exige algo como uma anestesia momentânea do coração, permanece em contato com outras inteligências. Do segundo argumento deriva uma consequência: sendo o riso social, ele se presta a uma finalidade, demanda do riso uma função social que corresponde a certas necessidades em comum da vida de um grupo. Para Bergson, tais necessidades possuem valor corretivo: exagera-se certo comportamento, ressaltando-lhe o ridículo, com o objetivo de evitá-lo. O cômico em Bergson é negativo, indica o desvio dos valores de uma sociedade. O filósofo destaca que justamente o que deve ser reprimido é punitivo e reivindica o restabelecimento da ordem, do positivo. O terceiro argumento é uma definição sobre o cômico; para o autor, é preciso compreendê-lo como mecânico aplicado ao vivo (“du mécanique plaqué sur du vivant”), pois este seria o leitmotiv que ressalta de todos os procedimentos de fabricação do cômico. O vivo é a mudança constante, tanto no tempo quanto no espaço das coisas, dos acontecimentos e do homem; é o dado, possui valor de fundamento em relação ao mundo, à sociedade e à conduta humana. O vivo é naturalmente um dado, porque é da natureza das coisas a não repetição, elas estão em eterna e progressiva transformação, assim como os seres estudados na biologia. A sociedade e a vida exigem que o homem 27 esteja em constante adaptação, submetido às forças complementares de tensão e elasticidade. Contudo, esse processo de transformação é também um processo de conservação. O conceito de duração recebe um papel preponderante na reflexão do autor: a vida enquanto duração é renovação e conservação ao mesmo tempo. A duração explica também a ideia de élan vital, fonte de toda a vida, consciência criadora que encontra em si mesma as respostas e reações que cada momento requer. Na vida nada se repete, cada instante reivindica uma atitude inovadora, que é diversa para cada indivíduo e foge a qualquer mecanismo de controle. Tensão e elasticidade se apresentam como noções fundamentais que viabilizam a mudança, a inovação e a continuidade. Quando essas duas forças – tensão e elasticidade – se ausentam ao corpo, surgem as doenças, quando faltam ao espírito, segue-se a loucura e quando faltam ao caráter, lhe resta a inadaptação à vida social, podendo levar ao crime. É essa ausência de adaptação e de renovação (tensão e elasticidade) que constitui o mecânico, um desvio em relação ao que é próprio da natureza (BERGSON, 2007). A partir da reflexão de Bergson, o riso corrige, na medida em que se precisa rir, para estabelecer o vivo na sociedade; o riso é certo gesto social que ressalta e reprime, certa distração especial dos homens e dos acontecimentos, é movimento sem vida. O cômico para ele é o oposto da vida; é a privação da tensão e elasticidade; é redução a mecanismo e rigidez; o cômico é morte, porque é automatismo e máscara: A comicidade é esse lado da pessoa pelo qual ela se assemelha a uma coisa, aspecto dos acontecimentos humanos que, em virtude de sua rigidez de um tipo particular, imita o mecanismo puro e simples, o automatismo, enfim o movimento sem a vida. Exprime, portanto, uma imperfeição individual ou coletiva que exige correção imediata. O riso é essa correção. O riso é certo gesto social que ressalta e reprime certa distração especial dos homens e dos acontecimentos. (BERGSON, 2007, p.64-65). A comicidade recebe um valor negativo, se para o filósofo a arte tem como função recuperar a pureza de cada duração, por uma vinculação íntima, pela capacidade transformadora do sublime, da emoção, a comicidade, desprovida de tensão e elasticidade, aspectos da duração, resulta apenas em uma máscara rígida, mero mecanismo, ela perde toda força do espírito para ser arte em um sentido total, pois é pura exterioridade, fisicalidade e nenhuma afecção. A única permanência como arte na comicidade está na possibilidade de agradar, entreter, ou seja, a comicidade é uma arte 28 menor pela sua incapacidade de gerar uma real afecção, já que a comicidade está articulada a um propósito mais geral, uma função corretiva, o que a distancia de todas as outras expressões artísticas. Na comicidade, o automatismo toma conta do indivíduo, maleabilidade e flexibilidade são substituídas pela rigidez. Esses desvios em Bergson são buscados no temperamento, no caráter, nos defeitos físicos e nos hábitos; e devem ser visíveis a todos, exceto a quem os possui. Bergson apresenta uma concepção clássica sobre o riso: considera-o um processo social em termos de função, um dispositivo mecânico. A “falha cômica” em Bergson ocorre pela limitação de todo o “pensamento de sobrevoo”: o objetivo de determinar leis gerais aplicáveis a toda circunstância. A necessidade de um diálogo com as teorias do filosofo francês apresenta-se como possibilidade de entender como o riso se apresenta nesta pesquisa. Assim, é possível reconhecer muitos dos elementos elencados pelo filósofo, a associação do riso ao ridículo, grotesco ao corpo, como também essa característica “social”, ou ainda coletiva do riso, apesar de, para este trabalho, parecer mais apropriado o ajuste que a comediógrafa Cleise Mendes realiza: Melhor do que dizer que rimos ‘em grupo’, seria reconhecer que aquilo que ri, em nós, quando rimos, é o grupo. E isso em nada depende de termos nos transformado provisoriamente em puras inteligências, e sim que o comediógrafo aposta numa certa comunhão de valores que estão circunscritos a um dado perímetro social, a uma ‘paróquia’. Seria mesmo o oposto do exercício crítico a circunstância de rirmos ‘por contágio’, cúmplices de conceitos e preconceitos grupais. (MENDES, 2008, p.14) O choque com a compreensão bergsoniana reside na redução das reflexões que apresenta considerando todo e qualquer procedimento cômico uma operação mecânica, como o desenrolar de uma competência inata, um dispositivo programado que ao reconhecer um desvio é prontamente acionado. Ou ainda, retomando uma das premissas centrais de Bergson, a de que o riso se dirige a inteligência pura, ou seja, por uma anestesia do coração, o riso se voltaria à inteligência em detrimento da sensibilidade. A insensibilidade do espectador seria, deste modo, a condição para o fenômeno do riso, inclusive nas comédias e espetáculos de palhaço, essas expressões seriam incapazes de produzir qualquer tipo de empatia em relação à sua audiência. Bergson realiza uma cisão entre o sensível e o inteligível, o afetivo e o mental, tornando irreconciliável “rir 29 de” e “sentir com”. Esses polos são vistos como movimentos excludentes de afastamento e aproximação segundo a presença/ausência de identificação com a personagem. Em resumo, a definição de riso em Bergson reduz o fenômeno do riso em termos de um gesto social que tem como função a correção de comportamentos desviantes. Assim, não se pode negar esse vínculo do cômico com a norma, contudo reduzi-lo a esse único aspecto é invisibilizar a complexidade desse fenômeno, inclusive a complexidade deste vínculo e o próprio elemento criativo que o envolve, tendo em vista, por exemplo, a característica liminar observada através da categoria de trickster. Ao longo da pesquisa, com entrevistas e observações, essa característica da insensibilidade do espectador/leitor ao objeto cômico se desmontou, afirmações como “a gente jogo com e contra o público” do palhaço Chacovacchi produziu a necessidade de traçar outros caminhos para referir ao aspecto do cômico. Por meio das observações em campo, entre outras questões, é perceptível o limite da teoria de Bergson. Ainda sobre essa cumplicidade com o público, o palhaço Pepe Nuñez, em entrevista, relata: Você viu hoje, percebeu que eu beijei os lábios de homens que eu não conhecia e eles também não me conheciam, esse é o grande barato do palhaço, o palhaço com sua liberdade e ousadia ele provoca a liberdade e a ousadia do público. E a coisa é tão boa que se cria confiança, quando estamos em confiança com o meio, com as pessoas que nos rodeiam estamos livres, essa é grande parada do palhaço que eu aprendi nesses 26 anos fazendo palhaço, a teoria se resume a isso: o palhaço cria um clima de confiança, na confiança de ser livre e quando somos livres podemos ser nós mesmos não temos medo de nada, porque confiamos em tudo , então podemos brincar em dá um chute na bunda, podemos falar de sexo, amor, poesia, ser mímicos, o universo conspira; com essa coisa de virar o avesso, ao contrário, na verdade bota as coisas no local certo, o lugar da paz, da alegria, da liberdade, da tolerância e mesmo aquele doido, doido demais, o máximo que ele provoca é uma gargalhada. (NUÑEZ, em entrevista 2010) 30 Figura 5. Pepe Nuñez, 2010. ( http://www.olaserragaucha.com.br, acesso em 25/03/2012) Nos espetáculos de rua é preciso que o palhaço reúna um grupo de passantes, um público móvel que não pagou para estar ali, é necessário que conquiste um público, pois participantes da plateia, a qualquer momento, pode abandoná-lo. Este caso é um excelente exemplo da necessidade de produção de empatia entre o artista e o público. Testar os limites desse vínculo também faz parte do jogo cômico do palhaço. Basta atentar para os números de interação em que de fato o palhaço coloca em risco o sucesso da performance, já que o público pode se negar a realizar as peripécias propostas.Nesse sentido, o público do espetáculo de rua é distinto de um espectador passivo que reponde mecanicamente via o “mental” aos estímulos cômicos propostos pelos palhaços, como pretende a teoria bergsoniana. Durante a pesquisa de campo foi observado um processo de envolvimento do público para com o artista e vice-versa para que o fenômeno cômico ocorra, produzindo, portanto, um campo de afecção que será trabalhado com mais detalhe no capítulo seguinte. O palhaço tem que está aberto, todos os poros, saber o que está acontecendo, é um estado de alerta, escute o público e para isso tem que está muito sensível. Se você está na praça e o sino da praça toca você tem que fazer alguma coisa e você pode manipular com a palavra e com o corpo. (CURCIO, em entrevista, 2008). 31 Figura 6. Lili Curcio, 2010. ( http://www.flickr.com/photos/larretxipi/galleries acesso em 23/03/2012) Figura 7. Chacovachi, 2008. (https://picasaweb.google.com/anjosdopicadeiro acesso em 28/03/2012) Desse modo, diferentemente dos objetivos e premissas bergsonianas, parto de um ponto de vista téorico que privilegie entender como o cômico se “faz fazer” na relação palhaço/espectador. Ou ainda, que rendimento analítico teria uma análise que investigasse o cômico no modo como é performado em detrimento de pensá-lo como epifenômeno? Assim, desse modo, proponho uma “encarnação” do riso; ainda que por trilhas nebulosas, viso a perseguir a indissociabilidade do riso ao sensível. Proponho, pois, uma perspectiva sobre o riso que melhor caracterize sua manifestação entre os sujeitos da pesquisa, ou seja, uma perspectiva que enlace riso e sensibilidade, 32 criatividade; aspectos negligenciados na filosofia de Bergson. 33 2.1 Esboço para uma teoria da sensibilidade Para as reflexões proposta por este trabalho, é possível encontrar, na filosofia de Merleau-Ponty, um caminho alternativo que permite avançar na associação do riso ao sensível; uma alternativa à concepção clássica da filosofia de Bergson que encapsula o riso ao aspecto estritamente intelectual; ao mesmo tempo, inibe a condição da recepção para o fenômeno cômico, circunscrevendo o espectador a exclusiva condição de passividade. Para tanto, faz-se necessário uma incursão sobre a percepção na filosofia de Merleau-Ponty. A percepção, tal como tratada na obra, A Fenomenologia da Percepção (MERLEAU-PONTY, 1999), por vezes, é explicitada em outros termos preservando ainda a mesma função: atividade perceptiva, consciência pré-reflexiva, consciência antepredicativa. Essa heterogeneidade do termo explicita apenas as diversas nuances de um mesmo tópico. Merleau-Ponty descreve a percepção como um contato originário com o mundo que apresenta as coisas não como representações privadas, mas tais como são. Trata-se de abertura no sentido do envolvimento ontológico entre o ser e mundo que antecede os estilos e particularidades culturais que essa abertura adquire no decorrer de uma experiência, essa relação entre sujeito e mundo sensível se realiza sem intermédio de representações ou faculdades. Em várias passagens na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty salienta a abertura instalada pela percepção além de qualquer relatividade cultural: [...] ter sentidos, por exemplo, ter a visão, é possuir essa montagem geral, essa típica das relações visuais possíveis com a ajuda da qual nós somos capazes de assumir toda constelação visual dada. Ter um corpo é possuir uma montagem universal, uma típica de todos os desenvolvimentos perceptivos e de todas as correspondências intersensoriais para além do segmento de mundo que nós percebemos efetivamente. Há uma lógica do mundo que meu corpo inteiro esposa e pela qual coisas intersensoriais tornam-se possíveis para nós. Quando eu compreendo uma coisa, por exemplo, um quadro, eu não opero atualmente a sua síntese, eu venho diante dele com meus campos sensoriais, meu campo perceptivo, e finalmente com uma típica de todo ser possível, uma montagem universal em relação ao mundo. (MERLEAU-PONTY apud FERRAZ, 2009, p.182) 34 Assim, para Merleau-Ponty, o mundo é aquilo que se manifesta para a consciência perceptiva; por sua vez, a consciência perceptiva não é senão um contínuo engajamento nas estruturas mundanas: possui papel fundamental na reversibilidade contínua entre corpo e mundo. A percepção é justamente o operador que realiza a correlação perfeita entre o ser e as capacidades subjetivas; por meio dela, o sujeito se engaja nas situações mundanas que são abarcadas pelo projeto geral de mundo portado pelo sujeito. (FERRAZ, 2009, p. 184), Esse voltar-se ao pré-objetivo, antes de qualquer reflexão ou abstração, carrega consigo uma crítica às tradições empirista e intelectualista. A primeira – a tradição empirista – toma o mundo como inteiramente pronto, meio de todo acontecimento possível e ignora por completo o sujeito da percepção. A percepção é mais um acontecimento no mundo ao qual poderia, assim como a física clássica, estabelecer a categoria de causalidade. Dessa maneira, o pesquisador procura descrever a ocorrência, “as sensações e seus substratos como se descrevesse a fauna de um país distante – sem perceber que ele mesmo percebe, que ele é sujeito perceptivo e que a percepção, tal como ele a vive, desmente tudo o que ele diz da percepção em geral”. (MERLEAUPONTY, 1999, p. 279). Por outro lado, a tradição intelectualista compreende a consciência antes de qualquer experiência, todo o sistema de experiência encontra-se subordinado a um pensador universal responsável em realizar todas as relações, é o Ego transcendental. Apesar de Merleau-Ponty reconhecer um avanço em relação ao empirismo, pois o estado de consciência torna-se consciência de um estado, o mundo torna-se correlativo de um pensamento do mundo e só existe para um constituinte, todavia, diz o autor “permanece verdadeiro que o próprio intelectualismo se dá o mundo inteiramente pronto. Pois a constituição do mundo, tal como ele a concebe, é uma simples cláusula de estilo: ‘a consciência de...’.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 280) Merleau-Ponty, desse modo, promove a encarnação da consciência. A imbricação entre corpo e consciência, o corpo vivido, não trata de subtraí-lo do universo da natureza e arremessá-lo no campo da subjetividade. Trata-se antes de redefinir os dois termos (sujeito e mundo) a partir da “imbricação” entre ambos (RABELO, 2008, p. 109) Perpassado pelo subjetivo (“todo ele psíquico”), o corpo não é mais matéria inerte ante o espetáculo da cultura, é “corpo vivido”. 35 Ancorada no corpo, por sua vez, a subjetividade já não pode mais ser tomada como interioridade, locus de onde emanam e onde são armazenadas representações acerca do mundo. O corpo nos enraíza no mundo da cultura e da história (mas também dos sensíveis), nos enreda nas ações de outros e faz os outros inevitavelmente participarem de nossas ações. (RABELO, 2008, p. 109) Nesses termos, encontramos na discussão de Merleau-Ponty, a cumplicidade entre corpo e mundo, não apenas assinalando a presença do mundo e do “outro” na própria subjetividade, como também propondo a sociabilidade como condição existencial que funda qualquer processo de subjetivação. Como nos propõe Miriam Rabelo “Minha existência encarnada se tece sob o horizonte da existência do outro; meus gestos retomam e respondem ao outro, nos seus gestos descubro minhas intenções”. (RABELO, 2008, p. 110) É nesse mundo comum em que habita e é dessa sociabilidade primeira que se pode eclodir como sujeito e, por essa mesma condição, o outro surge como objeto ou “autoriza” a surgir nessa mesma condição, também como objeto. Ao se debruçar sobre a percepção, sobre essa consciência encarnada que é o mundo via um corpo que não é oposição da consciência, mas sim imbricação ontológica cujos limites não excluem a alteridade nessa experiência de mundo, é possível pensar em termos de intercorporeidade. Entretanto, a contribuição deste raciocínio que unifica corpo e consciência não é feita sem consequências. O sensível não é oposição à ideia, pois toda a vida reflexiva delineia-se na própria experiência perceptiva sobre o mundo; a percepção não é um somatório de sensações distintas, “soldadas pelo hábito” como também não é a imposição de uma forma sobre conteúdos dispersos. “A percepção é comunhão com as coisas – como comunhão pressupõe nossa inserção comum no lugar gradativamente revela o lugar como arena do nosso encontro” (RABELO, 2008, p. 117) Em O Visível e o Invisível Merleau-Ponty radicaliza esse entrelaçamento ao pensar o ser carnal: O corpo nos une diretamente às coisas por sua própria ontogênese, soldando um a outro os dois esboços de que é feito, seus dois lábios: a massa sensível que ele é e a massa do sensível de onde nasce por segregação, e a qual como vidente, permanece aberto. E ele é unicamente ele, porque é um ser em duas dimensões, que nos pode 36 levar às próprias coisas, que não são seres planos, mas seres em profundidade, inacessíveis a um sujeito que os sobrevoe, só abertas, se possível, para aquele que com elas coexista no mesmo mundo. Ao falar falarmos de carne do visível, não pretendemos fazer antropologia, descrever um mundo recoberto por todas as projeções, salvo o que possa estar sob a máscara humana. Queremos dizer ao contrário que o ser carnal, como ser das profundidades, em várias camadas ou várias faces, ser de latência e apresentação de certa ausência, é um protótipo do Ser, de que nosso corpo, o sensível sentiente, é uma variante extraordinária, cujo paradoxo constitutivo, porém, já está em todo visível: já o cubo reúne em si visibilia imcompreensíveis, como meu corpo é concomitantemente, corpo fenomenal e corpo objetivo, e se, enfim, existe como ele, por um golpe de força. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 132-133) O corpo humano é um ser de duas faces; é coisa entre as coisas e por outro lado aquilo que as vê, as toca. Há, dessa maneira, uma dupla pertença tanto à ordem do objeto quanto à ordem do sujeito. Ao mesmo tempo, a experiência entre o sentiente e o sensível não é uma relação dada em termos de um em-si e um para-si, antes o sentiente interroga o sensível a partir dos termos do próprio sensível. Essa premissa de reversibilidade possui um locus privilegiado em Merleau-Ponty, a questão passa a ser que a atividade está vinculada a uma passividade, ver as coisas está vinculado a ser visto pelas coisas, ou ainda não é o sujeito vendo o objeto, mas a visibilidade geral do visível: o visível se ver vendo. Compreende-se então por que, ao mesmo tempo, vemos as próprias coisas no lugar em que estão, segundo o ser delas, que é bem mais do que o ser-percebido, e estamos afastados delas por toda a espessura do olhar e do corpo: é que essa distância não é o contrário dessa proximidade, mas está profundamente de acordo com ela, é sinônima dela. É que a espessura da carne entre o vidente e a coisa é constitutiva de sua visibilidade para ela, como de sua corporeidade para ele; não é um obstáculo entre ambos, mas o meio de se comunicarem. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 131) Vale salientar que não é objetivo primordial deste trabalho esmiuçar as concepções merleaupontianas, mas se valer delas para investir em uma interpretação sociológica alternativa às propostas da filosofia de Bergson dadas no início deste capítulo. Assim, a proposta é verificar como as concepções de Merleau-Ponty – aqui brevemente apresentadas – podem auxiliar neste empreendimento. A associação entre 37 corpo e mente, entre intelecto e sensibilidade, é possivelmente a principal contribuição da fenomenologia de Merleau-Ponty, não apenas para essa pesquisa em particular, mas para as Ciências Sociais que tradicionalmente se rendeu a tais dicotomias na explicação da realidade social. A contribuição merleaupontyana para esta pesquisa em específico permite compreender sobre o riso aliando o “rir de” com o “sentir com”. Desse modo, possibilitou a apreensão dos elementos criativos na fabricação do cômico, algo negligenciado na perspectiva bergsoniana, o cômico, assim como o riso, já que Bergson não realiza nenhuma distinção entre esses conceitos, se caracterizam justamente pela ausência da criatividade, pois são marcados pela rigidez e a ruptura com a duração. O “rir de” é algo que se estabelece pela anulação do “sentir com”. 38 2.2 Seguindo outros ruídos Em Do papel do corpo como limitador da vida do espírito com vistas à ação: notas sobre o dualismo de Bergson, a filósofa Maria Adriana Camargo Cappello, apesar de analisar outra obra do autor – Matéria e Memória – apresenta um argumento que se afina ao que foi identificado na presente pesquisa. Cappello inicia o texto com a citação do filósofo francês: “o corpo, sempre orientado para ação, tem por função essencial limitar, em vista da ação, a vida do espírito” (BERGSON apud CAPPELLO, 1999, p. 199) A partir desta citação, aponta reflexões sobre o dualismo entre corpo e representação, ou ainda o dualismo entre corpo e consciência, já que o papel do corpo é reduzido a um mecanismo sensório-motor que recebe influências do exterior e responde com ações. Recuperando o que foi delineado no início deste capítulo na obra O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade, é possível compreender então que, apesar de Bergson localizar a dimensão do corpo na questão do cômico, é apenas em termos de o corpo ser um operador sensório-motor que pode ser solicitado quando ocorre um rompimento com a flexibilidade e maleabilidade, levando a concluir que a dimensão da significação do riso se trata de uma operação exclusivamente mental. Ao assumir a contribuição de Merleau-Ponty ao proceder a encarnação da consciência, ou ainda essa reversibilidade entre consciência e corpo, corpo e mundo, é possível, então, postular uma investigação sobre o fenômeno cômico por meio de duas características na construção dramatúrgica da arte do palhaço que solicita outro entendimento a partir da experiência na produção do espetáculo: a colaboração entre improviso e roteiro, tendo o público como elemento ativo da encenação O palhaço opera com um roteiro sucinto aberto para o improviso. Antes mesmo, não se trata de uma dicotomia, a característica flexível dos roteiros viabiliza as ações improvisadas, assim como as últimas são fundamentais para a atualização desses roteiros. O caráter da dramaturgia considerada é o extremo oposto do objetivo naturalista do teatro de tom realista que faz uso da quarta parede, em que separa a plateia da cena; a interação com o público é um eixo fundamental, produzindo uma libertação das associações “simbólicas”, tanto para o público, quanto para o próprio artista, já que muitos dos sentidos cênicos são dado nesse campo de afecção artista/espectador. O espetáculo do palhaço é dependente do público. A proximidade e a 39 presença evidente da plateia, que raramente está no escuro, permitem ao palhaço um contato direto por meio de brincadeiras, correrias, escapadelas etc. É preciso criar o ambiente de escuta que passa pela calma. Preciso entender que espaço é esse que eu crio para eu abrir um canal de ação, de comunicação, principalmente para que nós nos relacionemos, mas do que eu esteja como tivesse o que dizer. (MAGALHÃES, Esio. Em entrevista, 2008) Antes de pensar em dois polos distintos, duas realidades em si, o artista e o público, há um processo de contaminação, dito pelas lentes de Merleau-Ponty, nenhum dos dois polos é totalmente sujeito ou objeto, atividade ou passividade, ao mesmo tempo, eles não se confundem um com o outro. É preciso um entendimento no campo da intersubjetividade, ou ainda de uma intercorporeidade, um solo comum, um mundo compartilhado: O sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de uma nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 18) Ou como aponta Rabelo (2008) “meus gestos retomam e respondem ao outro, nos seus gestos descubro minhas intenções”. Se as realidades fossem um em si, nada estaria por fazer, o espetáculo seria acabado antes mesmo de sua realização, não haveria precisamente uma comunicação, mas um trânsito entre representações de sujeitos abstratos: o topos idealista. Assim, lida-se com regiões de uma mesma unidade e, por se tratarem de regiões, elas não se confundem uma com a outra, mas se interpenetram em um movimento de distância e proximidade. Como propõe o palhaço argentino Chacovacchi, o palhaço joga com/contra o público: precisa dele para jogar com e contra, porque o palhaço quer algo dele. Recuperando mais uma vez Merleau-Ponty caberia a metáfora de espessura, essa distância e proximidade é constitutiva do fenômeno do espetáculo, essa intercorporeidade, antes de um obstáculo é o meio de se comunicarem. Os números participativos muito comuns nos espetáculos de palhaço, essa reversibilidade constante entre passividade e atividade que diz respeito ao 40 artista/público se torna latente: Dependendo da pessoa do público que você chame o número participativo pode demorar, construir barrigas no espetáculo, tem gente que é difícil de lidar, rouba a cena e até mesmo cansa o resto do público e a gente, oras pode te surpreender positivamente tornar seu parceiro e engrandecer o número. (COSTA, Suzy. 2010) Na estreia do espetáculo o Jardim, por exemplo, no momento do número participativo, elas – Felicia Castro e Suzy Costa – convidaram um homem que se sentiu bastante “a vontade” no palco e não respondia as solicitações como esperado pelas palhaças. O número era um transplante de coração, nitidamente o número demorou mais do que o esperado, a princípio, o público ria bastante com a “transgressão” do convidado, mas, aos poucos foi cansando, as risadas silenciadas, inibindo novas travessuras do rapaz. Tal fato, entretanto, facilitou a performance das artistas que puderam continuar o roteiro. Assim, é da condição do risível a dinâmica artista/público, essa dinâmica é possibilitada por certo modo de fazer com que os passos da realização cênica não estão todos previstos por uma encenação previamente preparada e, ao mesmo tempo, a realização cênica é controlada pelo esquema proposto, pelas entradas que apresentam as maneiras pelas quais cada palhaço está enredado em um saber e, por sua vez, o andamento da encenação é controlado pelas próprias reações do público. Em cena, a eficácia da interpretação opera com o comunicar-se com outro palhaço quando for o caso, com o apresentador (ou com ambos) e com o público, que passa a ser personagem do jogo cênico improvisado. Há uma forte tradição na Sociologia da Arte e Sociologia da Performance que pensa a arte através do par binário ordinário x extraordinário. Herança do pensamento estruturalista que compreende rupturas radicais na realidade social através de eventos como o ritual. A arte inauguraria outro estado que põe em suspensão a vida cotidiana3; assim, esse binarismo incide sobre a mesma sobredeterminação teórica da questão artista/espectador que, abrindo mão de uma postura compreensiva, recai sobre o paradigma explicativo na busca de encontrar essências, eventos em si. 2 Essa separação produziu duas perspectivas na teoria da performance: uma dedicada aos aspectos da vida cotidiana, representados por autores do interacionismo simbólico principalmente Irving Goffman; e outra, a perspectiva que se dedicaria aos aspectos extracotidianos, rituais, eventos artísticos, esportivos, com Victor Turner. 41 Ora, essas rearticulações da vida cotidiana, os eventos extraordinário estão fundados na experiência; esse solo comum – que completa o sentido de experiência, porque palhaço e espectador experienciam um mesmo mundo – é porque o mundo do palhaço não é outro distinto do espectador, pois o inclui na medida em que o espetáculo é realizado. Nesse sentido, diante do palco, os elementos em cena não pertencem a nenhuma realidade incompreensível: mesas, bolas, apitos, roupas, refletores, poltronas, efeitos de som, luz, etc são elementos de uma trivialidade sem fim. Assim como é comum para o espectador os seus usos, os modos de fazer é expressão de certa estabilidade, esquemas corpóreos como diria Merleau-Ponty, que não excluem a contingência, pois, por exemplo, o fato de saber lavar os pratos não garante que alguns não possam ser quebrados no ato de lavá-los. Os palhaços, como os espectadores, estão enredados no mundo através dos esquemas corpóreos, e é por essa condição que os palhaços remanejam os esquemas: o modo de fazer do espetáculo de palhaços estaria, justamente, na atuação de esquemas corpóreos alternativos e, junto a eles, os outros modos de performar4 dos entes. Uma bola de soprar pode se transformar em um bebê, a mesa em uma casa; ou ainda, quando se trata de uma pantomima, o manuseio de objetos invisíveis, a percepção da presença do objeto é dada através da performance; o interessante, nesse caso, é que a ausência do objeto força um remanejamento radical por parte do artista. Ao observar uma oficina de mímica corporal dramática, uma das dinâmicas era empurrar uma parede invisível e, para isso, o eixo de força que estaria nas mãos, braços, ombros, era rearticulado para as pernas, principalmente a panturrilha, fazendo com que algumas pessoas relatassem fortes dores depois do exercício. De pronto, surgiu a pergunta: se ao empurrar uma parede (visível) se é capaz de reconhecer essa co-presença, dentre outras formas, pela tensão entre a superfície da parede e as mãos, o ato de empurrar uma parede invisível faz ela co-nascer na tensão entre a panturrilha e o chão? Para uma resposta preliminar, é possível afirmar que no esforço e remanejamento do corpo frente à parede invisível, ela se torna presença para o mímico e assim para a comunidade (o público). Algo muito semelhante foi analisado pelo sociólogo Guilherme Veiga, na tese Ritual, Risco e Arte Circense: o homem em situações – limite. No trabalho, Veiga, entre outras questões, analisa a produção de experiências sensoriais, tanto na constituição do 3 Nesse caso não há nenhuma distinção entre o atuar e o performar, ambos estão sendo usados no sentido de to play. Ou seja, mas próximo da ideia de jogar que executar. 42 teatro clássico, na performance art, quanto nas performances circenses. Guilherme Veiga produz um conceito de redoma sensorial ordinária: Nosso arcabouço sensorial cotidiano é, portanto, formado pelo conjunto simultâneo das sensações que estamos mais ou menos acostumados a lidar e que geram o que se pode chamar de redoma sensorial ordinária. Essa redoma, como qualquer redoma, é a composição de uma série de elementos sensoriais , mas não pode ser compreendida pela simples soma desses elementos . A redoma sensorial é antes uma totalidade de sentidos que, interagindo e maximizando-se mutuamente, produzem um efeito que ultrapassa a soma de suas partes. (VEIGA, 2008, p. 73) Tanto os conceitos de redoma sensorial quanto de esquemas corpóreos buscam descrever esse complexo sensorial da experiência partilhado e remanejado nas performances, contudo, a ideia de esquema apresenta-se como substantivo mais eficiente para propor ideia mais enfática de dinâmica, de ação, atributos propriamente cênicos, em que existe preocupação acentuada com o público, que se reduz, por exemplo, em relação ao acrobata. (VEIGA, 2008) Com vistas a recuperar a dimensão ontológica da percepção, vale ressaltar que os esquemas corpóreos se fundam no mundo do vivido. Os sujeitos compartilham, portanto, no mundo da vida, certos esquemas corpóreos, construindo um código de referência, via um arco intencional ou ainda uma intencionalidade corpórea: a exemplo da forma de sentar, de usar objetos, de utilizar talheres. Sobre tais questões, é possível aludir a seguinte concepção de MERLEAU-PONTY: Então digamos antes, tomando de empréstimo este termo a outros trabalhos, que a vida da consciência - vida cognoscente, vida do desejo ou vida perceptiva - é sustentada por um ‘arco intencional’ que projeta em torno de nós nosso passado, nosso futuro, nosso meio humano, nossa situação física, nossa situação ideológica, nossa situação moral, ou antes que faz com que estejamos situados sob todos esses aspectos. É este arco intencional que faz a unidade entre os sentidos e a inteligência, a unidade entre a sensibilidade e a motricidade. (MERLEAU-PONTY, 2006, p.190) Toda sociedade produz situações extraordinárias, o que necessariamente requer um remanejamento dos esquemas corpóreos: 43 Assim, todas as sociedades criam situações para que sejam experimentadas situações extracotidianas de alta coesão sensorial. No caso da sociedade moderna, situações desse gênero são as festas, as drogas, os esportes de risco, os jogos e competições. No caso das sociedades primitivas são os rituais, as caças, as guerras. (VEIGA, 2008, p. 116) Os esquemas cotidianos produzem, portanto, uma função de referencialidade, em termos de significações estáveis para produção de contextos sociais. É justamente pelo palhaço compartilhar com os outros (e os outros consigo mesmo) os esquemas corpóreos cotidianos que viabiliza a projeção para esquemas remanejados. Assim, o que está em jogo nesse remanejamento é justamente um jogo de sentidos, retira-se do sentido seu contexto cotidiano e o projeta para um contexto “extraordinário”. É possível comprovar isso em diversos níveis e graus, desde o caminhar com as mãos ao fazer uma bananeira, a estabelecer relações inusitadas entre um objeto e outro (uma garrafa sendo remanejada e utilizada como microfone, por exemplo), produzir associações entre humanos e animais, entre outras estratégias. O fato de tais esquemas corpóreos sensoriais serem produtores de uma rede de significados mais ou menos tipificados, padronizados, em que os sentidos são compartilhados em sua manualidade, em seu uso, constrói um horizonte que possibilita o remanejamento desses esquemas pelos palhaços; ou ainda, é pelo remanejamento desses esquemas possuírem uma base propriamente social, no sentido de um solo comum, que é possibilito o fenômeno do risível. Assim, a ideia do palhaço enquanto remanejador de esquemas corpóreos compartilhados ilumina certos aspectos escamoteados por uma perspectiva diegética. Ou seja, uma perspectiva que entende o espetáculo como algo apartado da experiência de um sujeito em mundo social, o espetáculo enquanto um em si; assumindo uma perspectiva dialógica que considera o contexto social da produção do espetáculo, recuperando a característica processual deste evento, consequentemente leva a considerar outras situações para análise do espetáculo. Assim eventos ocorridos fora do palco permitiram uma análise mais ampla não apenas de um espetáculo de palhaço, mas do modo de fazer desse estilo dramatúrgico. Durante observações nos camarins, ouvi 44 de um dos palhaços “essa camisa não serve para mim, tem a gola muito curta”, e logo em seguida “preciso de mais vermelho no queixo”. Por que aqueles detalhes pareciam tão importante para ele? A necessidade de golas mais altas, um excesso de maquiagem em um lugar específico, aqueles detalhes pareciam cruciais para o que viria depois: o espetáculo. Na semana seguinte, observando o espetáculo do mesmo palhaço, depareime com o mesmo palhaço maquiando a filha que atuaria com ele naquele dia; perguntei se havia alguma orientação o que estava fazendo, se havia alguma regra para a maquiagem do palhaço. Ele respondeu-me: Para mim, começa pelos os olhos, ele precisa ser o primeiro a ser destacado, depois a boca... então você tem que prestar atenção se os olhos são pequeninos. Então, começar aqui pelo branco no olho... tem essa coisa de dá uma dilatada na pessoa, com alguma coisa lírica, singela, não pode ser pesado demais, fica muita informação, uma mancha sem sentido nenhum. Se a pessoa é redondinha, se tem o rosto muito fino, tudo isso você tem que levar em consideração, quando você entende de maquiagem ajuda muita, entender o que ampliar, o que reduzir [...] No meu caso, eu tento deixar meu rosto mais largo, redondo, Ricardo Pucetti, meu mestre, coloca uma listra vertical, porque tem um rosto muito fino. (CASALI, Alexandre, em entrevista, 2010) Sobre o figurino, outro palhaço acrescenta: Uma pessoa mais gorda é interessante que use listras horizontais, para tornar esse traço mais evidente, mais ridículo, pernas cumpridas? shorts curtos, pescoço curto? camisa com golas altas” (ARAPONGA, Marconi, em entrevista, 2010) 45 Figura 8. Marconi Araponga, 2010. Foto: João Matos Os figurinos como a maquiagem são alguns desses elementos sensoriais que participam da prática de remanejamento, reorientando o olhar do espectador. Contudo, isso não pode ser dito sem ressalvas, somos motivados a recuperar uma perspectiva de causalidade, como se essa composição visual produzisse estímulos específicos e o efeito seria o riso da plateia. Antes tais elementos sensoriais orientam o olhar, a cor e a experiência do olhar promovem uma experiência relacional, as listras verticais em um corpo largo ou um rosto cumprido em comunhão com a experiência do olhar compõe o fenômeno grotesco, risível. Cada palhaço explora sua fisionomia buscando uma expressão ridícula, há um universo comum nessa “caracterização”, mas a maneira como cada um distribui as paletas das cores brancas, pretas e vermelhas são particularizadas. É importante considerar que, ao utilizar a metáfora do olhar, não se trata de uma experiência que exclui outros sentidos, todo olhar é uma experiência de sinestesia, há uma solidariedade dos sentidos. Como propõe Rembrant, pintor holandês do século XVII : “o vermelho é denso, em comparação com o amarelo ele seria um sólido, somos capazes de tocar, o amarelo tem movimento, tem cheiro”. Dessa maneira, uma exploração pela teoria da sensibilidade permite investigar a dimensão sensível da produção do corpo cômico, aspecto que permaneceria omitido por 46 uma exploração via a concepção clássica de Bergson. Nesse processo, na montagem dos palhaços, é possível observar, ao mesmo tempo, uma experiência de objetivação e subjetivação através do corpo. Ao pintar o corpo, ele se torna superfície por meio da qual é possível descobrir e sigo contornos próprios (temos um corpo), ao mesmo tempo, esse ato revela a comicidade no próprio palhaço (somos um corpo). Nestes termos, proponho compreender a produção do risível através desse circuito multireceptivo em que transpassa espectador, artista em um espaço que performa juntamente a dinâmica artista e espectador, os elementos desse circuito (figurino, maquilagem, iluminação, cenário, sonoplastia, etc) são, ao mesmo tempo, difíceis de precisar em totalidade como também são variáveis de um espetáculo a outro. Esse circuito é participante dessa disposição palco/plateia, ou seja, há a condição da arquitetura dos espaços encenados e uma investigação sobre estes faz aparecer o que se poderia chamar de ecologia da recepção. Os espetáculos ocorrem em espaço cênico no sentido também de uma materialidade: teatro, praça, circo, hospital. Cada um desses espaços solicita uma forma particular na ocorrência do circuito multireceptivo do espetáculo. Caso seja tomado, por exemplo, a construção do teatro Epidauros, na Grécia, com capacidade para 6.200 pessoas, onde havia ao mesmo tempo uma preocupação na disposição dos elementos cênicos, pois já continha palco (skene), proscênio (proskenio), corredores de acesso (paradoi), orquestra (orchestra) e fundo de cena (thyromata) e a consideração da presença do público, a acústica do teatro era perfeita, o espectador era capaz de escutar cada palavra ainda que sussurrada. O interessante é que a escolha desses locais para atingir essa acústica perfeita levava em conta o sentido do vento que vinha do mar em locais fora da cidade. Em outro momento histórico, nos teatros londrinos que abrigavam o teatro de Shakespeare e seus contemporâneos, possuía a forma octogonal, com lugares especiais destinados à nobreza e balaustradas nas galerias frontais próximas ao palco. Essas balaustradas eram espécies de escudos para proteger os atores do público, pois eram espetáculos que contavam com participação ativa da plateia. Alguns historiadores apontam que essa estrutura octogonal permitia ao público ver e ser visto, o que consistia num importante aspecto: para os espectadores, assistir ao que se passava em cena era tão importante quanto assistir sua própria participação, sua própria reação. Em outras disposições, como o palco italiano (1668), há preocupação em 47 assegurar certa “docilização” na dinâmica espectador/artista. Para tanto imprimia distância física entre palco e plateia, sendo que a reação da plateia formada por não nobres muitas vezes deveria está de acordo com a reação dos nobres: Se o rei risse em alto e bom tom de alguma ação mostrada em cena, o público estava autorizado, ou talvez até “obrigado” a fazê-lo também. Caso contrário se poderia incorrer em gafes e ferir certos princípios, certas regras de comportamento, ofensivas ao rei. Rir de algo que o rei não achava engraçado poderia trazer más conseqüências. (CAJAÍBA, 2010, p. 185) Em encenações nas praças e mercados no século XVII, sem dúvida uma das manifestações que mais declaradamente contribuíram para produção dos espetáculos dos palhaços contemporâneos, inclusive do próprio circo, os palcos eram distribuídos em círculo, recuperando uma característica do teatro grego. Essa disposição permite uma atmosfera intimista, valorizando a relação palco/plateia. Nos últimos anos, são presenciadas encenações que exploram lugares atípicos como hospitais, manicômios, zonas de guerra, fábricas abandonadas, vagões de trem; tais investidas possibilitam experimentação sem fim desses circuitos multireceptivos, produzindo uma pluralidade nas configurações das ecologias receptivas. Em entrevista, Esio Magalhães, palhaço Zabrobrim, relatou sobre sua atividade em espetáculos no hospital: É você e o paciente, às vezes eu me apresentei com mais um palhaço, mas não tem como você chegar no quarto e já ir apresentando um número. É preciso que a pessoa queira que você fique ali e é importante que você entenda que doença ela está acometida, já aconteceu de está com um garotinho em que ele não podia mexer os olhos para os lados, ele não tinha visão periférica, é preciso que isso seja levado em consideração. Não pode ser nada barulhento, tem um outro leito ao lado. O trabalho não é realizado apenas com pacientes, mas com médicos e enfermeiros, fazer palhaço no hospital é muito específico, é preciso muita atenção. Geralmente são utilizados os objetos que fazem referência a esse universo: o guarda pó, as máscaras, estetoscópio; e inventamos nomes de doenças, sintomas, tratamentos, coisas idiotas mesmo, como bobagerol aguda, alegricite crônica. (MAGALHÃES, Esio, em entrevista, 2008) 48 Vale ressaltar, o fato de que existe um diálogo entre a arquitetura dos espaços e a composição espacial de cada espetáculo, sendo essa composição espacial vinculada às necessidades narrativas de cada apresentação, formando uma ecologia da recepção. Ao mesmo tempo, há um componente histórico na compreensão dos espaços cênicos que, levando sempre em consideração a dinâmica palco/plateia, não era disposta da mesma forma, em alguns momentos reinava o paradigma da contemplação como no caso dos teatros gregos, em outros momentos havia uma hiper estimulação como no teatro londrino das encenações de Shakespeare ou a “docilização” completa, como é o caso do palco italiano e, recentemente, em espaços como o hospital em que a interação é direta e extremamente “individualizada”. No último Encontro Internacional de Palhaços Anjos do Picadeiro (Rio de Janeiro – 2010), em conversa com Ângela de Castro uma das palhaças brasileiras mais renomadas, relatou-me que fora convidada para dirigir um Espetáculo de Gala, espetáculos em que um palhaço dirige números de outros palhaços. O organizador do encontro solicitou que ela realizasse o mesmo espetáculo que apresentou em Salvador na edição do encontro em 2007 com palhaços distintos; além dos palhaços já convidados, Ângela de Castro convidara palhaços iniciantes que participavam de oficinas ministradas por ela. Na disposição dos espetáculos, os iniciantes ficariam como pano de fundo, criando uma movimentação no palco. No Rio de Janeiro, relatou-me a dificuldade em refazer o espetáculo, pois em Salvador trabalhara no teatro Vila Velha, um teatro menor de formato multifuncional, ou seja, o espaço pode funcionar como um teatro arena, semi-arena, italiano, etc. Naquela ocasião, o teatro era uma semi-arena, com formato circular, o que auxiliava na atmosfera intimista almejada pela artista; no Rio de Janeiro solicitaram que ela apresentasse no teatro Carlos Gomes, muito maior que o Vila Velha, um formato mais rígido, um clássico palco italiano, logo uma distância maior com a plateia. A preocupação da artista envolvia justamente o que busco demonstrar: o envolvimento entre a composição espacial (palco/plateia) e as necessidades narrativas. O espetáculo continuou sendo elogiado, mas a ressalva para quem assistiu em Salvador foi inevitável. A questão não é anular a figura do palhaço em seu próprio espetáculo, mas ao mesmo tempo não parece interessante torná-la absoluta, ele é o start point do circuito. Na leitura de Despret sobre o conceito de autoridade em Beatson, ele – o palhaço – 49 autorizaria, mas também é autorizado por seus mediadores, participa junto ao público e toda essa “flora” que habita o espetáculo de uma ecologia da recepção. Esse trabalho é uma exploração das consequências possíveis através de uma teoria da sensibilidade, reinserindo essa questão na discussão do riso. Tal necessidade decorreu da postura dialógica a qual a pesquisa se desenvolveu. Assim, com a opção de minimizar uma postura explicativa, outros ruídos parecem vir à tona e, possivelmente apesar do esforço para atendê-los, eles ultrapassam a esfera individual. Os pesquisadores da área são sempre atirados a novas inquietações, efeito de um campo ainda em construção (Estudos da Performance e Recepção) com características instáveis e pouco consensuais, a ideia de work-in-progress parece mais uma condição ontológica do que apenas reflexo de uma área pouco privilegiada nas Ciências Sociais. O sentimento de inacabamento marca também as próprias questões levantadas neste trabalho cujo esforço se orientou mais por uma pulsão inicial do que por tentativas conclusivas, levantar questões e abrir caminhos ensaiando algumas respostas, parece traçar de ponta a ponta esta pesquisa, alguns ruídos foram seguidos e o vislumbre de respostas se deu em lugares pouco óbvios, apesar da realidade pesquisada está circunscrita a Sociologia da Arte, parte da bibliografia utilizada percorre outras trilhas, como Sociologia da Saúde, Sociologia da Ciência, Sociologia da Religião, não por uma opção, mas porque as questões que surgiram na realidade de pesquisa se afinavam a realidade de pesquisas em áreas distintas. Apesar desse malabarismo teórico os ruídos não se findaram. O próximo passo deverá ser não apenas se atentar aos outros tantos ruídos, mas atender com mais densidade os aqui apresentados e seguir esboçando respostas, ainda que enunciadas como perguntas. O principal achado entre tantos ruídos foi pensar o espetáculo cômico através da comunhão palco/plateia, incluindo os mediadores que participam ativamente, recuperando o caráter criativo deste tipo de espetáculo na re-associação entre o risível e o sensível. Como consequência houve um distanciamento das perspectivas diegéticas que escamoteiam o lugar da experiência vivida e o caráter processual do espetáculo, pois as possibilidades de respostas não se reduziram aos momentos estanques das encenações, o espetáculo foi compreendido enquanto historicidade, ou seja, retomada e projeto. 50 Neste termos, busco, por meio da filosofia de Merleau-Ponty, uma alternativa a concepção clássica sobre o riso de Henri Bergson; esse desvio foi realizado em atenção aos acontecimentos que eclodiam no campo da pesquisa, mas não apenas isso, é necessário somar a postura teórico-metodológica da pesquisadora e as técnicas de investigação que foram empregadas nos procedimentos de coleta e análise dos dados. Ao delinear um referencial teórico que integra situação, temporalidade, espacialidade, alteridade para o entendimento sobre o riso, ou seja, lançando mão de uma perspectiva com base no paradigma ecológico para a compreensão do espetáculo de palhaço, o próprio estatuto dos sujeitos investigados se altera, distanciando-os de uma concepção mais clássica que os posicionam como informantes. Este novo estatuto os circunscrevem como interlocutores, em que pesquisadora e investigados são interrogados, cada um em sua posição, sobre uma “mesma” experiência: o espetáculo. Desse modo, o riso nesta pesquisa, não segue definição absoluta, autorreferente, não é uma realidade outra que é sobreposta ao universo da pesquisa, mas sim tem sido delineada através das situações de pesquisa e essa perspectiva só foi possível utilizando um referencial teórico que levasse em consideração a experiência, reintegrando o sensível ao risível, restabelecendo assim, a empatia, afecção, ou melhor, reintegrando o “rir de” com o “sentir com”. Até aqui foi apresentado o universo pelo qual a pesquisa tem percorrido; o esforço em perseguir as contingências solicitou a criação de técnicas de pesquisa mais inventivas, considerando que o espetáculo cômico tem sido aqui analisado não como uma realidade distinta da experiência vivida, enquanto meta-realidade que possui em si leis próprias de constituição, mas sim, seguindo o trilho da experiência, ele é um complexo de relações, inclusive sendo difícil de precisar o início e o término, esses recuos e projeções. Cabe então perguntar qual metodologia foi produzida para investigar as respostas às contingências desse tipo de espetáculo? Já que a comicidade foi entendida não como um mecanismo, mas algo que resulta de uma situação relacional em que seus elementos são descortinados ao logo da experiência de um espetáculo que, por sua vez, envolve as expectativas dos palhaços, reações do público, agência de nãohumanos, um ambiente que performa. O instrumento de coleta utilizado não é nenhuma novidade nas Ciências Sociais, todavia, parece haver ainda um pudor em sua utilização, o recurso audiovisual permitiu coletar e analisar os dados de modo processual e 51 produzir um ambiente dialógico de pesquisa em que os sujeitos se tornaram interlocutores interessados no processo de investigação. Entretanto, antes da apresentação de como ocorreu tal procedimento, serão analisados algumas experiências de cientistas sociais que lançaram mão do recurso audiovisual em pesquisas. 52 Capítulo 3 – O jogo das lentes 3.1 As Ciências Sociais e sua caixa enigmática Definir filme etnográfico por meio de uma estrutura monolítica recorrente em todas as produções parece não apenas impossível, mas insensato, sobretudo quando são ignorados os contextos de produção. Ignorar as circunstâncias em que essas produções estão inseridas é abrir mão de uma análise dialógica que, se por sua vez não pretende fixar substância explicativa, possibilita identificar universos paradigmáticos produzidos nesta área das Ciências Sociais. Sobre o rótulo de filme etnográfico, ou paralelo a ele, propostas de utilização do recurso audiovisual para fins vinculados a produção de documento de pesquisa, enquanto técnica para coleta e análise dos dados, também se fazem presentes. A etnografia em audiovisual trata-se de um campo permeado por ambivalências: ao mesmo tempo em que aponta diálogo com a cinematografia, recupera temas e necessidades internas ao campo da antropologia acadêmica, tanto em termos de técnica de investigação quanto de produção de material didático. As ambivalências estão também presentes na própria constituição de termos como, filme etnográfico, antropologia visual, sociologia visual, antropologia da imagem e do som, antropologia audio-visual, antropologia da imagem, enfim não há uma expressão única para o desenvolvimento deste campo nas Ciências Sociais que tem se voltado para a investigação da imagem, investigação através da imagem, seja enquanto alternativa à etnografia clássica ou produção de técnicas de investigação. Assim, nos parece conveniente perguntar sobre quais os interesses que orientam a realização. Ou ainda, há um jogo entre figura e fundo entre a produção da imagem, tanto em termos de documentação ou documentário e os interesses do realizador, vez que perpassam por temas como salvacionismo, subjetividade/objetividade, ficção/realidade, alteridade, estando eles implícitos ou explicitamente colocados no filme. De um modo ou de outro, essas produções são frutos de contato. O modo como cada realizador concebeu esse contato é que, sem dúvida, produz uma heterogeneidade 53 no campo do filme etnográfico. Como nos propõe Marcos Antônio Gonçalves em seu programa da disciplina Etnografia e Imagem: Os filmes são resultados de encontros etnográficos e de perspectivas teóricas. Assim, o filme é uma produção etnográfica-antropológica e não, necessariamente, um produto da ‘Antropologia visual’. Desta forma, entendemos etnografia no seu sentido pleno, enquanto uma forma de representação em que se apresentam perspectivas teóricas e modos de conhecimento. O filme, assim, é uma construção do conhecimento etnográfico ao explicitar sempre a perspectiva teórica de seu autor e por isso não pode ser tomado enquanto um objeto imagético isolável de uma pesquisa. Por este motivo não tratamos do filme etnográfico enquanto um ‘gênero’ com fronteiras definidas e pressupostos homogêneos. Tratamos, sim, de uma dimensão da produção imagética que nos reenvia a questões crucias sobre o modo pelo qual se produz o conhecimento na Antropologia. (GONÇALVES, In: http://www.ppgsa.ifcs.ufrj.br/programas/etnografia-e-imagem/) Toda produção fílmica exige do cinegrafista uma tomada de decisão: quando, onde, por quanto tempo será filmado, as tomadas, enquadramento, posicionamento da câmera, seleção do material, de que maneira será editado. Essas decisões estão vinculadas a aspectos idiossincráticos, revelando fatores de gênero, geração; bem como sujeitos a preconceitos culturais, interesses políticos e estéticos. Ou seja, um filme etnográfico não é uma realidade isolada que carrega aspectos exclusivamente diegéticos. Assim, a cada salto imersivo ao filme há um impulso centrífugo. Desse modo, é possível afirmar que essas decisões estão intimamente relacionadas às mentalidades intelectuais, às verdades acadêmicas de uma época. O objetivo deste subcapítulo é, portanto, recuperar os pontos nodais que tem sido discutido ao longo do século XX e início do XIX e como elas estão presentes nas concepções fílmicas de seus realizadores. Reconhecendo desde já que não se trata, muitas vezes, de questões exclusivas do filme etnográfico, pois elas recuperam e contribuem para discussões centrais do campo das Ciências Sociais, ora acompanhando estes debates, ora, como o caso de Jean Rouch, antecipando em décadas. 54 3.1.1 Robert Flaherty: o início pelo olhar de um romântico. Apesar do crescente desenvolvimento da utilização do audiovisual e fotografia nas Ciências Sociais, ela ainda é vista com certa indiferença por muitos cientistas sociais. Em seus primeiros passos, é possível afirmar que era uma empreitada “desautorizada” pelo mainstream da antropologia científica do início do século XX e final do XIX. Um dos fatores é que muitos realizadores de filmes etnográficos não possuíam formação na área, eram como Robert Flaherty viajantes; alguns, como ele, cineastas amadores. Da Rin afirma que Flaherty foi persuadido por seu financiador a levar uma câmera em seus estudos para implantação de uma ferrovia. Por outro lado, no campo da cinematografia, essas primeiras empreitadas eram vistas como o surgimento de um novo gênero: o documentário. John Grierson, cineasta inglês dos anos 1930, defendeu o surgimento desse novo gênero fílmico. O gênero estaria preocupado em representar a realidade; e Nanook of the North de Robert Flaherty foi considerado por ele um marco. Com a expansão do mundo europeu e a busca da compreensão e assimilação, as empreitadas da “civilização” que objetivavam organizar o mundo pelo ponto de vista da Europa, atira o homem europeu diante de uma diversidade de modos de vida. O início do século XIX, sob a égide do evolucionismo, produzia o solo de entendimento entre a civilização e os primitivos, suplantando o que anteriormente era tomado como bárbaros, substituindo uma condição natural para uma diferença em termos de um determinismo histórico. Os povos primitivos seriam sobreviventes de uma forma de vida extinta pela “evolução natural” das sociedades. É neste momento, também, que o cinema, a fotografia e a própria antropologia – ainda que pouco consolidada – “ensaiam” suas experiências. Contudo, foi a Primeira Guerra Mundial, com a descrença do homem europeu sobre seus modos de vida, que cria a possibilidade de se perceber entre os povos “primitivos”, “bárbaros”, a existência de “civilizações”. Esse entendimento é herdeiro da filosofia romântica de Rousseau e será inspiradora para muitos intelectuais da época. Começa a ser posto que existe uma lógica interna entre os povos chamados primitivos e que é necessário compreendê-la a partir do ponto de vista do nativo; assim era fundamental a longa permanência do pesquisador em seu contexto de trabalho. 55 Robert Flaherty, apesar de não possuir formação em antropologia, estava em diálogo com essa concepção. Em 1922, realiza filme sobre os esquimós, Nanook of the North. O trabalho foi baseado em longa permanência entre o grupo e compreende a câmera enquanto participante no processo de observação da cultura nativa. Ele não apenas registrava os eventos, mas também almejava refletir a perspectiva do nativo. Realizava exibição do material filmado ao longo da produção dos esquimós e seus comentários eram incorporados ao processo de realização do filme. Barbosa & Teodoro da Cunha reconhecem ainda um segundo aspecto desse filme: Outro grande mérito desse filme reside no fato de o espectador ser levado a identificar-se com pessoas reais que pertencem a um contexto social definido e distinto. A representação desses indivíduos é marcada por sua luta incessante contra uma natureza hostil e pela afirmação do homem como agente. (BARBOSA & TEODORO DA CUNHA, 2006, p. 24- 25) Flaherty passou um ano filmando Nanook, perseguindo seu interesse em traçar o perfil de uma cultura por meio das ações dos indivíduos que lhe dão corpo. Seu interesse sobre esse povo inicia-se em decorrência de uma viagem realizada em 1910, cujo objetivo da viagem era realizar estudos preliminares para a construção de uma ferrovia no norte do Canadá. Assim, durante seis expedições à área ocupada pelo grupo, ele produziu uma grande quantidade de material fílmico, o que, por sua vez, era consequência de sua perspectiva: o filme deveria surgir do material de campo. Contudo, essas primeiras filmagens se perderam em um incêndio. Em 1920, com patrocínio de empresa que comercializava peles, retorna e inicia novas filmagens. É nesse segundo momento, com o aparato técnico necessário, que começa mostrar seus registros aos Inuit (esquimós) . O grande trunfo de Flaherty foi, ao ter escolhido concentrar-se na vida de um esquimó e sua família, produzindo protagonista (Nanook) e antagonista (a natureza hostil), estava partindo de um princípio muito próximo ao das ficções cinematográficas. A prova disso foi a boa recepção que o filme teve na época. Este princípio possibilitava desenvolver situações dramáticas e emocionalmente densas o que o diferenciava em muito dos filmes de viagem, pautados sempre em modo descritivo. Cenas como o da caça às morsas, da indigestão das crianças são apontadas como exemplos desse aspecto por muitos comentaristas do filme. É lançando mão de um princípio dramático, ou ainda um método narrativo, que Flaherty consegue manter o interesse do espectador. 56 Flaherty, apesar de querer apresentar uma “realidade”, lançava mão de diversas reconstituições, os Inuit praticamente não caçavam mais morsas, e muitas situações eram realizadas propositadamente em decorrência das filmagens, a verdadeira esposa de Nanook foi substituída por uma mulher da preferência de Flaherty. Também em outros filmes ele não se privava de realizar essas interferências: O essencial para ele não era a real identidade de alguém, mas a sua função no filme associada a um desempenho que infundisse credibilidade. A mesma ambivalência pode ser notada na insistência de Flaherty em encenar situações tradicionais que já não faziam parte da vida da comunidade, mas que serviam ao seu propósito central de representar idilicamente o conflito entro o homem e a natureza hostil. (DA RIN, 2004, p. 52). Flaherty, desse modo, inaugura uma das dicotomias mais caras ao filme etnográfico: ficção/realidade. Sobre essa questão afirmou o próprio Flaherty: O documentário é filmado no próprio lugar que se quer produzir, com as pessoas do lugar. Assim, o trabalho de seleção será realizado sobre o material documental, com a finalidade de narrar a verdade da forma mais adequada e não dissimulando-a por trás de um elegante véu de ficção, e quando, como corresponde ao âmbito de suas atribuições, infunde à realidade o sentido dramático, este sentido surge mais ou menos engenhoso. (FLAHERTY apud DA RIN, 2004, p. 51). A abordagem de Flaherty é herdeira de uma perspectiva romântica, buscando o entendimento da alteridade através da admiração e do enaltecimento. Os seus trabalhos não foram reconhecidos como antropologia por parte de muitos antropólogos acadêmicos da época, lhes faltavam objetividade. 57 3.1.2 Margaret Mead e a busca da objetividade: a câmera como um “olho espião”. Como dito anteriormente, toda realização fílmica gira em torno de decisões por parte do realizador. Apesar de esses aspectos idiossincráticos estarem presentes a qualquer cinegrafista ou fotógrafo, alguns deles concebem suas produções como um registro objetivo confiável, buscando minimizar a contaminação de suas produções por aspectos “subjetivos” e contingenciais. Os procedimentos empregados lançam mão de regras para minimizar a influência da presença física do realizador, os esforços giram em torno de produzir um registro como se a câmera não estivesse presente, minimizando qualquer rastro de um autor. A câmera deve ser análoga aos instrumentos das ciências duras, um microscópio, objetiva, neutra, desapaixonada, distante, um olhar de sobrevoo. Há nessa abordagem herança clara do positivismo francês, a busca de uma ciência social vis à vis à ciência natural, concebendo que um estudo da sociedade deve ser baseado em observações controladas a partir de um observador neutro. Desse modo, para os realizadores que adotam essa abordagem, a realização de um filme deve apenas produzir uma documentação, a coleta de dados da maneira mais objetiva possível. Ou como descreve Paul Hanley: O material registrado pode ser reorganizado subsequentemente, ao ser exibido como evidência de suporte a uma argumentação verbal, sendo esta argumentação tipicamente apresentada de forma inteiramente externa (isto é, não oferecida pelos próprios protagonistas), geralmente como trilha sonora em voice-over (voz de fundo). Qualquer reorganização deste tipo, porém, deve ser estritamente controlada, claramente comunicada e diretamente submetida às necessidades do argumento verbal (HANLEY, 1999, p. 3) A câmera, entendida com um meio de registrar uma imagem objetiva do mundo para permitir em um segundo momento uma análise detalhada, é uma concepção cara à antropóloga Margaret Mead em seus trabalhos sobre Bali, na primeira metade do século XX. Fazendo uso de um dispositivo de focalização em ângulo reto, ela buscava anular os efeitos da presença da câmera em campo, utilizando filmes de 16 mm e fotografias de 35 mm. O material só foi editado 15 anos depois, adicionando um voice over com narração da própria antropóloga. O filme foi utilizado apenas de forma didática, enquanto evidência visual. Há no trabalho de Mead clara preocupação com salvamento etnográfico: 58 Seria tarefa da antropologia dar a conhecer, estudar e produzir registros das culturas de todo o mundo antes que elas viessem a desaparecer, e, nesse sentido, a fotografia e o cinema, considerados em seu aspecto técnico, se configuravam como instrumentos poderosos. (BARBOSA & TEODORO DA CUNHA, 2006, p. 30). Mead inicia seu trabalho em conjunto com Grogory Bateson entre os anos 30 do século passado. O objetivo de ambos era utilizar o registro visual, tanto fílmico quanto fotográfico para apreender e compreender o éthos balinês, o modo como o balinês incorpora uma cultura por meio de gestos e olhares, ou seja, uma investigação das técnicas corporais, em que se percebe clara influência de Franz Boas e Marcel Mauss. Uma das maiores contribuições ao campo do filme etnográfico foi o entendimento de ambos realizadores de compreender a imagem, assim como texto, enquanto capaz de produzir ideias. Contudo, é uma produção “anárquica”, polissêmica e, para ser utilizada como ferramenta científica, seria imprescindível um procedimento de “disciplinarização”, amplamente necessário à associação da pesquisa textual: A utilização da imagem no trabalho antropológico teria assim, de lidar com essa polissemia, que acaba por tornar mais complexos o movimento de ordenação epistemológica das informações obtidas em campo e também a própria produção de conhecimento , que se faz em várias instâncias: interação dos antropólogos com os dados (nesse caso, imagens e observação de campo para articulações mais abstratas) e na interação dos leitores como a ordenação e análise apresentada pelos antropólogos. (BARBOSA & TEODORO DA CUNHA, 2006 p. 33) Apesar de terem trabalhados juntos, Mead e Bateson discordavam em relação ao posicionamento da câmera no campo de pesquisa. Para a primeira, a câmera deveria ser “um olho espião”, estática, registrando – em modo impassível – o que se passava. O fundamental para Mead era que a câmera tivesse a menor interferência possível no comportamento e nas atitudes das pessoas filmadas. Já Bateson desconfiava em larga escala da eficiência desse “olho espião”. Em sua concepção, a câmera solicitaria o olho do antropólogo que é sempre uma mirada intencional, interessada. Muitos teóricos apontam como consequência dessa discordância a separação, ao menos do ponto de vista profissional; o material filmado por eles foi montado anos mais tarde com a participação apenas de Margaret Mead à frente da orientação teórica. 59 3.1.3 John Marshall e Robert Gardner: entre as polêmicas da representação do outro. Apesar do apelo por objetividade realizado por Mead, produções permaneceram sendo realizadas para além do campo da Antropologia científica, John Marshall e Robert Gardner são exemplos dessa empreitada. Sendo também alvo de críticas e polêmicas, são dois realizadores considerados controversos na produção do filme etnográfico. Marshall inicia sua produção ainda na adolescência quando, acompanhado pelos pais em uma expedição etnográfica, foi para o sul da África em 1951: sua função na equipe era justamente o registro fílmico. Segundo Paul Hanley, nenhum deles havia estudado antropologia, os pais de Marshall eram muito amigos de Margaret Mead e influenciados por suas ideias orientaram Marshall a realizar um registro e não um filme. Com esta orientação que John Marshall inicia sua produção. Realizou mais de 250 horas de filme lançando mão de observação objetiva. As imagens foram feitas em preto-ebranco e sem trilha sonora sincronizada, característica que será modificada ao longo dos anos. Contudo, no final da década de 50, com a realização de The Hunters, percebemos claramente um desvio, apesar de Marshall manter a pretensão objetivista em seu trabalho, em termos do posicionamento da câmera, o voice over, The Hunters é um filme, e se propõe apresentar as aventuras de um grupo de caçadores bushmen do deserto Kalahari em uma caçada. Se por um lado é possível atribuir a mesma característica romântica que observamos na obra de Flaherty, muitos estudiosos parecem ser menos condescendente com John Marshall, estendendo essa mesma situação a Robert Gardner, este sendo responsável pela montagem do filme supracitado. As críticas dizem respeito à representação exótica do povo investigado. O argumento é sustentado pela lógica da montagem do filme, da seleção e encadeamento das cenas, estas parecem ter como objetivo o choque da sensibilidade ocidental: [...] como exemplo, a cena em que o caçador chefe encontra um arbusto com ninhos cheios de filhotes e começa a destruir os ninhos e a matar os filhotes. A voz over explica que ele vai levar os filhotes para casa e fazer uma sopa para seus filhos. Trata-se visualmente de uma longa cena sem qualquer valor etnográfico claro, mas ela cria um choque cultural que pode obscurecer os olhos ocidentais para outras sensibilidades e refinamentos desses aborígenes caçadores. (FREIRE MARCIUS, 2005 p. 111) 60 Outra situação bastante comentada é o abate da girafa. A caçada foi inteiramente reconstruída, vez que a girafa já estava ferida por uma bala disparada, dias antes, pela equipe de realizadores do filme. Marshall e os caçadores foram até o local com um jipe. Contudo, a montagem obscurece esta situação e na sequência inicia com a retirada da pele e o esquartejamento do animal. Para muitos comentaristas como Jay Ruby e Marcius Freire, apontam para o pouco valor etnográfico de muitas sequências realizadas, e por sua vez a valorização do exótico, ressaltando o valor estético em detrimento de seu valor científico. Anos mais tarde, Robert Gardner, desta vez como realizador de um filme, produz Dead Birds. Gardner filmou entre os Dani, na Nova-Guiné. O filme retrata o cotidiano da vida dos Dani através de três trajetórias: um homem, uma mulher e um menino. O homem escolhido por Gardner possui uma função central: a de controlar, a partir de uma torre de vigilância, a fronteira que divide sua tribo de outra em que nutre relações pouco amistosas. Em outros momentos, este mesmo homem produz longas faixas ornadas de conchas que serão usadas nos rituais fúnebres. A segunda trajetória, a mulher trabalha no campo, colhendo tubérculos, arando a terra. Ela, por sua vez, não pode tecer as faixas de conchas como o homem, pois não possui algumas falanges das mãos. Estas são cortadas quando um parente próximo morre. Por fim, o menino pastoreia porcos nos campos que circundam a aldeia. É seguindo essas trajetórias que Gardner produz o fio condutor de Dead Birds. Como elemento que irá produzir a estrutura dramática do filme, ele seleciona um aspecto da cultura dos Dani: a relação dos sujeitos pesquisados com a morte. Gardner também utiliza o voice over e já no início do filme anuncia o nó dramático através da narração com voz do próprio Gardner, ele conta o mito de criação dos Dani: [...] estes tiveram de escolher entre ser como as cobras, trocar de pele e viver para sempre, ou ser como os pássaros e morrer. Eles escolheram ser como os pássaros e, por isso, devem enfrentar a morte. Todo o filme é construído como se estivesse à espreita, pronta para assombrar na aldeia. (FREIRE, MARCIUS, 2005 p. 6) As imagens privilegiam o uso de grandes planos e longas sequências. Toda estrutura do filme está calcada em um jogo de momentos de suspense e momentos fortes, como à ameaça de invasão da outra tribo, gerando uma grande expectativa. Por fim, depois de ter preparado longamente o espectador, apresenta a batalha. The Hunters 61 e Dead Birds são tomados por muitos dos comentaristas como filmes que estão no limite entre um filme etnográfico e narrativas dramáticas; ou seja, para eles, as duas produções se distanciam de uma pesquisa autêntica, o que, por sua vez, constrói um véu exótico para a mirada do outro, implodindo deste modo uma relação de alteridade. 62 3.1.4 Timothy Ash e a técnica de evento-sequência Timothy Ash também foi colaborador de John Marshall e foi com ele que iniciou o desenvolvimento da técnica de evento-sequência ou reportagem. Essa técnica tinha como fundamento a ideia de que, através de um extenso trabalho de campo, os antropólogos poderiam apreender o que é significativo para os seus sujeitos de pesquisa em determinados eventos e isto, por sua vez, serviria para dar-lhes a orientação necessária sobre como filmá-los. Desse modo, o material coletado asseguraria que a representação fílmica do evento não apenas começaria e terminaria no momento certo, mas também se estenderia para outras etapas significativas. Era fundamental para essa técnica a inclusão de todo o material de contextualização que os sujeitos considerassem significativos: Essas sequências poderiam servir como filmes completos em sim mesmas ou ser incorporadas em uma série para formar um filme mais longo. Esta última forma exigiria algum tipo de manipulação do material, mas, se isto fosse feito, a sequência poderia ser preservada em arquivo na sua forma original. (HENLEY, 1999 p. 36) Contudo, foi através da parceria com Napoleon Chagnon que Ash colocou em prática suas ideias a partir de filmagens de sequências. Juntos, Chagnon e Ash, produziram uma série de quarenta filmes sobre os Ianomâmi da Amazônia venezuelana. Estes filmes também introduziram algumas inovações técnicas como a gravação, no campo, de trilha sonora sincronizada e o uso de legendas na fase de edição. Os mais célebres desta vasta produção são The Feast (1970), onde apresenta uma cerimônia coletiva em que dois grupos anteriormente hostis realizam uma aliança política; The Ax Fight (1975) em que um único evento é apresentado em três perspectivas distintas: O copião, com uma interpretação do acontecimento feita por Chagnon em voice-over, uma versão editada cronologicamente com um argumento analítico vazado em termos de estrutura de clã, completada com diagramas genealógicos, e, finalmente uma versão cujo corte procurou maximizar o efeito de uma edição sem emendas. (Hanley, 1999 p. 37) Timothy Ash buscou com essa técnica superar a dicotomia objetivismo e subjetivismo nas Ciências Sociais. Para ele, a documentação deveria ser rigorosa e objetiva; contudo, a objetividade era alcançada dentro dos termos culturalmente 63 relativos definidos pelos sujeitos investigados. Há vários tipos de problemas em torno dessa abordagem, como observou Paul Hanley. O principal estaria em torno de a técnica sustentar a premissa implícita de que existiria algo como um evento típico que tenha um significado estabelecido com o qual todos os protagonistas concordem: Mais ainda, mesmo que certos processos técnicos básicos possam, relativamente, não apresentar problemas, o significado de eventos sociais mais complexos, seja para os participantes, seja para o antropólogo, está fadado à contestação em grau muito maior. (Hanley, 1999 p. 37) Em trabalhos subsequentes, Ash mostrou-se mais crítico a respeito da objetividade da documentação cinematográfica, dando ênfase à importância da exegese e cooperação indígenas na realização dos seus filmes etnográficos. Passou também a se preocupar com o valor dos filmes etnográficos como instrumento de ensino e com a recepção que os estudantes e outras plateias ocidentais poderiam fazer das produções. 64 3.1.5 David e Judith Macdougall: do cinema observacional ao cinema intertextual Os Macdougall e Jean Rouch, autores tratados em seguida, são realizadores que, através da reflexividade, problematizaram de forma contundente os paradigmas objetivistas do filme etnográfico. Como consequência, observa-se um desvio da tendência catalogadora das diferenças para a ênfase em postura epistemológica que assume e privilegia a troca de olhares. A concepção de que o significado é dado a priori, solicitando, desse modo, a sua decodificação, cede terreno para o entendimento de que o significado é antes construído a partir da interação entre os sujeitos envolvidos na experiência da produção do conhecimento. Para os Macdougall interessa justamente lançar mão da realização fílmica para a produção desse conhecimento que ocorre nas interações dos envolvidos. David e Judith Macdougall iniciam sua formação em antropologia nos Estados Unidos, durante os anos de 1960, motivados pela busca de um modo de trabalhar com áreas negligenciadas da vida social. No final da década de 1960, participaram de um curso coordenado por Colin Young, na Universidade da Califórnia. O objetivo do curso era aliar uma perspectiva do cinema direto norte americano à Antropologia clássica de Malinowski, em que a atenção se voltava para a vida cotidiana, e é a partir daí que surge o cinema observacional. A questão do método para esse novo gênero era fundamental: [...] em seus filmes, entrevistas não são bem-vindas, pois elas privilegiariam a voz enquanto meio de objetivação de um argumento, em detrimento da imagem, marcada pela performance, pelo ato e a ação. Segundo essa visão, ao falar sobre como vivem, as pessoas estariam fazendo uma racionalização da ação, e não é esse o foco das questões que mobilizam esse tipo de cinema. O que interessa é a ação propriamente dita, que contém a possibilidade de refletir a seu respeito e de seu significado para os sujeitos do filme. (BARBOSA & TEODORO, 2006, p. 41) O objetivo dessa escola cinematográfica era mostrar os sujeitos na vida, a performance para a câmera reivindicava afinidade com as performances cotidianas. O cinema deveria ser utilizado como instrumento para a construção do conhecimento antropológico. Como o processo de construção do filme se atentava para discussões de categorias e métodos próximos aos da antropologia, a realização cinematográfica se tornava uma possibilidade de refletir a partir e sobre questões epistemológicas. 65 Na primeira fase do trabalho dos Macdougall, marcada pela realização de duas trilogias realizadas entre distintos povos na África, percebe-se significativa adesão ao cinema observacional, cujo cineasta deveria desaparecer no campo, a fim de obter dos sujeitos uma atuação próxima da vida cotidiana: Nessa perspectiva, a familiaridade com o contexto seria responsável por fazer a câmera desaparecer na cena e, com ela, o realizador. Esse caminho visa a um resultado estético muito próximo dos objetivos do cinema neo-realista, cujos filmes procuram mostrar a vida acontecendo diante das câmeras. (Barbosa & Teodoro da Cunha, 2006, p. 42) Apesar do excesso de racionalismo, essa característica é atenuada por uma postura altamente reflexiva, consequência de constante reavaliação dos objetivos e estratégias colocados nos diversos filmes. Assim, cada filme era uma tentativa de resolver os limites epistemológicos encontrados no anterior. A busca da ação cotidiana tem como consequência a negação da dramaticidade. O foco não estava sobre rituais ou processos de produção da cultura material, mas sobre situações triviais, corriqueiras que muitos não tomariam como bons objetos fílmicos. Todavia, como aponta Paul Hanley, há uma característica fundamental na produção dos MacDougall: a importância do envolvimento do protagonista na construção do sentido do filme. Característica semelhante é possível reconhecer também na produção de Jean Rouch. Os personagens nos filmes de David e Judith MacDougall são sempre pessoas com as quais eles criaram vínculos durante a pesquisa, característica sempre explicitada nos filmes, ainda que de forma sutil. Com isso, aos poucos, distanciam-se da ideia mais radical de objetividade do cinema observacional, pois explicitam a presença do realizador como participante da situação de pesquisa: Seus filmes não oferecem a presunção da onisciência dos documentários expositivos dirigidos pela narração, nem uma pretensão de objetividade, marca dos documentários de observação. Eles mostram de forma sutil a participação dos pesquisadores no processo de construção de conhecimento sobre o outro. Esta é, aliás, a questão central de todo o trabalho de David e Judith MacDougall: a construção do conhecimento pela interação da realização cinematográfica na pesquisa etnográfica. (Barbosa & Teodoro da Cunha, 2006, p. 43) A tendência dialógica na antropologia que se consolidará nos primeiros anos da década de 1980 já está, de certo modo, sendo anunciada na concepção fílmica dos 66 MacDougall, como é possível perceber na fala de David MacDougall, retomada em entrevistas e textos: “Refletir sobre a vida de alguém e suas relações com os outros é também dela participar”. A questão portanto, deixa de ser o estabelecimento do significado a priori para o como construir essa experiência de conhecimento filmicamente. A reflexividade, deste modo, se expressa como estilo, pois não há como separar a realização do filme das produções epistemológicas que acompanham esse processo; é impossível separar a elaboração da pesquisa da própria situação fílmica. David MacDougall estabelece relação dialógica com o texto e o filme. Em seus artigos, desenvolve questões epistemológicas que mobilizam suas pesquisas/filmes. Nesses artigos, forjou um conceito de “cinema intertextual” onde apresenta, como foco do problema, a relação construída entre pesquisador/realizador e sujeitos do documentário: O cinema intertextual cria no espaço de realização do filme um ambiente também privilegiado para a reflexão antropológica, pois é pensado como o lugar do encontro, como o espaço em que “observadores” e “observados” não estão essencialmente separados, e em que a observação recíproca e a troca estabelecida formam o centro sobre o qual recai o foco – intersubjetividades criando intertextualidades. (Barbosa & Teodoro da Cunha, 2006, p. 47) Desse modo, é possível afirmar que o cinema intertextual privilegia o encontro; a realização fílmica é registro de um processo de conhecimento, possível apenas pelo franco exercício da alteridade. Os MacDougall apresentam, assim, uma proposta de superação das dicotomias no sentido de colocar a noção de representação e realidade justapostas para inaugurar uma possível reflexão entre essas duas instâncias sempre apresentadas em uma relação de oposição. 67 3.1.6 Filmes etnográficos feitos por mulheres Outro paradigma se produziu através da produção de filmes etnográficos realizados por mulheres. É possível, pois, situar esse movimento em conjunção ao desenvolvimento do pós-colonialismo, a resistência às perspectivas masculinistas e heteronormativas são entendidas como resistência a estruturas de poder que sustentam visões ocidentalizantes das realidades; essa característica é fundamentalmente percebida nas formas de representação do outro. Desse modo, perspectivas feministas e póscolonialistas desafiam o discurso hegemônico que produz verdades ocidentais ao enfatizar a natureza construída desse discurso. Colocando em evidência o traço político presente nas lutas contra a desigualdade de gênero. Muitas intelectuais apontam para uma sub-representação da mulher no campo do filme etnográfico, tanto enquanto sujeitos de investigação quanto realizadoras: [...] there are relatively few films that emphasize women in other cultures and that are what anthropologists have come to identify as “ethnographic” films, those which record tribal or peasant village life, relatively untouched by recent change. (LAMPHERE, 1977, p. 192) Apesar disso, filmes têm sido realizados, tanto nas realidades culturais das próprias cineastas quanto de filmes que apresentam as realidades de mulheres em outras culturas, inclusive o encontro dessas mulheres de contextos culturais diversos. Todavia, como aponta Luise Lamphere, há muito a ser feito: In terms of cross-cultural material on women, two points can be made. First, there are not nearly enough films avaible to cover the variety of women’s role and differing cultural contexts which are usually dealt with in anthropological courses on sex roles or women. […] Second, we need films which provide a point of view and which translate some of the insights of recent literature on women’ roles and status into visual perspective. (LAMPHERE, 1977, p. 193) 68 3.1.7 Jean Rouch: o outro como sujeito em vez de objeto Nesse último tópico será analisada a produção de Jean Rouch, com vistas a ressaltar uma obra específica: Eu, um negro, filme produzido em 1958. Seria plausível iniciar essa secção com algumas perguntas introdutórias, perguntas estas que parecem ter desafiado o próprio Rouch ao longo de sua produção. Por que não realizar antropologia através de imagens? Por que não colocar o antropólogo na posição de observado, invertendo assim certas posturas colonialistas da disciplina? Por que não questionar as verdades antropológicas? Por que não tomar o real no nível da fabulação, do surreal? Com formação em engenharia, Jean Rouch parte a trabalho para África no final dos anos 1940, entrando em contato com uma realidade bastante heterogênea da que chegava à França pelas etnografias clássicas. Com isso, decide seguir seus estudos em etnologia e, desde o início, incluiu a câmera em sua estratégia de pesquisa. Todavia, a perspectiva que acaba construindo não é de uma câmera que registra dados etnográficos, mas a de um instrumento de comunicação com a realidade etnográfica. Privilegiando a verdade do cinema e não a verdade no cinema, Jean Rouch acaba por autoconstruir um personagem de si conjuntamente a construção de outros personagens, criando a “etnoficção”. É possível salientar dois pontos fundamentais em seu método fílmico-etnográfico. O primeiro é o que trata de fazer do objeto um sujeito, característica fundamental de uma antropologia compartilhada; como consequência, Rouch “dessubjetiva” o antropólogo em função de outro procedimento de subjetivação: a “ressubjetivação da outridade”. Deste modo, o antropólogo-realizador questiona a hierarquia estabelecida na pesquisa etnográfica. O segundo ponto diz respeito ao compromisso dessa antropologia compartilhada em mudar o foco de uma suposta verdade de um cientificismo inabalável para uma verdade fílmica, em que um sentido de provisoriedade se torna fundamental. Assim, a concepção de verdade está em sua possibilidade do que é filmado e provocado pela câmera, valorizando a construção de uma verdade fílmica. O interessante é que Rouch, apesar de uma formação fora da antropologia, antecede em décadas o que será denominada antropologia pós-moderna. 69 Marcos Antônio Gonçalves, no segundo capítulo de O Real imaginado, “Ficção, imaginação e etnografia: a propósito de Eu, um negro”, aprofunda concepções sobre verdade e ficção. Analisando os planos do filme, Marco Antônio salienta a ambiguidade fílmica enquanto reflexo da ambiguidade da realidade. A reconstituição narrativa dos comentários e diálogos viabiliza à palavra imaginada a criação de verdades, pois o mundo imaginado do outro é produzido por sua próprias falas. Na medida em que Oumarou Granda se narra como Edward G. Robinson, ele atualiza verdades imaginadas no modo subjuntivo, comme si fosse outro. A narração, característica da obra de Jean Rouch, ocorre em três instâncias, evidenciando a preocupação em criar dentro do filme um espaço de diálogo sem abrir mão da autoria. Na primeira instância, de caráter mais descritivo, Rouch introduz o espectador aos personagens e ao ambiente de Treichville; na segunda e terceira instâncias inserem-se as vozes dos personagens que conduzem a narrativa e produz, deste modo, um “texto” polifônico. Muitos comentaristas apontam para um estilo surrealista em sua obra, em Eu, um negro, essa característica pode ser evidenciada quando o autor traz à cena alguns diálogos entre os atores em que não correspondem à imagem que se vê: A sequência final do filme é um exemplo disso, nela Eddie Constantine e Edward Robinson, em um travelling ao longo da costa litorânea de Abdijan refletem sobre a experiência imaginária da guerra da Indochina e sobre seus projetos futuros. Nessa sequência, imagem e som estão em evidente descontinuidade, no entanto, integrados em uma unidade de grande lirismo e dramaticidade, evidenciando os dispositivos do filme enquanto linguagem, e principalmente como processo. (BARBOSA & TEODORO DA CUNHA, 2006, p. 39) A concepção de sinceridade para Rouch adquire outra conotação, a imaginação revela o que está acima e além da realidade ou da ficção. Desse modo, fica perceptível uma nova condição não apenas do fazer fílmico, mas também etnográfico. As verdades de ambas são construídas a partir de palavras ditas pelo outro em relação com o cineasta-antropólogo. Rouch realiza uma fusão entre antropologia e cinema, construídos por imaginações e produtores de representações em si próprios: [...] aponta para a dimensão do vivido, da experiência que se transmuta em imaginação de uma relação vivida. (GONÇALVES, p. 119) 70 Nessa reflexividade radical, a verdade encenada engendra um devir-outro a centrar um perspectivismo fundado no modo subjuntivo. Faz-se de conta que o cinema é verdade, que o real é ficção, ou ainda, que branco é negro, que o negro é branco, que “eu, é outro”. A seguir será apresentado como o recurso audiovisual foi utilizado na presente pesquisa. 71 3.2 O caminho percorrido A pesquisa Perseguindo as contingências: uma proposta metodológica para a análise do espetáculo de palhaço desenvolvida desde 2007, na primeira fase de coleta dos dados, realizou-se entrevistas em profundidade, utilizando recurso audiovisual com o objetivo de recuperar trajetórias de vida. As entrevistas foram realizadas durante duas edições do Festival Internacional de Palhaço – Anjos do Picadeiro 7 e 8 (10 de dezembro a 16 de dezembro de 2007, Rio de Janeiro) e (24 de novembro a 7 de dezembro de 2008, Rio de Janeiro). Esse primeiro escopo de dados, sistematizado em texto monográfico (2010) foi importante para orientar as questões juntamente com a bibliografia específica, e determinar elementos importantes para pensar a problemática da pesquisa: Como o riso, o grotesco e o improviso são constituídos na arte do palhaço? Como estão associados a espaços cênicos específicos? Como o palhaço contemporâneo concebe esses elementos em suas ações cênicas? Em 2010 (06 a 12 de dezembro, Rio de Janeiro), retornei ao mesmo evento. Nas três edições, além de entrevistas em profundidade, foram realizadas observações de espetáculos na rua, teatro, circo, observações e participações em oficinas. Foram entrevistados novos artistas como também alguns dos que já haviam sido previamente consultados nas edições anteriores. De posse dessas informações, a pesquisa seguiu para sua segunda fase, o acompanhamento sistemático de alguns espetáculos. Foram realizadas entrevistas antes e após as exibições, além dos registros das respectivas apresentações, essas entrevistas tinham dois propósitos iniciais: a) Identificar quais os modelos pré-fixados para um determinado espetáculo, os tipos, os esquemas de ações, as expectativas. b) Após a exibição, analisar que mudanças ocorreram durante a apresentação, como os palhaços avalivam essas mudanças, como foram processadas as adaptações de esquemas pré-fixados com o contexto atual da performance. Ao longo da aplicação da metodologia, percebi uma alteração no próprio procedimento da utilização da câmera na situação de pesquisa. Na primeira, fase em que sua utilização se encerrava nas entrevistas em profundidade, havia relativa passividade em sua utilização, foi apenas considerado o registro de áudio com a finalidade de transcrições para análise de entrevistas. Ainda nesta primeira fase, mesmo no que diz 72 respeito ao registro das exibições e oficinas, o material coletado acabou subaproveitado. Tal fato foi percebido apenas durante a aplicação da segunda etapa, pois pouca coisa poderia ser respondida para a problemática da pesquisa sem um procedimento de compartilhamento. Ou seja, a análise dos espetáculos na primeira fase acabou estando determinada pelo esquema analítico previamente produzido, não foram criadas estratégias de confrontação; todavia, isso é compreensível, pois se tratava de fase exploratória em que o objetivo era o reconhecimento dos sujeitos de pesquisa e a coleta de informações mais genéricas, questões de como aqueles artistas concebiam seus espetáculos, como se tornaram palhaços, em que situações já apresentaram. Os espetáculos registrados eram assistidos com intuito de familiarização com aquele estilo de espetáculo; essa também foi a orientação nas participações de montagens e oficinas, além do entendimento de termos específicos do mundo da palhaçaria: gags, rotinas, cascatas, etc. Na segunda fase, em que os registros em audiovisual passaram a ser utilizados de forma mais sistemática, antes, durante e após as exibições, no caso de apresentações no teatro eram realizados registros no backstage, observando todo o processo do vestir-se, maquilar-se, aquecimento, conversas, e o acompanhamento de temporadas de espetáculos específicos, a câmera adquiriu outro status na situação de pesquisa. Passa a ser elemento ativo, constituindo-se, como propôs Jean Rouch, presença provocativa. Ao final do processo, um dos interlocutores principais da pesquisa achou que deveria filmar o espetáculo de cima do palco. Ainda não realizamos essa provável nova reviravolta na pesquisa. O que gostaria de chamar atenção é que a utilização do registro audiovisual – a partir dessa nova dinâmica instaurada na segunda fase da pesquisa – maximizou em termos qualitativos a utilização desse recurso. Ao propor aos sujeitos de pesquisa essa dinâmica de filmagem foi estabelecido um vínculo, não apenas a partir de mim em relação a eles, mas também o inverso, pois o registro que eu realizava passou a interessá-los ativamente como material de estudo para análise de suas performances. Em situações como o espetáculo “Palharia, Palhaço, Palhaçaria”, que ocorria aos sábados e domingos; durante a semana, eu encontrava com os artistas e eles utilizavam os registros para perceberem os pontos fracos do espetáculo, os erros, os efeitos de iluminação, o que facilitou o processo, pois através desse vínculo, pude participar de forma sistemática das situações relacionadas a esse espetáculo e de outros. O 73 interessante é que alterações nos espetáculos, principalmente no “Palharia” que acompanhei por duas temporadas, foram realizadas a partir dos registros; novas gags foram construídas, elementos foram eliminados. Deste modo, os registros passaram a ser a motivação dos encontros e foram nesses encontros que elementos fundamentais para a pesquisa foram sendo produzidos. Em alguma medida é possível afirmar que a pesquisa que resultou nesta dissertação foi realizada através dos registros desses encontros, em que o outro, o objeto de investigação, adquire status de sujeito criando seu espaço de diálogo, obviamente sem eliminar meu espaço de autoria, mas em processo de reflexividade, onde há confrontação, ou ainda desestabilização do meu esquema analítico prévio; outras vozes para além da minha passam a surgir, produzindo, deste modo, um texto polifônico. A análise dos espetáculos adquire riqueza de elementos, pois no primeiro momento desta fase da pesquisa, onde entrevisto os artistas antes das performances, solicitando informações sobre o que será apresentado, os registros durante as performances passam a ser realizados dando ênfase a certos “índices”; há então um solo que me orienta facilitando a escolha do que deve ser filmado para melhor aproveitamento dos dados. No que corresponde ao terceiro momento da pesquisa, onde registro o feedback, a situação em que assistimos, eu e os artistas, as gravações, permitiu perceber os momentos de abertura em relação aos esquemas pré-estabelecidos, as contingências e a criação de um espaço de reflexividade, não apenas minha em relação a pesquisa, mas dos próprios interlocutores em relação ao seu saber. Desse modo, foi construída uma leitura dialógica dos espetáculos analisados. Dada à apresentação dos procedimentos metodológicos, apresentarei um dos casos acompanhados – o de “Mala sem alça o palhaço sem calça” – um espetáculo de rua com atuação de Alexandre Luis Casali, palhaço Biancorino. Selecionei a última apresentação que ele realizou na Praça Campo Grande, Salvador-Ba, durante os sábados do mês de junho de 2011. 74 Acompanhei Alexandre no percurso até a Praça Campo Grande, dentro do carro, realizei a entrevista. Saímos da escola Sitorne, localizada no bairro do Rio Vermelho. Figura 9. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix Pesquisadora (P): Como é o seu espetáculo? Quais as ações você desenvolve? Alexandre (A): Então, “O Mala Sem Alça” está fazendo dez anos, o espetáculo foi construído como uma colcha de retalho declarada, dentro dessa esfera que é a dramaturgia do palhaço em que não há direito autoral e onde o palhaço herda alguma coisa de um mestre ou de algum palhaço que ele gosta, mas que ele não só copia, ele transcende, se apropria desses números. Como eixo principal do meu espetáculo tem uma “tortada”, que é uma gag que tem tanto no espetáculo do Tortel Poltrona, Chacovacchi, Leo Bassi. Tem um mergulho no copo d’água que é uma herança do Bicudo, que é o meu jeito de dá um mergulho no copo d’água, eu uso a gag da garrafa de água que é do espetáculo do Xuxu, mas hoje em dia ela está mais apropriada porque vou chegar na gag a partir de está bêbado e uso a estrutura de convocatória, meio que a fórmula geral que é usado pelos artistas de rua ao redor no mundo. A arte de rua que utilizo é mais parecida com aquele vendedor de remédio da praça da Piedade que ele fala que vai pular no círculo de facão, enrola, enrola, vende remédio e só no final ele pula, na verdade meu primeiro mestre foi ele. Minha estrutura do espetáculo foi pensada desse jeito, anunciar algo que vou fazer, mas enrolar, enrolar para chegar nesse lugar. Aí, como texto, foi surgindo uma necessidade de falar do próprio artista de rua porque 75 como foi um dos primeiros espetáculos desse molde aqui em Salvador, não havia uma preparação, uma forma mais adequada do público receber esse espetáculo. P: Essas estruturas de ações cênicas são independentes umas em relação às outras? A: O que tem mais independência é o começo do espetáculo porque ele é uma convocatória, o início que estou brincando com as malas, com as camisas. Agora eu acrescentei me arrumar, para oferecer uma introdução às crianças também, principalmente porque fui para o interior, então, eu tentei fazer aqui, estou elaborando isso de uma forma melhor, então o mais independente mesmo é o início do espetáculo. O resto se costura, uma coisa está levando para outra, então na sequência da convocatória, da apresentação do que vai ser aquele lugar, aquele espetáculo, mas ainda vou começar a introduzir o que vou fazer e para fazer preciso de tal coisa, então quando anuncio que vou fazer um mergulho no copo d’água, eu vou precisar mostrar antes os elementos de cena que vou utilizar, eu brinco interagindo com as pessoas. Aí quando eu tiro os elementos de cena, como vou dar um mergulho mortal, vou precisar de alguma coisa para amortecer a queda. Eu brinco com as crianças, pego as crianças para segurarem um copo com água, eu pego a garrafa de água para molhá-las. Como eu vou morrer, eu preciso de alguém para me matar, como seria muito chocante para o público matar um palhaço só por matar, seria uma violência gratuita, eu viro o vilão da história que nas dramaturgias sempre se dão mal, sempre morrem, então convido dois heróis para o espetáculo, são estruturas que são números em si, como trazer as crianças, brincar com os rapazes que vão virar super-heróis, mas eles estão desencadeando a própria proposta que o palhaço faz para o público de dá um mergulho no copo com água, são independes, são estruturas, mas como estão encadeadas e tem a ver com um número maior não dá para abandonar o espetáculo e ficar só com aquilo. Nunca aconteceu pelo menos comigo. Eu já cortei partes, o copo, já cortei um segundo elemento que teria que ter comigo para dá a “tortada” e o outro me dá os tiros. Já cortei o começo, para entrar já na convocatória sem usar a pré-convocatória. P: Quando isso geralmente acontece? Em que circunstâncias? 76 A: Por exemplo, em Palmeiras, eu apresentei na feira e tinha um som, os caras vendendo uns “cds”, eu pedi o favor deles baixarem o som, porque pedi para eles tirarem o som, mas eles não quiseram, eles estavam ali para vender o som deles. Então, eu cortei todo o começo do espetáculo, cortei o pedido para que batam palmas, o discurso sobre o palhaço; fui logo para ação, “vim aqui para fazer isso, tal coisa”, e como percebi que eles não respondiam a interação para bater palma forte, para gritar, eu abandonei porque isso enfraquecia, se você fica apegado a uma coisa, termina enfraquecendo as outras coisas, porque você fica ali esperando que aquilo aconteça, quando acontece é meio forçada, não é espontânea ou às vezes acontece de esquecer, ou de está atrasado, dispersão, é tudo muito sensorial, a gente sente o espetáculo meio na fibra da gente dá para perceber quando está tendo uma barriga de tempo, esticou, geralmente são essas as circunstâncias. P: Sobre sua expectativa em relação ao público? O que você espera dele? A: É claro que entre o ideal da gente e a concretização dele tem um espaço aí. O lugar do público no meu espetáculo é um lugar em que ele é o protagonista, meu espetáculo é vulnerável porque dependo plenamente do público, da energia do público, ele é meu parceiro de cena. Eu tento transformá-lo, o texto do espetáculo é direcionado a mostrar que é a energia dele, a participação dele que vai dá o tom para o que a gente vai viver naquele momento. É um ritual que está sendo feito junto. O palhaço é como o rei Midas, só que o rei Midas tocava nas coisas e virava ouro, o palhaço ele chega perto das coisas e elas ficam ridículas, então também tem esse lugar onde o palhaço por está interagindo com o público está trazendo o público e tratando da dramaturgia padrão que acontece aí que tem o herói, o vilão, tem essas coisas, pelo o público está naquele lugar junto com o palhaço, conseguimos perceber o ridículo que tem nisso tudo, do ridículo das histórias de herói, do ridículo que cada pessoa tem, porque quando qualquer pessoa que vem ali e coloca aquela máscara, ou mesmo que não coloque, o fato dela fazer uma expressão mais cênica, mais teatral, que o palhaço está propondo leva todo mundo ao lugar do que é risível, ridículo, do que é estranho, a vergonha funciona assim como a extroversão, são duas forças. Então, quando bem utilizadas com o público, àquele que é envergonhado funciona tanto quanto aquele que é expansivo. P: Como você utiliza os tipos palhaços? O Augusto, Bufão, Branco... 77 A: Olha, eu acho que a base é o augusto, o idiota mesmo, porque se trabalho a base do idiota que é o Augusto, eu posso um dia sendo um Branco continuar sendo idiota também, não ficar achando que o Branco é só o autoritário, o que manda, ele também tem uma lógica besta, ele acredita que está mandando, mas é um bestalhão, então assim, varia muito de quem está comigo, nesse espetáculo com o público, eu sou um pouco Branco e um pouco Augusto, sou Branco das minhas malas e Augusto do público, às vezes Branco com as crianças, isso depende um pouco da situação, de status mesmo, as próprias pessoas na rua instauram um status para gente, o palhaço na rua por natureza diante das pessoas, ele é um Augusto, mesmo que ele se ache o tal, ele é subjugado. No meu caso, danço conforme a música, quando a gente está sozinho, precisamos ser Brancos e o desafio é encontrar onde podemos ser Augustos, onde podemos ser um paspalhão, porque aí dá um profundidade, alguém que quer fazer algo muito sério, mas acaba melando tudo, não é uma escolha muito conceitual, as coisas acontecem sentindo, fica diferente, por exemplo, quando estou em cena com alguém. P: Então, essas escolhas vão além de uma maneira de maquilar-se ou vestir-se... A: Sim, vão além de um catálogo, sou um palhaço em aberto, dependendo da música eu tiro a roupa. Se eu precisar ser um Branco para alguém, eu sou um Branco. Eu vejo Biancorino transitando em todos esses lugares, não é um personagem para ser Augusto, outro para ser Branco e outro para ser Bufão. Tem um lugar em que ele está gritando e mandando, dirigindo um espetáculo como “Palharia”, mas tem outro lugar onde ele está carregando as malas do Super Tchezo. Chaplin não tinha nada definido, com a polícia ele era um Augusto, mas com a criança ele era um Branco, com a garota ele era um Augusto. O objetivo desse capítulo é demonstrar como foi realizada a coleta de dados na segunda etapa da pesquisa. Desse modo, seguirei com a descrição do espetáculo “Mala sem alça um palhaço sem calça”. A partir da descrição, buscoa demonstrar como o palhaço Biancorino não apenas apresenta o espetáculo, mas também o esforço empreendido por ele para “formar uma roda”; com essa categoria êmica, viso a 78 demonstrar a conquista de um público, as pessoas na praça adquirem um novo status através desse processo, elas se tornam espectadores. O espetáculo de palhaço é formado por diversos números ou rotinas que são estruturas dramatúrgicas relativamente encadeadas, o que possibilita ao artista atualizálas durante a exibição, ajustando, desse modo, àquela situação específica; o ajuste é realizado como estratégia para manter o público interessado. Todavia, uma das dificuldades encontradas no procedimento metodológico diz respeito às dificuldades inerentes a qualquer operação de tradução: como manter a integridade cômica do evento? Em outras palavras, é possível afirmar que estamos falando de como um cientista social “mata” uma piada, ou sobre o malabarismo de transformar uma hora e vinte minutos em dez páginas. Essa descrição foi realizada a partir do registro em audiovisual do espetáculo, solicitando, desse modo, para a situação de escrita um procedimento de textualização: A textualização é esse conjunto de processos pelos quais o discurso (o enunciado específico em situação de interlocução: palavras, ritos, comportamentos...) torna-se texto (proposições autônomas e separadas: corpus, anotações de campo, textos intermediários), a experiência é formada em relato, os exemplos em casos significativos, constituem-se campos de sinédoque (tomar a parte como um todo, construir o fato social total). A textualização pode também ser definida como a operação pela qual se opera a dissociação entre o autor e o interlocutor, a separação entre o processo de pesquisa e os textos que dela resultam. Em suma, trata-se desta “tomada de distância” e deste “deslocamento” [...]: o deslocamento do enunciador, a modificação da relação com os enunciados, o domínio do conhecimento à distância. (KILANI, M apud AMORIM, M, 2001 p. 92-93) 79 3.2.1 Descrição do espetáculo Alexandre Luis Casali chega à Praça Campo Grande trazendo duas malas e um carrinho de feira contendo um amplificador, microfone e um case de violino, plugado ao amplificador está uma parelho de mp3. A praça está cheia de pessoas sentadas, outras passeando, vendendo coisas. Ao passar um rapaz com o skate, ele pede por um momento o skate e realiza um salto. Devolve o objeto, volta a organizar os materiais que trouxe e equaliza o microfone. Ao mesmo tempo, convida as pessoas para sentarem em um determinado local e formarem uma roda. Em seguida, passa um homem em passo firme e Biancorino corre como se estivesse com medo. Cumprimenta o homem que faz gozação com ele. Figura 10. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix Retorna ao microfone: “– Oi! Dentro de instante mala sem alça, o palhaço sem calça, quem quiser assistir é só sentar ali, vou ficar aqui de costas para me arrumar, mas é só sentar ali”. “– É o último dia desse espetáculo internacional, para quem não assistiu venham ver, dentro de instantes. Vou deixar uma música aqui enquanto me arrumo”. Inicia um cabaret jazz e Biancorino começa a se arrumar, coloca uma gravata, fala com uma pessoa, com outra. Coloca os sapatos e acompanha a música, solfejando. Ele volta a convidar as pessoas que estão sentadas no outro lado da praça, algumas pessoas atravessam a praça e são aplaudidas por aquelas que já estão no local indicado para a plateia. 80 Biancorino continua se arrumando e, ao longo disso, segue realizando algumas gags, pousando para fotos. Ao fundo, transeuntes seguem indiferentes às ações do palhaço, outros esboçam uma curiosidade, mas seguem caminho; outros param e acabam por somar à plateia. “– Calma! Calma! Já vai começar”. “– Deixa o pessoal vim espontaneamente, eles vão perder, o último dia do espetáculo internacional”, fala em um tom irônico. Olha para um rapaz com o cabelo black power e assume semelhança com o próprio cabelo. Depois sacode a cabeça de um lado para o outro e amarra apertadamente o cabelo, esticando a face: “– Por acaso se sua filha estiver tensa, é só afrouxar um pouquinho aqui que relaxa”. Ele diz isso ao mesmo tempo em que afrouxa o elástico de cabelo. As pessoas riem. Aparece um menino passeando com um velotrol e Biancorino apita fazendo o sinal de “fora”. Biancorino inicia sua maquilagem, pintado de branco as pálpebras e a parte de baixo dos olhos. Nesse meio tempo, o menino do velotrol volta a aparecer e ele, dessa vez já compartilhando com a plateia através de olhares, apita novamente. Risos no público. “– Papai! Papai?” Segue caminhando em direção a um homem que estava em pé, o homem se afasta do palhaço, vira as costas. Em resposta: “– Não é papai”. Fala Biancorino. Ao fundo tocava uma música triste. Ele olha para a plateia e diz: “– Essa música é de chorar, né?!”. E muda a música para um jazz. Biancorino segue se maquiando e com isso criando algumas dificuldades, por exemplo, onde limpar os dedos. Acaba resolvendo a situação, limpando-os nas axilas. Segue maquilando a boca, o nariz, bochechas de vermelho. “– Vai para o camarote de trás, é porque eu já sou feio, o pai trás para perto de mim, a criança fica traumatizada e depois a culpa é minha”. 81 “– Obrigada por sua presença, viu?!” Puxa uma cadeira e senta aí na calçada. Risos na plateia. Biancorino avista um homem e abre os braços, ele faz o mesmo, se aproximam um do outro, mas o homem desvia e ri para a plateia. Biancorino mais uma vez recorre ao apito. O público rir. Ele retoma a maquilagem, agora contornando os lábios, olhos. Aparece uma senhora em uma cadeira de rodas: “– Mamãe?” Ela o saúda e senta para assisti-lo. “– Faltam cinco minutos para começarmos, dá tempo de comprar uma pipoca, um sorvete”. Figura 11. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix O palhaço vai cumprimentar uma transeunte que olha para ele e faz um sinal da cruz. “ – Jeito simpático de dizer “não gosto de palhaço”! É isso, não é fácil ser palhaço”. Novamente o menino do velotrol passa e Biancorino usa o apito, dessa vez utilizando-o também para convidar as pessoas. Por fim, ele coloca o chapéu, o paletó e coloca as coisas na mala. “– Senhoras e senhores, vai começar o espetáculo. Calma, calma! Mala sem alça, palhaço sem calça. Eu já botei minha roupa, só falta o cenário, as malas”. 82 Ao meu lado um homem ri e repete tudo que Biancorino falava. O palhaço começa a colocar as malas. Molha um dedo com saliva e aponta para cima. “– Você pode me emprestar a sua língua?” A piada parece não ter surtido muito efeito na plateia e acaba por desistir de continuar a piada: “– Deixa para lá”. Ele caminha uns quatro passos e coloca a mala em pé, caminhando mais quatro para direção oposta, deixa a outra mala, mas, ao começar a caminhar, a primeira mala cai. Volta para levantá-la, ao se distanciar, ela cai novamente. Acaba percebendo que ele não está conseguindo deixar nenhuma das duas malas em pé. Respira: “– Calma, calma!” E começa a dobrar o paletó, depois de dobrado joga no chão. A plateia ri. Novamente Biancorino usa o recurso do apito, tentando ordenar as malas, depois implorando para que elas fiquem em pé. Consegue posicionar uma, mas a primeira continua caindo. Desespera-se e acaba desistindo: “– Vou ter que continuar sem essa mala, ela é muito selvagem”. Carrega a mala, mas ela abre derrubando todas as coisas no chão. Este é o primeiro momento que ouvimos fortes risos na plateia: De repente, aparecem dois rapazes fazendo cooper e Biancorino os segue por um instante, despertando risos na plateia. “– She is speaking English”. “– Palhaço tem é arte”. Fala sorrindo, uma pessoa da plateia. Biancorino começa a recolher as coisas no chão e guardar na mala: “– Calma, calma! Vai dá tudo certo! Calma, calma, já vai começar! Calma, Calma, Calma! Eu estou calmo!” O chapéu cai no chão e acaba jogando todas as coisas recolhidas novamente no chão para pegar o chapéu, neste exato momento, aparecem novamente os rapazes fazendo cooper e ele os segue. Gerando mais risos na plateia. Volta e, usando o apito, começa a distribuir, entre as pessoas da plateia, as camisas que estavam dentro da mala. 83 Novamente aparecem os dois rapazes realizando cooper, dessa vez Biancorino apita, fazendo uma expressão zangada. Novamente a plateia responde com risadas. Figura 12. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix “– Senhoras e senhores, é o seguinte, essas camisas foram capturadas nas savanas indianas e estão em fase de adestramento, não é fácil! Vou usar o público selvagem para acontecer um momento de interação entre as camisas que mordem e o público que é selvagem também. Eu sei que vocês não entenderam nada, mas tá tudo certo, vai dá tudo certo no final”. Risos da plateia. O palhaço se posiciona à frente de uma das pessoas da plateia que está com uma camisa em mãos e apita iniciando uma série de gestos não compreendidos pela pessoa, assim, um garoto da plateia acabou falando para ela que os gestos eram um comando. Biancorino o convida para ser seu tradutor: “– Você joga para ele e ele joga para você!” Diz o menino. Aplausos e risos. Biancorino junto ao menino segue realizando a mesma ação. Com duas camisas na mão, acaba por errar a coordenação. A plateia ri. Por fim, uma pessoa atira a camisa e ele realiza um malabarismo com elas. Entrega todas as blusas a mulher com a cadeira de rodas: “– Atenção senhoras e senhores, número dificílimo, nunca visto na televisão, nem no cinema, ou revista em quadrinhos”. Pega umas das partes da mala quebrada e vê, em banco da praça, um homem cochilando, o homem acorda e tenta agarrar Biancorino que escapa correndo. 84 Retorna a ação da tampa da mala com as camisas. Aproxima a mala da senhora e com o apito comunica que as atire dentro da tampa. O palhaço pede aplausos e em seguida deixa mala junto aos outros pertences. Vira de frente para a plateia, bate uma palma, se agacha e sinaliza para si próprio, solicitando aplausos, não sendo atendido: “– Eu estou começando o meu espetáculo, eu peço uma salva de palmas, consigo adestrar quase três dezenas de público selvagem. Estou começando e vocês batem palma mais ou médio assim?!”. O público aplaude, mas Biancorino, dessa vez, interrompe: “– Agora não vale! Não adianta! É o seguinte, vou ser bem sincero, se vocês baterem palma mais ou médio, meu espetáculo vai ser mais ou médio, se vocês baterem palmas fraco, eu nem me garanto, felizmente ou infelizmente, o espetáculo na rua depende da energia da gente! Eu não vou fazer esse espetáculo sozinho, o pessoal que está lá do outro lado descansando não está nem envolvido, mas vocês? Estamos fazendo a arte junto. Se vocês me receberem com palmas, aplausos, mãos batendo em outras mãos... As pessoas começam a aplaudir”. Ele interrompe novamente: “– Calma, ainda não. Vocês podem gritar, podem assobiar, comprar os picolés e rumar tudo para cima, pegar as crianças e rumar para o alto, os homens arrancarem os cabelos do peito e ruma no vento, as mulheres arrancam a roupa... não, não arranca a roupa não que tem criança”. Risos na plateia. “– As mulheres arrancam o sapato e atira na fiação elétrica, eu quero ver o pipoco. Se vocês me receberem com essa festa, esse pode ser o melhor espetáculo que vivenciamos juntos. É, porque televisão, cinema, novela você fica assim parado, do lado do marido, ahñ! O cara fica no futebol, “é gol”, fica um monte de zumbi, aqui não! Você pode se descobrir um artista, assim como eu”. Volta-se para um homem na plateia: “– Você pode me ajudar?” “– Sim”. Depois procura outro: 85 “–Você pode me ajudar?” “– Não”. “– Obrigada pela sinceridade, isso é para vocês verem como artista sofre”. “– Você pode me ajudar? Tá de ressaca?” “–Você que não tá de ressaca, fica ali do lado dele, depois ela vai dizer meu herói”. As pessoas da plateia aplaudem, incentivando a ida do rapaz. Ao fundo, está o garoto do velotrol parado e assistindo toda a cena. O último homem que aceitou o convite do palhaço estava com fones de ouvido, Biancorino pega um dos fones para escutar a música e começa dançar. Risos na plateia. Os dois rapazes são posicionados por Biancorino um ao lado do outro: “– Senhoras e senhores, isso aqui é o camarim, eu vou me esconder e quando eu aparecer vocês me recebem de com força e de com festa. Vocês dois, cara de cenário, tá?!” Olha para o horizonte, não pode rir. Guarda os dentes. Faz cara de pedra. Respira, respira, ahhhh. “– Uhhhhh”. Responde o primeiro homem e todos caem na gargalhada. “– Então, quando eu entrar, vocês batem palma, assobia, joga as crianças para cima, de com força, as águias, até os caboclos vão bater palma”. Contagem regressiva: “– Cinco... Que contagem regressiva é essa gente, tá muito fraco, aqui não é a cidade do carnaval? Cinco!!! Eita! Chega arrepiou a rodoviária, legal, última chance. Cinco, quatro... Gente, isso aqui é quatro?”. O pessoal que está na escola ajuda. Biancorino fala com os dedos marcando sete. “– Cinco! Sete! Dois! Oito! Três! E já!” Escutam-se palmas, assobios e gritos. “– Venham cá”. Fala com os dois rapazes que já estavam voltando para a plateia. E segue: “– Eu mereço isso, mais vocês merecem muito mais”. Aplausos do público. “– Senhoras e senhores, meu nome é Biancorino Bolofofo, Biancorino uma homenagem a minha irmã Bianca e Bolofofo, eu não descobri ainda. Sei que vocês sabem que eu sei que deve ter de tudo nessa roda. Estudante, economista, telefonista, 86 balconista, artista, recepcionista, skatista, surfista, “vagabundista”, crianças, adolescentes, adultos, adúlteros, pessoa da melhor idade, tem de tudo aqui, eu não sei se vocês repararam, mais eu sou um palhaço. E eu não sei se vocês já perceberam que os palhaços de verdade estão em extinção, extinção significa está quase acabando. Porque gente que se veste de palhaço tem um monte, gente que faz papel de palhaço tem um monte, gente que xinga as pessoas tem um monte, gente que usa o palhaço para vender as coisas tem um monte, agora palhaço, da arte da graça, com público, na praça, é muito raro, mas o que é mais raro que um palhaço, é ter um monte de gente sem ter o que fazer assistindo um”. Risos na plateia. Biancorino segue: “– Então, eu já saio lucrando entendeu? Como para o palhaço não adianta lucrar sozinho, só vale a pena quando sou eu e vocês juntos, eu irei fazer aqui um número extraordinário!”. Figura 13. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix O público aplaude, porém Biancorino interrompe: “– O texto não é esse, ensaiamos a semana passada, e desde o dia 14 estamos ensaiando. Quando eu falar vocês respondem: ohhhh!” Biancorino segue: “– Senhoras e senhores, farei um número extraordinário”. “– Ohhhhh!” “– Dos antigos palhaços do mundo!” “– Ohhhh!” 87 “– Vou levar uma “tortada” na cara, mas antes eu vou dá um mergulho mortal”. “– Ohhhhhhh!” “– E como o mergulho é mortal, eu vou plantar uma bananeira”. “– Ohhhhhhhhh!” “– E alguém vai ter que morrer, eu”. “– Ohhhhhh!” “– Gente, vocês são os artistas, quando eu falar que “alguém vai morrer eu”, tem que interpretar as emoções, tem que fazer ohhhnnnn e virar a cabeça para o lado de lá. Tá?”. Biancorino: “– O texto de vocês agora é ahn ahn. Ahn ahn ahn ahn!”. O público responde: “– Ahn ahn ahn ahn!” “– Mais afinado que Beethoven”. Biancorino começa a tirar elementos de dentro da mala e a plateia responde com ahn. Ele tira da mala blusas, shorts, camisetas, ao tirar uma calçola grande e rosa, a plateia gargalha. Tira garrafa d’água, creme de barbear. “– Senhoras e senhores, como eu vou dá um pulo mortal, a gerência da praça pediu para eu trazer um sistema de segurança, mais aí eu não tinha nem um colchão ou rede, eu vou colocar dois copos com água para amortecer a queda e vocês não verem nenhuma cena desagradável”. Dessa vez, Biancorino convida duas crianças para ajuda-lo: “–Você pode me ajudar? Não? Então, vai. Quem ainda não assistiu a esse espetáculo?”. Algumas crianças levantam a mão. Por fim, são convidados dois garotos e o palhaço entrega um copo plástico a cada. 88 “– Vou fazer um teste com os atores”. Com o apito, dá o comando para os meninos suspenderem o braço. Cheira as axilas dos dois meninos seguindo com a mesma ação com as pessoas na plateia: “– Legal! Legal! Tudo bem? Os melhores vinhos são aqueles que fermentam mais tempo, dá licença aqui, viu?!”. “– Ih! Ficou bêbado!” Fala um homem. Biancarino começa a caminhar tropegamente. Os dois garotos estão com os braços estendidos segurando os copos e Biancorino, com uma garrafa pet cheia de água, conversa com o público e ao virar, deixa respingar água nos meninos: “– Assim não dá!”. Fala o palhaço de forma austera. E segue: “– Os meninos já estão suando, atenção a todos, assim não dá”. A plateia ri bastante. Depois enche os copos com água deixando que água transborde. Ao final pede aplausos para os dois meninos que retornam a plateia. Figura 14. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix “– Senhoras e senhores, vou chamar aqui dois heróis que foram treinados por Bruce Lee, Brandon Lee e Rita Lee, uma salva de palmas para o meu amigo Cuscuz”. E aponta para alguém na plateia que, reticente, segue até o centro da roda. 89 “– Para ajudar o meu amigo Cuscuz, vou convidar essa pessoa ilustre, meu amigo Tapioca!”. A princípio, ele se nega, mas o público começa a aplaudir e chamar seu nome, em seguida aceita. Nesse momento, chega um homem, possivelmente morador de rua e embriagado, chamando atenção de todos. Biancorino distribui entre Cuscuz e Tapioca máscaras e capas, tomando alguns adereços para si: “– É o seguinte, desafio de velocidade, quem botar primeiro a roupa ganha. Quando a gente se veste com uma fantasia, a gente deixa de ser quem a gente é, pode fazer qualquer coisa como os super-heróis. Não se preocupe, ninguém vai reconhecer vocês. Senhoras e senhores, como tenho menos elementos, eu vou tirar a minha roupa para vestir essa e dá vantagem a eles, e como ninguém merece vê-los sem roupa, eles irão vestir por cima dessa mesmo. Contagem regressiva: Cinco, quatro, três, dois, um”. Este é possivelmente um dos momentos forte do espetáculo, pois ao palhaço se despir, revela-se de fralda. Ouve-se vaia na plateia, o palhaço se justifica: Figura 15. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix “– Não é nada disso que vocês estão pensando, eu sou faixa rosa de sumô, vou mostrar o catar da lombriga, o catar da solitária e por fim, o catar da ameba”. O público gargalha e aplaude. O palhaço volta aos dois homens já fantasiados de super-heróis e pede para “bater par ou ímpar”. “– Você ganhou? Você “quer morrer eu” ou dá a “tortada” em minha cara?”. 90 “– Dá a tortada”. “– Então tá, você “morre eu”. Biancorino solicita que o homem fique de frente para ele: “– Tudo que eu fizer, você vai ter que me imitar, só que mais forte, porque você tem que me intimidar”. Figura 16. Foto: Daniela Félix, 2011. “– Pan Pan Pan!” O homem bêbado interrompe o espetáculo. Biancorino o interpela: “– Meu filho, você vai ter que ficar quietinho se não te coloco de castigo, se você falar por cima de mim, ninguém me entende”. Volta-se para o homem vestido de super-herói: “– Posição de cowboy, desembainha o revolver. Senhoras e senhores, vocês vão conhecer o gatilho mais rápido do nordeste, olha! Agora me imita: - uia! Mais forte! Uie!” “– É mais forte, porra!” Interfere o homem bêbado, por várias vezes, até que o Palhaço volta a conversar com ele, conseguindo silêncio por algum tempo. “– Então, agora nós vamos nos desafiar”. Fala para o homem de super-herói e solicita a função de sonoplastia para a plateia. “– Agora, você espanta o vilão: Uau!!!” O homem bêbado volta a interferir e Biancorino resolve acrescentá-lo ao espetáculo: 91 “– Você faz, o Uau!!! Tá?!” Mas, na hora de responder, o homem bêbado se distrai. Risos na plateia. Biancorino ignora e segue com o roteiro. O palhaço solicita para o homem vestido de super-herói que fique com as costas junto a suas, iniciando nova contagem regressiva. O público conta junto com o palhaço: “– Você agora desembainha o revolver, você está com duas metralhadoras, atira, atira e eu só desviando. Agora, você bate no meu ombro, atira no olho e assopra, mas importante é primeiro o tiro e depois o sopro. –Ah! Ele “morreu eu” ah! Senhora e senhores, eu estou morrendo e muitos me consideraram um palhaço sem circo, mas olha a tenda do meu circo, a lua do meu circo, a parede do meu circo”. O público aplaude e Biancorino pede para que o público faça a sonoplastia de tambores. “– Agora, o mergulho mortal!” Biancorino coloca os copos com água no chão e realiza uma parada de mão com um salto leão e para diante do segundo homem vestido de super-herói, o homem já com a torta na mão: “– Calma, calma!”. Diz o palhaço. “Agora, eu falo não e você fala sim!”. “– Não”. “– Sim”. “– Corremos em câmera lenta, faz a câmera para o público, está se esforçando, mas está parecendo um garçom sonâmbulo, câmera lenta são movimentos longos, largos, lentos, fazendo careta, xingando em japonês mudo. Faz aí. Melhorou, melhorou”. Biancorino pede a torta para o homem, que a entrega de maneira desconfiada. “– Senhoras e senhores, ele não está conseguindo e é por culpa de vocês. Vocês precisam fazer aquela música de câmera lenta “banananana bananana”. O público responde e Biancorino explica o que o outro super-herói deve fazer com a torta. O palhaço segue com o roteiro. “– Agora, eu tropeço e você me segura. Mas, eu quero fazer um último pedido ao público, depois deste número, tem um último, de mágica”. O primeiro super-herói segura o palhaço e o segundo dá a “tortada” que quase cai da sua mão. 92 Figura 17. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix. “– Ah! Ah!”. Biancorino deita no chão com pernas e mão para cima: “– Mas, para eu morrer, não pode ter nada na vertical”. O homem bêbado entra novamente na cena para ajudar os heróis a baixarem os braços e as pernas do palhaço que finalmente morre. “– Senhoras e senhores, sei que é muito difícil para o público vim aqui brincar com o palhaço, porque quando vem aqui, o artista principal se torna ele, uma salva de palmas para os heróis”. “– Vou fazer um número de mágica, esse é o momento que o artista de rua diz que vai passar o chapéu, nessa hora, o público some como está acontecendo agora, calma, não vou passar o chapéu, fiquem aqui para bater palma para quem merece, mas tenho a obrigação de dizer que quando o artista passa o chapéu, ele está dando a oportunidade de o público reconhecer o trabalho dele e perpetuar a arte na rua, a arte popular que nasceu antes do circo e do teatro, mas é claro que o artista de rua tem que ter criatividade para passar o chapéu; eu poderia dizer na ignorância “eu tenho filha, tenho família, passei uma hora suando para vocês, então faça o favor, vamos contribuir no meu chapéu”, mas isso não é de uma boa educação e o público continuaria oprimido. Eu poderia usar da razão, todo mundo aqui sabe que na arte de rua a entrada é gratuita, mas a saída ninguém garante. Eu prefiro usar do humor, se vocês me derem dois reais eu volto para casa feliz da vida, se vocês me derem vinte, eu volto saltitante, mas se vocês me derem cinquenta, trezentos e cinquenta e sete, eu volto para a casa, mas é com vocês, é muito fácil comprar um palhaço hoje em dia. Senhoras e senhores, não vou passar o chapéu, como eu dei tudo de mim para vocês e sei que vocês dariam tudo de vocês para mim, eu vou passar é a mala”. 93 Foto 18. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix Passadas duas semanas da exibição do espetáculo, voltei a encontrar com Alexandre. Nesse último encontro, assistimos os registros de quatro apresentações do mesmo espetáculo, duas referente à temporada na Praça Campo Grande e as outras duas realizadas nas cidades de Piatã e Boninal, localizadas na Chapada Diamantina-BA, esses últimos registros são arquivos pessoais do artista. O motivo do convite de Alexandre para assistirmos essas duas apresentações foi o fato dele ter considerado a temporada da Praça Campo Grande uma temporada difícil, em que o esforço para a formação da roda foi muito maior, logo gostaria de sinalizar a diferença quando a “roda responde”. Em alguma medida, é possível considerar o “formar a roda” em termos da realização de uma habilidade, a realização de um praticante habilidoso. Em Da transmissão de representações à educação da atenção (2010), Tim Ingold analisa o conceito de habilidade em distinção aos de capacidade e competência. Sobre o primeiro, o conceito de capacidade, o antropólogo localiza um problema, ele está profundamente imbricado “nas metáforas de recipiente e conteúdo da psicologia humana como um conjunto de compartimentos modulares pré-constituídos ou ‘dispositivos de aquisição’, aguardando para serem preenchidos com informação cultural na forma de representações mentais”. (INGOLD, 2010, p. 17) O conceito de competência é para Ingold igualmente problemático já que sugere “uma cognoscibilidade que é desligada da ação e dos contextos de envolvimento corporal de atores com o mundo, e que toma a forma de regras interiores ou programas capazes de especificar, com antecedência, a resposta comportamental adequada a qualquer situação”. (INGOLD, 2010, p.17) . Essa noção seria equivalente à abordagem do solucionador de problemas inteligente que age a partir de um plano, formulado pela 94 “submissão de uma representação da situação existente a um determinado conjunto de regras deliberativas” (INGOLD, 2010, p.17). Por fim, Ingold afirma: Assim as noções de capacidade e competência são intimamente entrelaçadas: enquanto a primeira sugere uma disposição intrínseca a aceitar certos tipos de regras e representações, a última é inerente a este conteúdo mental recebido. O indivíduo dotado de capacidade para línguas pode adquirir competência em inglês; o indivíduo dotado de capacidade para lançar/agarrar pode torna-se competente jogador de cricket. [...] Pensar nesses termos, todavia, é tratar o desempenho tal como o de quem fala inglês ou joga cricket, como nada mais do que a execução mecânica, pelo corpo, de um conjunto de comandos gerados e colocados ‘online’ pelo intelecto. (INGOLD, 2010, p. 17) Desse modo, as noções de capacidade e competência supõem que o desempenho inicia-se através de um plano que contêm uma especificação completa e necessita do comportamento a seguir, localizando aí estrutura de tipo muito complexo. No que diz respeito ao processo de implementação, se dá por meio de simplicidade mecânica. Em distinção a essas noções, Ingold afirma a necessidade de tomar um caminho oposto: pressupor uma estrutura simples, e até estrutura nenhuma, explicando o desempenho como desdobramento de um processo complexo. Gregory Bateson esclarece a distinção: Considerem, por exemplo, os movimentos do lenhador, ao derrubar uma árvore com seu machado. Um modelo de processo simples e estrutura complexa consideraria cada balanço do machado como produto mecânico de um dispositivo computacional mental instalado na cabeça do lenhador, destinado a calcular o melhor ângulo do balanço e a força exata da machadada. Um modelo de processo complexo, ao contrário, consideraria o movimento do machado como parte do funcionamento dinâmico do sistema total de relações constituído pela presença do homem, com seu machado, num ambiente que inclui a árvore como foco atual de sua atenção (BATESON apud INGOLD, 2010, p. 17) Assim, Ingold assume uma abordagem ecológica, pensando o desempenho como uma realização do organismo/pessoa por inteiro em um ambiente em detrimento de concebêlo como a descarga de representações na mente. O conceito de habilidade surge justamente como caminho para sua abordagem ecológica, o “desempenhador” competente estando vinculado à execução mecânica de um plano pré-estabelecido. Para a ação ser colocada em andamento, não pode alterá-la ou atualizá-la à luz de novos dados sem interromper a execução do desempenho. Distinto a essa concepção, o 95 movimento do praticante habilidoso “responde contínua e fluentemente a perturbação do ambiente percebido. Isto é possível porque o movimento corporal do praticante é, ao mesmo tempo, um movimento de atenção; porque ele olha, ouve e sente mesmo quando trabalha”, (INGOLD, 2010, p.18) vez que está na harmonização dos movimentos com uma atividade emergente em que as condições são penetradas por indeterminação, já que nunca são exatamente as mesmas de um momento para o outro. A análise do praticante habilidoso como uma realização do organismo/pessoa viabiliza o entendimento de muitas metáforas utilizadas pelos interlocutores da pesquisa como o “sentir o espetáculo na fibra da gente”, “a necessidade de um estado de escuta”, “o palhaço é um coração sem pele”. “Formar uma roda” envolve uma relação de afecção, a possibilidade de feixes de afecção recíproco entre artista, público, ambiente, envolvendo uma comunhão afetiva – einfühlung –. (FAVRET-SAADA, 2005, p. 159) As noções de habilidade e comunhão afetiva são fundamentais para se entender os aspectos do riso, grotesco e improviso. Em muitas entrevistas, inclusive as realizadas com Alexandre Casali, aparecem constantemente termos como pré-convocatória, convocatória, passar o chapéu, como também são tematizados em muitas oficinas, principalmente aquelas que tratam do espetáculo de rua. Estes termos constituem a “meta-estrutura” do espetáculo, ou seja, é uma estrutura que organiza os números a serem apresentados; estrutura entendida como esquema de ação, constituindo uma dramaturgia. Os números podem ser breves narrativas como o caso dos heróis que matarão o vilão no espetáculo “Mala sem alça um palhaço sem calça”, como pode ser a apresentação de uma virtuose como o malabarismo com as camisas. Em nosso último encontro, Alexandre apresentou essa “metaestrutura”: Alexandre: No meu entender é um momento intimista, antes era eu chegando com as malas, eu não falando com ninguém, era o meu problema com as malas, elas caindo. Agora, eu já mudei um pouco, sou eu me arrumando, eu até chamaria isso de uma prépré-convocatória, você pode ter pré-pré-pré-pré, entendeu?! Só em eu chegar com a mala na praça já é uma pré-convocatória. Você está mostrando que vai ter uma coisa ali, e eu percebo cada vez que o que mais funciona é ser intimista, não dá muita bola para o público. Quem me deu essa compreensão foi o Daniel Barckley, ele se arruma e fica lá 96 no som, parece que o som está dando problema, só se relaciona com o som, as pessoas param ansiosas e chegam perto dele para ajudar e ele diz que esta tudo sobre o controle, e então vai juntando gente, quando forma uma roda, o som funciona e ele que estava sempre de costas para o público e sério, muda completamente; as pessoas aplaudem pelo simples fato do som ter funcionado. Na pré-convocatória, a gente também começa a apresentar as coisinhas, tem que transformar cada coisinha em um personagem, a gente não pode tirar tudo de vez, vamos apresentar o copo, a chaleira, o café, o sapato. Figura 19. Alexandre Luis Casali e Daniela Félix, 2011. Foto: Rose Boaretto. Pesquisador: Então, ao você entrar na praça é uma pré-pré-convocatória, como também você se arrumando? A: Pois é, você percebe que eu não anunciei o espetáculo ainda? Então, diríamos que a pré-convocatória é agora, eu virei palhaço, antes era pré-pré, antes era chamariz, atração, eu tenho a teoria do jardineiro, eu me arrumando, eu estava plantando, as flores brotaram é a roda, é o meu jardim, quando elas florescem em risos, brotam mais flores, a interação é o um adubo poderoso, é botar uma terra poderosa. P: E a convocatória quando inicia? 97 A: Quando vou anunciar o que vai acontecer, quando estou de palhaço, anunciando pelo microfone que vai acontecer um espetáculo em instantes, chamando as pessoas, então começa a ter uma interação maior com a plateia, o número de malabarismo com as blusas ainda é convocatória porque não anunciei ainda o espetáculo. Tem uma técnica na convocatória, o trunfo dela não é só fazer a convocatória, mas é fazer as pessoas aplaudirem, por que o que multiplica público é palma e na convocatória é o momento para agregar mais gente. Eu não fui muito feliz aqui nessas estruturas, não achei o tempo, era sábado, 17:00 h, se fosse domingo, nesse mesmo horário estaria cheio de gente, ruim para luz, mas é bonito lá, tem os abajures, fica iluminado. O espetáculo começa depois que saio do “camarim”, em que digo o meu nome e o que vou fazer ali, quer dizer, é o que eu chamaria de espetáculo porque ele se inicia desde a hora que chego na praça. P: E o chapéu? A: Então, é um lugar de perpetuar essa tradição de todo o artista de rua, passar o chapéu para criar essa educação, mas junto a isso é trazer coisas de qualidade para a rua porque coisas sem qualidade, sem oferecer nada, tem bastante, então quando você investe em figurino, em seu material, um espetáculo legal e coloca na rua, entra em cartaz e estabelece um ponto, você mostra que tem arte de qualidade ali; por isso, eu acho que tem que trazer uma elegância, uma honra como diz o Chaccovachi, você é um cavaleiro, você tem que mostrar sua armadura mais bela para abrir os olhos das pessoas ali, você está oferecendo arte para quem quer ver arte, ninguém pediu para você ir lá, mas também você só convidou as pessoas, vem quem quer, quem não quer, sai na hora que quiser, mas quando fica, você realmente ofereceu arte ali. É um dinheiro que você criou junto. Há também uma parte técnica, porque quando você vira artista de rua, o artista tem que ter uma criatividade e um jogo de cintura nesse momento para não reforçar o estigma do mendigo, do pedinte, tanto com o palhaço, quanto com o artista, principalmente o artista de rua, então, ele tem que ter uma criatividade para dá essa ideia e abrir os olhos das pessoas no sentido de sua valorização, tudo que falo no meu texto é de verdade, quando o público se apropria daquilo, ele se sente artista, ele está contribuindo para que aquela arte se perpetue. É você viver da sua criatividade. Sentir, gerar sentindo com o público, é esse o desafio que encontro na rua: como em cada obra gerar de uma forma que o público possa fazer o espetáculo junto comigo. Esse chapéu 98 aqui em Campo Grande foi um pouco esticado, mas acho que na rua ele tem que ser regra. Essa “meta-estrutura” que envolve “pré-convocatorias”, “convocatória”, “espetáculo” e a “passada de chapéu” é possível de ser reconhecida em muitos espetáculos de rua, se constituiria em uma tática5. Todavia, elas possuem um caráter flexível que obedecem a certo desencadeamento das ações, ou seja, o roteiro dos números, mas também estão em diálogo com as contingências, que podem ocorrer em decorrência da reação do público, a exemplo do espetáculo em Palmeiras, onde Alexandre relatou ter eliminado as pré-convocatórias e parte da convocatória, ou por um não funcionamento de um elemento em cena como ocorreu na Praça Campo Grande, onde as camisas engancharam na mala: Enganchou, não funcionou, joguei fora, geralmente as camisas ficariam no chão e eu pularia em cima das camisas, cantaria, dançaria, joguei fora uma parte ali. É isso, não tem a tecnologia, no caso a mala está muito quebrada, ela foi quebrando e fui usando como estética. Mas ela não está definida para a precisão que necessito no número. Então naquele momento elas ficaram enganchadas na mala quebrada. Era para as camisas caírem, aí eu diria “vou ter que apelar para a violência”. Aí cantaria, dançaria e daria um pulão, cairia em cima das camisas e as levaria já exausto, pediria palmas para daí dá o discurso que vou dá agora. Você viu que não aconteceu uma coisa ali porque deu um tilt, a mala selvagem enganchou as camisas. (CASALI, Alexandre, entrevista, 2011) Assim, podemos afirmar que a relação improviso e roteiro é antes um processo de atualização dos esquemas que uma dicotomia; o improviso e o roteirizado estão entrelaçados na arte do palhaço, os próprios esquemas, ao serem construídos, não excluem a possibilidade do inesperado. Assim, interessa a este trabalho, a contingência como dimensão constituinte da realidade. Essa contingência ocorre em articulação com a forma, o roteiro, em um processo de conquista do artista em relação ao público; ao mesmo tempo em que se reserva ao público um espaço na construção da própria obra, através de participação e reações. E não só o público – recuperando o paradigma 5 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 99 ecológico proposto por Tim Ingold – elas, as contingências, são frutos da realização organismo/pessoa. Há um ambiente ou uma paisagem que “atua” juntamente com o palhaço, solicitando um movimento de atenção, o bêbado, o cachorro, a chuva e uma imponderabilidade de “expressões” desse embodied landscapes6. É possível ainda, em relação ao improviso, situá-lo em dois âmbitos: o primeiro, que chamaremos de improviso constitutivo e está articulado ao próprio procedimento dramatúrgico da arte do palhaço, seria uma característica desses roteiros, o espetáculo possui momentos, por exemplo, de maior ou menor abertura em relação participação do público, esse “ritmo” é uma construção prévia, está sinalizado no próprio roteiro os momentos de improvisação, isso pode ser observado pelos comentários de Alexandre sobre suas atuações, ora pontuando que em determinado momento “esticou” demais, cansou o público, ora sinalizando quando foi preciso na abertura do roteiro e a retomada do mesmo. O outro âmbito seria o improviso condicional, este é o que surge através da “força da situação”, pela expressão de uma paisagem, e que pode colocar em risco todo o espetáculo como também produzir o “rizível” a partir de uma interação completamente nova. É expressão desse segundo âmbito a quebra de elementos de cena, o cachorro que invade o espetáculo, a chuva, o bêbado, mas também a maneira como as pessoas do público reagem em momento de número interativo. Assim, poderíamos dizer que o primeiro, o improviso constitutivo, é o palhaço jogando o jogo; o segundo, o improviso condicional, é o palhaço sendo jogado pelo jogo. Contudo, a divisão nos serve enquanto procedimento epistemológico, pois em performance esses fenômenos ocorrem muitas vezes de modo concomitantes; eles só se tornaram tangíveis ao longo na análise dos dados. Como nos propõe Alexandre: O espetáculo nunca sai igual, a gente improvisa para ter o espetáculo todo de improvisação, a gente improvisa para criar uma cena, a gente sabe por onde começar, por onde temos que passar, mas podemos fazer a ligação entre os pontos de muitas formas, isso também é 6 [...] a paisagem é pensada como o horizonte de convergência dos corpos e organismos humanos e não-humanos com o ambiente que os engloba, distinguindo-se de uma concepção de paisagem como "vista" ou cenário para a ação humana. Para o autor, assim como os corpos não são formas dadas anteriormente, independentes dos seres que os constituem geneticamente, as paisagens não são cenários pré-existentes a espera das criaturas que vão ocupá-las. (CARVALHO, Isabel Cristina de Moura; GRUN, Mauro and AVANZI, Maria Rita, 2009, p.105 ) 100 improvisação, você está fazendo escolhas dentro de você naquele momento, mesmo que seja a escolha de seguir o roteiro. Mesmo em um espetáculo todo marcado sempre tem improvisação. [...] Você cria uma situação e dentro dela acontecem fenômenos, você ver o ridículo acontecendo ali, você só vira um foco, os cachorros, os bêbados, muitas coisas te atravessam. (CASALI, Alexandre, em entrevista, 2011) É possível afirmar que o improviso está relacionado tanto a um modo de fazer, um saber que remonta ao teatro de Aristófanes, ao Renascimento, à Teatralidade circense etc. O caráter da dramaturgia considerada é o extremo oposto do objetivo naturalista do teatro de tom realista que faz uso da quarta parede, em que separa a plateia da cena. A interação com o público é eixo fundamental, produzindo uma libertação das associações simbólicas, tanto para o público quanto para o próprio artista, já que muitos dos sentidos cênicos são dados nesse campo de afecção artista/espectador. A interpretação do palhaço é dependente do público. A proximidade e a presença evidente da plateia, que raramente está no escuro, permitem ao palhaço um contato direto com brincadeiras, correrias, escapadelas etc. Por outro lado, o improviso também está relacionado a “espaços cênicos específicos”, transcendendo o ponto de vista particular do palhaço, ou seja, quando o jogo ultrapassa o jogador. Alguns espaços como teatro, o improviso condicional ocorre em graus menores, justamente por serem espaços reservados, acaba diminuindo determinados “riscos” impossíveis de serem contornados em uma praça. Contudo, isso não quer dizer que não ocorram, mas possuem outras especificidades, por exemplo, defeitos na aparelhagem de iluminação e sonoplastia, problemas com o cenário e ainda aqueles que parecem ser comuns a muitos espaços, a quebra de elementos de cena, a reação do público etc. A ideia fundamental é que os esquemas fixos, produzidos muitas vezes em situação de improviso nos ensaios ou recuperando outros improvisos ocorridos em uma exibição, não são elementos radicalmente opostos às situações de improviso. Tim Ingold afirma, em Creativity and cultural improvisation 2007 que não há script para a vida sociocultural. As pessoas são compelidas a improvisar, não porque operam “de dentro” de um corpo de convenções estabelecidas, mas porque nenhum sistema de 101 códigos, regras e normas pode antecipar cada circunstância possível. Improvisação e criatividade seriam para Tim Ingold intrínsecas aos processos da vida sociocultural. Neste sentido é que se explica a dinamicidade e a permanência ao longo do tempo da performance. Fixar e improvisar seriam categorias inseparáveis, durante a reprodução da performance, seriam simultaneamente inscritas em cada ato que as realizam, porém nunca exatamente replicadas. 102 Considerações finais Estou aqui diante de um paradoxo, pois a ideia de concluir algo que parece anunciar os primeiros lampejos soa bastante desconfortável. De fato, trata-se de uma pesquisa sobre o meio como essa pesquisa se tornará possível, ou seja, esse trabalho é marcado transversalmente enquanto abertura, esboço de promessa vindoura, cartografia de futuro. Como colocar ponto final quando é veementemente solicitada uma carreira de reticências? Como sugere Manoel de Barros, o descomeço parece mais apropriado. Descomeço não está em oposição ao começo, mas seu anverso, um começar de trás para frente como viajar de trem em uma poltrona que rende as costas para o maquinista, uma olhada para o retrovisor quando se dá a partida em um carro. A questão de como produzir metodologia e técnicas de investigação que possibilite uma investigação diante das “transgressividades” da experiência humana, como produzir um arsenal metodológico que não ignore os elementos criativos e contingencias da ação foi o foco central desta pesquisa. Contudo, o texto dissertativo se limitou em demostrar a metodologia utilizada, uma espécie de teste da potência que as técnicas empregadas apresentam para o tipo de problemática da pesquisa. Apesar do foco da investigação ter se centrado nos empreendimentos de tais técnicas, solicitou um esforço teórico para introduzir o leitor no universo da pesquisa, desse modo, conceituar a arte do palhaço não de um ponto de vista formal, mas considerando os procedimentos dramatúrgicos postos em ato por palhaços ao longo da história. Inovações e transformações foram, sem dúvida, colocadas em curso por sujeitos perseguindo a realização de seu ofício, isso pode ser claramente visto na criação de tipos-cômicos que, apesar desse breve mapeamento, não param de surgir; contudo, algumas características parecem perenes, como os roteiros abertos que viabilizam improvisações em resposta a um público, um espaço, ou seja, há um processo de atualização dessa arte que ocorre em cada apresentação. Junto a isso, o caráter constitutivo da relação artista/plateia, o público é coparticipante dos procedimentos cômicos. Persegui, desse modo, a indeterminação que entra em jogo na própria construção do espetáculo. Ao considerar tais aspectos delineadores da arte do palhaço foi necessário um reajuste de foco no entendimento sobre o riso, ao realizar uma crítica a filosofia de 103 Henri Bergson, via fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, recuperou-se o caráter intersubjetivo do riso, ou ainda, inter-corpóreo, já que o riso é expressão dessa comunhão entre o artista, público, o ambiente, uma tomada ecológica no fenômeno do espetáculo de palhaço. Como resultado desse empreendimento surgiram, duas categorias para se pensar o improviso, uma que recupera a indeterminação de toda e qualquer experiência humana e a outra acepção do termo que nos lança para os procedimentos dramatúrgicos desse tipo de espetáculo. As técnicas empregadas se mostraram adequadas para o tipo de problemática e não apenas isso, através de sua utilização outras questões foram suscitadas, algumas fui capaz de apresentar e ainda, de maneira não conclusiva respondê-las, principalmente aquelas que atentam para a necessidade de um espaço marcado pela interlocução entre pesquisadores e sujeitos de pesquisa. Considerando o caráter reflexivo dos próprios sujeitos em relação a suas ações, não se trata de indivíduos determinados que agem motivados por um sistema alheio ao cotidiano de suas vidas, como também não são senhores absolutos das consequências de suas ações. A reflexividade aqui pontuada é fruto da existência em mundo, ou convidando Heidegger para o nosso motim epistemológico, o ser-no-mundo está sempre em jogo na sua existência. A possibilidade de uma investigação via diálogo contínuo com os praticantes ocorre por essa compreensão prática, a qual deriva uma compreensão da prática. Desse modo, a interlocução com os sujeitos de pesquisa foi fundamental para o desenrolar da mesma, já que eram nesses encontros que apresentavam horizontes de referências pelas quais eu deveria analisar seus espetáculos. Por outro lado, o que capturava em vídeo muitas vezes surpreenderam os interlocutores e motivaram alterações em seus espetáculos, participando, assim, do próprio processo de atualização de suas encenações que antes de um produto acabado, o espetáculo parecia sempre está em por fazer sem limites. Por outro lado, outras questões foram suscitadas e ainda que brevemente sinalizadas, não foi possível esboçar uma resposta plausível para questões como da temporalidade e espacialidade, como participam dessa trama de instituições de esquemas de ação e as atualizações dadas pelo colocar em cena. Acredito que uma 104 rearticulação das aplicações das técnicas será fundamental, acompanhar um único palhaço por um período mais extenso de tempo e em lugares diversos seria de máxima relevância. A temporalidade e espacialidade aqui não foram vistas como vetores ideais cartesianos, no sentido de medições, extensões e métricas, mas vinculadas a experiência nesse envolvimento prático com o mundo. Não é o tempo em sua acepção cronológica ou o espaço como que pode ser medido e cede lugar a um corpo. Mas, no sentido que toda a ação humana está regida pela temporalidade, ou seja, envolve construções passadas que são retomadas, ao mesmo tempo que envolve perspectivas para o futuro. Assim, toda ação se converte em reação em cadeia, desencadeando, deste modo, novas ações. Contudo, apesar de poder considerar o início de uma ação é inerente a imprevisibilidade de seu término. A espacialidade deste modo adquire outro estatuto, não é um dado, no sentido de algo feito, mas é recuperação de um sentido de localização. Mais uma vez convocando Heidegger, é uma espacialidade em termos de direcionamento e distanciamento, no sentido que o Dasein. O ser-no-mundo abre espaço, arruma e desarruma o espaço; a existência, desse modo, especializa. Essas questões aparecem ainda que difusas ao longo da dissertação, contudo é necessário um investimento futuro que lhes possibilite aprofundamento. O interessante seria acompanhar um espetáculo desde sua construção e continuar acompanhando-o nas mais diversas situações de apresentações. Para tanto, devo contar com os imponderáveis da vida, encontrar esse artista que está produzindo um novo espetáculo: que a indeterminação tome uma providência! Por fim, acredito ter alcançado o objetivo inicial desta pesquisa que, na busca de como investigar a improvisação nos espetáculos de palhaço, estabeleci uma técnica de investigação que viabilizou não apenas a coleta dos dados quanto a respectiva análise de modo reflexivo, abrindo caminho a explorar. Vale salientar que essa mesma técnica parece relevante para outras realidades de pesquisa que veem na utilização do audiovisual uma ferramenta para outras miradas, inclusive, em campos mais estabelecidos nas Ciências Sociais. 105 Referências bibliográficas: ABRAMS, David & SUTTON-SMITH, Brian. The development of the trickster in children’s narratives. Journal of American Folklore, 1977. ALBERTI, Verônica.O riso e o risível: na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999 AMORIM, Marilia. O pesquisador e seu outro: Bakthin nas Ciências Humanas. São Paulo: MUSA, 2001 BAKHTIN, MIKHAIL. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 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