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SISTEMAS PARA A PÁGINA NA OBRA DE MARIA LUCIA CATTANI
Paulo Silveira - UFRGS
Resumo
A partir de meados dos anos 90, Maria Lucia Cattani tem usado o seu domínio das técnicas
artísticas de impressão para a produção de livros comprometidos com outras apresentações
da sua obra, mantendo um percurso diretamente ligado à vida universitária.
Palavras-chave: Maria Lucia Cattani; livro de artista; gravura; arte brasileira contemporânea
Abstract
From mid-1990 Maria Lucia Cattani has used her mastery of artistic printing techniques to
produce books engaged with other presentations of her oeuvre, maintaining a course directly
linked to academic life.
Key-words: Maria Lucia Cattani; artist’s book; engraving; printing; contemporary Brazilian
art
O ponto de partida que gera as reflexões a seguir é a busca de estudos de caso exemplares para a pesquisa “Livro de artista e meio acadêmico: relações sistêmicas e estéticas na universidade”, em andamento no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os propósitos dessa investigação foram apresentados (ou antecipados) no encontro de 2010 da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, em Cachoeira, Bahia. Logo após o evento, o projeto foi
definitivamente cadastrado no sistema de pesquisas da UFRGS. Entre outras tarefas, trato de identificar alguns agentes de divulgação na vida universitária do tipo de
experimentação ou empreendimento em estudo, e que tenham envolvimento com
exercícios diretos ou indiretos, sistêmicos ou não, para o livro e a página, anteriores,
coetâneos ou posteriores às suas atividades letivas. Neste momento, entre as possibilidades do entorno da pesquisa, devo de imediato compreender o trabalho consistente e continuado de uma artista e professora que tem mais de 25 anos de currículo intensamente ligado ao dia-a-dia universitário.
Maria Lucia Cattani nasceu em Garibaldi, em 1958. Veio residir e completar a
sua formação em Porto Alegre, onde ainda vive, fazendo seus estudos formais no
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Instituto de Artes da UFRGS, e ocupando, mais tarde, o cargo de professora na graduação e na pós-graduação. O mestrado, o doutorado e o pós-doutorado foram feitos respectivamente no Pratt Institute (Nova Iorque), na University of Reading e na
University of the Arts London (ambas na Inglaterra), além de residências na Bélgica
e Japão. Percebe-se, portanto, a manutenção de certo rigor formativo, algo como o
cumprimento de um roteiro plástico e acadêmico. A apresentação gráfica de certos
circuitos de sua vida, perceptíveis em alguns trabalhos, dizem respeito às estações,
aos pontos geográficos de pausa, moradia, referência ou pesquisa. O trânsito ainda
hoje mantido entre sua cidade natal, na região de colonização italiana no Rio Grande
do Sul, e o barco moradia no rio Tâmisa pode ser citado como um bom descritor de
sua índole cosmopolita. Percorrendo nichos distribuídos em espaços tão largos, não
seria de se esperar que daí surgisse algum tipo de irregularidade topográfica, como
cotas? Ou quem sabe algum tipo de resumo de caráter cartográfico? Talvez quadrículas? As primeiras impressões não são infundadas. Um forte sentimento sistêmico
de ordem formal e laboral parece costurar suas obras, sobretudo o caminho que leva
a produção mais recente. Praticamente nada ali é curvo, barroco. O seu mundo é
plano e busca ser simples, por mais trabalhosa que essa simplicidade possa ser.
Uma equação, por mínima que se apresente a nós, dificilmente seria inocente. E seu
vocabulário obedece a equações planisféricas, organizadoras como as equações
devem ser.
No início efetivamente profissional de sua carreira, Cattani ampliou sensivelmente a área de ocupação do espaço gráfico, estendendo-se para além das dimensões restritas pela folha única de papel. Naquele período teria sido apontada uma
pulsão pictórica, algo como a requalificação da gravura, dessa vez por meio de um
porte mais pujante. A demonstração amplificada do gesto, a colocação em evidência
da matéria para novos limites, por vezes monumentais, e o giro e a reutilização lúdicos das matrizes a identificaram imediatamente como artista interligada a certas vertentes expressionistas características dos anos 80. Seus argumentos plásticos eram
suficientes para esse abrigo crítico. O caminho de convergência das primeiras exposições até a individual no Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 1992, confirmaria essa recepção. Sua produção passaria a ser identificada pela libertação e “expansão
do movimento de linhas abstratas”, linhas essas que antes estariam “contidas em
suas imagens de delicado e rico grafismo” (Rosa e Presser, p. 345), o que a posicio-
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naria num grande grupo de artistas de diversos estados brasileiros genericamente
identificados com a chamada “geração 80” (como aqueles da exposição homônima
de 1984, representativa, sobretudo, do eixo Rio-São Paulo), que responderia pela
“tendência de abstração expressiva, com predomínio da gestualidade e vinculandose à pesquisa de novos materiais” (Cattani, 1995, p. 117). Em Porto Alegre, por exemplo, em 1985 os nascidos entre 1954 e 1964 tiveram seu espaço (e em alguns
casos consagração) na mostra coletiva Oi tenta (do verbo tentar), na galeria Arte &
Fato (Brites, 2007, p. 148). No grupo estava Cattani, que seria selecionada para o 8º
Salão Nacional de Artes Plásticas, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Na
imagem utilizada no convite (foto de Eduardo Vieira da Cunha) é fácil reconhecê-la
entre seus companheiros: sua alegria constante está expressa no sorriso inconfundível.
A marca regional às vezes é muito saudada na gravura. No caso de Cattani, a
ligação está muito distante desse tipo de apreciação, ou o laço é muito tênue e difícil
de perceber. Não se trata de isolamento ou qualquer espécie de postura semelhante. A ausência de sabor local é uma marca prevalente também em boa parte dos
seus colegas sul-rio-grandenses da mesma geração, um grupo dominado pelo estudo acadêmico regular, alguns sustentados por estruturas intelectuais próprias do
ambiente da pós-graduação. Além disso, apesar de substancialmente ser uma gravadora, faz pesquisas também com outros procedimentos, entre eles a imagem em
movimento (sendo também curadora das mostras de vídeo experimental Vaga-lume,
parceria entre o Programa de Pós-Graduação e o Departamento de Artes Visuais
desde 2002, composto majoritariamente de trabalhos de estudantes da UFRGS,
com eventuais convidados). Enfim, pode-se dizer dos trabalhos de Cattani que eles
podem efetivamente viajar, característica que ficou mais evidenciada nas suas últimas produções.
Embora em 1987 já tivesse experimentado fazer um livro (trabalho sem título,
com gravura em metal com quatro matrizes), foi no final dos anos 90 que Cattani
começou a harmonizar a metodologia para as rotinas necessárias. Em 1998, fez sua
primeira incursão resoluta quanto aos seus princípios, 8 pages, assim mesmo, com
título em inglês como costuma batizar seus trabalhos. O resultado foi simples e – por
que não dizer? – eficaz. Trata-se de peça digitalmente impressa em jato de tinta,
com 40 cópias, com formato quase quadrado, pequena (exemplar fechado medindo
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13 x 12,5 cm; altura de capa como primeira dimensão, seguida da largura). O volume tem 16 páginas formadas por dobras, trazendo o mosaico regular (em grade) de
pequenas carimbadas quadradas (nesse caso em coloração com predomínio avermelhado, entre o sanguíneo e o terroso) que consagraram a nova fase de sua produção na época (ano da interferência, pelo recobrimento com carimbadas brancas,
das paredes também brancas do Torreão, espaço artístico extinto de Porto Alegre).
Nenhuma palavra é usada. A capa é inteiramente branca, com título não impresso,
mas gravado, calcado na superfície.
Seu segundo trabalho, Sete dias - one week era efetivamente direcionado para
essa feição, mas também se conformava em apresentação para a parede de galeria,
em folhas separadas. E assim poderiam ser entendidas, como folhas, como gravuras. Apenas assumiam a função de página se encadernadas. Duas cópias foram
produzidas em 1999, em técnica semelhante a sua produção na época, “carimbadas” sobre a superfície ou suporte, predominando a escolha de tons adjacentes muito próximos para o guache e para o papel colorido em uma mesma cor (por exemplo, guache amarelo sobre papel também amarelo, porém em tom ligeiramente mais
fechado e próprio de sua aspereza). Esse apreço pela objetificação foi acompanhado por um convite contendo um pequenino livreto em ofsete, com poucas páginas
grampeadas, que por si só merece registro, por sua apresentação oportuna e simpática.
A interlocução entre suportes e propostas de apresentação prosseguiu. Em
2003 lança Espaço de bolso, um livreto de papel, formado por dobraduras de quadrados, que, quando fechado, praticamente cabe na palma da mão. Seu original era
uma gravura única, mantendo seu estilo bastante reconhecível, o uso do carimbo
marcado com goiva. Como publicação impressa em ofsete, fácil de ser divulgada,
atingiu uma força estrategicamente mais efetiva. A tiragem chegou a 1000 cópias.
O ano de 2008 foi muito produtivo. É o período do pós-doutorado em Londres,
especialmente fértil, propício para o apuro de técnicas já experimentadas e o esforço
para novas investigações. Quatro livros são marcantes. O pequeno e delicado 22
carat, “22 quilates”, em 10 cópias, tem acabamento encadernado, com 22 páginas
de papel glassine e de seda, com folhas de ouro. Fechado mede 10,5 x 11,5 cm,
sendo acondicionado numa pequena caixa revestida de papel pardo. Não é a pre-
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sença do ouro sozinha que o aproxima de uma peça de joalheria, mas sim a companhia da sua demanda ao usuário por uma extrema delicadeza no toque. O volume
deve ser folheado com atenção, com cautela, descolando os impressos que se aderem de uma página na outra. Bem maior é Biblion-Biblios, impresso em Londres com
jato de tinta, um livro de formato grande (40 x 30 cm), como um álbum, feito em 4
cópias. É fotograficamente figurativo, o que é muito eventual em Cattani. Reproduz
em suas páginas estantes de bibliotecas em imagens de aparência solarizada e espelhadas entre páginas pares e páginas ímpares. Tem uma versão em pequeno
formato, também encadernada, quase uma cópia de bolso, feita no mesmo ano; as
páginas são de um papel mais leve, impressas em uma coloração também monocromática, ligeiramente arroxeada e lembrando uma cópia carbono. Totalmente
branco e isento de impressão é 2 lados/2 sides, uma sanfona ou concertina com 19
vincos, como que formando 20 páginas (formato fechado de 23 x 17,8 cm). Os pequenos grafismos – que quase seriam uma escrita, caso fosse possível discernir
alguma codificação para a leitura – foram recortados (vazados) a laser, também em
Londres, em 12 cópias produzidas (e duas provas).
Por último, do grupo de 2008, deve ser destacado Quadrantes/Quadrants, uma
proposta mais audaciosa e envolvente, que se concretiza por estar simultaneamente
em quatro bibliotecas. Trata-se de uma obra composta, tendo por eixo um grupo de
quatro caixas (no formato 38,5 x 33,5 x 7 cm). Cada caixa abriga um painel original
em tinta acrílica e gesso com os grafismos característicos recortados (pequenas incisões a laser transpassando a superfície, inspirados na escrita cuneiforme). O painel é individualizado, correspondente à biblioteca que o possui. É acompanhado por
três gravuras (em jato de tinta e corte a laser), correspondentes aos painéis também
originais que estão em outros três acervos universitários. Sobre as inscrições nos
painéis e gravuras, Cattani explica: “A feitura de marcas tem sido parte do meu
trabalho por muitos anos, mas neste eu queria que as marcas assumissem uma
estrutura de escrita, formando linhas” (Bodman e Sowden, 2010, p. 75).
As quatro bibliotecas pertencem ao Camberwell College of Arts, ao Chelsea
College of Art & Design e ao London College of Communication, instituições londrinas, integrantes da University of the Arts London, e ao Instituto de Artes da UFRGS,
em Porto Alegre (Biblioteca Carlos Barbosa). Como prolongamento do processo foi
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produzida uma tiragem de 100 exemplares de um livro homônimo, impresso em tipografia (com o auxílio do gravador James Edgar), num caderno com 24 páginas
mais capa e apêndice. As páginas do livro trazem quatro imagens, uma para cada
interior das quatro bibliotecas (fotos das londrinas obtidas por Cattani, e da portoalegrense, por Maristela Salvatori). O apêndice, fixado no vinco central do caderno,
é uma gravura em jato de tinta e tipografia sobreposta, dobrada em quatro, com imagens reduzidas das quatro gravuras correspondentes aos painéis do projeto maior. Cada exemplar ainda traz uma unidade dos 100 fragmentos dos quatro desenhos
preparatórios (25 de cada), colado na página ímpar seguinte a página de rosto. Trata-se, talvez, de um cordão umbilical que nunca cairá. Cattani tem intenções claras e
argumentos sem rodeios.
Meu trabalho mais recente diz respeito a encontrar uma forma de sintetizar
a dualidade gerada pelas obras em site-specific, produzir um trabalho que
envolva um elemento site-specific original e múltiplos dele, mas cujos
elementos são integrais, não havendo mais um “original" e uma “cópia”, ou
uma versão “site-specific” e uma versão “documentário”. Todos são partes
da obra em sua totalidade, apesar de nunca serem vistos juntos, apenas
“apreendidos” através de vários processos: fragmentos, texto, imagem,
publicação, livro de artista, etc. Desta forma, o trabalho pode se tornar maior
do que um lugar específico e pode incorporar vários espaços
simultaneamente. Transportado do papel para a parede, o trabalho pode
agora mover-se de um espaço para vários, unindo muitos espaços em um.
(Entrevista para Bodman e Sowden, 2010, p. 75)
O conjunto que compõe Quadrantes foi parte integrante da pesquisa “Entre
uma coisa e outra: original-múltiplo”, com financiamento da CAPES, Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível superior. Seu convívio com bibliotecas parece ter se tornado mais intenso, talvez mais instrumental e vívido do que nos frequentadores médios, geralmente desinteressados pelo lugar em si. Perguntada se
no que diz respeito ao uso do livro como suporte, mídia ou instrumento de ensino,
que ensinamentos as bibliotecas inglesas que havia visitado profissionalmente poderiam oferecer ao dia-a-dia da biblioteca da instituição onde ela leciona, Cattani reconhece que o incremento dos serviços deveria ser incentivado em nosso meio.
O fato que mais me marcou da experiência que tive com quatro bibliotecas
universitárias de Londres e com a própria British Library é que biblioteca
não é um lugar chato onde as traças têm lugar efetivo. Essas cinco bibliotecas que mais freqüentei são lugares dinâmicos, com setores relacionados à
pesquisa e à guarda do conhecimento, mas também são espaços de convívio, de exposições, seminários, palestras, etc. O livro e suas manifestações
mais diversas são trabalhados em sentido amplo. (Cattani, entrevista para
esta pesquisa, 2011)
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Duas publicações de Cattani são exemplo de um diferencial estratégico importante, a tiragem efetivamente industrial, que faz deles seus livros mais funcionais e
ao mesmo tempo os coloca entre os mais interessantes. Ambos são em ofsete colorido. Com 1000 exemplares, 4 cantos do mundo foi lançado em 2005 (mesmo ano
de sua participação na 5ª Bienal do Mercosul, com um belo trabalho mural constituído de incisões minúsculas). Externamente o livro se apresenta como uma brochura
simples, mas na verdade é todo montado com dobraduras regulares, emulando cantos (ângulos). O título e os textos do interior estão em português, inglês, islandês e
japonês, acompanhados de fotos das cidades de Porto Alegre, Devonport (Austrália), Awaji (Japão) e Reykjavik (Islândia), e de seus quatro Cantos, peças lineares de
alumínio recobertas pelos seus já tradicionais carimbos coloridos, aqui com tinta acrílica, numa extensão de 50 cm e perfil de 6,5 x 1,3 cm. Cada Canto pertence a um
acervo dessas cidades, respectivamente a Coleção Aldo Locatelli, a Galeria Regional de Davenport, o Centro Comunitário Umihira-no-sato e a Biblioteca Nacional e
Universitária da Islândia. Com uma funcionalidade particular, o livro, ao mesmo tempo em que documenta, é parte integrante e necessária para a possibilidade de compreensão de uma simultaneidade temporal estática, assim como de uma demarcação geodésica imaginária, traçada no espaço por um balizamento permanente.
O último livro lançado, Um ponto ao Sul, 2011, com tiragem de 1080 exemplares, é igualmente ambicioso. É definitivamente regional, daí sua potência internacional. Também uma brochura (15,5 x 13,7 cm), é elaborada com páginas em dobraduras, mas desta vez simples (com impressão em apenas um lado da folha de papel).
As páginas reproduzem grades retangulares (quase quadradas), com repetições ou
sobreposições de módulos formados por conjuntos de curtos traços que fazem lembrar pictogramas. Do ponto de vista da funcionalidade lexical, a possibilidade operacional parece ser remota, já que nada representam de fato. No máximo seriam pertencentes a uma linguagem improvável, que de fato não existiria. Em alguns pontos
das páginas surgem pequenas iluminuras, motivos retirados de detalhes do revestimento interno da Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul, patrimônio histórico e local da apresentação oficial do trabalho concluído. Lá está depositado o
grande livro único xilogravado que é a sua origem e referência, um volume elaborado com doze matrizes de madeira gravadas a laser, impressão em jato de tinta e
folha de ouro sobre papel japonês para caligrafia. Cada exemplar da versão em of-
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sete possui um fragmento de uma das gravuras do livro único, colado após a folha
de rosto. A edição foi financiada por bolsa da Funarte, Fundação Nacional de Artes,
proporcionando distribuição gratuita de exemplares para cada biblioteca pública das
496 cidades do estado listadas nas páginas finais. O lançamento foi realizado na
Biblioteca ainda fechada para restauração, aberta especialmente para a ocasião,
com intervenção ao piano por Celso Loureiro Chaves, que interpretou a “escrita inventada” de Cattani. “Durante a apresentação, por 6 minutos, ninguém respirou. Foi
mágico. A composição é baseada na página 5. É linda!”, ela acrescenta, satisfeita
com o resultado (e insistindo no uso de algarismos em vez de palavras).
O gosto extremado pela modulação minuciosa, acompanhado por uma matemática simples e agradável, costuma capturar com certa facilidade a amizade do
olhar espectador do plano vertical. O mesmo efeito acontece ao olhar agora “desalfabetizado”, não mais “leitor” como costumava ser, ao menos para situações estéticas específicas. Vemos espaços para o olhar cativantes em sua discrição, sejam
murais, sejam livretos. Trata-se de escalas que são, sobretudo, amáveis conosco.
Características identitárias não numerosas, situadas entre uma gramática heterodoxa e impronunciável das unidades presentes nos trabalhos de Cattani e a modulação mecanizadora e auto-impingida ao gesto, fazem companhia a outros elementos constitutivos. A expressão de quantidades é uma das constantes, não só
pictóricas. Já foi mencionado, por exemplo, o gosto por números em alguns títulos,
com frequência representados por algarismos. O sentimento lúdico também pode
estar na ideia pulsional que gerará a obra, um desafio possivelmente encarado com
bom humor. Afinal, as experiências prévias bem-sucedidas com a modulação reduzirão os riscos. A ideia deflagradora do processo será materializada centímetro por
centímetro, pela persistência no trabalho objetivo, um esforço apoiado na expectativa de uma boa resolução. O saldo da proposta de execução das grades em modulação será uma azulejaria gráfica muito particular, com os pés firmes num apuro técnico que está sempre presente. O lado bruto, mecânico da feitura em repetição não
obstruirá a apresentação delicada da obra acabada. As especulações dualistas entre
positivo e negativo, fragmento e totalidade e repetição e diferença são próprias da
gravura. Não só dela, sem dúvida, pois também pertencem a outras elaborações
humanas além da arte multiplicada. O que a delicadeza oferece aqui não é apenas o
refinamento que a mão, o método e o apuro podem proporcionar. É algo mais ambí-
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guo, porém clássico, uma vitalidade apolítica, mais fácil de ser alcançada através de
soluções espaciais geometrizantes, e auxiliada pela ausência quase absoluta de literariedade e na escassa presença de representação figurativa. Desse modo, apesar
dos muitos planos quantitativos, ficam garantidas na obra múltipla recente de Cattani
as qualidades hieráticas presentes em trabalhos mais antigos, e que ela parece
nunca ter deixado de buscar.
Referências
BODMAN, Sarah; SOWDEN, Tom (org.). A manifesto for the book. Bristol, UK: Impact
Press, 2010.
BRITES, Blanca. Breve olhar sobre os anos 80. In: GOMES, Paulo (org.). Artes plásticas no
Rio Grande do Sul: uma panorâmica. Porto Alegre: Lahtu Sensu, 2007.
CATTANI, Icleia Borsa. Identidade cultural e relações de poder: a arte contemporânea no
Rio Grande do Sul, Brasil (1980-1990). In: BULHÕES, Maria Amélia (org.). Artes plásticas
no Rio Grande do Sul: pesquisas recentes. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS;
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, 1995.
CATTANI, Maria Lucia. Entrevista para projeto de pesquisa de Paulo Antonio de M. P. da
Silveira. Recebida por correio eletrônico em 07 de maio de 2011.
ROSA, Renato; PRESSER, Decio. Dicionário de artes plásticas no Rio Grande do Sul. 2.ed.
Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2000.
Paulo Antonio de Menezes Pereira da Silveira
Mestre e doutor em História, Teoria e Crítica de Arte pelo Instituto de Artes da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, onde é professor adjunto de história da arte. Participa do
grupo de pesquisa Veículos da Arte. É membro da ANPAP e do Comitê Brasileiro de História da Arte.
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