UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Daniela Félix Carvalho Martins
PERSEGUINDO AS CONTINGÊNCIAS:
Uma proposta metodológica para a análise do espetáculo de palhaço
Salvador
2012
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Daniela Félix Carvalho Martins
PERSEGUINDO AS CONTINGÊNCIAS:
Uma proposta metodológica para a análise do espetáculo de palhaço
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Socias da UFBA como
requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre
em Ciências Sociais.
Orientador Prof. Dr. Paulo César Borges.
Salvador
2012
______________________________________________________________________
M386
Martins, Daniela Félix Carvalho,
Perseguindo as contingências: uma proposta metodológica para a análise do
Espetáculo de palhaço / Daniela Félix Carvalho Martins. - Salvador, 2012.
109f.: il.
Orientador: Prof. Dr. Paulo César Borges.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, 2012.
1. Sociologia - Arte. 2. Artes cênicas. 3. improvisação (cultural). 4.
Artistas circenses - Entretenimento. I. Universidade Federal da Bahia.
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. II. Borges, Paulo César.
III. Título.
CDD - 301
Aos olhares cintilantes de Duva e Tatay
Agradecimentos
Apenas os inseguros acreditam que realizam algo sozinho, o receio de
confiar em outros cegam seu espírito. Não sofro desse mal, a certeza de cada
passo é compartilhada com felicidade entre tantos amigos e familiares, a eles
agradeço o apoio e a lembrança de que há vida além da dissertação. Agradeço e
peço desculpas para os que vivenciaram também os momentos difíceis, Rose,
companheira de muitas jornadas que depois de mim foi quem mais sofreu com o
peso de um argumento que apenas se esboçava. Meus pais que sempre me
apoiaram mesmo em silêncio; Vó Duva, tia Deda e Teté (In Memoriam), seres
inspiradores; meus irmãos pelo simples deleite de tê-los.
Ao meu orientador Paulo César pela avidez de seu pensamento e por
acreditar nessa aventura. Miriam Rabelo co-orientadora “pirata”, sempre lendo
com tanta atenção o que lhe enviava, com ela brotaram os primeiros argumentos
dessa pesquisa. Ao ECSAS pelos textos, debates, conversas e bares,
principalmente às queridas Clara e Zonzon. Aos amigos Alexandre Coutinho,
Luana Malheiro, Lucyllane Silva, Priscila Andreatta, Adriana Prates. Aos
palhaços entrevistados, principalmente Alexandre Luis Casalli, Thiago Enoque,
Pinduca, Teatro de Anônimos e ao grande parceiro e interlocutor Demian Reis.
A todos: obrigada! Inclusive aos esquecidos.
Se tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer
verdades teria ouvido verdades que teimo em dizer
brincando, falei muitas vezes como um palhaço, mas jamais
duvidei da sinceridade da plateia que sorria. Charles
Chaplin
Resumo
O presente trabalho trata de uma discussão metodológica a cerca da
experiência do palhaço em espetáculo.
Serão apresentadas as técnicas de
investigação e os pressupostos teórico-metodológicos utilizados na pesquisa. Para
tanto foi realizada uma breve incursão a cerca do legado histórico dessa arte, além
de uma reorientação do aspecto do riso na filosofia de Henri Bergson. Foram
realizadas observações sistemáticas em atividades, como também entrevistas antes
e após as exibições utilizando o recurso de audiovisual tendo como objetivo: a)
identificar quais os modelos pré-fixados para um determinado espetáculo; b) após
a exibição, analisar que mudanças ocorreram durante a apresentação. O palhaço
opera com um roteiro sucinto aberto para o improviso, a característica flexível dos
roteiros viabiliza as ações improvisadas e essas atualizam os roteiros. A relação
improviso/roteiro é antes um processo de atualização dos esquemas que uma
dicotomia; o improviso e o roteirizado estão entrelaçados na arte do palhaço, os
próprios esquemas ao serem construídos não excluem a possibilidade do
inesperado. O que nos interessa é a contingência como uma dimensão constituinte
da realidade. Essa contingência se dá em articulação com a forma, o roteiro, em
um processo de conquista do artista em relação ao seu público. Ao mesmo tempo
em que se reserva ao público um espaço na construção da própria obra através de
sua participação e reações. E não só o público, recuperando o paradigma
ecológico proposto por Tim Ingold elas, as contingências, são frutos da realização
organismo-pessoa-em-seu-mundo-da-vida, há um ambiente ou uma paisagem que
“atua” juntamente com o palhaço solicitando um movimento de atenção, no caso
analisado poderíamos elencar o cachorro, os objetos de cena e uma
imponderabilidade de “expressões” desse embodied landscapes.
Abstract
The present work deals with a methodological discussion of the experience of the
clownshow, presenting its research techniques and the theoretico-methodological
assumptions used in the research. To do so, a brief exposition of the historical
legacy of this art form is undertaken, as well as a presentation of the question of
laughter as thought by Henri Bergson. Systematic observation of the of these
shows was made, as well as interviews before and after performances using
audiovisual resources. This aimed to: a) identify the pre-show models established
for a given performance, and b) analyze after the performance what
transformations this pre-show model underwent. While the clown performs
according to a pre-given script, the flexible characteristics of these scripts also
allow improvised action throughout their
realization. This improvisation /script
relationship is firstly a process of transforming schemes rather than antagonistic
dichotomy; the improvised and the scripted become intertwined in the art of the
clown, where the formation of schemes never excludes the possibility of the
unexpected. What interests us is contingency as a constitutive dimension of
reality. Contingency becomes assimilated to the script's realization unfolding as a
process of conquest by the artist of their audience, while at the same time, through
their own participation and reactions, a space is reserved for the public in the
creation of the clown's work. Not only this public but, recuperating the ecological
paradigm proposed by Tim Ingold, the contingencies, express of the implications
of the "organism-person-in-its-lifeworld".That is to say, there is an environment
or a landscape "acting" jointly with the clown, and stimulating the creation of new
expressive intentions and possibilities. In the case analyzed by us, we may list the
dog, the scenic objects, and the imponderable of the "affects" of these embodied
landscapes, in this category.
Sumário
Introdução
1
Capítulo 1 - Sobre o entendimento de palhaço
5
1.1 Trickster, um parente distante
5
1.2 Percursos: uma breve história
10
Capítulo 2- Do riso mecânico à encarnação do risível
27
2.1 Esboço para uma teoria da sensibilidade
34
2.2 Seguindo outros ruídos
39
Capítulo 3 – O jogo das lentes
3.1 - As Ciências Sociais e sua caixa enigmática
3.1.1 - Robert Flaherty: o início pelo olhar de um romântico
53
53
55
3.1.2 - Margaret Mead e a busca da objetividade: a câmera
como um “olho espião”
3.1.3 - John Marshall e Robert Gardner: entre as polêmicas
58
da representação do outro
60
3.1.4 Timothy Ash e a técnica de evento-sequência
63
3.1.5 David e Judith Macdougall: do cinema observacional
ao cinema intertextual
65
3.1.6 Filmes etnográficos feitos por mulheres
68
3.1.7 Jean Rouch: o outro como sujeito em vez de objeto
69
3.2 O caminho percorrido
3.2.1 Descrição do espetáculo
72
80
Considerações Finais
103
Referências bibliográficas
106
Introdução
A dissertação Perseguindo as contingências: uma proposta metodológica
para a análise do espetáculo de palhaço é desdobramento da pesquisa iniciada em
2007, por ocasião do trabalho monográfico. Desde a primeira fase da pesquisa,
foram reconhecidos três aspectos que possibilitaram uma investigação acerca da
arte do palhaço: o grotesco, o riso e o improviso. De caráter exploratório e
demasiadamente teórico, a monografia, O riso, o grotesco e o improviso: um
estudo empírico e teórico da palhaçaria, estabelece o rendimento analítico destas
categorias para a realidade pesquisada, ou seja, como estas categorias emerge nas
situações da realização de um espetáculo de palhaço, principalmente as
articulações das respostas desse artista às contingências no ato de exibição de um
espetáculo. Como resultado deste empreendimento surgiu a necessidade de
construir uma metodologia que viabilizasse o reconhecimento desses aspectos na
dimensão empírica da pesquisa. Assim, esta dissertação é um exercício
metodológico que busca definir uma técnica de investigação adequada para
refletir sobre a experiência da apresentação de um espetáculo de palhaço e as
situações que esta experiência envolve: ensaios, estabelecimento de esquemas de
ação, utilização de material cênico, figurino, a conquista de um público, etc.
Como consequência deste procedimento, a apreensão dos processos de realização
do espetáculo e como se produz suas articulações, resultou a insurgência de um
novo estatuto para os sujeitos pesquisados, a dizer, foi fundamental o
estabelecimento de uma qualidade de relação entre pesquisadora e sujeitos da
pesquisa para além da relação formal pesquisadora/informante; por meio das
técnicas empregadas, produziu-se espaço de interlocução entre a pesquisadora e os
atores, colaboradores da pesquisa. Tal interlocução se tornou condição
fundamental para o desenvolvimento da investigação, já que os parâmetros
utilizados para a análise dos espetáculos resultou do próprio olhar dos atores sobre
sua experiência e não a importação de referencial teórico externo. Assim, a análise
do espetáculo não é fruto de sobredeterminação teórica à realidade de pesquisa,
mas seguindo a trilha da fenomenologia, a investigação seguiu métodos práticos
desenvolvidos pelos atores na experiência com o mundo. Desse modo, não se
trata aqui de análise semiótica ou semiológica do espetáculo de palhaço, o
interesse não é analisar os signos que se organizam e se estruturam através de
1
parâmetros de uma teoria já dada, mas sim as práticas, as urgências e os métodos
que esses atores levam em consideração para consumar uma experiência
As técnicas metodológicas foram empregadas em quatro casos distintos,
contudo foi selecionado um caso, já que o objetivo da pesquisa é apresentar uma
possível metodologia para a análise dos espetáculos que seja capaz de considerar
horizontes de expectativas desses artistas e contingências inerentes da experiência
humana. Para tanto foi utilizado registro audiovisual como instrumento de coleta e
análise. Durante um ano e meio, acompanhei cerca de sete palhaços que atuam na
cidade de Salvador, capital da Bahia; também pesquisei o festival internacional de
palhaço Anjos do Picadeiro, realizado em 2010, na cidade do Rio de Janeiro com
a presença de 30 artistas nacionais e estrangeiros. Em uso dos instrumentos de
pesquisa – câmera de vídeo – registrei não apenas entrevistas e espetáculos como
também articulei esses eventos, ou seja, as entrevistas tinham como solo comum
os espetáculos apresentados. Tal articulação permitiu registrar fragmentos do
processo de apresentação e recepção.
No que tange à metodologia de registro audiovisual, os procedimentos
seguiram três etapas: a primeira antecedia os espetáculos e dizia respeito ao relato
do artista sobre as expectativas da apresentação que está prestes a realizar e quais
os esquemas de ações que estão previamente articulados; a segunda empreendia o
registro da realização da apresentação e uma terceira etapa consistia no registro do
encontro entre a pesquisadora e o palhaço durante a exibição da apresentação
gravada anteriormente com o objetivo de identificar transformações, atualizações
e permanências dos esquemas pré-estabelecidos. O objetivo fundamental era
investigar as respostas improvisadas dadas diante das contingências experienciais
de um espetáculo.
Todavia, esse empreendimento metodológico solicitou um olhar atento
sobre as categorias colocadas no início da pesquisa – o riso, o grotesco e o
improviso – principalmente o riso adquiriu novos contornos nesse processo de
atualização conceitual. Foi necessário redefinir concepções clássicas sobre essas
categorias, principalmente o riso, de modo que o referencial teórico descrevesse a
realidade empírica observada. Outra necessidade foi um delineamento mais claro,
2
apesar de que ainda difuso, do que foi considerado palhaço para os propósitos da
presente pesquisa. Ou seja, que palhaço é esse com quem é estabelecido dialálogo
nesta pesquisa? Qual o universo que assumidamente os atores da pesquisa
reconheceram como antecessor de seus trabalhos? Estes são temas que são aqui
discutidos.
No que tange a organização dos capítulos, o texto dissertativo foi
organizado em três etapas. A primeiro, Sobre um entendimento de palhaço, foi
dividida em duas secções, uma primeira aponta semelhanças entre a concepção
contemporânea de palhaço e a categoria trickster que possui longa tradição nos
estudos da Antropologia Social. Não foi estabelecida nenhuma associação direta
entre o trickster e o palhaço, apenas foram recuperadas características desse
campo de estudo que possibilitaram melhor delineamento sobre o conceito de
palhaço. A segunda secção dialoga com bibliografia mais específica sobre o
palhaço e apresenta trajetórias e eventos que viabilizaram uma linguagem artística
específica, a arte do palhaço, considerando aquelas biografias de artistas que os
sujeitos de pesquisa assumiram algum tipo de alinhamento. Desse modo, a secção
não se pretende materializar uma história social do palhaço, mas produz um
panorama histórico que permite selecionar características fundamentais a serem
consideradas para definir a arte do palhaço.
O segundo capítulo apresenta uma conceituação de riso e mostra como tais
conceitos operam na elaboração da presente pesquisa. Ao invés de realizar
empreendimento exclusivamente teórico concernente a um mapeamento das
concepções mais em voga sobre o riso, a pesquisa – devido a um trabalho de
campo intenso – delineia tal definição recuperando situações que surgiram durante
as observações em campo. As concepções clássicas sobre riso, principalmente a
do filósofo Henri Bergson, tendem a compreender o riso como mecanismo,
excluindo aspectos que remontam a criatividade e que emerge na experiência da
realização de um espetáculo de palhaço que, por uma intensa relação entre
artista/plateia, assim como o ambiente, solicita uma série de respostas
improvisadas no sentido de garantir o sucesso de sua performance. A dramaturgia
clownesca tem como característica operar com esquemas de ações sempre abertos;
existe uma dimensão do espetáculo que é construída durante a apresentação, assim
3
foi necessário redefinir a concepção clássica sobre o riso de modo que ele
atendesse a realidade pesquisada.
O terceiro capítulo, novamente seccionado em duas partes, demonstra a
utilização das técnicas empregadas. A primeira secção trata da apresentação dos
diversos modos de utilização do audiovisual para as Ciências Sociais e como
contribuíram para, possivelmente, tornar as atividades de pesquisa na área mais
reflexivas. Já a segunda secção demonstra como esta pesquisa se apropria do
audiovisual e quais os desdobramentos epistemológicos suscitados em
consequência das técnicas empregadas. Para os objetivos aqui já pontuados, foi
selecionado o caso do palhaço Biancorino – Alexandre Luis Casalli – a quem, ao
longo da pesquisa de campo, acompanhei por período mais extenso. Assim, a
presente pesquisa se delineia como estudo de caso, não tendo, portanto, a
pretensão de atingir a generalidade dos aspectos analisados, mas apreender um
procedimento metodológico que possa explorar métodos práticos desenvolvidos
pelos atores em experiência com o mundo
Sem dúvida, as incursões de campo, bem como os estudos teóricos que
fundamentaram a produção desta dissertação, operaram como aventura
epistemológica; como aposta em produzir um conjunto integrado entre teoria,
metodologia e técnicas que estivesse a serviço de uma problemática desafiadora: a
viabilidade de um conhecimento a partir das contingências, improvisações,
levando em consideração os horizontes de expectativas e os métodos práticos
desenvolvidos por palhaços nessas experiências. Assim, dentre outras, a principal
questão de pesquisa foi, como, a partir das Ciências Sociais é possível pensar
elementos criativos e indeterminados da experiência humana? Esse mesmo
instrumental pode ser utilizado em diferentes realidades, inclusive para além do
campo da arte, já que a improvisação cultural e a criatividade são constitutivas do
cotidiano, do mundo-da-vida.
4
Capítulo 1 - Sobre o entendimento de palhaço
1.1 Trickster, um parente distante.
O objetivo central deste primeiro capítulo é estabelecer a concepção de
palhaço que pauta o escopo desta pesquisa. A definição será estabelecida,
primordialmente, em diálogo com a historiografia disponível sobre o tema, os
aspectos elencados para a definição foram aqueles que apareceram com mais
permanência ao longo das trajetórias e biografias demonstradas nos estudos
elencados, ou seja, trajetórias que apontam para o estabelecimento de um tipo de
arte dramatúrgica: a palhaçaria. Contudo, vale ressaltar que o percurso
historiográfico aqui proposto se relaciona com trabalhos de Ciências Sociais,
principalmente da Antropologia Social, que refletem sobre a categoria de
trickster. Ainda que não haja associação direta entre o que se delineou nesta
pesquisa para uma definição de palhaço com a categoria de trickster, vale uma
breve incursão interessada sobre esses estudos no sentido de reconhecer certa
familiaridade entre elas de modo que esse reconhecimento pode ser promissor
para os objetivos desta dissertação. Assim, esse primeiro capítulo se divide em
duas partes: uma breve apresentação da categoria de trickster apontando a
contribuição de estudos na área para a presente pesquisa e um diálogo com a
bibliografia específica sobre palhaço.
A categoria de trickster tem se constituído como categoria ampla, tanto em
estudos dos relatos míticos das sociedades indígenas quanto na produção literária
e o que mesmo se caracteriza como produção da Antropologia do Folclore. Tratase de um personagem liminar, ambíguo e contraditório; em princípio, o termo fora
adotado para nomear apenas um número restrito de “heróis trapaceiros” presentes
no repertório mítico de grupos indígenas norte-americanos. Todavia, em
bibliografia antropológica atual, esse termo designa a pluralidade de personagens
que possuem características semelhantes nas mais diversas culturas. Essa relativa
diversidade conceitual sobre o termo é expressa inclusive na diversidade de temas
com que se associam. Ao mesmo tempo, para alguns estudiosos, o termo trickster
tem sido adotado para nomear a figura de “herói civilizador” que também é
portador de traços egoístas, a-éticos e anti-sociais (CAROLL, 1981); outros
5
estudiosos, entretanto, rejeitam a exigência de “herói civilizador” e apontam que
para caracterizar o tipo é suficiente a presença de poderes sobrenaturais,
empregados em aventuras marotas (WESCOTT, 1962). Contudo, a falta de
consenso continua, já que outros teóricos ainda afirmam que o termo pode ser
associado a todo e qualquer personagem astuto e velhaco, não importando sua
origem, ou seja, sobre essa categoria “guarda-chuva”, os estudiosos deveriam
levar em consideração textos literários escritos, a fabulação de contos populares
orais e mesmo os cartoons (ABRAMS & SUTTON-SMITH, 1977).
Como característica geral desses estudos, o trickster é definido por herói
ardiloso, cômico, embusteiro, pregador de peças, dependendo da narrativa; ele é o
protagonista de façanhas que podem ocorrer tanto num passado mítico quanto no
tempo presente:
As aventuras do trickster são marcadas, amiúde, pela malícia,
pelo desafio à autoridade e por uma série de infrações às
normas e aos costumes: comete ou leva os homens a praticarem
adultério, incesto ou parricidio, sendo definido, em alguns
casos, como ladrão, assassino e profanador de locais sagrados.
Com efeito, podemos constatar que Eshu-Elegba, trickster
Yorubá, intermediário entre os deuses e os homens, é tido como
o responsável pelos sonhos imorais e pelas relações adúlteras e
ilícitas em que as pessoas se envolvem. (QUEIROZ, 1990, p. 3)
6
Na bibliografia consultada, não foi encontrado nenhum estudo que associe
diretamente o palhaço a essa categoria, contudo, no artigo O herói-trapaceiro: reflexões
sobre a figura do trickster (QUEIROZ, 1990), o antropólogo Renato da Silva Queiroz,
ao apresentar a heterogeneidade de trabalhos sobre esse termo, sinaliza a semelhança
com personagens cômicos considerando-os matrizes para o que se pode chamar de
palhaço contemporâneo:
O trickster colocaria em jogo, assim, o inesperado, o indefinido,
desrespeitando, no nível do imaginário, a própria ordem social. Ainda
segundo Balandier, o seu papel seria, sob muitos aspectos, semelhante
ao de outros personagens - bufões, mascarados, bobos da corte - aos
quais se concede licença para que possam zombar da ordem
estabelecida, “quebrando aparências e desfazendo ilusões”. Muito
embora as transgressões cometidas por tais figuras sejam autorizadas
pela sociedade, a própria ordem acabaria sendo assim reforçada, por
meio de um processo catártico, e ainda com o mérito de revelar aos
seus integrantes a desordem que poderia se instaurar caso as normas,
os códigos e os interditos viessem a se dissolver. Elemento, a um só
tempo, perturbador e agente da ordem, decorreria disto a ambiguidade
do trickster. (QUEIROZ, 1990, p.4)
Este mesmo antropólogo reconhece conclusões semelhantes formuladas por
Laura Makarius, para quem a figura do trickster é definida como representação mítica
do violador de tabus:
Os tabus não podem ser violados pelo conjunto do grupo, pois isto
destruiria a ordem social que, negando o tabu, tornaria inoperante o
ato de violá-los. A sociedade, que deseja violar sua própria lei não
pode, então, fazê-lo senão por intermédio de um indivíduo que age
como mediador, e no qual ela encontra seu herói. (MAKARIUS, 1974,
p. 217).
Victor Turner parece caminhar nesta mesma direção ao definir o trickster como
figura que expressa diversos aspectos de liminaridade; este personagem desfrutaria, nas
narrativas, de ampla liberdade de ação, como se normas morais ou sociais de condutas
estivessem ausentes:
[...] ao trickster expressam diversos aspectos da “liminaridade”, sendo
a ambiguidade o traço fundamental do herói. Assim, o trickster não
costuma ter idade ou sexo bem definidos. Apresenta, todavia,
exageradas características fálicas em alguns casos, e o comum é que
seja simultaneamente agressivo, dotado de espírito vingativo, errante,
vaidoso, destrutivo, criativo, etc. [...] muito embora permaneça de
certa forma alheio à humanidade, não deixa de ser familiar e simpático
aos homens, pois realiza tudo aquilo que todos, secretamente,
gostariam de fazer (TURNER, 1972, p. 576-582)
7
A relação ambígua que o trickster estabelece com a ordem social é a
característica destacada para o desenvolvimento desta dissertação, já que em trabalhos
mais específicos sobre a figura do palhaço tal característica tem sido também elencada,
ou seja, alguns estudiosos como Paul Bouissac apontam a relação entre os palhaços
contemporâneos e a violação ritual de tabus. Esta relação produz mecanismos de
integração social ao produzir intensas energias emocionas. “A energia liberada pela
violação de tabus considerados particularmente importantes – tabus sexuais, religiosos e
outros – é bastante forte para reunir uma população frente às maiores provocações e
dificuldades” (WORSLEY, p. 263)
O antropólogo canadense Paul Bouissac, no artigo The profanation of the sacred
in circus clown performance, destaca justamente essa relação de ambiguidade com a
ordem social nos espetáculos de palhaços de circo nos Estados Unidos; define palhaço
metaforicamente como um turista que vai visitar o castelo da rainha do Reino Unido e
deita na cama real, correndo pois, entre outros riscos, o de perder o passaporte.
(BOUISSAC, 1997) Ao descrever um número observado, em que um palhaço entra no
picadeiro com um carrinho de bebê e começa a alimentá-lo com mamadeira, até esse
momento as feições do bebê são mantidas em segredo, apenas ao retirar o suposto bebê
do carrinho que é então revelado se tratar de um filhote de porco. A partir da observação
deste espetáculo, afirma que:
The operation performed in this act consists first of substituting a
piglet for a human infant. Two powerful cultural themes are thus
brought together: on the other hand the care that human have to take
of their offspring as a prerequisite for the survival of the species and
the ensuing sacralization of infants; on the other hand, an animal
species, the pig, which is the focus of intense cultural attention in
many parts of the world, including ours. (BOUISSAC, 1997, p. 200)1
Em direção oposta, mas atingindo o mesmo alvo, encontramos nas bibliografias
específicas sobre o palhaço o reconhecimento de figuras míticas e ritualísticas as quais é
possível facilmente associar ao termo de trickster como base originária do palhaço
contemporâneo, conforme Alice Viveiro de Castro no livro O elogio da bobagem:
palhaços no Brasil e no mundo, no qual afirmar que entre os Astecas havia espécies de
1
A operação realizada neste ato consiste em substituir um porco por uma criança humana. Dois
poderosos temas culturais são reunidos: por um lado, o cuidado que o ser humano tem que tomar em
relação a sua prole como um pré-requisito para a sobrevivência da espécie e a consequente sacralização
das crianças em período de lactância; por outro, uma espécie animal, o porco , que é o foco de atenção
cultural intensa em muitas partes do mundo, incluindo o nosso. (Tradução livre)
8
bufões que imitavam coxos, cegos, leprosos em grandes cerimônias que provocavam
risos em todos os presentes. Segundo ela, era uma das maneiras das sociedades
primitivas se protegerem do mal e do medo. De modo semelhante, na cultura Yorubá, as
seis máscaras da cerimônia Egun-gun são um corcunda, um albino, um leproso, um
prognata, um anão e um aleijado. Entre os índios norte-americanos encontra-se a figura
dos heyokas, cuja principal função é a de lembrar a tribo o absurdo dos comportamentos
humanos e a necessidade de não levar as regras demasiadamente a sério:
Um heyoka monta no cavalo ao contrário, a cabeça voltada para o
rabo do animal. Quando toda a tribo avança numa batalha,
o heyoka corre na direção oposta . Ele dorme de dia e fica acordado de
noite. Nas cerimônias rituais roda em sentido contrário ao de toda
tribo. Quando alguém sonha com um raio, no dia seguinte deve tornarse um heyoka – sob o risco de morrer até o anoitecer daquele mesmo
dia. O nome heyoka é a inversão do grito de guerra dos índios Plain:
Hoca-hey! (VIVEIRO DE CASTRO, 2005, p.19)
O objetivo não é interrogar se a figura do palhaço é um trickster ou não, mas
delinear uma conceituação de palhaço e recuperar o papel da categoria trickster no
percurso das dinâmicas conceituais que fundamentam a categoria palhaço na
contemporaneidade. Essa liminaridade atribuída à figura do trickster parece ter sido de
algum
modo
“reapropriada”
nas
produções
dramatúrgicas
dos
palhaços
contemporâneos, inclusive nas apresentações observadas no curso dos trabalhos
empíricos da pesquisa.
9
1.2 Percursos: uma breve história.
Este tópico apresenta um breve histórico da arte do palhaço. Não é objetivo do
trabalho a construção de uma história social, mas produzir um panorama histórico dessa
figura cômica por excelência com a finalidade de definir palhaço para as análises e
reflexões que pautam este texto. Não há consenso sobre a origem do palhaço, muitas
vezes dada de maneira fragmentada. Apenas a partir do século XVIII e, posteriormente
com o circo moderno, fica perceptível uma narrativa histórica mais sistematizada. Essa
dificuldade por parte dos autores, segundo Alice Viveiro de Castro, está na profusão de
nomes que essa figura assume em cada lugar e momento. Bobo, clown, grotesco, truão,
augusto, jogral, são alguns dos nomes mais comuns que usados para designar essa
figura cômica, hoje consensualmente caracterizada por palhaço.
Contudo, a historiografia aponta para eventos dispersos na Grécia Antiga. Entre
os gregos existia a figura dos parasitas, que significava conviva, aquele que alegrava
um banquete divertindo o anfitrião, poderia ele ser palhaço ou filósofo. Viveiro de
Castro cita Philipos, exímio imitador que arrancava gargalhada de todos. Sócrates
tentou calá-lo, mas o parasita imitou-o com tal perfeição que quem calou foi o filósofo.
Há ainda os palhaços de Aristófanes que durante os momentos de improvisação eram
incentivados a imitarem Hércules, e se especializaram em ridicularizar o herói.
Possivelmente o grande legado grego são os palhaços dóricos, também chamados
mimos os quais, ao contrário de hoje, faziam humor também com as palavras. Nesta
época, o termo mimo tanto se referia ao ato de imitar quanto ao artista que se
especializava em imitar tipos característicos e personalidades da sociedade que todos
reconheciam em cena. Os personagens dessa comédia atravessaram e podem ser
relacionados os que aparecem nas farsas Atelanas, em Roma; nas cenas dos
saltimbancos; na Commedia dell`arte; em Moliére e nos picadeiros e praças dos dias de
hoje (VIVEIRO DE CASTRO, 2005, p. 24).
Na Grécia, encontra-se a matriz linguística do termo comédia, Komos. Era o
nome dado às orgias noturnas nas quais os cavaleiros se entregavam à loucura,
dançando, bebendo e amando em nome de Dionísio. Essa seria também a origem dos
10
espetáculos dóricos, com suas imensas barrigas e falos falsos com diálogos cheios de
referências sexuais improvisadas na hora.
Em Roma, é possível identificar as figuras dos bufões, em sua maioria anões e
corcundas, que tinham nesse ofício a possibilidade de ascensão social; havia também os
Cicirrus que originam aos bobos da corte e o stupidus, palhaço especializado em fazer
imitações.
Na Idade Média, com todo o fundamentalismo religioso, vemos emergir A Festa
dos loucos e dos asnos em que o “mundo ficava ao contrário”. Conhecidas também
como as Saturnais, tradição romana que havia sido banida pela Santa Igreja, retorna na
mesma Roma:
As Saturnais eram celebradas em Roma nas calendas de janeiro e,
neste período, os escravos se vestiam como patrões, sentavam-se a
mesa e celebravam a Idade de Ouro, aquela em que a igualdade
imperava e todos os homens confraternizavam com harmonia. Na
Europa Medieval, as Saturnais foram transformadas na Festa dos
Loucos, quando estudantes e membros inferiores do clero invertem a
hierarquia e instalam a esbórnia nas igrejas. Um bispo ou arcebispo
dos Loucos era eleito, rezando uma missa cômica onde abundavam
versões satíricas e picantes das rezas. Os padres se vestiam de modo
extravagante, muitos com roupas femininas, e se punham a cantar, a
comer salsichas […] dançando lascivamente […]. (VIVEIRO DE
CASTRO, 2005, p. 28)
Muitas autoridades da igreja protestaram contra o que tomavam como abusos
cometidos nessas festas. Afonso X, rei de Castela, em 1274, estabelece seis diferentes
tipos de jogral, estavam nas Ordenações Afonsinas e o objetivo era proibir aos clérigos
qualquer forma de se expressarem à semelhança dos jograis estabelecidos. Afonso de
Castela, devido ao protesto do alto clero, define a proibição da associação da igreja com
quaisquer manifestações (jogral) vinculadas às Saturnais. Contudo, são essas festas que
promovem o surgimento, ou o reaparecimento, já que foram perseguidos pela Igreja, de
poetas e cômicos. A Idade Média é marcada pela presença dos bobos da corte que
compartilhavam da intimidade das mais altas cortes europeias; ainda que os primeiros
séculos da Idade Média tivessem sido difíceis para os artistas populares, não
impossibilitou o surgimento dos saltimbancos que se fortaleceram com a consolidação
das feiras a partir do século XII.
11
Mikhail Bakhtin (BAKHTIN, 1993), na obra A cultura popular na Idade Média
e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, analisa justamente esse contexto,
enfocando a significação do riso na Idade Média. O riso para Bakthin é regenerador,
mantém ambivalência que não se reduz à pura ridicularização ou satirização, estabelecese pela coexistência de aspectos positivos e negativos. Ele carregaria consigo uma
vitória contra o medo, sobre os “horrores do além, as coisas sagradas e a morte” como
também a vitória contra o temor inspirado por todas as formas de poder. Em nome do
caráter ambivalente do riso, Bakhtin alerta que “ninguém pode saber onde termina o
medo dominado e onde começa a alegria despreocupada”. O riso para este autor
apresenta vitória sobre a morte, não penas sua eliminação abstrata, mas consiste no seu
destronamento, sua renovação, sua transformação em alegria. (KASPER, 2006) Bakhtin
afirma que o riso na Idade Média opunha-se:
à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da
sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas
carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos,
gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a
literatura paródica, vasta e multiforme, etc.- possuem uma unidade de
estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular,
principalmente da cultura carnavalesca, una e indivisível.
(BAKHITIN, 1993, p. 3-4)
O autor aponta significativa importância ao sentido do corpo grotesco, corpo em
que se projeta a boca aberta:
Dentre todos os traços do rosto humano, apenas a boca e o nariz (esse
último como substituto do falo) desempenham um papel importante na
imagem grotesca do corpo. As formas da cabeça, das orelhas, e
também do nariz, só tomam caráter grotesco quando se transformam
em figuras de animais ou de coisas. Os olhos não tem nenhuma
função. Eles exprimem a vida puramente individual, e de alguma
forma interna, que tem a sua própria existência, a qual não conta para
nada no grotesco. Esse só se interessa pelos olhos arregalados (por
exemplo, cena do gago e do Arlequim), pois interessa-se por tudo que
sai, procura sair, ultrapassa o corpo, tudo o que procura escapar-lhe.
Assim todas as excrescências e ramificações têm nele um valor
especial, tudo o que em suma prolonga o corpo reúne-o aos outros
corpos ou ao mundo não-corporal. Além disso, os olhos arregalados
interessam ao grotesco, porque atestam uma tensão puramente
corporal. No entanto, para o grotesco, a boca é a parte mais marcante
do rosto. A boca domina. O grotesco se resume afinal em uma boca
escancarada, e todo o resto só serve para emoldurar essa boca, esse
abismo corporal escancarado e devorador. (BAKHITIN, 1993, p. 276277)
12
O corpo grotesco é indeterminado, aberto ao mundo, não há limites explícitos
entre ele e o mundo, mistura-se e confunde-se com ele, “a porta de duas folhas abertas
sobre o subsolo do corpo”. O corpo grotesco é um inacabado e aberto à exterioridade,
por isso a ênfase na boca, nos genitais e no ânus, já que trata de devorar, copular, são
corpos excretos. “É um corpo prenhe, ligado à renovação. Corpo em movimento, em
estado de criação”. (KASPER, p. 99)
No carnaval, momento por excelência da ação grotesca, que se percebe a
inversão da ordem do mundo por se estabelecer um estado peculiar deste, em que
prevalece o renascimento e a renovação:
Formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da
alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e
autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas
'ao avesso', 'ao contrário', das permutações constantes do alto e do baixo ('a roda'), da
face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródia, travestis, degradações,
profanações, coroamento e destronamentos bufões. A segunda vida, o segundo mundo
da cultura popular constrói-se de certa forma como paródia da vida ordinária, como um
'mundo ao revés'. (BAKHITIN, 1993 p. 10)
Mikhail Bakthin reconhece o bufão como porta voz do grotesco,arauto do riso,
anunciador do 'mundo ao revés'. O riso é cúmplice:
[…] do triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do
regime vigente, de abolição provisória de todas as reações hierárquicas, privilégios,
regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo das alternâncias e renovações. Opunha-se
a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro
ainda incompleto. (BAKHITIN, 1993, p. 8-9)
No Renascimento, aparece ainda a commedia dell` arte. No início do século
XVI, surge o termo para diferenciar o tradicional espetáculo popular da commedia
erudita, o teatro literário. A commedia dell`arte é herdeira da fábula Atelana que, por
sua vez, é herdeira da comédia dórica grega e se caracteriza pela improvisação a partir
das habilidades dos artistas. Com o passar do tempo, pelo caráter itinerante, a commedia
dell`arte construirá, junto a tradição cômica inglesa, duas das grandes ingerências para a
formação do clown:
A pantomima inglesa se desenvolveu a partir da commedia
dell`arte. As personagens da comédia italiana foram
incorporadas em uma cena em que predominavam a mímica,
acrescida de música e dança. [...] A tradição italiana encontrouse com a dos clowns ingleses, provocando uma aproximação de
tipos. Desse encontro resultou uma sugestiva fusão que teve
13
como ponto terminal a concepção do clown moderno e circense.
Isso se deu a partir da caracterização externa (indumentária e
maquiagem, principalmente) e do estilo de interpretação dos
atores. Em pouco tempo a estrutura da pantomima transformouse e este clown, resultado da união do anterior tipo inglês com as
personagens da comédia italiana, passou a ser a personagem
dominante. Essa transformação ocorreu no final do século XVIII
e veio a se consolidar no XIX. (BOLOGNESI, 2003, p. 63)
Segundo a bibliografia analisada, os termos clown e palhaço possuem distinções
por surgirem de lugares diferentes, mas com um mesmo objetivo, sendo hoje irrelevante
qualquer tentativa de distinção. Palhaço é uma derivação de pagliaccio, que significa
homem-palha em italiano; na tradição cômica italiana, havia muitos saltos, quedas,
encontrões e os artistas colocavam palha dentro de suas roupas para amortecerem a
queda, daí vem o nome palhaço. (SILVA, 2007, p. 44) A matriz etimológica do clown
reporta a colonus e clod que seria, em sentido aproximado, homem do campo, rústico.
Na pantomima inglesa, o termo clown designava o cômico principal que tinha funções
de serviçal. (BOLOGNESI, p. 62)
Nesse contexto, surge Joey Grimaldi (1778-1837) tomado como a principal
influência dos palhaços de circo. Apesar de Grimaldi ser contemporâneo à invenção do
circo (1779), parece não haver se interessado em apresentar-se nos dois principais
estabelecimentos desse tipo Astley Royal Amphitheatre of Arts, fundado por Astley em
1779, e o Royal Circus, fundado um ano depois por Charles Huges, ambos em Londres.
(REIS, 2011). O pesquisador Demian Reis afirma que a possível causa do desinteresse
de Grimaldi pelo circo estaria no público alvo que o segundo objetivava: a aristocracia
decadente e a burguesia emergente. Grimaldi era conhecido como um clown
extremamente popular em sua época, ele fundiu a máscara branca e plácida de Pierrô
com a agressividade avermelhada e pontiaguda de Arlequim; foi o responsável pela
ascensão do clown na pantomima inglesa. O clown era uma figura secundária que
respondia ao Arlequim, Grimaldi, ao assumir o clown, suplantou o Arlequim e
comandou o espetáculo, suas canções ficaram famosas e passaram a fazer parte das
pantomimas mesmo depois da morte. Ele desenvolveu muitas técnicas, efeitos físicos,
elementos de figurino, personalidade e atitudes, uso de objetos cênicos e canções
cômicas, dos quais palhaços de circo logo se apropriariam. (RÉMY, 1997)
14
Acrobata notável e um apreciado dançarino cômico, Joey Grimaldi
punha no ridículo os temores e as alegrias de seu tempo, com suas
transformações e invenções. Suas canções cantadas com voz estrídula
e chocante contribuíram para torná-lo famoso na Inglaterra com as
faces brancas, manchadas de vermelho, a peruca de careca decorada
com estranhos tufos de cabelos e a roupa colorida, ricamente
enfeitada, que se tornariam o símbolo do clown. (SILVA, 2007, p. 46)
Demian Reis, comediógrafo e palhaço, na tese Caçadores de risos: o mundo
maravilhoso da palhaçaria (2011) analisa em detalhes aspectos técnicos de Joey
Grimaldi e, de algum modo, causas possíveis para o significativo sucesso alcançado no
período em que atuou. As fontes primárias de informações são as Memoirs de Grimaldi,
editadas por Charles Dickens (1838), o qual recebeu críticas severas a este trabalho,
além das publicações de Maurice Disher (1925) e Richard Findlater (1955). Reis
destaca quatro aspectos fundamentais, o primeiro, já sinalizado anteriormente, é que ele
lançava mão de técnicas de pantomima elaboradas e recriadas a partir da tradição da
arlequinada, fruto da Commedia dell´arte italiana; ou seja, Grimaldi é reconhecido
como o artista que realizou a fusão entre essas duas artes:
Afirmar isso é dizer que estamos lidando com um repertório de
técnicas corporais posto a serviço de uma dramaturgia teatral
específica, isto é, cenas que improvisam situações dramáticas préestabelecidas pela tradição da Commedia dell´arte, mas que reservam
amplo espaço para improvisação. A pantomima tem uma grande
importância na história do teatro nos séculos XVII e XVIII, sendo um
gênero muito em voga nos teatros ingleses, nas feiras francesas e na
Europa em geral. É preciso lembrar que, independente das proibições
e restrições ao uso de diálogo na apresentação dos artistas, os
pantomimos tinham um público iletrado e fundamentalmente
vinculado à cultura oral. Essas características incentivavam os
pantomimos a adotarem um arsenal de estratégias teatrais
extremamente diversificados, visualmente poderosos e cenicamente
impactantes. Sobretudo quando se apresentavam para o público das
ruas, pois precisavam gerar interesse logo nos primeiros minutos da
apresentação. (REIS, 2011, p. 100)
Como consequência, as aparições de Grimaldi possuem características que as
diferem substancialmente da maioria das apresentações dos palhaços em nossa
contemporaneidade. Primeiramente, vale destacar que Grimaldi não contracenava
sozinho, realizava espetáculos em companhia de personagens como Arlequim,
Colombina, Punchinelo. O segundo aspecto elencado por Reis era a inserção que
Grimaldi tinha nos teatros londrinos Sadler’s Well, Drury Lane e Covent Garden. Para o
pesquisador, isso possibilitou um refinamento técnico já que palhaços só descobrem
15
como seus números afetam as pessoas através da experiência da apresentação (REIS, p.
101). Ou seja, a experiência da apresentação, justamente pela característica interativa da
arte do palhaço não é um produto final acabado, mas o próprio processo de
aprendizagem e refinamento.
Figura 1. Joseph Grimaldi como Clown, 1820. (http://en.wikipedia.org/wiki/Joseph_Grimaldi,
acesso em 21 de março de 2011.)
O terceiro aspecto revela uma das causas da grande inserção de Grimaldi no
cenário londrino: o pai dele foi destacado artista da commedia dell’art. Assim, desde a
infância, conviveu com a representação de truques fantásticos, chegando inclusive a
representar postos como clown, macaco ou qualquer outra coisa que fosse esquisito e
16
ridículo, tanto fora como sobre o palco. O quarto e último aspecto: a oportunidade de
trabalhar em parceria com diferentes dramaturgos e atuar em diversas peças.
Ele dispunha de um leque de recursos emocionais mais ricos para usar
do que outros clowns, e isso era devido ao talento adquirido de aplicar
a personalidade do seu clown a essa ampla variedade de situações
dramáticas exploradas pela participação em tantos espetáculos. O
espectador Dutton Cook anotou esse aspecto de sua palhaçaria ao
apontar que o humor de Grimaldi emergia de um esforço em expor seu
coração em cada movimento, em vez de explorar quedas e
cambalhotas. Cook se lembrou de sua experiência de assistir a
Grimaldi, que este caía uma ou duas vezes, produzia o efeito de
escorregar e deslizar em poucas ocasiões, não era o palhaço de
cambalhota da escola moderna. Em sua lembrança, a presença de
Grimaldi era mais silenciosa e sutil, ele gerava interesse através de
olhares e gestos, da graça de suas caretas, de certa inocência do
coração que marcavam cada movimento seu. (FINDLATER apud
REIS, p.103)
Apesar de termos destacado a figura de Grimaldi por apresentar as duas
principais tradições da arte do palhaço, a commedia dell`arte e a pantomima inglesa,
havia outras tradições (francesas, russas e norte-americanas) que, a partir do século
XIX, conceberam inovações e influenciaram os palhaços até hoje. É possível ainda
elencar sumarizadamente o caso dos Estados Unidos onde surge um tipo particular
denominado tramp, figura marginalizada, um vagabundo errante. Alguns autores
apontam a presença de certas características do tramp norte-americano nos augustos
europeus. O tramp é resultado da Guerra de Secessão, que deixou milhares de vítimas
maltrapilhas vagando pelas estradas americanas. Esse palhaço passou a ocupar o
espetáculo, juntamente com o Augusto e o Clown Branco. Tal qual sua origem, ele
permanecia à margem do picadeiro. (BOLOGNESI, 2003)
17
Figura 2. Emmett Kelly como tramp. ( http://latimesblogs.latimes.com/thedailymirror/2008/03/emmett-kelly--d.html
acesso em 18 de março de 2012.)
Na Rússia, até 1917, seguia o modelo europeu, que admitia a polaridade Clown
Branco e Augusto2. Em torno da Revolução Bolchevique houve uma mudança
significativa nos tipos cômicos do país. Esses artistas abandonaram as características até
então em voga e procuraram novos caminhos, em conformidade com a realidade social
e o sentimento de novos tempos, abriram mão dos velhos estigmas da arte clownesca e
superaram a oposição elementar da comicidade circense:
Essa busca levou-os ao encontro de personagens conhecidas, e
Chaplin foi a principal delas. A arte clownesca associou-se à luta
política, surgindo a figura do clown- tribuno, que participava das
marchas populares e também das militares. Os russos amenizaram ou
até mesmo retiraram por completo a maquiagem característica dos
palhaços. (BOLOGNESI, 2003, p. 81)
Muitos dos palhaços russos eram participantes dos movimentos de vanguarda,
especialmente o cubo-futurismo. Maiakóvski estreia, por exemplo, Moscou em Chamas;
não era um teatro encenado no circo, mas um espetáculo de circo utilizando todo o seu
aparato técnico:
A peça é uma espécie de síntese de todas as diversas experiências
soviéticas de vanguarda do período, que aproximam o circo ao teatro.
Concomitantemente, ela inaugura uma opção diferenciada de
espetáculo de massa, uma forma cênica radical na sua opção política,
2
Dois tipos-palhaços que atuam em dupla e surgem no circo no último quartel do século XIX.
18
que procura na associação entre circo e teatro o meio de uma
possibilidade renovada de espetáculo. (BOLOGNESI, 2003, p. 88)
Na França, é possível elencar o desenvolvimento de pantomimas utilizando
apenas a mímica corporal em resposta às rígidas regras e os privilégios dos teatros que
só foram abolidos em 1863. Tais regras decretavam oficialmente que os diálogos e a
representação de personagens com fala só eram permitidas aos oito teatros oficiais,
assim, as apresentações de palhaços, em sua maioria, ocorriam nos circos.
(BOLOGNESI, 2003)
Apesar dessa breve ressalva a outros componentes que possibilitaram a arte do
palhaço no formato dos dias atuais, é na figura de Grimaldi que os pesquisadores
reconhecem a principal inflexão que viabilizou a arte do palhaço. A partir da análise
realizada por Demian Reis é possível destacar a presença de dois aspectos fundamentais
que transversalizam toda a análise do comediógrafo e que, por sua vez, compõem a
definição de palhaço para esta pesquisa: a relação entre um repertório prévio de ações
com as cenas improvisadas e a profunda interação estabelecida entre palco/plateia,
artista/público. Esses processos interativos permitem a presença latente das
contingências, forçando a todo tempo os palhaços a uma “espécie” de negociação com a
imprevisibilidade.
Esta operação ocorre com vistas a elucidar a complexidade do universo
pesquisado, solicitando, inclusive uma postura inventiva do ponto de vista
metodológico, já que o objetivo principal desta pesquisa é a produção de uma
metodologia que possibilite uma análise do espetáculo de palhaço levando em
consideração os mesmos dois aspectos: a relação entre um repertório prévio de ações
com as cenas improvisadas e a profunda interação que se estabelece entre palco/plateia.
Todavia, o exercício das técnicas metodológicas que permitiram uma análise de
contingências produziram reflexões acerca destas técnicas, ou seja, a pesquisa não se
reduz a aplicação de um procedimento metodológico, mas há um caráter de
reflexividade, no sentido de apontar os limites dos procedimentos utilizados como
também as modificações, adaptações e descobertas ao longo da pesquisa. Essas questões
serão analisadas no terceiro capítulo da dissertação. Outro ponto fundamental a destacar
é que a performance cênica do palhaço se configura em estruturada linguagem artística
que passou por inovações e transformações ao longo do tempo, uma tradição, passível
apenas de ser reconhecida como tal por um contínuo processo de atualização. Nestes
19
termos, é importante não tomar esses eventos em um sentido evolutivo e com fins
determinados, mas atentar para o fato de que transformações históricas continuam
ocorrendo pelo desenrolar de inúmeros artistas que se engajam nessa arte.
De acordo com os acontecimentos, nesse panorama histórico é necessário
destacar a importância do circo nessa arte, já que nem todos os palhaços atuantes nessa
época recusaram o circo, como fez Grimaldi. É no circo que se concebe o lugar da
grande inovação cômica, o palhaço de circo é construído a partir da reunião das diversas
tradições cômicas europeias. “ […] a ele foi permitido mesclar o palhaço de tablado de
feira; os diferentes tipos criados da Commedia dell`arte, as cenas tradicionais do clown
inglês, o clown da pantomima e o jester shakesperiano.” (VIVEIRO DE CASTRO,
2005, p. 60)
Em princípio, os palhaços encenavam números de cavalaria, números de corda,
equilíbrios e saltos em uma relação exclusiva de paródia com os números apresentados
pelos outros artistas circenses. A partir deste procedimento se desenvolveu outra forma
de comicidade que, em pouco tempo, transformou-se em uma cena tradicional: o
diálogo com o mestre de pista.
O mestre de pista é um personagem fundamental para a estrutura de
um espetáculo de variedades como é o circo tradicional. Muito mais
do que um apresentador, ele é um diretor-em-cena, autoridade
máxima no picadeiro, figura capaz de improvisar e garantir que o
espetáculo siga seu curso mesmo diante dos mais insólitos. De início,
esse papel era representado pelo próprio dono do circo e durante
muitos anos, foi prerrogativa dos adestradores de cavalo. Como o
espetáculo era centrado nas exibições equestres, o mestre de pista
usava um longo chicote, um apito na boca e dirigia os animais em
cena. Coerentemente com suas origens militares, o circo tradicional
tinha no mestre de pista a figura símbolo do poder, o grande
responsável pela ordem e pela tranquilidade do espetáculo. Uma
figura que representa o poder, a ordem e o equilíbrio é o contraponto
perfeito para o palhaço, símbolo máximo da estupidez, da anarquia, do
insólito e da bobagem. Nasce a primeira dupla de cômicos tipicamente
circense: o mestre de pista e o palhaço. (VIVEIRO DE CASTRO,
2005, p. 61)
Essas conversas entre o palhaço e o mestre de pista surgem no circo como
estratégia para suprir o vazio entre um número e outro. Na França, conforme
anteriormente ressaltado, esta situação cômica era vetada e perseguida pelas rígidas
regras e privilégios dos teatros. Em 1863, na França, foi decretado que os diálogos e a
representação de personagens com fala só eram permitidos aos oito teatros federais.
20
Ao final do século XVIII, surge mais uma inovação, a relação do clown branco
com o augusto. Existem muitas discordâncias entre os teóricos na tentativa de precisar o
momento exato desse nascimento e mais ainda a da figura do augusto. Conforme já
ressaltado, o intento deste trabalho não é discorrer exaustivamente sobre o
desenvolvimento dos tipos, mas apenas uma apresentação dos tipos mais recorrentes,
não se faz necessário, portanto, excesso de detalhamento.
Assim, como já foi destacado, o tipo de palhaço responsável pelas reprises e o
palhaço que atuava com o mestre de pista, agora será apresentado as duplas de palhaços
que atuavam e atuam com pequenos esquetes e entradas. Essa dupla revela uma relação
de poder que é a grande motivadora do conflito. De um lado, o clown branco,
autoritário, dominador, representante da ordem e o augusto, o bobo, imbecil,
completamente idiota; geralmente colocado como assistente do clown branco. É
apresentado, pois um contraste: duas figuras completamente opostas que precisam se
relacionar. Esse contraste é traduzido pelo figurino, a roupa do clown branco é brilhosa,
sofisticada e o augusto tem sapatos grandes, mangas de paletós que cobrem as mãos.
No início do século XX, era muito comum a representação dessas figuras como de um
lado a burguesia, os detentores de poder e do outro o imigrante pobre, com roupas
velhas, ora demasiadamente grandes, ora demasiadamente pequenas.
O Clown Branco tem como característica a boa educação, refletida na
fineza dos gestos e a elegância nos trajes e nos movimentos. Ele
mantém o rosto coberto por uma maquiagem branca, com poucos
traços negros, geralmente evidenciando sobrancelhas, e os lábios
totalmente vermelhos. A cabeça é coberta por uma boina em forma de
cone. A roupa traz muito brilho. O tipo assim, recupera, no registro
cômico, a elegância da tradição aristocrática, presente na formação do
circo contemporâneo. O termo augusto tem sua raiz na língua alemã e
foi utilizado pela primeira vez em 1869, em Berlim, quando Tom
Belling, um cavaleiro, teve uma apresentação desastrosa no picadeiro.
O público, então gritou: ‘Augusto!, Augusto!’. August, em dialeto
berlinense, designava as pessoas que se encontravam em situação
ridícula, ou ainda que se faziam de ridículas. O Augusto é um tipo de
palhaço que tem como marca característica o nariz avermelhado. Ele
não cobre totalmente a face com a maquiagem, mas ressalta o branco
nos olhos e na boca. Sua característica básica é a estupidez e se
apresenta freqüentemente de modo desajeitado, rude e indelicado. No
Brasil, encontra-se no termo palhaço o equivalente mais apropriado
do Augusto, ainda que ele englobe outros tipos e possa, com isso,
fundir-se ao clown. (BOLOGNESI, 2003, p. 72-74)
21
As máscaras eram diversas, mas algumas inovações de artistas caiam na moda e
eram reproduzidas. Isso aconteceu com a máscara em que, nos dias atuais de uma
maneira geral, configura a representação do palhaço, a cara toda pintada na escala de
cores branca, negra e vermelha, usando um nariz também vermelho. Essa máscara foi
criada pelo augusto Albert Fratellini, em 1910, que à época contracenava com mais três
irmãos. Esta máscara ganha seguidores por todo o mundo:
Seguindo a linha de Albert Fratellini logo começaram a surgir
palhaços copiando sua máscara alucinada e suas atitudes. Em 1923,
Lou Jacobs, nos Estados Unidos, assina contrato com o ' maior circo
de todos os tempo', o Ringling's Brothers and Bailey`s Circus , e sua
imensa boca vermelha, sua peruca estapafúrdia e seu nariz são
espalhados por todo o mundo, criando uma verdadeira epidemia de
cópias e inaugurando verdadeiramente a tal 'era do augusto'
(VIVEIRO DE CASTRO, 2005, p. 71)
Figura 3. Alberti Fratellini, François Fratellini e Paul Fratellini, 1910. (http://www.allposters.com.br acesso em 08 de
março de 2012)
No Brasil, é registrada uma profunda relação entre o palhaço e o circo, sendo
Benjamim de Oliveira (1870 – 1954) possivelmente uma das figuras mais marcantes.
Filho de escravos, encontra no circo a possibilidade de ganhar a vida e torna-se
reconhecido como o principal fundador do Circo-Teatro, um gênero de teatro muito
comum e de muito sucesso no Brasil do século XIX até meados de 1960.
22
O Circo-Teatro é marcado por companhias circenses de todos os tamanhos que
se apresentavam em diversos municípios brasileiros, encenando textos teatrais de todos
os gêneros: revistas, farsas, musicais, cômicos, dramas ou melodramáticos. A cada dia
um novo texto era apresentado por companhias formadas geralmente por famílias
circenses que viajavam pelo país. (SILVA, 2007)
A forma de organização da teatralidade circense caracterizando circo-teatro
levava a uma gama de cidades diversos gêneros teatrais, ritmos musicais, dança tanto
clássica quanto àqueles modos ditos populares como lundu, maxixe, samba, fandango,
entre muitas outras, acrobacias, capoeira, e, como os circenses escreviam em suas
propagandas: “etc., etc. e etc”. O espetáculo circense do século XIX e boa parte do XX
foi responsável pela divulgação e visibilidade das principais expressões artísticas
nacionais e estrangeiras. (SILVA, 2007)
Figura 4. Benjamim de Oliveira, 1909. (http://www.literal.com.br acesso em 24 de março de 2012)
Muitas outras biografias, inovações e transformações poderiam ainda ser
elencadas, a exemplo de Charles Chaplin, Buster Keaton, Picolino I e Picolino II,
23
Carequinha, etc. Contudo, como sinalizado por Demian Reis (2011), o fundamental é
“perceber que a palhaçaria de hoje existe em grande medida devido às conquistas e
contribuições desses artistas”. (REIS, 2011, p. 108) Trata-se, portanto, de reconhecer
uma arte antiga que atravessou o tempo. Contudo, apesar das inovações e
transformações, algumas características são passíveis de elencar, possibilitando, deste
modo, certa unidade. Assim, é justamente a partir delas que esboçaremos uma definição.
A bibliografia analisada preocupa-se em reconhecer os tipos cômicos, a
indumentária até certo ponto sinaliza a pertença de cada artista em um desses estilos,
contudo, atualmente, os estudiosos apontam para uma pulverização desses tipos,
principalmente em apresentações solo. Reis (2011), por exemplo, em diálogo com o
Tractatus Coislinianus de Aristóteles reconhece quatro polos: bufões, enganadores,
brancos e augustos. Esses tipos são definidos como tipos éticos e reconhecidos ao longo
da história do palhaço. O comediógrafo apresenta, assim, os polos cômicos:
O augusto é o celeiro da ingenuidade, do caos inofensivo, do estado
mais receptivo, e se coloca numa atitude dominada diante de seu
público e de seu parceiro. É, na maioria das vezes, tímido e leve. Sua
idade é a da criança que vê tudo como pela primeira vez. Seu clássico
parceiro branco, em contraste com ele, tem os olhos irônicos do
adulto, ama a ordem, carrega o peso da responsabilidade, e seu
comportamento cênico é impositivo e dominador em relação ao
parceiro e a sua plateia, além de exibir um autoapreço exagerado. O
impostor é, sobretudo, um jogador, é extrovertido, usa muita lábia,
paródia, malícia e sedução para conquistar seus propósitos e saciar
seus desejos. Age e se movimenta sob o combustível da sensualidade,
como quem vive numa eterna adolescência, pronto para embarcar na
próxima conquista ou seduzir os outros a fazerem mais um dia de
festa. É um mentiroso e fanfarrão nato, a sua verdade está na sua
ousadia de usar a manipulação ao extremo para a alegria dos
espectadores, que percebendo a sinceridade de sua intenção cômica,
acabam amando ser enganados e às vezes até expostos ao ridículo por
ele, mesmo quando esse demonstra ser mesquinho e inescrupuloso.
[...] O bufão não tem mais nada a perder, é como um velho que já
viveu todas as idades cômicas, das quais ele é uma síntese. De todos, é
o que além de gostar de ser objeto de riso, desenvolveu o gosto de
tornar a plateia seu objeto de riso, também. É o mais crítico de todos,
e a sua mensagem é tão importante quanto à forma como ele a
endereça. O seu caos, ao contrário do augusto, é ofensivo, e os bufões
podem levar a agressividade ao extremo. Em relação ao público, são
invasivos, dominadores e impositivos. (REIS, 2011, p. 301-302)
É importante considerar ainda que esses tipos são categorias abertas,
generalizações que têm função de guiar o olhar para o reconhecimento dos contrastes e
24
regiões cômicas que estão sendo acessados, e a partir de cada polo todo um universo
cômico se abre, na associação desses polos uma infinidade de possibilidades são postas,
ou seja, estas generalizações permitem a aproximação das particularidades dos tipos
palhaços, esses tipos por sua vez, não são marcados por uma substância, mas assumem
uma posição frente a relação entre outros tipos, é uma posição relacional mediante o
jogo cênico. Essas regiões, todavia, não são fora do tempo ou do espaço, mas fruto das
muitas experimentações de artistas com seu público, no cotidiano de levar a cabo um
ofício, deste modo, os tipos cômicos participam de um legado.
Assim, no esforço de definição do tipo de dramaturgia empregada na arte do
palhaço, tomo de empréstimo a definição de palhaçaria do comediógrafo Demian Reis:
Na acepção em que uso o termo palhaçaria, esta é a experiência
cênica de um atuante (palhaço) que engaja a plateia (espectador) num
estado de riso, com consciência(técnica), usando principalmente o
dispositivo de expor (exposição) a si mesmo como objeto ou estímulo
do riso do outro. Qualquer atuante que faz isso está usando,
manejando e se movimentando no universo da palhaçaria. (REIS,
2011, p. 33)
Deste modo, para o pesquisador, o palhaço é “um atuante que produz na plateia
um efeito ou estado lúdico por meio de uma técnica consciente de exposição de aspectos
da sua personalidade como objeto de riso, mediado por uma máscara ou não”. (REIS,
2011, p. 33) Para escopo deste trabalho, esta definição interessa como importante ponto
de partida, contudo, é necessário ainda imprimir contornos mais delineados a dois
aspectos. O primeiro é na dimensão constitutiva da relação palhaço/plateia, pontuar o
palhaço como presença atuante que engaja o espectador em um estado de riso, mas, ao
mesmo tempo, diminuir o peso constitutivo dessa relação, ou seja, uma reversibilidade
entre atividade e passividade que se apresenta nesse tipo de espetáculo, já que muitas
vezes os artistas são ‘surpreendidos’ com o engajamento do público em suas
apresentações, e não apenas os engajamentos humanos, mas os não-humanos devem ser
considerados, a exemplo do cachorro que surge no meio da roda ou a chuva que cai em
espetáculos de rua, ou a iluminação e o som que não funcionam como deveriam no
teatro e outras tantas situações. Ao longo da dissertação algumas dessas situações
presenciadas em campo serão relatas, como o esforço do palhaço Biancorino, o
“protagonista”, na negociação com a presença de um bêbado que interferia
insistentemente na continuidade de um dos espetáculos.
25
Como consequência dessa ressalva está, sem dúvida, a intenção de retirar a
exclusividade da atuação do palhaço nos procedimentos cômicos, reconhecendo que ele
precisa ser visto em um contexto relacional: há momentos em que o palhaço está
circunscrito no polo da passividade. Outro aspecto a ser enfatizado é a cumplicidade
entre o roteiro, ou seja, esquemas pré-concebidos de ações, e o improviso; é constitutivo
do espetáculo de palhaço esquemas abertos que possibilitam a relação entre ele e o
público, não há uma “quarta parede”. Esses esquemas pré-concebidos estão em
consonância com a questão da técnica artística elencada por Reis: o repertório técnico
que envolve especificamente cada palhaço, mas, ao mesmo tempo, o ultrapassa e atira o
espectador para um legado pouco delimitado, já que ao mesmo tempo em que o lança
para uma universalidade, quando remete sua familiaridade _à categoria de trickster da
Antropologia Social, remonta a uma particularidade, circunscrita em determinados
contextos: Grimaldi, no século XVIII, em Londres; Benjamim de Oliveira, na belle
époque brasileira; Biancorino, no século XXI, na Praça Campo Grande em SalvadorBA.
Por fim, vale ressaltar que esse dispositivo de colocar-se a si próprio como
objeto do riso do outro é uma característica que foi observada transversalmente nos
casos pesquisados e que parece ser o aspecto central da definição proposta por Reis
(REIS, 2011) e nos servirá enquanto solo para o caminho que se abre na pesquisa.
26
Capítulo 2 - Do riso mecânico à encarnação do risível
Este capítulo apresenta o entendimento de riso em consonância com os objetivos
desta pesquisa: primeiramente se estabelece um diálogo com a concepção clássica do
filósofo Henri Bergson (2007). Como lente em reversibilidade sobre a leitura de
Bergson estão observações de campo, assim, por meio deste jogo, é possível identificar
a “falha cômica” na teoria desse filósofo. No livro O Riso: ensaio sobre a significação
da comicidade é compreendido por três artigos: I – Da comicidade em geral/ a
comicidade das formas e a comicidade dos movimentos/ força de expansão da
comicidade. II - A comicidade de palavras. III - A comicidade de caráter. Bergson
(BERGSON, 2007, p. 1-48) apresenta três argumentos principais: o primeiro defende
que na passagem do trágico para o cômico se estabelece o desvio da emoção para o
corpo; o cômico é produzido exclusivamente por uma fisicalidade, é matéria pura,
desprovida de espírito ou emoção. Por sua vez, o segundo argumento defende que o riso
se dirige à inteligência pura, contudo nunca é isolado ou individual, mas social; o riso é
um comportamento de um grupo, em instantes específicos e, ao mesmo tempo, exige
algo como uma anestesia momentânea do coração, permanece em contato com outras
inteligências. Do segundo argumento deriva uma consequência: sendo o riso social, ele
se presta a uma finalidade, demanda do riso uma função social que corresponde a certas
necessidades em comum da vida de um grupo. Para Bergson, tais necessidades possuem
valor corretivo: exagera-se certo comportamento, ressaltando-lhe o ridículo, com o
objetivo de evitá-lo.
O cômico em Bergson é negativo, indica o desvio dos valores de uma sociedade.
O filósofo destaca que justamente o que deve ser reprimido é punitivo e reivindica o
restabelecimento da ordem, do positivo. O terceiro argumento é uma definição sobre o
cômico; para o autor, é preciso compreendê-lo como mecânico aplicado ao vivo (“du
mécanique plaqué sur du vivant”), pois este seria o leitmotiv que ressalta de todos os
procedimentos de fabricação do cômico.
O vivo é a mudança constante, tanto no tempo quanto no espaço das coisas, dos
acontecimentos e do homem; é o dado, possui valor de fundamento em relação ao
mundo, à sociedade e à conduta humana. O vivo é naturalmente um dado, porque é da
natureza das coisas a não repetição, elas estão em eterna e progressiva transformação,
assim como os seres estudados na biologia. A sociedade e a vida exigem que o homem
27
esteja em constante adaptação, submetido às forças complementares de tensão e
elasticidade. Contudo, esse processo de transformação é também um processo de
conservação. O conceito de duração recebe um papel preponderante na reflexão do
autor: a vida enquanto duração é renovação e conservação ao mesmo tempo. A duração
explica também a ideia de élan vital, fonte de toda a vida, consciência criadora que
encontra em si mesma as respostas e reações que cada momento requer.
Na vida nada se repete, cada instante reivindica uma atitude inovadora, que é
diversa para cada indivíduo e foge a qualquer mecanismo de controle. Tensão e
elasticidade se apresentam como noções fundamentais que viabilizam a mudança, a
inovação e a continuidade. Quando essas duas forças – tensão e elasticidade – se
ausentam ao corpo, surgem as doenças, quando faltam ao espírito, segue-se a loucura e
quando faltam ao caráter, lhe resta a inadaptação à vida social, podendo levar ao crime.
É essa ausência de adaptação e de renovação (tensão e elasticidade) que constitui o
mecânico, um desvio em relação ao que é próprio da natureza (BERGSON, 2007).
A partir da reflexão de Bergson, o riso corrige, na medida em que se precisa rir,
para estabelecer o vivo na sociedade; o riso é certo gesto social que ressalta e reprime,
certa distração especial dos homens e dos acontecimentos, é movimento sem vida. O
cômico para ele é o oposto da vida; é a privação da tensão e elasticidade; é redução a
mecanismo e rigidez; o cômico é morte, porque é automatismo e máscara:
A comicidade é esse lado da pessoa pelo qual ela se assemelha a uma
coisa, aspecto dos acontecimentos humanos que, em virtude de sua
rigidez de um tipo particular, imita o mecanismo puro e simples, o
automatismo, enfim o movimento sem a vida. Exprime, portanto, uma
imperfeição individual ou coletiva que exige correção imediata. O riso
é essa correção. O riso é certo gesto social que ressalta e reprime certa
distração especial dos homens e dos acontecimentos. (BERGSON,
2007, p.64-65).
A comicidade recebe um valor negativo, se para o filósofo a arte tem como
função recuperar a pureza de cada duração, por uma vinculação íntima, pela capacidade
transformadora do sublime, da emoção, a comicidade, desprovida de tensão e
elasticidade, aspectos da duração, resulta apenas em uma máscara rígida, mero
mecanismo, ela perde toda força do espírito para ser arte em um sentido total, pois é
pura exterioridade, fisicalidade e nenhuma afecção. A única permanência como arte na
comicidade está na possibilidade de agradar, entreter, ou seja, a comicidade é uma arte
28
menor pela sua incapacidade de gerar uma real afecção, já que a comicidade está
articulada a um propósito mais geral, uma função corretiva, o que a distancia de todas as
outras expressões artísticas. Na comicidade, o automatismo toma conta do indivíduo,
maleabilidade e flexibilidade são substituídas pela rigidez. Esses desvios em Bergson
são buscados no temperamento, no caráter, nos defeitos físicos e nos hábitos; e devem
ser visíveis a todos, exceto a quem os possui. Bergson apresenta uma concepção
clássica sobre o riso: considera-o um processo social em termos de função, um
dispositivo mecânico.
A “falha cômica” em Bergson ocorre pela limitação de todo o “pensamento de
sobrevoo”: o objetivo de determinar leis gerais aplicáveis a toda circunstância. A
necessidade de um diálogo com as teorias do filosofo francês apresenta-se como
possibilidade de entender como o riso se apresenta nesta pesquisa. Assim, é possível
reconhecer muitos dos elementos elencados pelo filósofo, a associação do riso ao
ridículo, grotesco ao corpo, como também essa característica “social”, ou ainda coletiva
do riso, apesar de, para este trabalho, parecer mais apropriado o ajuste que a
comediógrafa Cleise Mendes realiza:
Melhor do que dizer que rimos ‘em grupo’, seria reconhecer que
aquilo que ri, em nós, quando rimos, é o grupo. E isso em nada
depende de termos nos transformado provisoriamente em puras
inteligências, e sim que o comediógrafo aposta numa certa comunhão
de valores que estão circunscritos a um dado perímetro social, a uma
‘paróquia’. Seria mesmo o oposto do exercício crítico a circunstância
de rirmos ‘por contágio’, cúmplices de conceitos e preconceitos
grupais. (MENDES, 2008, p.14)
O choque com a compreensão bergsoniana reside na redução das reflexões que
apresenta considerando todo e qualquer procedimento cômico uma operação mecânica,
como o desenrolar de uma competência inata, um dispositivo programado que ao
reconhecer um desvio é prontamente acionado. Ou ainda, retomando uma das premissas
centrais de Bergson, a de que o riso se dirige a inteligência pura, ou seja, por uma
anestesia do coração, o riso se voltaria à inteligência em detrimento da sensibilidade. A
insensibilidade do espectador seria, deste modo, a condição para o fenômeno do riso,
inclusive nas comédias e espetáculos de palhaço, essas expressões seriam incapazes de
produzir qualquer tipo de empatia em relação à sua audiência. Bergson realiza uma
cisão entre o sensível e o inteligível, o afetivo e o mental, tornando irreconciliável “rir
29
de” e “sentir com”. Esses polos são vistos como movimentos excludentes de
afastamento e aproximação segundo a presença/ausência de identificação com a
personagem.
Em resumo, a definição de riso em Bergson reduz o fenômeno do riso em
termos de um gesto social que tem como função a correção de comportamentos
desviantes. Assim, não se pode negar esse vínculo do cômico com a norma, contudo
reduzi-lo a esse único aspecto é invisibilizar a complexidade desse fenômeno, inclusive
a complexidade deste vínculo e o próprio elemento criativo que o envolve, tendo em
vista, por exemplo, a característica liminar observada através da categoria de trickster.
Ao longo da pesquisa, com entrevistas e observações, essa característica da
insensibilidade do espectador/leitor ao objeto cômico se desmontou, afirmações como
“a gente jogo com e contra o público” do palhaço Chacovacchi produziu a necessidade
de traçar outros caminhos para referir ao aspecto do cômico. Por meio das observações
em campo, entre outras questões, é perceptível o limite da teoria de Bergson. Ainda
sobre essa cumplicidade com o público, o palhaço Pepe Nuñez, em entrevista, relata:
Você viu hoje, percebeu que eu beijei os lábios de homens que eu não
conhecia e eles também não me conheciam, esse é o grande barato do
palhaço, o palhaço com sua liberdade e ousadia ele provoca a
liberdade e a ousadia do público. E a coisa é tão boa que se cria
confiança, quando estamos em confiança com o meio, com as pessoas
que nos rodeiam estamos livres, essa é grande parada do palhaço que
eu aprendi nesses 26 anos fazendo palhaço, a teoria se resume a isso: o
palhaço cria um clima de confiança, na confiança de ser livre e
quando somos livres podemos ser nós mesmos não temos medo de
nada, porque confiamos em tudo , então podemos brincar em dá um
chute na bunda, podemos falar de sexo, amor, poesia, ser mímicos, o
universo conspira; com essa coisa de virar o avesso, ao contrário, na
verdade bota as coisas no local certo, o lugar da paz, da alegria, da
liberdade, da tolerância e mesmo aquele doido, doido demais, o
máximo que ele provoca é uma gargalhada. (NUÑEZ, em entrevista
2010)
30
Figura 5. Pepe Nuñez, 2010. ( http://www.olaserragaucha.com.br, acesso em 25/03/2012)
Nos espetáculos de rua é preciso que o palhaço reúna um grupo de passantes, um
público móvel que não pagou para estar ali, é necessário que conquiste um público, pois
participantes da plateia, a qualquer momento, pode abandoná-lo. Este caso é um
excelente exemplo da necessidade de produção de empatia entre o artista e o público.
Testar os limites desse vínculo também faz parte do jogo cômico do palhaço. Basta
atentar para os números de interação em que de fato o palhaço coloca em risco o
sucesso da performance, já que o público pode se negar a realizar as peripécias
propostas.Nesse sentido, o público do espetáculo de rua é distinto de um espectador
passivo que reponde mecanicamente via o “mental” aos estímulos cômicos propostos
pelos palhaços, como pretende a teoria bergsoniana. Durante a pesquisa de campo foi
observado um processo de envolvimento do público para com o artista e vice-versa para
que o fenômeno cômico ocorra, produzindo, portanto, um campo de afecção que será
trabalhado com mais detalhe no capítulo seguinte.
O palhaço tem que está aberto, todos os poros, saber o que está
acontecendo, é um estado de alerta, escute o público e para isso tem
que está muito sensível. Se você está na praça e o sino da praça toca
você tem que fazer alguma coisa e você pode manipular com a palavra
e com o corpo. (CURCIO, em entrevista, 2008).
31
Figura 6. Lili Curcio, 2010. ( http://www.flickr.com/photos/larretxipi/galleries acesso em 23/03/2012)
Figura 7. Chacovachi, 2008. (https://picasaweb.google.com/anjosdopicadeiro acesso em 28/03/2012)
Desse modo, diferentemente dos objetivos e premissas bergsonianas, parto de
um ponto de vista téorico que privilegie entender como o cômico se “faz fazer” na
relação palhaço/espectador. Ou ainda, que rendimento analítico teria uma análise que
investigasse o cômico no modo como é performado em detrimento de pensá-lo como
epifenômeno? Assim, desse modo, proponho uma “encarnação” do riso; ainda que por
trilhas nebulosas, viso a perseguir a indissociabilidade do riso ao sensível. Proponho,
pois, uma perspectiva sobre o riso que melhor caracterize sua manifestação entre os
sujeitos da pesquisa, ou seja, uma perspectiva que enlace riso e sensibilidade,
32
criatividade; aspectos negligenciados na filosofia de Bergson.
33
2.1 Esboço para uma teoria da sensibilidade
Para as reflexões proposta por este trabalho, é possível encontrar, na filosofia de
Merleau-Ponty, um caminho alternativo que permite avançar na associação do riso ao
sensível; uma alternativa à concepção clássica da filosofia de Bergson que encapsula o
riso ao aspecto estritamente intelectual; ao mesmo tempo, inibe a condição da recepção
para o fenômeno cômico, circunscrevendo o espectador a exclusiva condição de
passividade. Para tanto, faz-se necessário uma incursão sobre a percepção na filosofia
de Merleau-Ponty.
A percepção, tal como tratada na obra, A Fenomenologia da Percepção
(MERLEAU-PONTY, 1999), por vezes, é explicitada em outros termos preservando
ainda a mesma função: atividade perceptiva, consciência pré-reflexiva, consciência
antepredicativa. Essa heterogeneidade do termo explicita apenas as diversas nuances de
um mesmo tópico. Merleau-Ponty descreve a percepção como um contato originário
com o mundo que apresenta as coisas não como representações privadas, mas tais como
são. Trata-se de abertura no sentido do envolvimento ontológico entre o ser e mundo
que antecede os estilos e particularidades culturais que essa abertura adquire no decorrer
de uma experiência, essa relação entre sujeito e mundo sensível se realiza sem
intermédio de representações ou faculdades. Em várias passagens na Fenomenologia da
Percepção, Merleau-Ponty salienta a abertura instalada pela percepção além de qualquer
relatividade cultural:
[...] ter sentidos, por exemplo, ter a visão, é possuir essa montagem
geral, essa típica das relações visuais possíveis com a ajuda da qual
nós somos capazes de assumir toda constelação visual dada. Ter um
corpo é possuir uma montagem universal, uma típica de todos os
desenvolvimentos perceptivos e de todas as correspondências
intersensoriais para além do segmento de mundo que nós percebemos
efetivamente. Há uma lógica do mundo que meu corpo inteiro esposa
e pela qual coisas intersensoriais tornam-se possíveis para nós.
Quando eu compreendo uma coisa, por exemplo, um quadro, eu não
opero atualmente a sua síntese, eu venho diante dele com meus
campos sensoriais, meu campo perceptivo, e finalmente com uma
típica de todo ser possível, uma montagem universal em relação ao
mundo. (MERLEAU-PONTY apud FERRAZ, 2009, p.182)
34
Assim, para Merleau-Ponty, o mundo é aquilo que se manifesta para a
consciência perceptiva; por sua vez, a consciência perceptiva não é senão um contínuo
engajamento nas estruturas mundanas: possui papel fundamental na reversibilidade
contínua entre corpo e mundo. A percepção é justamente o operador que realiza a
correlação perfeita entre o ser e as capacidades subjetivas; por meio dela, o sujeito se
engaja nas situações mundanas que são abarcadas pelo projeto geral de mundo portado
pelo sujeito. (FERRAZ, 2009, p. 184),
Esse voltar-se ao pré-objetivo, antes de qualquer reflexão ou abstração, carrega
consigo uma crítica às tradições empirista e intelectualista. A primeira – a tradição
empirista – toma o mundo como inteiramente pronto, meio de todo acontecimento
possível e ignora por completo o sujeito da percepção. A percepção é mais um
acontecimento no mundo ao qual poderia, assim como a física clássica, estabelecer a
categoria de causalidade. Dessa maneira, o pesquisador procura descrever a ocorrência,
“as sensações e seus substratos como se descrevesse a fauna de um país distante – sem
perceber que ele mesmo percebe, que ele é sujeito perceptivo e que a percepção, tal
como ele a vive, desmente tudo o que ele diz da percepção em geral”. (MERLEAUPONTY, 1999, p. 279). Por outro lado, a tradição intelectualista compreende a
consciência antes de qualquer experiência, todo o sistema de experiência encontra-se
subordinado a um pensador universal responsável em realizar todas as relações, é o Ego
transcendental. Apesar de Merleau-Ponty reconhecer um avanço em relação ao
empirismo, pois o estado de consciência torna-se consciência de um estado, o mundo
torna-se correlativo de um pensamento do mundo e só existe para um constituinte,
todavia, diz o autor “permanece verdadeiro que o próprio intelectualismo se dá o mundo
inteiramente pronto. Pois a constituição do mundo, tal como ele a concebe, é uma
simples cláusula de estilo: ‘a consciência de...’.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 280)
Merleau-Ponty, desse modo, promove a encarnação da consciência.
A
imbricação entre corpo e consciência, o corpo vivido, não trata de subtraí-lo do universo
da natureza e arremessá-lo no campo da subjetividade. Trata-se antes de redefinir os
dois termos (sujeito e mundo) a partir da “imbricação” entre ambos (RABELO, 2008, p.
109)
Perpassado pelo subjetivo (“todo ele psíquico”), o corpo não é mais
matéria inerte ante o espetáculo da cultura, é “corpo vivido”.
35
Ancorada no corpo, por sua vez, a subjetividade já não pode mais ser
tomada como interioridade, locus de onde emanam e onde são
armazenadas representações acerca do mundo. O corpo nos enraíza no
mundo da cultura e da história (mas também dos sensíveis), nos
enreda nas ações de outros e faz os outros inevitavelmente
participarem de nossas ações. (RABELO, 2008, p. 109)
Nesses termos, encontramos na discussão de Merleau-Ponty, a cumplicidade
entre corpo e mundo, não apenas assinalando a presença do mundo e do “outro” na
própria subjetividade, como também propondo a sociabilidade como condição
existencial que funda qualquer processo de subjetivação. Como nos propõe Miriam
Rabelo “Minha existência encarnada se tece sob o horizonte da existência do outro;
meus gestos retomam e respondem ao outro, nos seus gestos descubro minhas
intenções”. (RABELO, 2008, p. 110) É nesse mundo comum em que habita e é dessa
sociabilidade primeira que se pode eclodir como sujeito e, por essa mesma condição, o
outro surge como objeto ou “autoriza” a surgir nessa mesma condição, também como
objeto.
Ao se debruçar sobre a percepção, sobre essa consciência encarnada que é o
mundo via um corpo que não é oposição da consciência, mas sim imbricação ontológica
cujos limites não excluem a alteridade nessa experiência de mundo, é possível pensar
em termos de intercorporeidade. Entretanto, a contribuição deste raciocínio que unifica
corpo e consciência não é feita sem consequências. O sensível não é oposição à ideia,
pois toda a vida reflexiva delineia-se na própria experiência perceptiva sobre o mundo;
a percepção não é um somatório de sensações distintas, “soldadas pelo hábito” como
também não é a imposição de uma forma sobre conteúdos dispersos. “A percepção é
comunhão com as coisas – como comunhão pressupõe nossa inserção comum no lugar
gradativamente revela o lugar como arena do nosso encontro” (RABELO, 2008, p. 117)
Em O Visível e o Invisível Merleau-Ponty radicaliza esse entrelaçamento ao pensar o ser
carnal:
O corpo nos une diretamente às coisas por sua própria ontogênese,
soldando um a outro os dois esboços de que é feito, seus dois lábios: a
massa sensível que ele é e a massa do sensível de onde nasce por
segregação, e a qual como vidente, permanece aberto. E ele é
unicamente ele, porque é um ser em duas dimensões, que nos pode
36
levar às próprias coisas, que não são seres planos, mas seres em
profundidade, inacessíveis a um sujeito que os sobrevoe, só abertas, se
possível, para aquele que com elas coexista no mesmo mundo. Ao
falar falarmos de carne do visível, não pretendemos fazer
antropologia, descrever um mundo recoberto por todas as projeções,
salvo o que possa estar sob a máscara humana. Queremos dizer ao
contrário que o ser carnal, como ser das profundidades, em várias
camadas ou várias faces, ser de latência e apresentação de certa
ausência, é um protótipo do Ser, de que nosso corpo, o sensível
sentiente, é uma variante extraordinária, cujo paradoxo constitutivo,
porém, já está em todo visível: já o cubo reúne em si visibilia
imcompreensíveis, como meu corpo é concomitantemente, corpo
fenomenal e corpo objetivo, e se, enfim, existe como ele, por um
golpe de força. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 132-133)
O corpo humano é um ser de duas faces; é coisa entre as coisas e por outro lado
aquilo que as vê, as toca. Há, dessa maneira, uma dupla pertença tanto à ordem do
objeto quanto à ordem do sujeito. Ao mesmo tempo, a experiência entre o sentiente e o
sensível não é uma relação dada em termos de um em-si e um para-si, antes o sentiente
interroga o sensível a partir dos termos do próprio sensível. Essa premissa de
reversibilidade possui um locus privilegiado em Merleau-Ponty, a questão passa a ser
que a atividade está vinculada a uma passividade, ver as coisas está vinculado a ser visto
pelas coisas, ou ainda não é o sujeito vendo o objeto, mas a visibilidade geral do visível:
o visível se ver vendo.
Compreende-se então por que, ao mesmo tempo, vemos as próprias
coisas no lugar em que estão, segundo o ser delas, que é bem mais do
que o ser-percebido, e estamos afastados delas por toda a espessura do
olhar e do corpo: é que essa distância não é o contrário dessa
proximidade, mas está profundamente de acordo com ela, é sinônima
dela. É que a espessura da carne entre o vidente e a coisa é
constitutiva de sua visibilidade para ela, como de sua corporeidade
para ele; não é um obstáculo entre ambos, mas o meio de se
comunicarem. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 131)
Vale salientar que não é objetivo primordial deste trabalho esmiuçar as
concepções merleaupontianas, mas se valer delas para investir em uma interpretação
sociológica alternativa às propostas da filosofia de Bergson dadas no início deste
capítulo. Assim, a proposta é verificar como as concepções de Merleau-Ponty – aqui
brevemente apresentadas – podem auxiliar neste empreendimento. A associação entre
37
corpo e mente, entre intelecto e sensibilidade, é possivelmente a principal contribuição
da fenomenologia de Merleau-Ponty, não apenas para essa pesquisa em particular, mas
para as Ciências Sociais que tradicionalmente se rendeu a tais dicotomias na explicação
da realidade social. A contribuição merleaupontyana para esta pesquisa em específico
permite compreender sobre o riso aliando o “rir de” com o “sentir com”. Desse modo,
possibilitou a apreensão dos elementos criativos na fabricação do cômico, algo
negligenciado na perspectiva bergsoniana, o cômico, assim como o riso, já que Bergson
não realiza nenhuma distinção entre esses conceitos, se caracterizam justamente pela
ausência da criatividade, pois são marcados pela rigidez e a ruptura com a duração. O
“rir de” é algo que se estabelece pela anulação do “sentir com”.
38
2.2 Seguindo outros ruídos
Em Do papel do corpo como limitador da vida do espírito com vistas à ação:
notas sobre o dualismo de Bergson, a filósofa Maria Adriana Camargo Cappello, apesar
de analisar outra obra do autor – Matéria e Memória – apresenta um argumento que se
afina ao que foi identificado na presente pesquisa. Cappello inicia o texto com a citação
do filósofo francês: “o corpo, sempre orientado para ação, tem por função essencial
limitar, em vista da ação, a vida do espírito” (BERGSON apud CAPPELLO, 1999, p.
199) A partir desta citação, aponta reflexões sobre o dualismo entre corpo e
representação, ou ainda o dualismo entre corpo e consciência, já que o papel do corpo é
reduzido a um mecanismo sensório-motor que recebe influências do exterior e responde
com ações. Recuperando o que foi delineado no início deste capítulo na obra O Riso:
ensaio sobre a significação da comicidade, é possível compreender então que, apesar de
Bergson localizar a dimensão do corpo na questão do cômico, é apenas em termos de o
corpo ser um operador sensório-motor que pode ser solicitado quando ocorre um
rompimento com a flexibilidade e maleabilidade, levando a concluir que a dimensão da
significação do riso se trata de uma operação exclusivamente mental.
Ao assumir a contribuição de Merleau-Ponty ao proceder a encarnação da
consciência, ou ainda essa reversibilidade entre consciência e corpo, corpo e mundo, é
possível, então, postular uma investigação sobre o fenômeno cômico por meio de duas
características na construção dramatúrgica da arte do palhaço que solicita outro
entendimento a partir da experiência na produção do espetáculo: a colaboração entre
improviso e roteiro, tendo o público como elemento ativo da encenação
O palhaço opera com um roteiro sucinto aberto para o improviso. Antes mesmo,
não se trata de uma dicotomia, a característica flexível dos roteiros viabiliza as ações
improvisadas, assim como as últimas são fundamentais para a atualização desses
roteiros. O caráter da dramaturgia considerada é o extremo oposto do objetivo
naturalista do teatro de tom realista que faz uso da quarta parede, em que separa a
plateia da cena; a interação com o público é um eixo fundamental, produzindo uma
libertação das associações “simbólicas”, tanto para o público, quanto para o próprio
artista, já que muitos dos sentidos cênicos são dado nesse campo de afecção
artista/espectador. O espetáculo do palhaço é dependente do público. A proximidade e a
39
presença evidente da plateia, que raramente está no escuro, permitem ao palhaço um
contato direto por meio de brincadeiras, correrias, escapadelas etc.
É preciso criar o ambiente de escuta que passa pela calma. Preciso
entender que espaço é esse que eu crio para eu abrir um canal de ação,
de comunicação, principalmente para que nós nos relacionemos, mas
do que eu esteja como tivesse o que dizer. (MAGALHÃES, Esio. Em
entrevista, 2008)
Antes de pensar em dois polos distintos, duas realidades em si, o artista e o
público, há um processo de contaminação, dito pelas lentes de Merleau-Ponty, nenhum
dos dois polos é totalmente sujeito ou objeto, atividade ou passividade, ao mesmo
tempo, eles não se confundem um com o outro. É preciso um entendimento no campo
da intersubjetividade, ou ainda de uma intercorporeidade, um solo comum, um mundo
compartilhado:
O sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na
intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela
engrenagem de uma nas outras; ele é portanto inseparável da
subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela
retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências
presentes, da experiência do outro na minha. (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 18)
Ou como aponta Rabelo (2008) “meus gestos retomam e respondem ao outro,
nos seus gestos descubro minhas intenções”. Se as realidades fossem um em si, nada
estaria por fazer, o espetáculo seria acabado antes mesmo de sua realização, não haveria
precisamente uma comunicação, mas um trânsito entre representações de sujeitos
abstratos: o topos idealista. Assim, lida-se com regiões de uma mesma unidade e, por se
tratarem de regiões, elas não se confundem uma com a outra, mas se interpenetram em
um movimento de distância e proximidade. Como propõe o palhaço argentino
Chacovacchi, o palhaço joga com/contra o público: precisa dele para jogar com e
contra, porque o palhaço quer algo dele. Recuperando mais uma vez Merleau-Ponty
caberia a metáfora de espessura, essa distância e proximidade é constitutiva do
fenômeno do espetáculo, essa intercorporeidade, antes de um obstáculo é o meio de se
comunicarem.
Os números participativos muito comuns nos espetáculos de palhaço, essa
reversibilidade constante entre passividade e atividade que diz respeito ao
40
artista/público se torna latente:
Dependendo da pessoa do público que você chame o número
participativo pode demorar, construir barrigas no espetáculo, tem
gente que é difícil de lidar, rouba a cena e até mesmo cansa o resto do
público e a gente, oras pode te surpreender positivamente tornar seu
parceiro e engrandecer o número. (COSTA, Suzy. 2010)
Na estreia do espetáculo o Jardim, por exemplo, no momento do número
participativo, elas – Felicia Castro e Suzy Costa – convidaram um homem que se sentiu
bastante “a vontade” no palco e não respondia as solicitações como esperado pelas
palhaças. O número era um transplante de coração, nitidamente o número demorou mais
do que o esperado, a princípio, o público ria bastante com a “transgressão” do
convidado, mas, aos poucos foi cansando, as risadas silenciadas, inibindo novas
travessuras do rapaz. Tal fato, entretanto, facilitou a performance das artistas que
puderam continuar o roteiro.
Assim, é da condição do risível a dinâmica artista/público, essa dinâmica é
possibilitada por certo modo de fazer com que os passos da realização cênica não estão
todos previstos por uma encenação previamente preparada e, ao mesmo tempo, a
realização cênica é controlada pelo esquema proposto, pelas entradas que apresentam as
maneiras pelas quais cada palhaço está enredado em um saber e, por sua vez, o
andamento da encenação é controlado pelas próprias reações do público. Em cena, a
eficácia da interpretação opera com o comunicar-se com outro palhaço quando for o
caso, com o apresentador (ou com ambos) e com o público, que passa a ser personagem
do jogo cênico improvisado.
Há uma forte tradição na Sociologia da Arte e Sociologia da Performance que
pensa a arte através do par binário ordinário x extraordinário. Herança do pensamento
estruturalista que compreende rupturas radicais na realidade social através de eventos
como o ritual. A arte inauguraria outro estado que põe em suspensão a vida cotidiana3;
assim, esse binarismo incide sobre a mesma sobredeterminação teórica da questão
artista/espectador que, abrindo mão de uma postura compreensiva, recai sobre o
paradigma explicativo na busca de encontrar essências, eventos em si.
2
Essa separação produziu duas perspectivas na teoria da performance: uma dedicada aos aspectos da vida
cotidiana, representados por autores do interacionismo simbólico principalmente Irving Goffman; e outra,
a perspectiva que se dedicaria aos aspectos extracotidianos, rituais, eventos artísticos, esportivos, com
Victor Turner.
41
Ora, essas rearticulações da vida cotidiana, os eventos extraordinário estão
fundados na experiência; esse solo comum – que completa o sentido de experiência,
porque palhaço e espectador experienciam um mesmo mundo – é porque o mundo do
palhaço não é outro distinto do espectador, pois o inclui na medida em que o espetáculo
é realizado. Nesse sentido, diante do palco, os elementos em cena não pertencem a
nenhuma realidade incompreensível: mesas, bolas, apitos, roupas, refletores, poltronas,
efeitos de som, luz, etc são elementos de uma trivialidade sem fim. Assim como é
comum para o espectador os seus usos, os modos de fazer é expressão de certa
estabilidade, esquemas corpóreos como diria Merleau-Ponty, que não excluem a
contingência, pois, por exemplo, o fato de saber lavar os pratos não garante que alguns
não possam ser quebrados no ato de lavá-los.
Os palhaços, como os espectadores, estão enredados no mundo através dos
esquemas corpóreos, e é por essa condição que os palhaços remanejam os esquemas: o
modo de fazer do espetáculo de palhaços estaria, justamente, na atuação de esquemas
corpóreos alternativos e, junto a eles, os outros modos de performar4 dos entes. Uma
bola de soprar pode se transformar em um bebê, a mesa em uma casa; ou ainda, quando
se trata de uma pantomima, o manuseio de objetos invisíveis, a percepção da presença
do objeto é dada através da performance; o interessante, nesse caso, é que a ausência do
objeto força um remanejamento radical por parte do artista. Ao observar uma oficina de
mímica corporal dramática, uma das dinâmicas era empurrar uma parede invisível e,
para isso, o eixo de força que estaria nas mãos, braços, ombros, era rearticulado para as
pernas, principalmente a panturrilha, fazendo com que algumas pessoas relatassem
fortes dores depois do exercício. De pronto, surgiu a pergunta: se ao empurrar uma
parede (visível) se é capaz de reconhecer essa co-presença, dentre outras formas, pela
tensão entre a superfície da parede e as mãos, o ato de empurrar uma parede invisível
faz ela co-nascer na tensão entre a panturrilha e o chão? Para uma resposta preliminar, é
possível afirmar que no esforço e remanejamento do corpo frente à parede invisível, ela
se torna presença para o mímico e assim para a comunidade (o público).
Algo muito semelhante foi analisado pelo sociólogo Guilherme Veiga, na tese
Ritual, Risco e Arte Circense: o homem em situações – limite. No trabalho, Veiga, entre
outras questões, analisa a produção de experiências sensoriais, tanto na constituição do
3
Nesse caso não há nenhuma distinção entre o atuar e o performar, ambos estão sendo usados no sentido
de to play. Ou seja, mas próximo da ideia de jogar que executar.
42
teatro clássico, na performance art, quanto nas performances circenses.
Guilherme Veiga produz um conceito de redoma sensorial ordinária:
Nosso arcabouço sensorial cotidiano é, portanto, formado pelo
conjunto simultâneo das sensações que estamos mais ou menos
acostumados a lidar e que geram o que se pode chamar de redoma
sensorial ordinária. Essa redoma, como qualquer redoma, é a
composição de uma série de elementos sensoriais , mas não pode ser
compreendida pela simples soma desses elementos . A redoma
sensorial é antes uma totalidade de sentidos que, interagindo e
maximizando-se mutuamente, produzem um efeito que ultrapassa a
soma de suas partes. (VEIGA, 2008, p. 73)
Tanto os conceitos de redoma sensorial quanto de esquemas corpóreos buscam
descrever esse complexo sensorial da experiência partilhado e remanejado nas
performances, contudo, a ideia de esquema apresenta-se como substantivo mais
eficiente para propor ideia mais enfática de dinâmica, de ação, atributos propriamente
cênicos, em que existe preocupação acentuada com o público, que se reduz, por
exemplo, em relação ao acrobata. (VEIGA, 2008)
Com vistas a recuperar a dimensão ontológica da percepção, vale ressaltar que
os esquemas corpóreos se fundam no mundo do vivido. Os sujeitos compartilham,
portanto, no mundo da vida, certos esquemas corpóreos, construindo um código de
referência, via um arco intencional ou ainda uma intencionalidade corpórea: a exemplo
da forma de sentar, de usar objetos, de utilizar talheres. Sobre tais questões, é possível
aludir a seguinte concepção de MERLEAU-PONTY:
Então digamos antes, tomando de empréstimo este termo a outros
trabalhos, que a vida da consciência - vida cognoscente, vida do
desejo ou vida perceptiva - é sustentada por um ‘arco intencional’ que
projeta em torno de nós nosso passado, nosso futuro, nosso meio
humano, nossa situação física, nossa situação ideológica, nossa
situação moral, ou antes que faz com que estejamos situados sob todos
esses aspectos. É este arco intencional que faz a unidade entre os
sentidos e a inteligência, a unidade entre a sensibilidade e a
motricidade. (MERLEAU-PONTY, 2006, p.190)
Toda sociedade produz situações extraordinárias, o que necessariamente requer
um remanejamento dos esquemas corpóreos:
43
Assim, todas as sociedades criam situações para que sejam
experimentadas situações extracotidianas de alta coesão sensorial. No
caso da sociedade moderna, situações desse gênero são as festas, as
drogas, os esportes de risco, os jogos e competições. No caso das
sociedades primitivas são os rituais, as caças, as guerras. (VEIGA,
2008, p. 116)
Os esquemas cotidianos produzem, portanto, uma função de referencialidade,
em termos de significações estáveis para produção de contextos sociais. É justamente
pelo palhaço compartilhar com os outros (e os outros consigo mesmo) os esquemas
corpóreos cotidianos que viabiliza a projeção para esquemas remanejados.
Assim, o que está em jogo nesse remanejamento é justamente um jogo de
sentidos, retira-se do sentido seu contexto cotidiano e o projeta para um contexto
“extraordinário”. É possível comprovar isso em diversos níveis e graus, desde o
caminhar com as mãos ao fazer uma bananeira, a estabelecer relações inusitadas entre
um objeto e outro (uma garrafa sendo remanejada e utilizada como microfone, por
exemplo), produzir associações entre humanos e animais, entre outras estratégias.
O fato de tais esquemas corpóreos sensoriais serem produtores de uma rede de
significados mais ou menos tipificados, padronizados, em que os sentidos são
compartilhados em sua manualidade, em seu uso, constrói um horizonte que possibilita
o remanejamento desses esquemas pelos palhaços; ou ainda, é pelo remanejamento
desses esquemas possuírem uma base propriamente social, no sentido de um solo
comum, que é possibilito o fenômeno do risível.
Assim, a ideia do palhaço enquanto remanejador de esquemas corpóreos
compartilhados ilumina certos aspectos escamoteados por uma perspectiva diegética.
Ou seja, uma perspectiva que entende o espetáculo como algo apartado da experiência
de um sujeito em mundo social, o espetáculo enquanto um em si; assumindo uma
perspectiva dialógica que considera o contexto social da produção do espetáculo,
recuperando a característica processual deste evento, consequentemente leva a
considerar outras situações para análise do espetáculo. Assim eventos ocorridos fora do
palco permitiram uma análise mais ampla não apenas de um espetáculo de palhaço, mas
do modo de fazer desse estilo dramatúrgico. Durante observações nos camarins, ouvi
44
de um dos palhaços “essa camisa não serve para mim, tem a gola muito curta”, e logo
em seguida “preciso de mais vermelho no queixo”. Por que aqueles detalhes pareciam
tão importante para ele? A necessidade de golas mais altas, um excesso de maquiagem
em um lugar específico, aqueles detalhes pareciam cruciais para o que viria depois: o
espetáculo. Na semana seguinte, observando o espetáculo do mesmo palhaço, depareime com o mesmo palhaço maquiando a filha que atuaria com ele naquele dia; perguntei
se havia alguma orientação o que estava fazendo, se havia alguma regra para a
maquiagem do palhaço. Ele respondeu-me:
Para mim, começa pelos os olhos, ele precisa ser o primeiro a ser
destacado, depois a boca... então você tem que prestar atenção se os
olhos são pequeninos. Então, começar aqui pelo branco no olho... tem
essa coisa de dá uma dilatada na pessoa, com alguma coisa lírica,
singela, não pode ser pesado demais, fica muita informação, uma
mancha sem sentido nenhum. Se a pessoa é redondinha, se tem o rosto
muito fino, tudo isso você tem que levar em consideração, quando
você entende de maquiagem ajuda muita, entender o que ampliar, o
que reduzir [...] No meu caso, eu tento deixar meu rosto mais largo,
redondo, Ricardo Pucetti, meu mestre, coloca uma listra vertical,
porque tem um rosto muito fino. (CASALI, Alexandre, em entrevista,
2010)
Sobre o figurino, outro palhaço acrescenta:
Uma pessoa mais gorda é interessante que use listras horizontais, para
tornar esse traço mais evidente, mais ridículo, pernas cumpridas?
shorts curtos, pescoço curto? camisa com golas altas” (ARAPONGA,
Marconi, em entrevista, 2010)
45
Figura 8. Marconi Araponga, 2010. Foto: João Matos
Os figurinos como a maquiagem são alguns desses elementos sensoriais que
participam da prática de remanejamento, reorientando o olhar do espectador. Contudo,
isso não pode ser dito sem ressalvas, somos motivados a recuperar uma perspectiva de
causalidade, como se essa composição visual produzisse estímulos específicos e o efeito
seria o riso da plateia. Antes tais elementos sensoriais orientam o olhar, a cor e a
experiência do olhar promovem uma experiência relacional, as listras verticais em um
corpo largo ou um rosto cumprido em comunhão com a experiência do olhar compõe o
fenômeno grotesco, risível. Cada palhaço explora sua fisionomia buscando uma
expressão ridícula, há um universo comum nessa “caracterização”, mas a maneira como
cada um distribui as paletas das cores brancas, pretas e vermelhas são particularizadas.
É importante considerar que, ao utilizar a metáfora do olhar, não se trata de uma
experiência que exclui outros sentidos, todo olhar é uma experiência de sinestesia, há
uma solidariedade dos sentidos. Como propõe Rembrant, pintor holandês do século
XVII : “o vermelho é denso, em comparação com o amarelo ele seria um sólido, somos
capazes de tocar, o amarelo tem movimento, tem cheiro”.
Dessa maneira, uma exploração pela teoria da sensibilidade permite investigar a
dimensão sensível da produção do corpo cômico, aspecto que permaneceria omitido por
46
uma exploração via a concepção clássica de Bergson. Nesse processo, na montagem dos
palhaços, é possível observar, ao mesmo tempo, uma experiência de objetivação e
subjetivação através do corpo. Ao pintar o corpo, ele se torna superfície por meio da
qual é possível descobrir e sigo contornos próprios (temos um corpo), ao mesmo tempo,
esse ato revela a comicidade no próprio palhaço (somos um corpo).
Nestes termos, proponho compreender a produção do risível através desse
circuito multireceptivo em que transpassa espectador, artista em um espaço que
performa juntamente a dinâmica artista e espectador, os elementos desse circuito
(figurino, maquilagem, iluminação, cenário, sonoplastia, etc) são, ao mesmo tempo,
difíceis de precisar em totalidade como também são variáveis de um espetáculo a outro.
Esse circuito é participante dessa disposição palco/plateia, ou seja, há a condição da
arquitetura dos espaços encenados e uma investigação sobre estes faz aparecer o que se
poderia chamar de ecologia da recepção. Os espetáculos ocorrem em espaço cênico no
sentido também de uma materialidade: teatro, praça, circo, hospital. Cada um desses
espaços solicita uma forma particular na ocorrência do circuito multireceptivo do
espetáculo. Caso seja tomado, por exemplo, a construção do teatro Epidauros, na
Grécia, com capacidade para 6.200 pessoas, onde havia ao mesmo tempo uma
preocupação na disposição dos elementos cênicos, pois já continha palco (skene),
proscênio (proskenio), corredores de acesso (paradoi), orquestra (orchestra) e fundo de
cena (thyromata) e a consideração da presença do público, a acústica do teatro era
perfeita, o espectador era capaz de escutar cada palavra ainda que sussurrada. O
interessante é que a escolha desses locais para atingir essa acústica perfeita levava em
conta o sentido do vento que vinha do mar em locais fora da cidade.
Em outro momento histórico, nos teatros londrinos que abrigavam o teatro de
Shakespeare e seus contemporâneos, possuía a forma octogonal, com lugares especiais
destinados à nobreza e balaustradas nas galerias frontais próximas ao palco. Essas
balaustradas eram espécies de escudos para proteger os atores do público, pois eram
espetáculos que contavam com participação ativa da plateia. Alguns historiadores
apontam que essa estrutura octogonal permitia ao público ver e ser visto, o que consistia
num importante aspecto: para os espectadores, assistir ao que se passava em cena era
tão importante quanto assistir sua própria participação, sua própria reação.
Em outras disposições, como o palco italiano (1668), há preocupação em
47
assegurar certa “docilização” na dinâmica espectador/artista. Para tanto imprimia
distância física entre palco e plateia, sendo que a reação da plateia formada por não
nobres muitas vezes deveria está de acordo com a reação dos nobres:
Se o rei risse em alto e bom tom de alguma ação mostrada em cena, o
público estava autorizado, ou talvez até “obrigado” a fazê-lo também.
Caso contrário se poderia incorrer em gafes e ferir certos princípios,
certas regras de comportamento, ofensivas ao rei. Rir de algo que o rei
não achava engraçado poderia trazer más conseqüências. (CAJAÍBA,
2010, p. 185)
Em encenações nas praças e mercados no século XVII, sem dúvida uma das
manifestações que mais declaradamente contribuíram para produção dos espetáculos
dos palhaços contemporâneos, inclusive do próprio circo, os palcos eram distribuídos
em círculo, recuperando uma característica do teatro grego. Essa disposição permite
uma atmosfera intimista, valorizando a relação palco/plateia.
Nos últimos anos, são presenciadas encenações que exploram lugares atípicos
como hospitais, manicômios, zonas de guerra, fábricas abandonadas, vagões de trem;
tais investidas possibilitam experimentação sem fim desses circuitos multireceptivos,
produzindo uma pluralidade nas configurações das ecologias receptivas. Em entrevista,
Esio Magalhães, palhaço Zabrobrim, relatou sobre sua atividade em espetáculos no
hospital:
É você e o paciente, às vezes eu me apresentei com mais um palhaço,
mas não tem como você chegar no quarto e já ir apresentando um
número. É preciso que a pessoa queira que você fique ali e é
importante que você entenda que doença ela está acometida, já
aconteceu de está com um garotinho em que ele não podia mexer os
olhos para os lados, ele não tinha visão periférica, é preciso que isso
seja levado em consideração. Não pode ser nada barulhento, tem um
outro leito ao lado. O trabalho não é realizado apenas com pacientes,
mas com médicos e enfermeiros, fazer palhaço no hospital é muito
específico, é preciso muita atenção. Geralmente são utilizados os
objetos que fazem referência a esse universo: o guarda pó, as
máscaras, estetoscópio; e inventamos nomes de doenças, sintomas,
tratamentos, coisas idiotas mesmo, como bobagerol aguda, alegricite
crônica. (MAGALHÃES, Esio, em entrevista, 2008)
48
Vale ressaltar, o fato de que existe um diálogo entre a arquitetura dos espaços e a
composição espacial de cada espetáculo, sendo essa composição espacial vinculada às
necessidades narrativas de cada apresentação, formando uma ecologia da recepção. Ao
mesmo tempo, há um componente histórico na compreensão dos espaços cênicos que,
levando sempre em consideração a dinâmica palco/plateia, não era disposta da mesma
forma, em alguns momentos reinava o paradigma da contemplação como no caso dos
teatros gregos, em outros momentos havia uma hiper estimulação como no teatro
londrino das encenações de Shakespeare ou a “docilização” completa, como é o caso do
palco italiano e, recentemente, em espaços como o hospital em que a interação é direta e
extremamente “individualizada”.
No último Encontro Internacional de Palhaços Anjos do Picadeiro (Rio de
Janeiro – 2010), em conversa com Ângela de Castro uma das palhaças brasileiras mais
renomadas, relatou-me que fora convidada para dirigir um Espetáculo de Gala,
espetáculos em que um palhaço dirige números de outros palhaços. O organizador do
encontro solicitou que ela realizasse o mesmo espetáculo que apresentou em Salvador
na edição do encontro em 2007 com palhaços distintos; além dos palhaços já
convidados, Ângela de Castro convidara palhaços iniciantes que participavam de
oficinas ministradas por ela. Na disposição dos espetáculos, os iniciantes ficariam como
pano de fundo, criando uma movimentação no palco. No Rio de Janeiro, relatou-me a
dificuldade em refazer o espetáculo, pois em Salvador trabalhara no teatro Vila Velha,
um teatro menor de formato multifuncional, ou seja, o espaço pode funcionar como um
teatro arena, semi-arena, italiano, etc. Naquela ocasião, o teatro era uma semi-arena,
com formato circular, o que auxiliava na atmosfera intimista almejada pela artista; no
Rio de Janeiro solicitaram que ela apresentasse no teatro Carlos Gomes, muito maior
que o Vila Velha, um formato mais rígido, um clássico palco italiano, logo uma
distância maior com a plateia. A preocupação da artista envolvia justamente o que busco
demonstrar: o envolvimento entre a composição espacial (palco/plateia) e as
necessidades narrativas. O espetáculo continuou sendo elogiado, mas a ressalva para
quem assistiu em Salvador foi inevitável.
A questão não é anular a figura do palhaço em seu próprio espetáculo, mas ao
mesmo tempo não parece interessante torná-la absoluta, ele é o start point do circuito.
Na leitura de Despret sobre o conceito de autoridade em Beatson, ele – o palhaço –
49
autorizaria, mas também é autorizado por seus mediadores, participa junto ao público e
toda essa “flora” que habita o espetáculo de uma ecologia da recepção.
Esse trabalho é uma exploração das consequências possíveis através de uma
teoria da sensibilidade, reinserindo essa questão na discussão do riso. Tal necessidade
decorreu da postura dialógica a qual a pesquisa se desenvolveu. Assim, com a opção de
minimizar uma postura explicativa, outros ruídos parecem vir à tona e, possivelmente
apesar do esforço para atendê-los, eles ultrapassam a esfera individual. Os
pesquisadores da área são sempre atirados a novas inquietações, efeito de um campo
ainda em construção (Estudos da Performance e Recepção) com características instáveis
e pouco consensuais, a ideia de work-in-progress parece mais uma condição ontológica
do que apenas reflexo de uma área pouco privilegiada nas Ciências Sociais.
O sentimento de inacabamento marca também as próprias questões levantadas
neste trabalho cujo esforço se orientou mais por uma pulsão inicial do que por tentativas
conclusivas, levantar questões e abrir caminhos ensaiando algumas respostas, parece
traçar de ponta a ponta esta pesquisa, alguns ruídos foram seguidos e o vislumbre de
respostas se deu em lugares pouco óbvios, apesar da realidade pesquisada está
circunscrita a Sociologia da Arte, parte da bibliografia utilizada percorre outras trilhas,
como Sociologia da Saúde, Sociologia da Ciência, Sociologia da Religião, não por uma
opção, mas porque as questões que surgiram na realidade de pesquisa se afinavam a
realidade de pesquisas em áreas distintas. Apesar desse malabarismo teórico os ruídos
não se findaram. O próximo passo deverá ser não apenas se atentar aos outros tantos
ruídos, mas atender com mais densidade os aqui apresentados e seguir esboçando
respostas, ainda que enunciadas como perguntas.
O principal achado entre tantos ruídos foi pensar o espetáculo cômico através da
comunhão palco/plateia, incluindo os mediadores que participam ativamente,
recuperando o caráter criativo deste tipo de espetáculo na re-associação entre o risível e
o sensível. Como consequência houve um distanciamento das perspectivas diegéticas
que escamoteiam o lugar da experiência vivida e o caráter processual do espetáculo,
pois as possibilidades de respostas não se reduziram aos momentos estanques das
encenações, o espetáculo foi compreendido enquanto historicidade, ou seja, retomada e
projeto.
50
Neste termos, busco, por meio da filosofia de Merleau-Ponty, uma alternativa a
concepção clássica sobre o riso de Henri Bergson; esse desvio foi realizado em atenção
aos acontecimentos que eclodiam no campo da pesquisa, mas não apenas isso, é
necessário somar a postura teórico-metodológica da pesquisadora e as técnicas de
investigação que foram empregadas nos procedimentos de coleta e análise dos dados.
Ao delinear um referencial teórico que integra situação, temporalidade, espacialidade,
alteridade para o entendimento sobre o riso, ou seja, lançando mão de uma perspectiva
com base no paradigma ecológico para a compreensão do espetáculo de palhaço, o
próprio estatuto dos sujeitos investigados se altera, distanciando-os de uma concepção
mais clássica que os posicionam como informantes. Este novo estatuto os
circunscrevem como interlocutores, em que pesquisadora e investigados são
interrogados, cada um em sua posição, sobre uma “mesma” experiência: o espetáculo.
Desse modo, o riso nesta pesquisa, não segue definição absoluta, autorreferente, não é
uma realidade outra que é sobreposta ao universo da pesquisa, mas sim tem sido
delineada através das situações de pesquisa e essa perspectiva só foi possível utilizando
um referencial teórico que levasse em consideração a experiência, reintegrando o
sensível ao risível, restabelecendo assim, a empatia, afecção, ou melhor, reintegrando o
“rir de” com o “sentir com”.
Até aqui foi apresentado o universo pelo qual a pesquisa tem percorrido; o
esforço em perseguir as contingências solicitou a criação de técnicas de pesquisa mais
inventivas, considerando que o espetáculo cômico tem sido aqui analisado não como
uma realidade distinta da experiência vivida, enquanto meta-realidade que possui em si
leis próprias de constituição, mas sim, seguindo o trilho da experiência, ele é um
complexo de relações, inclusive sendo difícil de precisar o início e o término, esses
recuos e projeções. Cabe então perguntar qual metodologia foi produzida para investigar
as respostas às contingências desse tipo de espetáculo? Já que a comicidade foi
entendida não como um mecanismo, mas algo que resulta de uma situação relacional em
que seus elementos são descortinados ao logo da experiência de um espetáculo que, por
sua vez, envolve as expectativas dos palhaços, reações do público, agência de nãohumanos, um ambiente que performa. O instrumento de coleta utilizado não é nenhuma
novidade nas Ciências Sociais, todavia, parece haver ainda um pudor em sua utilização,
o recurso audiovisual permitiu coletar e analisar os dados de modo processual e
51
produzir um ambiente dialógico de pesquisa em que os sujeitos se tornaram
interlocutores interessados no processo de investigação. Entretanto, antes da
apresentação de como ocorreu tal procedimento, serão analisados algumas experiências
de cientistas sociais que lançaram mão do recurso audiovisual em pesquisas.
52
Capítulo 3 – O jogo das lentes
3.1 As Ciências Sociais e sua caixa enigmática
Definir filme etnográfico por meio de uma estrutura monolítica recorrente em
todas as produções parece não apenas impossível, mas insensato, sobretudo quando são
ignorados os contextos de produção. Ignorar as circunstâncias em que essas produções
estão inseridas é abrir mão de uma análise dialógica que, se por sua vez não pretende
fixar substância explicativa, possibilita identificar universos paradigmáticos produzidos
nesta área das Ciências Sociais. Sobre o rótulo de filme etnográfico, ou paralelo a ele,
propostas de utilização do recurso audiovisual para fins vinculados a produção de
documento de pesquisa, enquanto técnica para coleta e análise dos dados, também se
fazem presentes. A etnografia em audiovisual trata-se de um campo permeado por
ambivalências: ao mesmo tempo em que aponta diálogo com a cinematografia, recupera
temas e necessidades internas ao campo da antropologia acadêmica, tanto em termos de
técnica de investigação quanto de produção de material didático.
As ambivalências estão também presentes na própria constituição de termos
como, filme etnográfico, antropologia visual, sociologia visual, antropologia da imagem
e do som, antropologia audio-visual, antropologia da imagem, enfim não há uma
expressão única para o desenvolvimento deste campo nas Ciências Sociais que tem se
voltado para a investigação da imagem, investigação através da imagem, seja enquanto
alternativa à etnografia clássica ou produção de técnicas de investigação.
Assim, nos parece conveniente perguntar sobre quais os interesses que orientam
a realização. Ou ainda, há um jogo entre figura e fundo entre a produção da imagem,
tanto em termos de documentação ou documentário e os interesses do realizador, vez
que
perpassam
por
temas
como
salvacionismo,
subjetividade/objetividade,
ficção/realidade, alteridade, estando eles implícitos ou explicitamente colocados no
filme. De um modo ou de outro, essas produções são frutos de contato. O modo como
cada realizador concebeu esse contato é que, sem dúvida, produz uma heterogeneidade
53
no campo do filme etnográfico. Como nos propõe Marcos Antônio Gonçalves em seu
programa da disciplina Etnografia e Imagem:
Os filmes são resultados de encontros etnográficos e de perspectivas
teóricas. Assim, o filme é uma produção etnográfica-antropológica e
não, necessariamente, um produto da ‘Antropologia visual’. Desta
forma, entendemos etnografia no seu sentido pleno, enquanto uma
forma de representação em que se apresentam perspectivas teóricas e
modos de conhecimento. O filme, assim, é uma construção do
conhecimento etnográfico ao explicitar sempre a perspectiva teórica
de seu autor e por isso não pode ser tomado enquanto um objeto
imagético isolável de uma pesquisa. Por este motivo não tratamos do
filme etnográfico enquanto um ‘gênero’ com fronteiras definidas e
pressupostos homogêneos. Tratamos, sim, de uma dimensão da
produção imagética que nos reenvia a questões crucias sobre o modo
pelo qual se produz o conhecimento na Antropologia. (GONÇALVES,
In: http://www.ppgsa.ifcs.ufrj.br/programas/etnografia-e-imagem/)
Toda produção fílmica exige do cinegrafista uma tomada de decisão: quando,
onde, por quanto tempo será filmado, as tomadas, enquadramento, posicionamento da
câmera, seleção do material, de que maneira será editado. Essas decisões estão
vinculadas a aspectos idiossincráticos, revelando fatores de gênero, geração; bem como
sujeitos a preconceitos culturais, interesses políticos e estéticos. Ou seja, um filme
etnográfico não é uma realidade isolada que carrega aspectos exclusivamente
diegéticos. Assim, a cada salto imersivo ao filme há um impulso centrífugo. Desse
modo, é possível afirmar que essas decisões estão intimamente relacionadas às
mentalidades intelectuais, às verdades acadêmicas de uma época.
O objetivo deste subcapítulo é, portanto, recuperar os pontos nodais que tem
sido discutido ao longo do século XX e início do XIX e como elas estão presentes nas
concepções fílmicas de seus realizadores. Reconhecendo desde já que não se trata,
muitas vezes, de questões exclusivas do filme etnográfico, pois elas recuperam e
contribuem para discussões centrais do campo das Ciências Sociais, ora acompanhando
estes debates, ora, como o caso de Jean Rouch, antecipando em décadas.
54
3.1.1 Robert Flaherty: o início pelo olhar de um romântico.
Apesar do crescente desenvolvimento da utilização do audiovisual e fotografia
nas Ciências Sociais, ela ainda é vista com certa indiferença por muitos cientistas
sociais. Em seus primeiros passos, é possível afirmar que era uma empreitada
“desautorizada” pelo mainstream da antropologia científica do início do século XX e
final do XIX. Um dos fatores é que muitos realizadores de filmes etnográficos não
possuíam formação na área, eram como Robert Flaherty viajantes; alguns, como ele,
cineastas amadores. Da Rin afirma que Flaherty foi persuadido por seu financiador a
levar uma câmera em seus estudos para implantação de uma ferrovia.
Por outro lado, no campo da cinematografia, essas primeiras empreitadas eram
vistas como o surgimento de um novo gênero: o documentário. John Grierson, cineasta
inglês dos anos 1930, defendeu o surgimento desse novo gênero fílmico. O gênero
estaria preocupado em representar a realidade; e Nanook of the North de Robert
Flaherty foi considerado por ele um marco.
Com a expansão do mundo europeu e a busca da compreensão e assimilação, as
empreitadas da “civilização” que objetivavam organizar o mundo pelo ponto de vista da
Europa, atira o homem europeu diante de uma diversidade de modos de vida. O início
do século XIX, sob a égide do evolucionismo, produzia o solo de entendimento entre a
civilização e os primitivos, suplantando o que anteriormente era tomado como bárbaros,
substituindo uma condição natural para uma diferença em termos de um determinismo
histórico. Os povos primitivos seriam sobreviventes de uma forma de vida extinta pela
“evolução natural” das sociedades. É neste momento, também, que o cinema, a
fotografia e a própria antropologia – ainda que pouco consolidada – “ensaiam” suas
experiências.
Contudo, foi a Primeira Guerra Mundial, com a descrença do homem europeu
sobre seus modos de vida, que cria a possibilidade de se perceber entre os povos
“primitivos”, “bárbaros”, a existência de “civilizações”. Esse entendimento é herdeiro
da filosofia romântica de Rousseau e será inspiradora para muitos intelectuais da época.
Começa a ser posto que existe uma lógica interna entre os povos chamados primitivos e
que é necessário compreendê-la a partir do ponto de vista do nativo; assim era
fundamental a longa permanência do pesquisador em seu contexto de trabalho.
55
Robert Flaherty, apesar de não possuir formação em antropologia, estava em
diálogo com essa concepção. Em 1922, realiza filme sobre os esquimós, Nanook of the
North. O trabalho foi baseado em longa permanência entre o grupo e compreende a
câmera enquanto participante no processo de observação da cultura nativa. Ele não
apenas registrava os eventos, mas também almejava refletir a perspectiva do nativo.
Realizava exibição do material filmado ao longo da produção dos esquimós e seus
comentários eram incorporados ao processo de realização do filme. Barbosa & Teodoro
da Cunha reconhecem ainda um segundo aspecto desse filme:
Outro grande mérito desse filme reside no fato de o espectador ser
levado a identificar-se com pessoas reais que pertencem a um contexto
social definido e distinto. A representação desses indivíduos é
marcada por sua luta incessante contra uma natureza hostil e pela
afirmação do homem como agente. (BARBOSA & TEODORO DA
CUNHA, 2006, p. 24- 25)
Flaherty passou um ano filmando Nanook, perseguindo seu interesse em traçar o
perfil de uma cultura por meio das ações dos indivíduos que lhe dão corpo. Seu
interesse sobre esse povo inicia-se em decorrência de uma viagem realizada em 1910,
cujo objetivo da viagem era realizar estudos preliminares para a construção de uma
ferrovia no norte do Canadá. Assim, durante seis expedições à área ocupada pelo grupo,
ele produziu uma grande quantidade de material fílmico, o que, por sua vez, era
consequência de sua perspectiva: o filme deveria surgir do material de campo. Contudo,
essas primeiras filmagens se perderam em um incêndio. Em 1920, com patrocínio de
empresa que comercializava peles, retorna e inicia novas filmagens. É nesse segundo
momento, com o aparato técnico necessário, que começa mostrar seus registros aos Inuit
(esquimós) .
O grande trunfo de Flaherty foi, ao ter escolhido concentrar-se na vida de um
esquimó e sua família, produzindo protagonista (Nanook) e antagonista (a natureza
hostil), estava partindo de um princípio muito próximo ao das ficções cinematográficas.
A prova disso foi a boa recepção que o filme teve na época. Este princípio possibilitava
desenvolver situações dramáticas e emocionalmente densas o que o diferenciava em
muito dos filmes de viagem, pautados sempre em modo descritivo. Cenas como o da
caça às morsas, da indigestão das crianças são apontadas como exemplos desse aspecto
por muitos comentaristas do filme. É lançando mão de um princípio dramático, ou ainda
um método narrativo, que Flaherty consegue manter o interesse do espectador.
56
Flaherty, apesar de querer apresentar uma “realidade”, lançava mão de diversas
reconstituições, os Inuit praticamente não caçavam mais morsas, e muitas situações
eram realizadas propositadamente em decorrência das filmagens, a verdadeira esposa de
Nanook foi substituída por uma mulher da preferência de Flaherty. Também em outros
filmes ele não se privava de realizar essas interferências:
O essencial para ele não era a real identidade de alguém, mas a sua
função no filme associada a um desempenho que infundisse
credibilidade. A mesma ambivalência pode ser notada na insistência
de Flaherty em encenar situações tradicionais que já não faziam parte
da vida da comunidade, mas que serviam ao seu propósito central de
representar idilicamente o conflito entro o homem e a natureza hostil.
(DA RIN, 2004, p. 52).
Flaherty, desse modo, inaugura uma das dicotomias mais caras ao filme
etnográfico: ficção/realidade. Sobre essa questão afirmou o próprio Flaherty:
O documentário é filmado no próprio lugar que se quer produzir, com
as pessoas do lugar. Assim, o trabalho de seleção será realizado sobre
o material documental, com a finalidade de narrar a verdade da forma
mais adequada e não dissimulando-a por trás de um elegante véu de
ficção, e quando, como corresponde ao âmbito de suas atribuições,
infunde à realidade o sentido dramático, este sentido surge mais ou
menos engenhoso. (FLAHERTY apud DA RIN, 2004, p. 51).
A abordagem de Flaherty é herdeira de uma perspectiva romântica, buscando o
entendimento da alteridade através da admiração e do enaltecimento. Os seus trabalhos
não foram reconhecidos como antropologia por parte de muitos antropólogos
acadêmicos da época, lhes faltavam objetividade.
57
3.1.2 Margaret Mead e a busca da objetividade: a câmera como um “olho espião”.
Como dito anteriormente, toda realização fílmica gira em torno de decisões por
parte do realizador. Apesar de esses aspectos idiossincráticos estarem presentes a
qualquer cinegrafista ou fotógrafo, alguns deles concebem suas produções como um
registro objetivo confiável, buscando minimizar a contaminação de suas produções por
aspectos “subjetivos” e contingenciais. Os procedimentos empregados lançam mão de
regras para minimizar a influência da presença física do realizador, os esforços giram
em torno de produzir um registro como se a câmera não estivesse presente,
minimizando qualquer rastro de um autor. A câmera deve ser análoga aos instrumentos
das ciências duras, um microscópio, objetiva, neutra, desapaixonada, distante, um olhar
de sobrevoo. Há nessa abordagem herança clara do positivismo francês, a busca de uma
ciência social vis à vis à ciência natural, concebendo que um estudo da sociedade deve
ser baseado em observações controladas a partir de um observador neutro. Desse modo,
para os realizadores que adotam essa abordagem, a realização de um filme deve apenas
produzir uma documentação, a coleta de dados da maneira mais objetiva possível. Ou
como descreve Paul Hanley:
O material registrado pode ser reorganizado subsequentemente, ao ser
exibido como evidência de suporte a uma argumentação verbal, sendo
esta argumentação tipicamente apresentada de forma inteiramente
externa (isto é, não oferecida pelos próprios protagonistas),
geralmente como trilha sonora em voice-over (voz de fundo).
Qualquer reorganização deste tipo, porém, deve ser estritamente
controlada, claramente comunicada e diretamente submetida às
necessidades do argumento verbal (HANLEY, 1999, p. 3)
A câmera, entendida com um meio de registrar uma imagem objetiva do mundo
para permitir em um segundo momento uma análise detalhada, é uma concepção cara à
antropóloga Margaret Mead em seus trabalhos sobre Bali, na primeira metade do século
XX. Fazendo uso de um dispositivo de focalização em ângulo reto, ela buscava anular
os efeitos da presença da câmera em campo, utilizando filmes de 16 mm e fotografias de
35 mm. O material só foi editado 15 anos depois, adicionando um voice over com
narração da própria antropóloga. O filme foi utilizado apenas de forma didática,
enquanto evidência visual. Há no trabalho de Mead clara preocupação com salvamento
etnográfico:
58
Seria tarefa da antropologia dar a conhecer, estudar e produzir
registros das culturas de todo o mundo antes que elas viessem a
desaparecer, e, nesse sentido, a fotografia e o cinema, considerados
em seu aspecto técnico, se configuravam como instrumentos
poderosos. (BARBOSA & TEODORO DA CUNHA, 2006, p. 30).
Mead inicia seu trabalho em conjunto com Grogory Bateson entre os anos 30 do
século passado. O objetivo de ambos era utilizar o registro visual, tanto fílmico quanto
fotográfico para apreender e compreender o éthos balinês, o modo como o balinês
incorpora uma cultura por meio de gestos e olhares, ou seja, uma investigação das
técnicas corporais, em que se percebe clara influência de Franz Boas e Marcel Mauss.
Uma das maiores contribuições ao campo do filme etnográfico foi o entendimento de
ambos realizadores de compreender a imagem, assim como texto, enquanto capaz de
produzir ideias. Contudo, é uma produção “anárquica”, polissêmica e, para ser utilizada
como
ferramenta
científica,
seria
imprescindível
um
procedimento
de
“disciplinarização”, amplamente necessário à associação da pesquisa textual:
A utilização da imagem no trabalho antropológico teria assim, de lidar
com essa polissemia, que acaba por tornar mais complexos o
movimento de ordenação epistemológica das informações obtidas em
campo e também a própria produção de conhecimento , que se faz em
várias instâncias: interação dos antropólogos com os dados (nesse
caso, imagens e observação de campo para articulações mais
abstratas) e na interação dos leitores como a ordenação e análise
apresentada pelos antropólogos. (BARBOSA & TEODORO DA
CUNHA, 2006 p. 33)
Apesar de terem trabalhados juntos, Mead e Bateson discordavam em relação ao
posicionamento da câmera no campo de pesquisa. Para a primeira, a câmera deveria ser
“um olho espião”, estática, registrando – em modo impassível – o que se passava. O
fundamental para Mead era que a câmera tivesse a menor interferência possível no
comportamento e nas atitudes das pessoas filmadas. Já Bateson desconfiava em larga
escala da eficiência desse “olho espião”. Em sua concepção, a câmera solicitaria o olho
do antropólogo que é sempre uma mirada intencional, interessada. Muitos teóricos
apontam como consequência dessa discordância a separação, ao menos do ponto de
vista profissional; o material filmado por eles foi montado anos mais tarde com a
participação apenas de Margaret Mead à frente da orientação teórica.
59
3.1.3 John Marshall e Robert Gardner: entre as polêmicas da representação do
outro.
Apesar do apelo por objetividade realizado por Mead, produções permaneceram
sendo realizadas para além do campo da Antropologia científica, John Marshall e
Robert Gardner são exemplos dessa empreitada. Sendo também alvo de críticas e
polêmicas, são dois realizadores considerados controversos na produção do filme
etnográfico.
Marshall inicia sua produção ainda na adolescência quando, acompanhado pelos
pais em uma expedição etnográfica, foi para o sul da África em 1951: sua função na
equipe era justamente o registro fílmico. Segundo Paul Hanley, nenhum deles havia
estudado antropologia, os pais de Marshall eram muito amigos de Margaret Mead e
influenciados por suas ideias orientaram Marshall a realizar um registro e não um filme.
Com esta orientação que John Marshall inicia sua produção. Realizou mais de 250 horas
de filme lançando mão de observação objetiva. As imagens foram feitas em preto-ebranco e sem trilha sonora sincronizada, característica que será modificada ao longo dos
anos.
Contudo, no final da década de 50, com a realização de The Hunters,
percebemos claramente um desvio, apesar de Marshall manter a pretensão objetivista
em seu trabalho, em termos do posicionamento da câmera, o voice over, The Hunters é
um filme, e se propõe apresentar as aventuras de um grupo de caçadores bushmen do
deserto Kalahari em uma caçada. Se por um lado é possível atribuir a mesma
característica romântica que observamos na obra de Flaherty, muitos estudiosos
parecem ser menos condescendente com John Marshall, estendendo essa mesma
situação a Robert Gardner, este sendo responsável pela montagem do filme supracitado.
As críticas dizem respeito à representação exótica do povo investigado. O argumento é
sustentado pela lógica da montagem do filme, da seleção e encadeamento das cenas,
estas parecem ter como objetivo o choque da sensibilidade ocidental:
[...] como exemplo, a cena em que o caçador chefe encontra um
arbusto com ninhos cheios de filhotes e começa a destruir os ninhos e
a matar os filhotes. A voz over explica que ele vai levar os filhotes
para casa e fazer uma sopa para seus filhos. Trata-se visualmente de
uma longa cena sem qualquer valor etnográfico claro, mas ela cria um
choque cultural que pode obscurecer os olhos ocidentais para outras
sensibilidades e refinamentos desses aborígenes caçadores. (FREIRE
MARCIUS, 2005 p. 111)
60
Outra situação bastante comentada é o abate da girafa. A caçada foi inteiramente
reconstruída, vez que a girafa já estava ferida por uma bala disparada, dias antes, pela
equipe de realizadores do filme. Marshall e os caçadores foram até o local com um jipe.
Contudo, a montagem obscurece esta situação e na sequência inicia com a retirada da
pele e o esquartejamento do animal. Para muitos comentaristas como Jay Ruby e
Marcius Freire, apontam para o pouco valor etnográfico de muitas sequências
realizadas, e por sua vez a valorização do exótico, ressaltando o valor estético em
detrimento de seu valor científico.
Anos mais tarde, Robert Gardner, desta vez como realizador de um filme,
produz Dead Birds. Gardner filmou entre os Dani, na Nova-Guiné. O filme retrata o
cotidiano da vida dos Dani através de três trajetórias: um homem, uma mulher e um
menino. O homem escolhido por Gardner possui uma função central: a de controlar, a
partir de uma torre de vigilância, a fronteira que divide sua tribo de outra em que nutre
relações pouco amistosas. Em outros momentos, este mesmo homem produz longas
faixas ornadas de conchas que serão usadas nos rituais fúnebres. A segunda trajetória, a
mulher trabalha no campo, colhendo tubérculos, arando a terra. Ela, por sua vez, não
pode tecer as faixas de conchas como o homem, pois não possui algumas falanges das
mãos. Estas são cortadas quando um parente próximo morre. Por fim, o menino
pastoreia porcos nos campos que circundam a aldeia. É seguindo essas trajetórias que
Gardner produz o fio condutor de Dead Birds. Como elemento que irá produzir a
estrutura dramática do filme, ele seleciona um aspecto da cultura dos Dani: a relação
dos sujeitos pesquisados com a morte.
Gardner também utiliza o voice over e já no início do filme anuncia o
nó dramático através da narração com voz do próprio Gardner, ele
conta o mito de criação dos Dani: [...] estes tiveram de escolher entre
ser como as cobras, trocar de pele e viver para sempre, ou ser como os
pássaros e morrer. Eles escolheram ser como os pássaros e, por isso,
devem enfrentar a morte. Todo o filme é construído como se estivesse
à espreita, pronta para assombrar na aldeia. (FREIRE, MARCIUS,
2005 p. 6)
As imagens privilegiam o uso de grandes planos e longas sequências. Toda
estrutura do filme está calcada em um jogo de momentos de suspense e momentos
fortes, como à ameaça de invasão da outra tribo, gerando uma grande expectativa. Por
fim, depois de ter preparado longamente o espectador, apresenta a batalha. The Hunters
61
e Dead Birds são tomados por muitos dos comentaristas como filmes que estão no
limite entre um filme etnográfico e narrativas dramáticas; ou seja, para eles, as duas
produções se distanciam de uma pesquisa autêntica, o que, por sua vez, constrói um véu
exótico para a mirada do outro, implodindo deste modo uma relação de alteridade.
62
3.1.4 Timothy Ash e a técnica de evento-sequência
Timothy Ash também foi colaborador de John Marshall e foi com ele que iniciou
o desenvolvimento da técnica de evento-sequência ou reportagem. Essa técnica tinha
como fundamento a ideia de que, através de um extenso trabalho de campo, os
antropólogos poderiam apreender o que é significativo para os seus sujeitos de pesquisa
em determinados eventos e isto, por sua vez, serviria para dar-lhes a orientação
necessária sobre como filmá-los. Desse modo, o material coletado asseguraria que a
representação fílmica do evento não apenas começaria e terminaria no momento certo,
mas também se estenderia para outras etapas significativas. Era fundamental para essa
técnica a inclusão de todo o material de contextualização que os sujeitos considerassem
significativos:
Essas sequências poderiam servir como filmes completos em sim
mesmas ou ser incorporadas em uma série para formar um filme mais
longo. Esta última forma exigiria algum tipo de manipulação do
material, mas, se isto fosse feito, a sequência poderia ser preservada
em arquivo na sua forma original. (HENLEY, 1999 p. 36)
Contudo, foi através da parceria com Napoleon Chagnon que Ash colocou em prática
suas ideias a partir de filmagens de sequências. Juntos, Chagnon e Ash, produziram uma
série de quarenta filmes sobre os Ianomâmi da Amazônia venezuelana. Estes filmes
também introduziram algumas inovações técnicas como a gravação, no campo, de trilha
sonora sincronizada e o uso de legendas na fase de edição. Os mais célebres desta vasta
produção são The Feast (1970), onde apresenta uma cerimônia coletiva em que dois
grupos anteriormente hostis realizam uma aliança política; The Ax Fight (1975) em que
um único evento é apresentado em três perspectivas distintas:
O copião, com uma interpretação do acontecimento feita por Chagnon
em voice-over, uma versão editada cronologicamente com um
argumento analítico vazado em termos de estrutura de clã, completada
com diagramas genealógicos, e, finalmente uma versão cujo corte
procurou maximizar o efeito de uma edição sem emendas. (Hanley,
1999 p. 37)
Timothy Ash buscou com essa técnica superar a dicotomia objetivismo e
subjetivismo nas Ciências Sociais. Para ele, a documentação deveria ser rigorosa e
objetiva; contudo, a objetividade era alcançada dentro dos termos culturalmente
63
relativos definidos pelos sujeitos investigados. Há vários tipos de problemas em torno
dessa abordagem, como observou Paul Hanley. O principal estaria em torno de a técnica
sustentar a premissa implícita de que existiria algo como um evento típico que tenha um
significado estabelecido com o qual todos os protagonistas concordem:
Mais ainda, mesmo que certos processos técnicos básicos possam,
relativamente, não apresentar problemas, o significado de eventos
sociais mais complexos, seja para os participantes, seja para o
antropólogo, está fadado à contestação em grau muito maior. (Hanley,
1999 p. 37)
Em trabalhos subsequentes, Ash mostrou-se mais crítico a respeito da
objetividade da documentação cinematográfica, dando ênfase à importância da exegese
e cooperação indígenas na realização dos seus filmes etnográficos. Passou também a se
preocupar com o valor dos filmes etnográficos como instrumento de ensino e com a
recepção que os estudantes e outras plateias ocidentais poderiam fazer das produções.
64
3.1.5 David e Judith Macdougall: do cinema observacional ao cinema intertextual
Os Macdougall e Jean Rouch, autores tratados em seguida, são realizadores que,
através da reflexividade, problematizaram de forma contundente os paradigmas
objetivistas do filme etnográfico. Como consequência, observa-se um desvio da
tendência catalogadora das diferenças para a ênfase em postura epistemológica que
assume e privilegia a troca de olhares. A concepção de que o significado é dado a priori,
solicitando, desse modo, a sua decodificação, cede terreno para o entendimento de que o
significado é antes construído a partir da interação entre os sujeitos envolvidos na
experiência da produção do conhecimento. Para os Macdougall interessa justamente
lançar mão da realização fílmica para a produção desse conhecimento que ocorre nas
interações dos envolvidos.
David e Judith Macdougall iniciam sua formação em antropologia nos Estados
Unidos, durante os anos de 1960, motivados pela busca de um modo de trabalhar com
áreas negligenciadas da vida social. No final da década de 1960, participaram de um
curso coordenado por Colin Young, na Universidade da Califórnia. O objetivo do curso
era aliar uma perspectiva do cinema direto norte americano à Antropologia clássica de
Malinowski, em que a atenção se voltava para a vida cotidiana, e é a partir daí que surge
o cinema observacional.
A questão do método para esse novo gênero era fundamental:
[...] em seus filmes, entrevistas não são bem-vindas, pois elas
privilegiariam a voz enquanto meio de objetivação de um argumento,
em detrimento da imagem, marcada pela performance, pelo ato e a
ação. Segundo essa visão, ao falar sobre como vivem, as pessoas
estariam fazendo uma racionalização da ação, e não é esse o foco das
questões que mobilizam esse tipo de cinema. O que interessa é a ação
propriamente dita, que contém a possibilidade de refletir a seu respeito
e de seu significado para os sujeitos do filme. (BARBOSA &
TEODORO, 2006, p. 41)
O objetivo dessa escola cinematográfica era mostrar os sujeitos na vida, a
performance para a câmera reivindicava afinidade com as performances cotidianas. O
cinema deveria ser utilizado como instrumento para a construção do conhecimento
antropológico. Como o processo de construção do filme se atentava para discussões de
categorias e métodos próximos aos da antropologia, a realização cinematográfica se
tornava uma possibilidade de refletir a partir e sobre questões epistemológicas.
65
Na primeira fase do trabalho dos Macdougall, marcada pela realização de duas
trilogias realizadas entre distintos povos na África, percebe-se significativa adesão ao
cinema observacional, cujo cineasta deveria desaparecer no campo, a fim de obter dos
sujeitos uma atuação próxima da vida cotidiana:
Nessa perspectiva, a familiaridade com o contexto seria responsável
por fazer a câmera desaparecer na cena e, com ela, o realizador. Esse
caminho visa a um resultado estético muito próximo dos objetivos do
cinema neo-realista, cujos filmes procuram mostrar a vida
acontecendo diante das câmeras. (Barbosa & Teodoro da Cunha,
2006, p. 42)
Apesar do excesso de racionalismo, essa característica é atenuada por uma
postura altamente reflexiva, consequência de constante reavaliação dos objetivos e
estratégias colocados nos diversos filmes. Assim, cada filme era uma tentativa de
resolver os limites epistemológicos encontrados no anterior.
A busca da ação cotidiana tem como consequência a negação da dramaticidade.
O foco não estava sobre rituais ou processos de produção da cultura material, mas sobre
situações triviais, corriqueiras que muitos não tomariam como bons objetos fílmicos.
Todavia, como aponta Paul Hanley, há uma característica fundamental na produção dos
MacDougall: a importância do envolvimento do protagonista na construção do sentido
do filme. Característica semelhante é possível reconhecer também na produção de Jean
Rouch. Os personagens nos filmes de David e Judith MacDougall são sempre pessoas
com as quais eles criaram vínculos durante a pesquisa, característica sempre explicitada
nos filmes, ainda que de forma sutil. Com isso, aos poucos, distanciam-se da ideia mais
radical de objetividade do cinema observacional, pois explicitam a presença do
realizador como participante da situação de pesquisa:
Seus filmes não oferecem a presunção da onisciência dos
documentários expositivos dirigidos pela narração, nem uma
pretensão de objetividade, marca dos documentários de observação.
Eles mostram de forma sutil a participação dos pesquisadores no
processo de construção de conhecimento sobre o outro. Esta é, aliás, a
questão central de todo o trabalho de David e Judith MacDougall: a
construção do conhecimento pela interação da realização
cinematográfica na pesquisa etnográfica. (Barbosa & Teodoro da
Cunha, 2006, p. 43)
A tendência dialógica na antropologia que se consolidará nos primeiros anos da
década de 1980 já está, de certo modo, sendo anunciada na concepção fílmica dos
66
MacDougall, como é possível perceber na fala de David MacDougall, retomada em
entrevistas e textos: “Refletir sobre a vida de alguém e suas relações com os outros é
também dela participar”. A questão portanto, deixa de ser o estabelecimento do
significado a priori para o como construir essa experiência de conhecimento
filmicamente. A reflexividade, deste modo, se expressa como estilo, pois não há como
separar a realização do filme das produções epistemológicas que acompanham esse
processo; é impossível separar a elaboração da pesquisa da própria situação fílmica.
David MacDougall estabelece relação dialógica com o texto e o filme. Em seus
artigos, desenvolve questões epistemológicas que mobilizam suas pesquisas/filmes.
Nesses artigos, forjou um conceito de “cinema intertextual” onde apresenta, como foco
do problema, a relação construída entre pesquisador/realizador e sujeitos do
documentário:
O cinema intertextual cria no espaço de realização do filme um
ambiente também privilegiado para a reflexão antropológica, pois é
pensado como o lugar do encontro, como o espaço em que
“observadores” e “observados” não estão essencialmente separados, e
em que a observação recíproca e a troca estabelecida formam o centro
sobre o qual recai o foco – intersubjetividades criando
intertextualidades. (Barbosa & Teodoro da Cunha, 2006, p. 47)
Desse modo, é possível afirmar que o cinema intertextual privilegia o encontro;
a realização fílmica é registro de um processo de conhecimento, possível apenas pelo
franco exercício da alteridade. Os MacDougall apresentam, assim, uma proposta de
superação das dicotomias no sentido de colocar a noção de representação e realidade
justapostas para inaugurar uma possível reflexão entre essas duas instâncias sempre
apresentadas em uma relação de oposição.
67
3.1.6 Filmes etnográficos feitos por mulheres
Outro paradigma se produziu através da produção de filmes etnográficos
realizados por mulheres. É possível, pois, situar esse movimento em conjunção ao
desenvolvimento do pós-colonialismo, a resistência às perspectivas masculinistas e
heteronormativas são entendidas como resistência a estruturas de poder que sustentam
visões ocidentalizantes das realidades; essa característica é fundamentalmente percebida
nas formas de representação do outro. Desse modo, perspectivas feministas e póscolonialistas desafiam o discurso hegemônico que produz verdades ocidentais ao
enfatizar a natureza construída desse discurso. Colocando em evidência o traço político
presente nas lutas contra a desigualdade de gênero.
Muitas intelectuais apontam para uma sub-representação da mulher no campo do
filme etnográfico, tanto enquanto sujeitos de investigação quanto realizadoras:
[...] there are relatively few films that emphasize women in other
cultures and that are what anthropologists have come to identify as
“ethnographic” films, those which record tribal or peasant village life,
relatively untouched by recent change. (LAMPHERE, 1977, p. 192)
Apesar disso, filmes têm sido realizados, tanto nas realidades culturais das
próprias cineastas quanto de filmes que apresentam as realidades de mulheres em outras
culturas, inclusive o encontro dessas mulheres de contextos culturais diversos. Todavia,
como aponta Luise Lamphere, há muito a ser feito:
In terms of cross-cultural material on women, two points can be made.
First, there are not nearly enough films avaible to cover the variety of
women’s role and differing cultural contexts which are usually dealt
with in anthropological courses on sex roles or women. […] Second,
we need films which provide a point of view and which translate some
of the insights of recent literature on women’ roles and status into
visual perspective. (LAMPHERE, 1977, p. 193)
68
3.1.7 Jean Rouch: o outro como sujeito em vez de objeto
Nesse último tópico será analisada a produção de Jean Rouch, com vistas a
ressaltar uma obra específica: Eu, um negro, filme produzido em 1958.
Seria plausível iniciar essa secção com algumas perguntas introdutórias,
perguntas estas que parecem ter desafiado o próprio Rouch ao longo de sua produção.
Por que não realizar antropologia através de imagens? Por que não colocar o
antropólogo na posição de observado, invertendo assim certas posturas colonialistas da
disciplina? Por que não questionar as verdades antropológicas? Por que não tomar o real
no nível da fabulação, do surreal?
Com formação em engenharia, Jean Rouch parte a trabalho para África no final
dos anos 1940, entrando em contato com uma realidade bastante heterogênea da que
chegava à França pelas etnografias clássicas. Com isso, decide seguir seus estudos em
etnologia e, desde o início, incluiu a câmera em sua estratégia de pesquisa. Todavia, a
perspectiva que acaba construindo não é de uma câmera que registra dados etnográficos,
mas a de um instrumento de comunicação com a realidade etnográfica.
Privilegiando a verdade do cinema e não a verdade no cinema, Jean Rouch acaba
por autoconstruir um personagem de si conjuntamente a construção de outros
personagens, criando a “etnoficção”. É possível salientar dois pontos fundamentais em
seu método fílmico-etnográfico. O primeiro é o que trata de fazer do objeto um sujeito,
característica fundamental de uma antropologia compartilhada; como consequência,
Rouch “dessubjetiva” o antropólogo em função de outro procedimento de subjetivação:
a “ressubjetivação da outridade”. Deste modo, o antropólogo-realizador questiona a
hierarquia estabelecida na pesquisa etnográfica.
O segundo ponto diz respeito ao compromisso dessa antropologia compartilhada
em mudar o foco de uma suposta verdade de um cientificismo inabalável para uma
verdade fílmica, em que um sentido de provisoriedade se torna fundamental. Assim, a
concepção de verdade está em sua possibilidade do que é filmado e provocado pela
câmera, valorizando a construção de uma verdade fílmica. O interessante é que Rouch,
apesar de uma formação fora da antropologia, antecede em décadas o que será
denominada antropologia pós-moderna.
69
Marcos Antônio Gonçalves, no segundo capítulo de O Real imaginado, “Ficção,
imaginação e etnografia: a propósito de Eu, um negro”, aprofunda concepções sobre
verdade e ficção. Analisando os planos do filme, Marco Antônio salienta a ambiguidade
fílmica enquanto reflexo da ambiguidade da realidade. A reconstituição narrativa dos
comentários e diálogos viabiliza à palavra imaginada a criação de verdades, pois o
mundo imaginado do outro é produzido por sua próprias falas. Na medida em que
Oumarou Granda se narra como Edward G. Robinson, ele atualiza verdades imaginadas
no modo subjuntivo, comme si fosse outro.
A narração, característica da obra de Jean Rouch, ocorre em três instâncias,
evidenciando a preocupação em criar dentro do filme um espaço de diálogo sem abrir
mão da autoria. Na primeira instância, de caráter mais descritivo, Rouch introduz o
espectador aos personagens e ao ambiente de Treichville; na segunda e terceira
instâncias inserem-se as vozes dos personagens que conduzem a narrativa e produz,
deste modo, um “texto” polifônico. Muitos comentaristas apontam para um estilo
surrealista em sua obra, em Eu, um negro, essa característica pode ser evidenciada
quando o autor traz à cena alguns diálogos entre os atores em que não correspondem à
imagem que se vê:
A sequência final do filme é um exemplo disso, nela Eddie
Constantine e Edward Robinson, em um travelling ao longo da costa
litorânea de Abdijan refletem sobre a experiência imaginária da guerra
da Indochina e sobre seus projetos futuros. Nessa sequência, imagem e
som estão em evidente descontinuidade, no entanto, integrados em
uma unidade de grande lirismo e dramaticidade, evidenciando os
dispositivos do filme enquanto linguagem, e principalmente como
processo. (BARBOSA & TEODORO DA CUNHA, 2006, p. 39)
A concepção de sinceridade para Rouch adquire outra conotação, a imaginação
revela o que está acima e além da realidade ou da ficção. Desse modo, fica perceptível
uma nova condição não apenas do fazer fílmico, mas também etnográfico. As verdades
de ambas são construídas a partir de palavras ditas pelo outro em relação com o
cineasta-antropólogo. Rouch realiza uma fusão entre antropologia e cinema, construídos
por imaginações e produtores de representações em si próprios: [...] aponta para a
dimensão do vivido, da experiência que se transmuta em imaginação de uma relação
vivida. (GONÇALVES, p. 119)
70
Nessa reflexividade radical, a verdade encenada engendra um devir-outro a
centrar um perspectivismo fundado no modo subjuntivo. Faz-se de conta que o cinema é
verdade, que o real é ficção, ou ainda, que branco é negro, que o negro é branco, que
“eu, é outro”.
A seguir será apresentado como o recurso audiovisual foi utilizado na presente
pesquisa.
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3.2 O caminho percorrido
A pesquisa Perseguindo as contingências: uma proposta metodológica para a
análise do espetáculo de palhaço desenvolvida desde 2007, na primeira fase de coleta
dos dados, realizou-se entrevistas em profundidade, utilizando recurso audiovisual com
o objetivo de recuperar trajetórias de vida. As entrevistas foram realizadas durante duas
edições do Festival Internacional de Palhaço – Anjos do Picadeiro 7 e 8 (10 de
dezembro a 16 de dezembro de 2007, Rio de Janeiro) e (24 de novembro a 7 de
dezembro de 2008, Rio de Janeiro). Esse primeiro escopo de dados, sistematizado em
texto monográfico (2010) foi importante para orientar as questões juntamente com a
bibliografia específica, e determinar elementos importantes para pensar a problemática
da pesquisa: Como o riso, o grotesco e o improviso são constituídos na arte do palhaço?
Como estão associados a espaços cênicos específicos? Como o palhaço contemporâneo
concebe esses elementos em suas ações cênicas?
Em 2010 (06 a 12 de dezembro, Rio de Janeiro), retornei ao mesmo evento. Nas
três edições, além de entrevistas em profundidade, foram realizadas observações de
espetáculos na rua, teatro, circo, observações e participações em oficinas. Foram
entrevistados novos artistas como também alguns dos que já haviam sido previamente
consultados nas edições anteriores. De posse dessas informações, a pesquisa seguiu para
sua segunda fase, o acompanhamento sistemático de alguns espetáculos. Foram
realizadas entrevistas antes e após as exibições, além dos registros das respectivas
apresentações, essas entrevistas tinham dois propósitos iniciais:
a) Identificar quais os modelos pré-fixados para um determinado espetáculo, os
tipos, os esquemas de ações, as expectativas.
b) Após a exibição, analisar que mudanças ocorreram durante a apresentação, como
os palhaços avalivam essas mudanças, como foram processadas as adaptações de
esquemas pré-fixados com o contexto atual da performance.
Ao longo da aplicação da metodologia, percebi uma alteração no próprio
procedimento da utilização da câmera na situação de pesquisa. Na primeira, fase em que
sua utilização se encerrava nas entrevistas em profundidade, havia relativa passividade
em sua utilização, foi apenas considerado o registro de áudio com a finalidade de
transcrições para análise de entrevistas. Ainda nesta primeira fase, mesmo no que diz
72
respeito ao registro das exibições e oficinas, o material coletado acabou
subaproveitado. Tal fato foi percebido apenas durante a aplicação da segunda etapa,
pois pouca coisa poderia ser respondida para a problemática da pesquisa sem um
procedimento de compartilhamento. Ou seja, a análise dos espetáculos na primeira fase
acabou estando determinada pelo esquema analítico previamente produzido, não foram
criadas estratégias de confrontação; todavia, isso é compreensível, pois se tratava de
fase exploratória em que o objetivo era o reconhecimento dos sujeitos de pesquisa e a
coleta de informações mais genéricas, questões de como aqueles artistas concebiam seus
espetáculos, como se tornaram palhaços, em que situações já apresentaram. Os
espetáculos registrados eram assistidos com intuito de familiarização com aquele estilo
de espetáculo; essa também foi a orientação nas participações de montagens e oficinas,
além do entendimento de termos específicos do mundo da palhaçaria: gags, rotinas,
cascatas, etc.
Na segunda fase, em que os registros em audiovisual passaram a ser utilizados de
forma mais sistemática, antes, durante e após as exibições, no caso de apresentações no
teatro eram realizados registros no backstage, observando todo o processo do vestir-se,
maquilar-se, aquecimento, conversas, e o acompanhamento de temporadas de
espetáculos específicos, a câmera adquiriu outro status na situação de pesquisa. Passa a
ser elemento ativo, constituindo-se, como propôs Jean Rouch, presença provocativa. Ao
final do processo, um dos interlocutores principais da pesquisa achou que deveria filmar
o espetáculo de cima do palco. Ainda não realizamos essa provável nova reviravolta na
pesquisa. O que gostaria de chamar atenção é que a utilização do registro audiovisual –
a partir dessa nova dinâmica instaurada na segunda fase da pesquisa – maximizou em
termos qualitativos a utilização desse recurso. Ao propor aos sujeitos de pesquisa essa
dinâmica de filmagem foi estabelecido um vínculo, não apenas a partir de mim em
relação a eles, mas também o inverso, pois o registro que eu realizava passou a
interessá-los ativamente como material de estudo para análise de suas performances.
Em situações como o espetáculo “Palharia, Palhaço, Palhaçaria”, que ocorria aos
sábados e domingos; durante a semana, eu encontrava com os artistas e eles utilizavam
os registros para perceberem os pontos fracos do espetáculo, os erros, os efeitos de
iluminação, o que facilitou o processo, pois através desse vínculo, pude participar de
forma sistemática das situações relacionadas a esse espetáculo e de outros. O
73
interessante é que alterações nos espetáculos, principalmente no “Palharia” que
acompanhei por duas temporadas, foram realizadas a partir dos registros; novas gags
foram construídas, elementos foram eliminados. Deste modo, os registros passaram a
ser a motivação dos encontros e foram nesses encontros que elementos fundamentais
para a pesquisa foram sendo produzidos. Em alguma medida é possível afirmar que a
pesquisa que resultou nesta dissertação foi realizada através dos registros desses
encontros, em que o outro, o objeto de investigação, adquire status de sujeito criando
seu espaço de diálogo, obviamente sem eliminar meu espaço de autoria, mas em
processo de reflexividade, onde há confrontação, ou ainda desestabilização do meu
esquema analítico prévio; outras vozes para além da minha passam a surgir, produzindo,
deste modo, um texto polifônico.
A análise dos espetáculos adquire riqueza de elementos, pois no primeiro
momento desta fase da pesquisa, onde entrevisto os artistas antes das performances,
solicitando informações sobre o que será apresentado, os registros durante as
performances passam a ser realizados dando ênfase a certos “índices”; há então um solo
que me orienta facilitando a escolha do que deve ser filmado para melhor
aproveitamento dos dados. No que corresponde ao terceiro momento da pesquisa, onde
registro o feedback, a situação em que assistimos, eu e os artistas, as gravações,
permitiu perceber os momentos de abertura em relação aos esquemas pré-estabelecidos,
as contingências e a criação de um espaço de reflexividade, não apenas minha em
relação a pesquisa, mas dos próprios interlocutores em relação ao seu saber. Desse
modo, foi construída uma leitura dialógica dos espetáculos analisados.
Dada à apresentação dos procedimentos metodológicos, apresentarei um dos
casos acompanhados – o de “Mala sem alça o palhaço sem calça” – um espetáculo de
rua com atuação de Alexandre Luis Casali, palhaço Biancorino. Selecionei a última
apresentação que ele realizou na Praça Campo Grande, Salvador-Ba, durante os sábados
do mês de junho de 2011.
74
Acompanhei Alexandre no percurso até a Praça Campo Grande, dentro do carro,
realizei a entrevista. Saímos da escola Sitorne, localizada no bairro do Rio Vermelho.
Figura 9. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix
Pesquisadora (P): Como é o seu espetáculo? Quais as ações você desenvolve?
Alexandre (A): Então, “O Mala Sem Alça” está fazendo dez anos, o espetáculo foi
construído como uma colcha de retalho declarada, dentro dessa esfera que é a
dramaturgia do palhaço em que não há direito autoral e onde o palhaço herda alguma
coisa de um mestre ou de algum palhaço que ele gosta, mas que ele não só copia, ele
transcende, se apropria desses números. Como eixo principal do meu espetáculo tem
uma “tortada”, que é uma gag que tem tanto no espetáculo do Tortel Poltrona,
Chacovacchi, Leo Bassi. Tem um mergulho no copo d’água que é uma herança do
Bicudo, que é o meu jeito de dá um mergulho no copo d’água, eu uso a gag da garrafa
de água que é do espetáculo do Xuxu, mas hoje em dia ela está mais apropriada porque
vou chegar na gag a partir de está bêbado e uso a estrutura de convocatória, meio que a
fórmula geral que é usado pelos artistas de rua ao redor no mundo. A arte de rua que
utilizo é mais parecida com aquele vendedor de remédio da praça da Piedade que ele
fala que vai pular no círculo de facão, enrola, enrola, vende remédio e só no final ele
pula, na verdade meu primeiro mestre foi ele. Minha estrutura do espetáculo foi pensada
desse jeito, anunciar algo que vou fazer, mas enrolar, enrolar para chegar nesse lugar.
Aí, como texto, foi surgindo uma necessidade de falar do próprio artista de rua porque
75
como foi um dos primeiros espetáculos desse molde aqui em Salvador, não havia uma
preparação, uma forma mais adequada do público receber esse espetáculo.
P: Essas estruturas de ações cênicas são independentes umas em relação às outras?
A: O que tem mais independência é o começo do espetáculo porque ele é uma
convocatória, o início que estou brincando com as malas, com as camisas. Agora eu
acrescentei me arrumar, para oferecer uma introdução às crianças também,
principalmente porque fui para o interior, então, eu tentei fazer aqui, estou elaborando
isso de uma forma melhor, então o mais independente mesmo é o início do espetáculo.
O resto se costura, uma coisa está levando para outra, então na sequência da
convocatória, da apresentação do que vai ser aquele lugar, aquele espetáculo, mas ainda
vou começar a introduzir o que vou fazer e para fazer preciso de tal coisa, então quando
anuncio que vou fazer um mergulho no copo d’água, eu vou precisar mostrar antes os
elementos de cena que vou utilizar, eu brinco interagindo com as pessoas. Aí quando eu
tiro os elementos de cena, como vou dar um mergulho mortal, vou precisar de alguma
coisa para amortecer a queda.
Eu brinco com as crianças, pego as crianças para
segurarem um copo com água, eu pego a garrafa de água para molhá-las. Como eu vou
morrer, eu preciso de alguém para me matar, como seria muito chocante para o público
matar um palhaço só por matar, seria uma violência gratuita, eu viro o vilão da história
que nas dramaturgias sempre se dão mal, sempre morrem, então convido dois heróis
para o espetáculo, são estruturas que são números em si, como trazer as crianças,
brincar com os rapazes que vão virar super-heróis, mas eles estão desencadeando a
própria proposta que o palhaço faz para o público de dá um mergulho no copo com
água, são independes, são estruturas, mas como estão encadeadas e tem a ver com um
número maior não dá para abandonar o espetáculo e ficar só com aquilo. Nunca
aconteceu pelo menos comigo. Eu já cortei partes, o copo, já cortei um segundo
elemento que teria que ter comigo para dá a “tortada” e o outro me dá os tiros. Já cortei
o começo, para entrar já na convocatória sem usar a pré-convocatória.
P: Quando isso geralmente acontece? Em que circunstâncias?
76
A: Por exemplo, em Palmeiras, eu apresentei na feira e tinha um som, os caras
vendendo uns “cds”, eu pedi o favor deles baixarem o som, porque pedi para eles
tirarem o som, mas eles não quiseram, eles estavam ali para vender o som deles. Então,
eu cortei todo o começo do espetáculo, cortei o pedido para que batam palmas, o
discurso sobre o palhaço; fui logo para ação, “vim aqui para fazer isso, tal coisa”, e
como percebi que eles não respondiam a interação para bater palma forte, para gritar, eu
abandonei porque isso enfraquecia, se você fica apegado a uma coisa, termina
enfraquecendo as outras coisas, porque você fica ali esperando que aquilo aconteça,
quando acontece é meio forçada, não é espontânea ou às vezes acontece de esquecer, ou
de está atrasado, dispersão, é tudo muito sensorial, a gente sente o espetáculo meio na
fibra da gente dá para perceber quando está tendo uma barriga de tempo, esticou,
geralmente são essas as circunstâncias.
P: Sobre sua expectativa em relação ao público? O que você espera dele?
A: É claro que entre o ideal da gente e a concretização dele tem um espaço aí. O lugar
do público no meu espetáculo é um lugar em que ele é o protagonista, meu espetáculo é
vulnerável porque dependo plenamente do público, da energia do público, ele é meu
parceiro de cena. Eu tento transformá-lo, o texto do espetáculo é direcionado a mostrar
que é a energia dele, a participação dele que vai dá o tom para o que a gente vai viver
naquele momento. É um ritual que está sendo feito junto. O palhaço é como o rei Midas,
só que o rei Midas tocava nas coisas e virava ouro, o palhaço ele chega perto das coisas
e elas ficam ridículas, então também tem esse lugar onde o palhaço por está interagindo
com o público está trazendo o público e tratando da dramaturgia padrão que acontece aí
que tem o herói, o vilão, tem essas coisas, pelo o público está naquele lugar junto com o
palhaço, conseguimos perceber o ridículo que tem nisso tudo, do ridículo das histórias
de herói, do ridículo que cada pessoa tem, porque quando qualquer pessoa que vem ali e
coloca aquela máscara, ou mesmo que não coloque, o fato dela fazer uma expressão
mais cênica, mais teatral, que o palhaço está propondo leva todo mundo ao lugar do que
é risível, ridículo, do que é estranho, a vergonha funciona assim como a extroversão, são
duas forças. Então, quando bem utilizadas com o público, àquele que é envergonhado
funciona tanto quanto aquele que é expansivo.
P: Como você utiliza os tipos palhaços? O Augusto, Bufão, Branco...
77
A: Olha, eu acho que a base é o augusto, o idiota mesmo, porque se trabalho a base do
idiota que é o Augusto, eu posso um dia sendo um Branco continuar sendo idiota
também, não ficar achando que o Branco é só o autoritário, o que manda, ele também
tem uma lógica besta, ele acredita que está mandando, mas é um bestalhão, então assim,
varia muito de quem está comigo, nesse espetáculo com o público, eu sou um pouco
Branco e um pouco Augusto, sou Branco das minhas malas e Augusto do público, às
vezes Branco com as crianças, isso depende um pouco da situação, de status mesmo, as
próprias pessoas na rua instauram um status para gente, o palhaço na rua por natureza
diante das pessoas, ele é um Augusto, mesmo que ele se ache o tal, ele é subjugado.
No meu caso, danço conforme a música, quando a gente está sozinho, precisamos ser
Brancos e o desafio é encontrar onde podemos ser Augustos, onde podemos ser um
paspalhão, porque aí dá um profundidade, alguém que quer fazer algo muito sério, mas
acaba melando tudo, não é uma escolha muito conceitual, as coisas acontecem sentindo,
fica diferente, por exemplo, quando estou em cena com alguém.
P: Então, essas escolhas vão além de uma maneira de maquilar-se ou vestir-se...
A: Sim, vão além de um catálogo, sou um palhaço em aberto, dependendo da música eu
tiro a roupa. Se eu precisar ser um Branco para alguém, eu sou um Branco. Eu vejo
Biancorino transitando em todos esses lugares, não é um personagem para ser Augusto,
outro para ser Branco e outro para ser Bufão. Tem um lugar em que ele está gritando e
mandando, dirigindo um espetáculo como “Palharia”, mas tem outro lugar onde ele está
carregando as malas do Super Tchezo. Chaplin não tinha nada definido, com a polícia
ele era um Augusto, mas com a criança ele era um Branco, com a garota ele era um
Augusto.
O objetivo desse capítulo é demonstrar como foi realizada a coleta de dados na
segunda etapa da pesquisa. Desse modo, seguirei com a descrição do espetáculo “Mala
sem alça um palhaço sem calça”. A partir da descrição, buscoa demonstrar como o
palhaço Biancorino não apenas apresenta o espetáculo, mas também o esforço
empreendido por ele para “formar uma roda”; com essa categoria êmica, viso a
78
demonstrar a conquista de um público, as pessoas na praça adquirem um novo status
através desse processo, elas se tornam espectadores.
O espetáculo de palhaço é formado por diversos números ou rotinas que são
estruturas dramatúrgicas relativamente encadeadas, o que possibilita ao artista atualizálas durante a exibição, ajustando, desse modo, àquela situação específica; o ajuste é
realizado como estratégia para manter o público interessado. Todavia, uma das
dificuldades encontradas no procedimento metodológico diz respeito às dificuldades
inerentes a qualquer operação de tradução: como manter a integridade cômica do
evento? Em outras palavras, é possível afirmar que estamos falando de como um
cientista social “mata” uma piada, ou sobre o malabarismo de transformar uma hora e
vinte minutos em dez páginas. Essa descrição foi realizada a partir do registro em
audiovisual do espetáculo, solicitando, desse modo, para a situação de escrita um
procedimento de textualização:
A textualização é esse conjunto de processos pelos quais o discurso (o
enunciado específico em situação de interlocução: palavras, ritos,
comportamentos...) torna-se texto (proposições autônomas e
separadas: corpus, anotações de campo, textos intermediários), a
experiência é formada em relato, os exemplos em casos significativos,
constituem-se campos de sinédoque (tomar a parte como um todo,
construir o fato social total). A textualização pode também ser
definida como a operação pela qual se opera a dissociação entre o
autor e o interlocutor, a separação entre o processo de pesquisa e os
textos que dela resultam. Em suma, trata-se desta “tomada de
distância” e deste “deslocamento” [...]: o deslocamento do enunciador,
a modificação da relação com os enunciados, o domínio do
conhecimento à distância. (KILANI, M apud AMORIM, M, 2001 p.
92-93)
79
3.2.1 Descrição do espetáculo
Alexandre Luis Casali chega à Praça Campo Grande trazendo duas malas e um
carrinho de feira contendo um amplificador, microfone e um case de violino, plugado
ao amplificador está uma parelho de mp3. A praça está cheia de pessoas sentadas, outras
passeando, vendendo coisas.
Ao passar um rapaz com o skate, ele pede por um momento o skate e realiza um
salto. Devolve o objeto, volta a organizar os materiais que trouxe e equaliza o
microfone. Ao mesmo tempo, convida as pessoas para sentarem em um determinado
local e formarem uma roda. Em seguida, passa um homem em passo firme e Biancorino
corre como se estivesse com medo. Cumprimenta o homem que faz gozação com ele.
Figura 10. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix
Retorna ao microfone:
“– Oi! Dentro de instante mala sem alça, o palhaço sem calça, quem quiser
assistir é só sentar ali, vou ficar aqui de costas para me arrumar, mas é só sentar ali”.
“– É o último dia desse espetáculo internacional, para quem não assistiu venham
ver, dentro de instantes. Vou deixar uma música aqui enquanto me arrumo”.
Inicia um cabaret jazz e Biancorino começa a se arrumar, coloca uma gravata,
fala com uma pessoa, com outra. Coloca os sapatos e acompanha a música, solfejando.
Ele volta a convidar as pessoas que estão sentadas no outro lado da praça, algumas
pessoas atravessam a praça e são aplaudidas por aquelas que já estão no local indicado
para a plateia.
80
Biancorino continua se arrumando e, ao longo disso, segue realizando algumas
gags, pousando para fotos. Ao fundo, transeuntes seguem indiferentes às ações do
palhaço, outros esboçam uma curiosidade, mas seguem caminho; outros param e
acabam por somar à plateia.
“– Calma! Calma! Já vai começar”.
“– Deixa o pessoal vim espontaneamente, eles vão perder, o último dia do
espetáculo internacional”, fala em um tom irônico.
Olha para um rapaz com o cabelo black power e assume semelhança com o
próprio cabelo. Depois sacode a cabeça de um lado para o outro e amarra apertadamente
o cabelo, esticando a face:
“– Por acaso se sua filha estiver tensa, é só afrouxar um pouquinho aqui que
relaxa”. Ele diz isso ao mesmo tempo em que afrouxa o elástico de cabelo. As pessoas
riem.
Aparece um menino passeando com um velotrol e Biancorino apita fazendo o
sinal de “fora”. Biancorino inicia sua maquilagem, pintado de branco as pálpebras e a
parte de baixo dos olhos. Nesse meio tempo, o menino do velotrol volta a aparecer e ele,
dessa vez já compartilhando com a plateia através de olhares, apita novamente. Risos no
público.
“– Papai! Papai?” Segue caminhando em direção a um homem que estava em pé,
o homem se afasta do palhaço, vira as costas. Em resposta:
“– Não é papai”. Fala Biancorino.
Ao fundo tocava uma música triste. Ele olha para a plateia e diz:
“– Essa música é de chorar, né?!”. E muda a música para um jazz.
Biancorino segue se maquiando e com isso criando algumas dificuldades, por
exemplo, onde limpar os dedos. Acaba resolvendo a situação, limpando-os nas axilas.
Segue maquilando a boca, o nariz, bochechas de vermelho.
“– Vai para o camarote de trás, é porque eu já sou feio, o pai trás para perto de
mim, a criança fica traumatizada e depois a culpa é minha”.
81
“– Obrigada por sua presença, viu?!” Puxa uma cadeira e senta aí na calçada.
Risos na plateia.
Biancorino avista um homem e abre os braços, ele faz o mesmo, se aproximam
um do outro, mas o homem desvia e ri para a plateia. Biancorino mais uma vez recorre
ao apito. O público rir. Ele retoma a maquilagem, agora contornando os lábios, olhos.
Aparece uma senhora em uma cadeira de rodas:
“– Mamãe?” Ela o saúda e senta para assisti-lo.
“– Faltam cinco minutos para começarmos, dá tempo de comprar uma pipoca,
um sorvete”.
Figura 11. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix
O palhaço vai cumprimentar uma transeunte que olha para ele e faz um sinal da
cruz.
“ – Jeito simpático de dizer “não gosto de palhaço”! É isso, não é fácil ser
palhaço”.
Novamente o menino do velotrol passa e Biancorino usa o apito, dessa vez
utilizando-o também para convidar as pessoas. Por fim, ele coloca o chapéu, o paletó e
coloca as coisas na mala.
“– Senhoras e senhores, vai começar o espetáculo. Calma, calma! Mala sem
alça, palhaço sem calça. Eu já botei minha roupa, só falta o cenário, as malas”.
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Ao meu lado um homem ri e repete tudo que Biancorino falava. O palhaço
começa a colocar as malas. Molha um dedo com saliva e aponta para cima.
“– Você pode me emprestar a sua língua?” A piada parece não ter surtido muito
efeito na plateia e acaba por desistir de continuar a piada: “– Deixa para lá”.
Ele caminha uns quatro passos e coloca a mala em pé, caminhando mais quatro
para direção oposta, deixa a outra mala, mas, ao começar a caminhar, a primeira mala
cai. Volta para levantá-la, ao se distanciar, ela cai novamente. Acaba percebendo que
ele não está conseguindo deixar nenhuma das duas malas em pé. Respira:
“– Calma, calma!” E começa a dobrar o paletó, depois de dobrado joga no chão.
A plateia ri.
Novamente Biancorino usa o recurso do apito, tentando ordenar as malas, depois
implorando para que elas fiquem em pé. Consegue posicionar uma, mas a primeira
continua caindo. Desespera-se e acaba desistindo:
“– Vou ter que continuar sem essa mala, ela é muito selvagem”. Carrega a mala,
mas ela abre derrubando todas as coisas no chão. Este é o primeiro momento que
ouvimos fortes risos na plateia:
De repente, aparecem dois rapazes fazendo cooper e Biancorino os segue por um
instante, despertando risos na plateia.
“– She is speaking English”.
“– Palhaço tem é arte”. Fala sorrindo, uma pessoa da plateia.
Biancorino começa a recolher as coisas no chão e guardar na mala:
“– Calma, calma! Vai dá tudo certo! Calma, calma, já vai começar! Calma,
Calma, Calma! Eu estou calmo!”
O chapéu cai no chão e acaba jogando todas as coisas recolhidas novamente no
chão para pegar o chapéu, neste exato momento, aparecem novamente os rapazes
fazendo cooper e ele os segue. Gerando mais risos na plateia. Volta e, usando o apito,
começa a distribuir, entre as pessoas da plateia, as camisas que estavam dentro da mala.
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Novamente aparecem os dois rapazes realizando cooper, dessa vez Biancorino
apita, fazendo uma expressão zangada. Novamente a plateia responde com risadas.
Figura 12. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix
“– Senhoras e senhores, é o seguinte, essas camisas foram capturadas nas
savanas indianas e estão em fase de adestramento, não é fácil! Vou usar o público
selvagem para acontecer um momento de interação entre as camisas que mordem e o
público que é selvagem também. Eu sei que vocês não entenderam nada, mas tá tudo
certo, vai dá tudo certo no final”. Risos da plateia.
O palhaço se posiciona à frente de uma das pessoas da plateia que está com uma
camisa em mãos e apita iniciando uma série de gestos não compreendidos pela pessoa,
assim, um garoto da plateia acabou falando para ela que os gestos eram um comando.
Biancorino o convida para ser seu tradutor:
“– Você joga para ele e ele joga para você!” Diz o menino. Aplausos e risos.
Biancorino junto ao menino segue realizando a mesma ação. Com duas camisas na mão,
acaba por errar a coordenação. A plateia ri. Por fim, uma pessoa atira a camisa e ele
realiza um malabarismo com elas. Entrega todas as blusas a mulher com a cadeira de
rodas:
“– Atenção senhoras e senhores, número dificílimo, nunca visto na televisão,
nem no cinema, ou revista em quadrinhos”. Pega umas das partes da mala quebrada e
vê, em banco da praça, um homem cochilando, o homem acorda e tenta agarrar
Biancorino que escapa correndo.
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Retorna a ação da tampa da mala com as camisas. Aproxima a mala da senhora e
com o apito comunica que as atire dentro da tampa. O palhaço pede aplausos e em
seguida deixa mala junto aos outros pertences.
Vira de frente para a plateia, bate uma palma, se agacha e sinaliza para si
próprio, solicitando aplausos, não sendo atendido:
“– Eu estou começando o meu espetáculo, eu peço uma salva de palmas, consigo
adestrar quase três dezenas de público selvagem. Estou começando e vocês batem
palma mais ou médio assim?!”. O público aplaude, mas Biancorino, dessa vez,
interrompe:
“– Agora não vale! Não adianta! É o seguinte, vou ser bem sincero, se vocês
baterem palma mais ou médio, meu espetáculo vai ser mais ou médio, se vocês baterem
palmas fraco, eu nem me garanto, felizmente ou infelizmente, o espetáculo na rua
depende da energia da gente! Eu não vou fazer esse espetáculo sozinho, o pessoal que
está lá do outro lado descansando não está nem envolvido, mas vocês? Estamos fazendo
a arte junto. Se vocês me receberem com palmas, aplausos, mãos batendo em outras
mãos... As pessoas começam a aplaudir”. Ele interrompe novamente:
“– Calma, ainda não. Vocês podem gritar, podem assobiar, comprar os picolés e
rumar tudo para cima, pegar as crianças e rumar para o alto, os homens arrancarem os
cabelos do peito e ruma no vento, as mulheres arrancam a roupa... não, não arranca a
roupa não que tem criança”. Risos na plateia.
“– As mulheres arrancam o sapato e atira na fiação elétrica, eu quero ver o
pipoco. Se vocês me receberem com essa festa, esse pode ser o melhor espetáculo que
vivenciamos juntos. É, porque televisão, cinema, novela você fica assim parado, do lado
do marido, ahñ! O cara fica no futebol, “é gol”, fica um monte de zumbi, aqui não!
Você pode se descobrir um artista, assim como eu”.
Volta-se para um homem na plateia:
“– Você pode me ajudar?”
“– Sim”.
Depois procura outro:
85
“–Você pode me ajudar?”
“– Não”.
“– Obrigada pela sinceridade, isso é para vocês verem como artista sofre”.
“– Você pode me ajudar? Tá de ressaca?”
“–Você que não tá de ressaca, fica ali do lado dele, depois ela vai dizer meu
herói”. As pessoas da plateia aplaudem, incentivando a ida do rapaz. Ao fundo, está o
garoto do velotrol parado e assistindo toda a cena. O último homem que aceitou o
convite do palhaço estava com fones de ouvido, Biancorino pega um dos fones para
escutar a música e começa dançar. Risos na plateia.
Os dois rapazes são posicionados por Biancorino um ao lado do outro:
“– Senhoras e senhores, isso aqui é o camarim, eu vou me esconder e quando eu
aparecer vocês me recebem de com força e de com festa. Vocês dois, cara de cenário,
tá?!” Olha para o horizonte, não pode rir. Guarda os dentes. Faz cara de pedra. Respira,
respira, ahhhh.
“– Uhhhhh”. Responde o primeiro homem e todos caem na gargalhada.
“– Então, quando eu entrar, vocês batem palma, assobia, joga as crianças para
cima, de com força, as águias, até os caboclos vão bater palma”. Contagem regressiva:
“– Cinco... Que contagem regressiva é essa gente, tá muito fraco, aqui não é a
cidade do carnaval? Cinco!!! Eita! Chega arrepiou a rodoviária, legal, última chance.
Cinco, quatro... Gente, isso aqui é quatro?”. O pessoal que está na escola ajuda.
Biancorino fala com os dedos marcando sete.
“– Cinco! Sete! Dois! Oito! Três! E já!” Escutam-se palmas, assobios e gritos.
“– Venham cá”. Fala com os dois rapazes que já estavam voltando para a plateia.
E segue: “– Eu mereço isso, mais vocês merecem muito mais”. Aplausos do público.
“– Senhoras e senhores, meu nome é Biancorino Bolofofo, Biancorino uma
homenagem a minha irmã Bianca e Bolofofo, eu não descobri ainda. Sei que vocês
sabem que eu sei que deve ter de tudo nessa roda. Estudante, economista, telefonista,
86
balconista,
artista,
recepcionista,
skatista,
surfista,
“vagabundista”,
crianças,
adolescentes, adultos, adúlteros, pessoa da melhor idade, tem de tudo aqui, eu não sei se
vocês repararam, mais eu sou um palhaço. E eu não sei se vocês já perceberam que os
palhaços de verdade estão em extinção, extinção significa está quase acabando. Porque
gente que se veste de palhaço tem um monte, gente que faz papel de palhaço tem um
monte, gente que xinga as pessoas tem um monte, gente que usa o palhaço para vender
as coisas tem um monte, agora palhaço, da arte da graça, com público, na praça, é muito
raro, mas o que é mais raro que um palhaço, é ter um monte de gente sem ter o que fazer
assistindo um”. Risos na plateia. Biancorino segue: “– Então, eu já saio lucrando
entendeu? Como para o palhaço não adianta lucrar sozinho, só vale a pena quando sou
eu e vocês juntos, eu irei fazer aqui um número extraordinário!”.
Figura 13. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix
O público aplaude, porém Biancorino interrompe:
“– O texto não é esse, ensaiamos a semana passada, e desde o dia 14 estamos
ensaiando. Quando eu falar vocês respondem: ohhhh!”
Biancorino segue:
“– Senhoras e senhores, farei um número extraordinário”.
“– Ohhhhh!”
“– Dos antigos palhaços do mundo!”
“– Ohhhh!”
87
“– Vou levar uma “tortada” na cara, mas antes eu vou dá um mergulho mortal”.
“– Ohhhhhhh!”
“– E como o mergulho é mortal, eu vou plantar uma bananeira”.
“– Ohhhhhhhhh!”
“– E alguém vai ter que morrer, eu”.
“– Ohhhhhh!”
“– Gente, vocês são os artistas, quando eu falar que “alguém vai morrer eu”, tem
que interpretar as emoções, tem que fazer ohhhnnnn e virar a cabeça para o lado de lá.
Tá?”.
Biancorino:
“– O texto de vocês agora é ahn ahn. Ahn ahn ahn ahn!”. O público responde:
“– Ahn ahn ahn ahn!”
“– Mais afinado que Beethoven”.
Biancorino começa a tirar elementos de dentro da mala e a plateia responde com
ahn. Ele tira da mala blusas, shorts, camisetas, ao tirar uma calçola grande e rosa, a
plateia gargalha. Tira garrafa d’água, creme de barbear.
“– Senhoras e senhores, como eu vou dá um pulo mortal, a gerência da praça
pediu para eu trazer um sistema de segurança, mais aí eu não tinha nem um colchão ou
rede, eu vou colocar dois copos com água para amortecer a queda e vocês não verem
nenhuma cena desagradável”.
Dessa vez, Biancorino convida duas crianças para ajuda-lo:
“–Você pode me ajudar? Não? Então, vai. Quem ainda não assistiu a esse
espetáculo?”. Algumas crianças levantam a mão. Por fim, são convidados dois garotos e
o palhaço entrega um copo plástico a cada.
88
“– Vou fazer um teste com os atores”. Com o apito, dá o comando para os
meninos suspenderem o braço. Cheira as axilas dos dois meninos seguindo com a
mesma ação com as pessoas na plateia:
“– Legal! Legal! Tudo bem? Os melhores vinhos são aqueles que fermentam
mais tempo, dá licença aqui, viu?!”.
“– Ih! Ficou bêbado!” Fala um homem. Biancarino começa a caminhar
tropegamente.
Os dois garotos estão com os braços estendidos segurando os copos e
Biancorino, com uma garrafa pet cheia de água, conversa com o público e ao virar,
deixa respingar água nos meninos:
“– Assim não dá!”. Fala o palhaço de forma austera. E segue: “– Os meninos já
estão suando, atenção a todos, assim não dá”. A plateia ri bastante. Depois enche os
copos com água deixando que água transborde. Ao final pede aplausos para os dois
meninos que retornam a plateia.
Figura 14. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix
“– Senhoras e senhores, vou chamar aqui dois heróis que foram treinados por
Bruce Lee, Brandon Lee e Rita Lee, uma salva de palmas para o meu amigo Cuscuz”. E
aponta para alguém na plateia que, reticente, segue até o centro da roda.
89
“– Para ajudar o meu amigo Cuscuz, vou convidar essa pessoa ilustre, meu
amigo Tapioca!”.
A princípio, ele se nega, mas o público começa a aplaudir e chamar seu nome,
em seguida aceita. Nesse momento, chega um homem, possivelmente morador de rua e
embriagado, chamando atenção de todos. Biancorino distribui entre Cuscuz e Tapioca
máscaras e capas, tomando alguns adereços para si:
“– É o seguinte, desafio de velocidade, quem botar primeiro a roupa ganha.
Quando a gente se veste com uma fantasia, a gente deixa de ser quem a gente é, pode
fazer qualquer coisa como os super-heróis. Não se preocupe, ninguém vai reconhecer
vocês. Senhoras e senhores, como tenho menos elementos, eu vou tirar a minha roupa
para vestir essa e dá vantagem a eles, e como ninguém merece vê-los sem roupa, eles
irão vestir por cima dessa mesmo. Contagem regressiva: Cinco, quatro, três, dois, um”.
Este é possivelmente um dos momentos forte do espetáculo, pois ao palhaço se
despir, revela-se de fralda. Ouve-se vaia na plateia, o palhaço se justifica:
Figura 15. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix
“– Não é nada disso que vocês estão pensando, eu sou faixa rosa de sumô, vou
mostrar o catar da lombriga, o catar da solitária e por fim, o catar da ameba”. O público
gargalha e aplaude.
O palhaço volta aos dois homens já fantasiados de super-heróis e pede para
“bater par ou ímpar”.
“– Você ganhou? Você “quer morrer eu” ou dá a “tortada” em minha cara?”.
90
“– Dá a tortada”.
“– Então tá, você “morre eu”.
Biancorino solicita que o homem fique de frente para ele:
“– Tudo que eu fizer, você vai ter que me imitar, só que mais forte, porque você
tem que me intimidar”.
Figura 16. Foto: Daniela Félix, 2011.
“– Pan Pan Pan!” O homem bêbado interrompe o espetáculo. Biancorino o
interpela:
“– Meu filho, você vai ter que ficar quietinho se não te coloco de castigo, se
você falar por cima de mim, ninguém me entende”. Volta-se para o homem vestido de
super-herói:
“– Posição de cowboy, desembainha o revolver. Senhoras e senhores, vocês vão
conhecer o gatilho mais rápido do nordeste, olha! Agora me imita: - uia! Mais forte!
Uie!”
“– É mais forte, porra!” Interfere o homem bêbado, por várias vezes, até que o
Palhaço volta a conversar com ele, conseguindo silêncio por algum tempo.
“– Então, agora nós vamos nos desafiar”. Fala para o homem de super-herói e
solicita a função de sonoplastia para a plateia. “– Agora, você espanta o vilão: Uau!!!”
O homem bêbado volta a interferir e Biancorino resolve acrescentá-lo ao espetáculo:
91
“– Você faz, o Uau!!! Tá?!” Mas, na hora de responder, o homem bêbado se
distrai. Risos na plateia. Biancorino ignora e segue com o roteiro.
O palhaço solicita para o homem vestido de super-herói que fique com as costas
junto a suas, iniciando nova contagem regressiva. O público conta junto com o palhaço:
“– Você agora desembainha o revolver, você está com duas metralhadoras, atira,
atira e eu só desviando. Agora, você bate no meu ombro, atira no olho e assopra, mas
importante é primeiro o tiro e depois o sopro. –Ah! Ele “morreu eu” ah! Senhora e
senhores, eu estou morrendo e muitos me consideraram um palhaço sem circo, mas olha
a tenda do meu circo, a lua do meu circo, a parede do meu circo”. O público aplaude e
Biancorino pede para que o público faça a sonoplastia de tambores.
“– Agora, o mergulho mortal!” Biancorino coloca os copos com água no chão e
realiza uma parada de mão com um salto leão e para diante do segundo homem vestido
de super-herói, o homem já com a torta na mão:
“– Calma, calma!”. Diz o palhaço. “Agora, eu falo não e você fala sim!”.
“– Não”.
“– Sim”.
“– Corremos em câmera lenta, faz a câmera para o público, está se esforçando,
mas está parecendo um garçom sonâmbulo, câmera lenta são movimentos longos,
largos, lentos, fazendo careta, xingando em japonês mudo. Faz aí. Melhorou,
melhorou”. Biancorino pede a torta para o homem, que a entrega de maneira
desconfiada.
“– Senhoras e senhores, ele não está conseguindo e é por culpa de vocês. Vocês
precisam fazer aquela música de câmera lenta “banananana bananana”. O público
responde e Biancorino explica o que o outro super-herói deve fazer com a torta. O
palhaço segue com o roteiro.
“– Agora, eu tropeço e você me segura. Mas, eu quero fazer um último pedido
ao público, depois deste número, tem um último, de mágica”. O primeiro super-herói
segura o palhaço e o segundo dá a “tortada” que quase cai da sua mão.
92
Figura 17. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix.
“– Ah! Ah!”. Biancorino deita no chão com pernas e mão para cima: “– Mas,
para eu morrer, não pode ter nada na vertical”. O homem bêbado entra novamente na
cena para ajudar os heróis a baixarem os braços e as pernas do palhaço que finalmente
morre.
“– Senhoras e senhores, sei que é muito difícil para o público vim aqui brincar
com o palhaço, porque quando vem aqui, o artista principal se torna ele, uma salva de
palmas para os heróis”.
“– Vou fazer um número de mágica, esse é o momento que o artista de rua diz
que vai passar o chapéu, nessa hora, o público some como está acontecendo agora,
calma, não vou passar o chapéu, fiquem aqui para bater palma para quem merece, mas
tenho a obrigação de dizer que quando o artista passa o chapéu, ele está dando a
oportunidade de o público reconhecer o trabalho dele e perpetuar a arte na rua, a arte
popular que nasceu antes do circo e do teatro, mas é claro que o artista de rua tem que
ter criatividade para passar o chapéu; eu poderia dizer na ignorância “eu tenho filha,
tenho família, passei uma hora suando para vocês, então faça o favor, vamos contribuir
no meu chapéu”, mas isso não é de uma boa educação e o público continuaria oprimido.
Eu poderia usar da razão, todo mundo aqui sabe que na arte de rua a entrada é gratuita,
mas a saída ninguém garante. Eu prefiro usar do humor, se vocês me derem dois reais
eu volto para casa feliz da vida, se vocês me derem vinte, eu volto saltitante, mas se
vocês me derem cinquenta, trezentos e cinquenta e sete, eu volto para a casa, mas é com
vocês, é muito fácil comprar um palhaço hoje em dia. Senhoras e senhores, não vou
passar o chapéu, como eu dei tudo de mim para vocês e sei que vocês dariam tudo de
vocês para mim, eu vou passar é a mala”.
93
Foto 18. Alexandre Luis Casali, 2011. Foto: Daniela Félix
Passadas duas semanas da exibição do espetáculo, voltei a encontrar com
Alexandre. Nesse último encontro, assistimos os registros de quatro apresentações do
mesmo espetáculo, duas referente à temporada na Praça Campo Grande e as outras duas
realizadas nas cidades de Piatã e Boninal, localizadas na Chapada Diamantina-BA,
esses últimos registros são arquivos pessoais do artista. O motivo do convite de
Alexandre para assistirmos essas duas apresentações foi o fato dele ter considerado a
temporada da Praça Campo Grande uma temporada difícil, em que o esforço para a
formação da roda foi muito maior, logo gostaria de sinalizar a diferença quando a “roda
responde”. Em alguma medida, é possível considerar o “formar a roda” em termos da
realização de uma habilidade, a realização de um praticante habilidoso.
Em Da transmissão de representações à educação da atenção (2010), Tim
Ingold analisa o conceito de habilidade em distinção aos de capacidade e competência.
Sobre o primeiro, o conceito de capacidade, o antropólogo localiza um problema, ele
está profundamente imbricado “nas metáforas de recipiente e conteúdo da psicologia
humana como um conjunto de compartimentos modulares pré-constituídos ou
‘dispositivos de aquisição’, aguardando para serem preenchidos com informação
cultural na forma de representações mentais”. (INGOLD, 2010, p. 17) O conceito de
competência é para Ingold
igualmente problemático já que sugere “uma
cognoscibilidade que é desligada da ação e dos contextos de envolvimento corporal de
atores com o mundo, e que toma a forma de regras interiores ou programas capazes de
especificar, com antecedência, a resposta comportamental adequada a qualquer
situação”. (INGOLD, 2010, p.17) . Essa noção seria equivalente à abordagem do
solucionador de problemas inteligente que age a partir de um plano, formulado pela
94
“submissão de uma representação da situação existente a um determinado conjunto de
regras deliberativas” (INGOLD, 2010, p.17). Por fim, Ingold afirma:
Assim as noções de capacidade e competência são intimamente
entrelaçadas: enquanto a primeira sugere uma disposição intrínseca a
aceitar certos tipos de regras e representações, a última é inerente a
este conteúdo mental recebido. O indivíduo dotado de capacidade para
línguas pode adquirir competência em inglês; o indivíduo dotado de
capacidade para lançar/agarrar pode torna-se competente jogador de
cricket. [...] Pensar nesses termos, todavia, é tratar o desempenho tal
como o de quem fala inglês ou joga cricket, como nada mais do que a
execução mecânica, pelo corpo, de um conjunto de comandos gerados
e colocados ‘online’ pelo intelecto. (INGOLD, 2010, p. 17)
Desse modo, as noções de capacidade e competência supõem que o desempenho
inicia-se através de um plano que contêm uma especificação completa e necessita do
comportamento a seguir, localizando aí estrutura de tipo muito complexo. No que diz
respeito ao processo de implementação, se dá por meio de simplicidade mecânica. Em
distinção a essas noções, Ingold afirma a necessidade de tomar um caminho oposto:
pressupor uma estrutura simples, e até estrutura nenhuma, explicando o desempenho
como desdobramento de um processo complexo.
Gregory Bateson esclarece a
distinção:
Considerem, por exemplo, os movimentos do lenhador, ao derrubar
uma árvore com seu machado. Um modelo de processo simples e
estrutura complexa consideraria cada balanço do machado como
produto mecânico de um dispositivo computacional mental instalado
na cabeça do lenhador, destinado a calcular o melhor ângulo do
balanço e a força exata da machadada. Um modelo de processo
complexo, ao contrário, consideraria o movimento do machado como
parte do funcionamento dinâmico do sistema total de relações
constituído pela presença do homem, com seu machado, num
ambiente que inclui a árvore como foco atual de sua atenção
(BATESON apud INGOLD, 2010, p. 17)
Assim, Ingold assume uma abordagem ecológica, pensando o desempenho como uma
realização do organismo/pessoa por inteiro em um ambiente em detrimento de concebêlo como a descarga de representações na mente. O conceito de habilidade surge
justamente como caminho para sua abordagem ecológica, o “desempenhador”
competente estando vinculado à execução mecânica de um plano pré-estabelecido. Para
a ação ser colocada em andamento, não pode alterá-la ou atualizá-la à luz de novos
dados sem interromper a execução do desempenho. Distinto a essa concepção, o
95
movimento do praticante habilidoso “responde contínua e fluentemente a perturbação
do ambiente percebido. Isto é possível porque o movimento corporal do praticante é, ao
mesmo tempo, um movimento de atenção; porque ele olha, ouve e sente mesmo quando
trabalha”, (INGOLD, 2010, p.18) vez que está na harmonização dos movimentos com
uma atividade emergente em que as condições são penetradas por indeterminação, já
que nunca são exatamente as mesmas de um momento para o outro.
A análise do praticante habilidoso como uma realização do organismo/pessoa
viabiliza o entendimento de muitas metáforas utilizadas pelos interlocutores da pesquisa
como o “sentir o espetáculo na fibra da gente”, “a necessidade de um estado de escuta”,
“o palhaço é um coração sem pele”. “Formar uma roda” envolve uma relação de
afecção, a possibilidade de feixes de afecção recíproco entre artista, público, ambiente,
envolvendo uma comunhão afetiva – einfühlung –. (FAVRET-SAADA, 2005, p. 159)
As noções de habilidade e comunhão afetiva são fundamentais para se entender os
aspectos do riso, grotesco e improviso.
Em muitas entrevistas, inclusive as realizadas com Alexandre Casali, aparecem
constantemente termos como pré-convocatória, convocatória, passar o chapéu, como
também são tematizados em muitas oficinas, principalmente aquelas que tratam do
espetáculo de rua. Estes termos constituem a “meta-estrutura” do espetáculo, ou seja, é
uma estrutura que organiza os números a serem apresentados; estrutura entendida como
esquema de ação, constituindo uma dramaturgia. Os números podem ser breves
narrativas como o caso dos heróis que matarão o vilão no espetáculo “Mala sem alça um
palhaço sem calça”, como pode ser a apresentação de uma virtuose como o malabarismo
com as camisas. Em nosso último encontro, Alexandre apresentou essa “metaestrutura”:
Alexandre: No meu entender é um momento intimista, antes era eu chegando com as
malas, eu não falando com ninguém, era o meu problema com as malas, elas caindo.
Agora, eu já mudei um pouco, sou eu me arrumando, eu até chamaria isso de uma prépré-convocatória, você pode ter pré-pré-pré-pré, entendeu?! Só em eu chegar com a
mala na praça já é uma pré-convocatória. Você está mostrando que vai ter uma coisa ali,
e eu percebo cada vez que o que mais funciona é ser intimista, não dá muita bola para o
público. Quem me deu essa compreensão foi o Daniel Barckley, ele se arruma e fica lá
96
no som, parece que o som está dando problema, só se relaciona com o som, as pessoas
param ansiosas e chegam perto dele para ajudar e ele diz que esta tudo sobre o controle,
e então vai juntando gente, quando forma uma roda, o som funciona e ele que estava
sempre de costas para o público e sério, muda completamente; as pessoas aplaudem
pelo simples fato do som ter funcionado. Na pré-convocatória, a gente também começa
a apresentar as coisinhas, tem que transformar cada coisinha em um personagem, a
gente não pode tirar tudo de vez, vamos apresentar o copo, a chaleira, o café, o sapato.
Figura 19. Alexandre Luis Casali e Daniela Félix, 2011. Foto: Rose Boaretto.
Pesquisador: Então, ao você entrar na praça é uma pré-pré-convocatória, como também
você se arrumando?
A: Pois é, você percebe que eu não anunciei o espetáculo ainda? Então, diríamos que a
pré-convocatória é agora, eu virei palhaço, antes era pré-pré, antes era chamariz,
atração, eu tenho a teoria do jardineiro, eu me arrumando, eu estava plantando, as flores
brotaram é a roda, é o meu jardim, quando elas florescem em risos, brotam mais flores,
a interação é o um adubo poderoso, é botar uma terra poderosa.
P: E a convocatória quando inicia?
97
A: Quando vou anunciar o que vai acontecer, quando estou de palhaço, anunciando pelo
microfone que vai acontecer um espetáculo em instantes, chamando as pessoas, então
começa a ter uma interação maior com a plateia, o número de malabarismo com as
blusas ainda é convocatória porque não anunciei ainda o espetáculo. Tem uma técnica
na convocatória, o trunfo dela não é só fazer a convocatória, mas é fazer as pessoas
aplaudirem, por que o que multiplica público é palma e na convocatória é o momento
para agregar mais gente. Eu não fui muito feliz aqui nessas estruturas, não achei o
tempo, era sábado, 17:00 h, se fosse domingo, nesse mesmo horário estaria cheio de
gente, ruim para luz, mas é bonito lá, tem os abajures, fica iluminado. O espetáculo
começa depois que saio do “camarim”, em que digo o meu nome e o que vou fazer ali,
quer dizer, é o que eu chamaria de espetáculo porque ele se inicia desde a hora que
chego na praça.
P: E o chapéu?
A: Então, é um lugar de perpetuar essa tradição de todo o artista de rua, passar o chapéu
para criar essa educação, mas junto a isso é trazer coisas de qualidade para a rua porque
coisas sem qualidade, sem oferecer nada, tem bastante, então quando você investe em
figurino, em seu material, um espetáculo legal e coloca na rua, entra em cartaz e
estabelece um ponto, você mostra que tem arte de qualidade ali; por isso, eu acho que
tem que trazer uma elegância, uma honra como diz o Chaccovachi, você é um cavaleiro,
você tem que mostrar sua armadura mais bela para abrir os olhos das pessoas ali, você
está oferecendo arte para quem quer ver arte, ninguém pediu para você ir lá, mas
também você só convidou as pessoas, vem quem quer, quem não quer, sai na hora que
quiser, mas quando fica, você realmente ofereceu arte ali. É um dinheiro que você criou
junto. Há também uma parte técnica, porque quando você vira artista de rua, o artista
tem que ter uma criatividade e um jogo de cintura nesse momento para não reforçar o
estigma do mendigo, do pedinte, tanto com o palhaço, quanto com o artista,
principalmente o artista de rua, então, ele tem que ter uma criatividade para dá essa
ideia e abrir os olhos das pessoas no sentido de sua valorização, tudo que falo no meu
texto é de verdade, quando o público se apropria daquilo, ele se sente artista, ele está
contribuindo para que aquela arte se perpetue. É você viver da sua criatividade. Sentir,
gerar sentindo com o público, é esse o desafio que encontro na rua: como em cada obra
gerar de uma forma que o público possa fazer o espetáculo junto comigo. Esse chapéu
98
aqui em Campo Grande foi um pouco esticado, mas acho que na rua ele tem que ser
regra.
Essa “meta-estrutura” que envolve “pré-convocatorias”, “convocatória”,
“espetáculo” e a “passada de chapéu” é possível de ser reconhecida em muitos
espetáculos de rua, se constituiria em uma tática5. Todavia, elas possuem um caráter
flexível que obedecem a certo desencadeamento das ações, ou seja, o roteiro dos
números, mas também estão em diálogo com as contingências, que podem ocorrer em
decorrência da reação do público, a exemplo do espetáculo em Palmeiras, onde
Alexandre relatou ter eliminado as pré-convocatórias e parte da convocatória, ou por um
não funcionamento de um elemento em cena como ocorreu na Praça Campo Grande,
onde as camisas engancharam na mala:
Enganchou, não funcionou, joguei fora, geralmente as camisas
ficariam no chão e eu pularia em cima das camisas, cantaria, dançaria,
joguei fora uma parte ali. É isso, não tem a tecnologia, no caso a mala
está muito quebrada, ela foi quebrando e fui usando como estética.
Mas ela não está definida para a precisão que necessito no número.
Então naquele momento elas ficaram enganchadas na mala quebrada.
Era para as camisas caírem, aí eu diria “vou ter que apelar para a
violência”. Aí cantaria, dançaria e daria um pulão, cairia em cima das
camisas e as levaria já exausto, pediria palmas para daí dá o discurso
que vou dá agora. Você viu que não aconteceu uma coisa ali porque
deu um tilt, a mala selvagem enganchou as camisas. (CASALI,
Alexandre, entrevista, 2011)
Assim, podemos afirmar que a relação improviso e roteiro é antes um processo de
atualização dos esquemas que uma dicotomia; o improviso e o roteirizado estão
entrelaçados na arte do palhaço, os próprios esquemas, ao serem construídos, não
excluem a possibilidade do inesperado. Assim, interessa a este trabalho, a contingência
como dimensão constituinte da realidade. Essa contingência ocorre em articulação com
a forma, o roteiro, em um processo de conquista do artista em relação ao público; ao
mesmo tempo em que se reserva ao público um espaço na construção da própria obra,
através de participação e reações. E não só o público – recuperando o paradigma
5
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano.
99
ecológico proposto por Tim Ingold – elas, as contingências, são frutos da realização
organismo/pessoa. Há um ambiente ou uma paisagem que “atua” juntamente com o
palhaço, solicitando um movimento de atenção, o bêbado, o cachorro, a chuva e uma
imponderabilidade de “expressões” desse embodied landscapes6.
É possível ainda, em relação ao improviso, situá-lo em dois âmbitos: o primeiro,
que chamaremos de improviso constitutivo e está articulado ao próprio procedimento
dramatúrgico da arte do palhaço, seria uma característica desses roteiros, o espetáculo
possui momentos, por exemplo, de maior ou menor abertura em relação participação do
público, esse “ritmo” é uma construção prévia, está sinalizado no próprio roteiro os
momentos de improvisação, isso pode ser observado pelos comentários de Alexandre
sobre suas atuações, ora pontuando que em determinado momento “esticou” demais,
cansou o público, ora sinalizando quando foi preciso na abertura do roteiro e a retomada
do mesmo. O outro âmbito seria o improviso condicional, este é o que surge através da
“força da situação”, pela expressão de uma paisagem, e que pode colocar em risco todo
o espetáculo como também produzir o “rizível” a partir de uma interação
completamente nova. É expressão desse segundo âmbito a quebra de elementos de cena,
o cachorro que invade o espetáculo, a chuva, o bêbado, mas também a maneira como as
pessoas do público reagem em momento de número interativo. Assim, poderíamos dizer
que o primeiro, o improviso constitutivo, é o palhaço jogando o jogo; o segundo, o
improviso condicional, é o palhaço sendo jogado pelo jogo.
Contudo, a divisão nos serve enquanto procedimento epistemológico, pois em
performance esses fenômenos ocorrem muitas vezes de modo concomitantes; eles só se
tornaram tangíveis ao longo na análise dos dados. Como nos propõe Alexandre:
O espetáculo nunca sai igual, a gente improvisa para ter o espetáculo
todo de improvisação, a gente improvisa para criar uma cena, a gente
sabe por onde começar, por onde temos que passar, mas podemos
fazer a ligação entre os pontos de muitas formas, isso também é
6
[...] a paisagem é pensada como o horizonte de convergência dos corpos e organismos humanos e não-humanos
com o ambiente que os engloba, distinguindo-se de uma concepção de paisagem como "vista" ou cenário para a ação
humana. Para o autor, assim como os corpos não são formas dadas anteriormente, independentes dos seres que os
constituem geneticamente, as paisagens não são cenários pré-existentes a espera das criaturas que vão ocupá-las.
(CARVALHO, Isabel Cristina de Moura; GRUN, Mauro and AVANZI, Maria Rita, 2009, p.105 )
100
improvisação, você está fazendo escolhas dentro de você naquele
momento, mesmo que seja a escolha de seguir o roteiro. Mesmo em
um espetáculo todo marcado sempre tem improvisação. [...] Você cria
uma situação e dentro dela acontecem fenômenos, você ver o ridículo
acontecendo ali, você só vira um foco, os cachorros, os bêbados,
muitas coisas te atravessam. (CASALI, Alexandre, em entrevista,
2011)
É possível afirmar que o improviso está relacionado tanto a um modo de fazer,
um saber que remonta ao teatro de Aristófanes, ao Renascimento, à Teatralidade
circense etc. O caráter da dramaturgia considerada é o extremo oposto do objetivo
naturalista do teatro de tom realista que faz uso da quarta parede, em que separa a
plateia da cena. A interação com o público é eixo fundamental, produzindo uma
libertação das associações simbólicas, tanto para o público quanto para o próprio artista,
já que muitos dos sentidos cênicos são dados nesse campo de afecção artista/espectador.
A interpretação do palhaço é dependente do público. A proximidade e a presença
evidente da plateia, que raramente está no escuro, permitem ao palhaço um contato
direto com brincadeiras, correrias, escapadelas etc.
Por outro lado, o improviso também está relacionado a “espaços cênicos
específicos”, transcendendo o ponto de vista particular do palhaço, ou seja, quando o
jogo ultrapassa o jogador. Alguns espaços como teatro, o improviso condicional ocorre
em graus menores, justamente por serem espaços reservados, acaba diminuindo
determinados “riscos” impossíveis de serem contornados em uma praça. Contudo, isso
não quer dizer que não ocorram, mas possuem outras especificidades, por exemplo,
defeitos na aparelhagem de iluminação e sonoplastia, problemas com o cenário e ainda
aqueles que parecem ser comuns a muitos espaços, a quebra de elementos de cena, a
reação do público etc.
A ideia fundamental é que os esquemas fixos, produzidos muitas vezes em
situação de improviso nos ensaios ou recuperando outros improvisos ocorridos em uma
exibição, não são elementos radicalmente opostos às situações de improviso. Tim
Ingold afirma, em Creativity and cultural improvisation 2007 que não há script para a
vida sociocultural. As pessoas são compelidas a improvisar, não porque operam “de
dentro” de um corpo de convenções estabelecidas, mas porque nenhum sistema de
101
códigos, regras e normas pode antecipar cada circunstância possível. Improvisação e
criatividade seriam para Tim Ingold intrínsecas aos processos da vida sociocultural.
Neste sentido é que se explica a dinamicidade e a permanência ao longo do tempo da
performance. Fixar e improvisar seriam categorias inseparáveis, durante a reprodução
da performance, seriam simultaneamente inscritas em cada ato que as realizam, porém
nunca exatamente replicadas.
102
Considerações finais
Estou aqui diante de um paradoxo, pois a ideia de concluir algo que parece
anunciar os primeiros lampejos soa bastante desconfortável. De fato, trata-se de uma
pesquisa sobre o meio como essa pesquisa se tornará possível, ou seja, esse trabalho é
marcado transversalmente enquanto abertura, esboço de promessa vindoura, cartografia
de futuro. Como colocar ponto final quando é veementemente solicitada uma carreira de
reticências? Como sugere Manoel de Barros, o descomeço parece mais apropriado.
Descomeço não está em oposição ao começo, mas seu anverso, um começar de trás para
frente como viajar de trem em uma poltrona que rende as costas para o maquinista, uma
olhada para o retrovisor quando se dá a partida em um carro.
A questão de como produzir metodologia e técnicas de investigação que
possibilite uma investigação diante das “transgressividades” da experiência humana,
como produzir um arsenal metodológico que não ignore os elementos criativos e
contingencias da ação foi o foco central desta pesquisa. Contudo, o texto dissertativo se
limitou em demostrar a metodologia utilizada, uma espécie de teste da potência que as
técnicas empregadas apresentam para o tipo de problemática da pesquisa.
Apesar do foco da investigação ter se centrado nos empreendimentos de tais
técnicas, solicitou um esforço teórico para introduzir o leitor no universo da pesquisa,
desse modo, conceituar a arte do palhaço não de um ponto de vista formal, mas
considerando os procedimentos dramatúrgicos postos em ato por palhaços ao longo da
história. Inovações e transformações foram, sem dúvida, colocadas em curso por
sujeitos perseguindo a realização de seu ofício, isso pode ser claramente visto na criação
de tipos-cômicos que, apesar desse breve mapeamento, não param de surgir; contudo,
algumas características parecem perenes, como os roteiros abertos que viabilizam
improvisações em resposta a um público, um espaço, ou seja, há um processo de
atualização dessa arte que ocorre em cada apresentação. Junto a isso, o caráter
constitutivo da relação artista/plateia, o público é coparticipante dos procedimentos
cômicos. Persegui, desse modo, a indeterminação que entra em jogo na própria
construção do espetáculo.
Ao considerar tais aspectos delineadores da arte do palhaço foi necessário um
reajuste de foco no entendimento sobre o riso, ao realizar uma crítica a filosofia de
103
Henri Bergson, via fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, recuperou-se o caráter
intersubjetivo do riso, ou ainda, inter-corpóreo, já que o riso é expressão dessa
comunhão entre o artista, público, o ambiente, uma tomada ecológica no fenômeno do
espetáculo de palhaço.
Como resultado desse empreendimento surgiram, duas categorias para se pensar
o improviso, uma que recupera a indeterminação de toda e qualquer experiência humana
e a outra acepção do termo que nos lança para os procedimentos dramatúrgicos desse
tipo de espetáculo.
As técnicas empregadas se mostraram adequadas para o tipo de problemática e
não apenas isso, através de sua utilização outras questões foram suscitadas, algumas fui
capaz de apresentar e ainda, de maneira não conclusiva respondê-las, principalmente
aquelas que atentam para a necessidade de um espaço marcado pela interlocução entre
pesquisadores e sujeitos de pesquisa. Considerando o caráter reflexivo dos próprios
sujeitos em relação a suas ações, não se trata de indivíduos determinados que agem
motivados por um sistema alheio ao cotidiano de suas vidas, como também não são
senhores absolutos das consequências de suas ações. A reflexividade aqui pontuada é
fruto da existência em mundo, ou convidando Heidegger para o nosso motim
epistemológico, o ser-no-mundo está sempre em jogo na sua existência. A possibilidade
de uma investigação via diálogo contínuo com os praticantes ocorre por essa
compreensão prática, a qual deriva uma compreensão da prática.
Desse modo, a interlocução com os sujeitos de pesquisa foi fundamental para o
desenrolar da mesma, já que eram nesses encontros que apresentavam horizontes de
referências pelas quais eu deveria analisar seus espetáculos. Por outro lado, o que
capturava em vídeo muitas vezes surpreenderam os interlocutores e motivaram
alterações em seus espetáculos, participando, assim, do próprio processo de atualização
de suas encenações que antes de um produto acabado, o espetáculo parecia sempre está
em por fazer sem limites.
Por outro lado, outras questões foram suscitadas e ainda que brevemente
sinalizadas, não foi possível esboçar uma resposta plausível para questões como da
temporalidade e espacialidade, como participam dessa trama de instituições de
esquemas de ação e as atualizações dadas pelo colocar em cena. Acredito que uma
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rearticulação das aplicações das técnicas será fundamental, acompanhar um único
palhaço por um período mais extenso de tempo e em lugares diversos seria de máxima
relevância.
A temporalidade e espacialidade aqui não foram vistas como vetores ideais
cartesianos, no sentido de medições, extensões e métricas, mas vinculadas a experiência
nesse envolvimento prático com o mundo. Não é o tempo em sua acepção cronológica
ou o espaço como que pode ser medido e cede lugar a um corpo. Mas, no sentido que
toda a ação humana está regida pela temporalidade, ou seja, envolve construções
passadas que são retomadas, ao mesmo tempo que envolve perspectivas para o futuro.
Assim, toda ação se converte em reação em cadeia, desencadeando, deste modo, novas
ações. Contudo, apesar de poder considerar o início de uma ação é inerente a
imprevisibilidade de seu término. A espacialidade deste modo adquire outro estatuto,
não é um dado, no sentido de algo feito, mas é recuperação de um sentido de
localização. Mais uma vez convocando Heidegger, é uma espacialidade em termos de
direcionamento e distanciamento, no sentido que o Dasein. O ser-no-mundo abre
espaço, arruma e desarruma o espaço; a existência, desse modo, especializa.
Essas questões aparecem ainda que difusas ao longo da dissertação, contudo é
necessário um investimento futuro que lhes possibilite aprofundamento. O interessante
seria acompanhar um espetáculo desde sua construção e continuar acompanhando-o nas
mais diversas situações de apresentações. Para tanto, devo contar com os imponderáveis
da vida, encontrar esse artista que está produzindo um novo espetáculo: que a
indeterminação tome uma providência!
Por fim, acredito ter alcançado o objetivo inicial desta pesquisa que, na busca de
como investigar a improvisação nos espetáculos de palhaço, estabeleci uma técnica de
investigação que viabilizou não apenas a coleta dos dados quanto a respectiva análise de
modo reflexivo, abrindo caminho a explorar. Vale salientar que essa mesma técnica
parece relevante para outras realidades de pesquisa que veem na utilização do
audiovisual uma ferramenta para outras miradas, inclusive, em campos mais
estabelecidos nas Ciências Sociais.
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