A religião em hospitais: espaços (inter)religiosos em Porto Alegre1 [ou O(s) lugar(es) da(s) religião(ões) em um hospital] Emerson Giumbelli (UFRGS) Resumo: O texto busca refletir sobre as características dos “espaços inter-religiosos” que existem nos Hospitais Conceição e Cristo Redentor, em Porto Alegre. Diversas atividades de grupos religiosos foram observadas nesses dois espaços. Procura também analisar alguns aspectos do trabalho do Fórum Inter-Religioso do Grupo Hospitalar Conceição, incluindo a organização dos espaços para atividades religiosas nos dois hospitais mantidos pelo Grupo. Será possível ainda abordar algumas dimensões da assistência religiosa. Embora não tenham sido realizadas observações sobre a atuação dos vários grupos religiosos fora dos espaços inter-religiosos, registros sobre propósitos e atividades do Fórum podem ser utilizados para sabermos algo sobre sua concepção da assistência religiosa e o modo como pretende organizá-la. Ao final, há uma síntese dos resultados da análise empreendida, considerando alguns dados sobre outros países. Essa análise está orientada por preocupações que incidem sobre dois temas: formas de concepção e ordenação da pluralidade religiosa e definições de lugares para a religião em instituições com atribuições não religiosas, como é o caso de hospitais. Palavras-chave: pluralismo religioso, assistência religiosa, espiritualidade 1. Bem-vindos aos Espaços Inter-Religiosos do Grupo Hospitalar Conceição Uma tarde de setembro de 2011. Como está planejado para acontecer todas as terçasfeiras, ocorre uma atividade religiosa em uma das dependências do Hospital Fêmina, situado em Porto Alegre. Um pouco antes das 14h, três mulheres, vestidas com roupas brancas, as camisetas com a identificação de um centro de umbanda, chegam para preparar o local. O único objeto na parede, uma placa acima de uma mesa, assinala: “Espaço Inter-Religioso”. A mesa é coberta por uma toalha branca com referências a Iemanjá e Oxum. Sobre ela, um vaso de flores, ervas, água fluidificada, copos, balas, objetos que fazem alusão a Cosme e Damião. Também há três borrifadores, respectivamente, com álcool vegetal, perfume e álcool gel. Outro objeto é um aparelho 1 Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil. Este texto insere-se no âmbito do projeto “Presença religiosa no espaço publico no Brasil em três âmbitos”, apoiado por Bolsa de Produtividade do CNPq.Texto com elaborações destinadas a debate. Não citar sem consulta ao autor. 2 de som portátil, preparado para reproduzir músicas umbandistas e cristãs. A sala é perfumada e as três mulheres, juntas, fazem uma prece, pedindo auxílio a entidades espirituais e entoando um Pai Nosso e uma Ave Maria. Dezenas de pessoas passam pelo espaço. Algumas, sobretudo funcionários(as) do hospital – foi possível identificar enfermeiras e encarregados de serviços de limpeza – são freqüentadoras regulares dessas atividades. Outras, em geral pacientes, são atraídas pelas médiuns, que descem até o saguão do hospital para convidá-las. Para todas, oferece-se a prática conhecida como “passe”. O álcool e as ervas ajudam nas operações de “limpeza”, acompanhados por gestos e palavras das médiuns. O copo d‟água e a bala são em seguida presenteados. Por fim, um agradecimento é entoado: “Obrigada meu Deus, obrigada Jesus, por esta oportunidade, por estes mentores amigos. Que me trazem a paz, a prosperidade, a energia, a força e principalmente a saúde. Amém.” Um santinho de São Jorge é entregue no momento da saída. Algumas freqüentadoras deixam nomes de parentes para receberem os benefícios da “irradiação”, outras trazem roupas para serem energizadas. A ornamentação da mesa é desmontada e as três mulheres deixam o espaço tal como o encontraram. O Hospital Fêmina, onde ocorreram essas cenas, é parte do Grupo Hospital Conceição (GHC), em Porto Alegre, que agrega ainda os hospitais Nossa Senhora da Conceição, Criança Conceição, Cristo Redentor, e mais 12 postos de Serviço de Saúde Comunitária. Os números divulgados pelo GHC são expressivos: quase 8 mil profissionais trabalham em estruturas que abrigam quase 1500 leitos; em 2009, foram realizados 53% dos partos ocorridos em Porto Alegre, 35% das internações cobertas pelo SUS e um quarto dos atendimentos de emergência; 36 mil cirurgias, 2,2 milhões de consultas e 3,3 milhões de exames são realizados anualmente. Ainda: “Vinculada ao Ministério da Saúde, essa estrutura, reconhecida nacionalmente, forma a maior rede pública de hospitais do sul do país, com atendimento 100% SUS”.2 Entre 1959 e 1975, o empreendimento era administrado pela iniciativa privada; após uma intervenção federal, os hospitais passaram ao controle estatal. Embora seja formalmente uma sociedade de economia mista, desde 2003 todos os atendimentos são custeados com recursos públicos.3 2 Cf. http://www.ghc.com.br/default.asp?idmenu=1, acessado em 08.05.2012. 3 Para a história do GHC, baseio-me em Boldrini (2012), que recorreu a fontes escritas e entrevistas. 3 O GHC abriga três “espaços inter-religiosos”. Além daquele que fica no Hospital Fêmina, há um no Hospital Conceição e outro no Hospital Cristo Redentor. No Hospital Conceição, o espaço é uma capela católica, cuja existência remonta ao período em que era uma instituição privada, construída na década de 1960 com o nome de “Casa de Saúde Nossa Senhora da Conceição”. No Hospital Cristo Redentor, o primeiro dentre todos do GHC a ser erigido, havia também uma capela, mas ela foi demolida por ocasião de uma grande reforma iniciada em 2007. No final de 2008, um novo local para atividades religiosas foi disponibilizado, tendo as obras prosseguido até 2010. No Hospital Fêmina, que se integra aos demais apenas na década de 70, havia também um espaço para atividades religiosas, decorado com referências católicas, mas se tratava de local improvisado, no saguão do quarto andar do edifício, dentro da unidade de internação. Em 2010, as divisórias que marcavam esse local foram desmontadas e o “Espaço Inter-Religioso” foi estabelecido na sobre-loja do térreo do prédio do hospital. O espaço é bem pequeno, abriga apenas uma mesa, um armário e três poltronas, ficando ainda menor se a porta do elevador estiver aberta. Segundo a direção da instituição, trata-se de um arranjo provisório. Há planos para a construção de outro edifício para ampliação da área hospitalar e com isso o Espaço Inter-Religioso ganharia um local mais adequado.4 A gestão dos Espaços Inter-Religiosos do GHC, embora dependa formalmente das gerências administrativas dos três hospitais, é definida pelo Fórum Inter-Religioso do GHC. Por não ter existência formal, a genealogia do Fórum é narrada por seus participantes e pelos registros disponíveis sobre sua história. Suas origens remetem à diversificação da assistência religiosa, que até o final dos anos 1990 teria sido exclusivamente católica. Em 2001, visando assumir e gerenciar a nova situação, é criado um fórum ecumênico, com participantes da Igreja Católica e de igrejas evangélicas. Segundo Pires (2009), em maio de 2002, uma cerimônia da qual participaram “representantes de várias denominações religiosas”, marcou a transformação da capela do Hospital Conceição em local ecumênico, “como início de 4 As fontes para o histórico dos espaços religiosos nos três hospitais e para a sua gestão são diversas: conversas informais e entrevistas que realizei, observações de eventos efetivadas por mim ou pela bolsista que integra o projeto, documentos que me foram transmitidos por pessoas ligadas à gestão dos espaços, dados sistematizados na tese de Ranquetat Jr (2012) e, sobretudo, na dissertação de Boldrini (2012). Manifesto meus agradecimentos a esses dois pesquisadores e a bolsista, Victoria da Fonseca Pereira, assim como aos meus interlocutores no campo de pesquisa. 4 um processo que deveria ser estendido às demais unidades do Grupo”. No caso do Hospital Cristo Redentor, como sublinha Boldrini (2012), a criação de um novo espaço para atividades religiosas ocorreu vinculada a uma reforma garantida por recursos do QualiSUS, um programa do Ministério da Saúde que incentiva reestruturações nos espaços dos hospitais. Outro fator que contribui para a criação dos “Espaços Inter-Religiosos” no GHC é a atuação da Comissão Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CEPPIR), criada em 2003 e reconhecida pela direção do Grupo em uma portaria de 2005. Se esse nome remete à Secretaria Especial que existe em âmbito federal, não se trata de mera coincidência. O ano de sua criação é o mesmo, sendo revelador da sintonia existente entre a direção do GHC e o governo sob os mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). A CEPPIR expressa também a adoção de princípios democratizadores pelo GHC; daí seu vínculo com o Centro de Resultados de Participação Cidadã, por sua vez ligado à Gerência de Recursos Humanos do GHC. Segundo Honorato e Luz (s/d), a CEPPIR tem como motivação principal o combate ao “racismo institucional”, “trazendo para discussão as ações de promoção da equidade da atenção em saúde, ou seja, aplicação de Ações Afirmativas”. Um dos temas cobertos por sua atuação é a religiosidade. Em outubro de 2008, o GHC promoveu, por iniciativa da CEPPIR, o I Encontro das Religiões de Matriz Africana, que marcou o início das atividades dessas religiões no Espaço Inter-Religioso do Hospital Cristo Redentor (Ranquetat 2012: 269). Em 2010, essa participação se estendeu para os espaços congêneres do Hospital Conceição e do Hospital Fêmina. Finalmente, devemos ainda considerar, pelo GHC, e mais especificamente no âmbito do Fórum Inter-Religioso e da CEPPIR, a referência à Política Nacional de Humanização (PNH). Trata-se de um programa lançado em 2004 pelo Ministério da Saúde. Integração e democratização são palavras-chave desse programa, que pretende atuar transversalmente às estruturas que prestam atendimento vinculado ao SUS. De acordo com um dos documentos do PNH, “humanizar é (...) ofertar atendimento de qualidade articulando os avanços tecnológicos com acolhimento, com melhoria dos ambientes de cuidado e das condições de trabalho dos profissionais” (apud Boldrini 2012: 64). De fato, um dos alvos do PNH são os usuários do SUS, cuja participação nos serviços pretende ser incrementada. Ligado a isso, temos a aprovação da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, ocorrida em 2006 por meio de uma portaria do Ministério da Saúde. 5 Dois dos princípios que embasam essa carta merecem ser transcritos: “Todo cidadão tem direito a tratamento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação” e “Todo cidadão tem direito a atendimento que respeite a sua pessoa, seus valores e seus direitos”.5 Tais princípios, assim como a ideia mais geral de “humanização”, serão cruciais para entendermos os caminhos que tomam a concepção de “assistência espiritual” proposta pelo Fórum Inter-Religioso do GHC. Retomando a história que se pode traçar sobre o Fórum, é em 2007 que se torna “InterReligioso”, pois, segundo documento do grupo, “agregou instituições não cristãs como as religiões de matriz africana e outras filosofias de vida como o Seicho-no-ie”.6 Há ainda o registro de que no mesmo ano uma instituição espírita passa a atuar sistematicamente no Hospital Conceição, tanto na visita a pacientes quanto em atividades na capela.7 Atualmente, os espaços inter-religiosos têm sua ocupação definida por um cronograma semanal que estipula os grupos e seus respectivos horários de atividades. Assim, são dois os focos que identificam as principais atribuições do Fórum: organização e regulamentação da assistência religiosa e administração dos “espaços inter-religiosos” dos hospitais que formam o GHC. O Fórum é integrado por representantes de denominações que têm interesse em prestar assistência religiosa e em utilizar os espaços inter-religiosos. Estão previstas reuniões mensais entre seus integrantes. Para sua condução executiva, o Fórum conta também com uma coordenação, composta por uma dezena de pessoas: a maioria delas apontadas entre os representantes de denominações religiosas e outras indicadas pela direção do GHC. Após essa descrição, penso termos os elementos para que se declare os objetivos e o alcance deste texto. Trata-se de refletir sobre as características dos “espaços interreligiosos” que existem no GHC, mais especificamente os abrigados pelo Hospital Conceição e pelo Hospital Cristo Redentor.8 Diversas atividades de grupos religiosos foram observadas nesses dois espaços. Procurarei também analisar alguns aspectos do 5 http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1114. Acessado em 08.05.2012. 6 “Plano de Trabalho” do Fórum Inter-Religioso do GHC, que será analisado mais adiante. 7 http://domthome.com.br/materiais/1320626371Semeador_50.pdf. Acessado em 08.05.2012. 8 Deixo de fora o Hospital Fêmina por uma série de razões: o espaço interreligioso é provisório, havendo utilização de outros lugares para as atividades; ao contrário dos outros dois, nesse espaço o calendário de ocupação não está afixado em lugar visível; ele está localizado em endereço distante dos demais, os quais, por sua vez, concentram-se em algumas quadras de um bairro da zona norte de Porto Alegre. 6 trabalho do Fórum Inter-Religioso do GHC, incluindo a organização dos espaços para atividades religiosas nos dois hospitais. Será possível ainda abordar algumas dimensões da assistência religiosa. Embora não tenham sido realizadas observações sobre a atuação dos vários grupos religiosos fora dos espaços inter-religiosos, registros sobre propósitos e atividades do Fórum podem ser utilizados para sabermos algo sobre sua concepção da assistência religiosa e o modo como pretende organizá-la. Ao final, procurarei sintetizar os resultados da análise empreendida, valendo-me de alguns dados sobre outros países. Essa análise está orientada por preocupações que incidem sobre dois temas: formas de concepção e ordenação da pluralidade religiosa e definições de lugares para a religião em instituições com atribuições não religiosas, como é o caso de hospitais. Dedico a próxima seção a um detalhamento desses temas. 2. Questões de pesquisa: religião, diversidade e diferenciação A primeira questão que o universo que caracteriza minha pesquisa permite levantar tem a ver com a diversidade religiosa. Concordo com Burity (1997) sobre a possibilidade de fazer a distinção entre pluralidade e pluralismo. O primeiro termo procura designar uma situação de fato, que pode ser evidenciada através de diversos dados, no plano das instituições, das vivências e dos trânsitos. Já pluralismo envolve um reconhecimento desse fato – o que significa também uma determinada apresentação da realidade. A distinção permite trabalhar com a diversidade em sua dimensão política – por contraste com o tratamento “econômico” que as teorias do mercado religioso lhe conferem. Em outras palavras: mais do que associações necessárias ou automáticas entre diversidade religiosa e ausência de monopólio legal do campo religioso, importam os modos pelos quais a diversidade é apresentada e, sob certa perspectiva, assumida. Com essa formulação, entendo não podermos adotar a distinção entre pluralidade e pluralismo de forma rígida, mesmo que seja útil assumi-la. O paralelo com a discussão que realiza Walzer (1999) a propósito da noção de tolerância pode ser interessante. Ela permite não absolutizar a definição de tolerância forjada na Europa dos séculos XVII e XVIII, que se apresenta como a única capaz de produzir a convivência, sob um mesmo ordenamento político, entre grupos que cultivam ideais de vida distintos. Walzer chama a atenção para a existência de outros regimes de tolerância, que, apelando para outros instrumentos, produziam também alguma convivência. Sanchis (1995) sugere algo semelhante (em termos analíticos) quando caracteriza o campo religioso no Brasil 7 lançando mão da noção de sincretismo. O campo religioso no Brasil sempre se apresentou como diverso, mesmo quando havia uma Igreja oficial, até porque o próprio catolicismo assumiu muitas facetas. O que se trata de entender, então, é como se transformaram os regimes de diversidade, considerando a introdução de novos agentes no campo em diferentes períodos e cenários históricos. O predomínio de tendências mais ou menos pluralistas no campo religioso brasileiro atual é objeto do debate entre Marcelo Camurça (2006) e Antônio Flávio Pierucci (2006). Camurça destaca o reforço de uma situação de diversidade religiosa no Brasil com base em dados do Censo populacional do IBGE de 2000. Foram registradas, nos formulários do Censo, cerca de 35 mil respostas diferentes para o quesito “religião”. Elas foram depois agrupadas em 144 categorias, e assim apresentadas ao público. Camurça chama ainda atenção para modos de crença que comportam pertencimentos múltiplos e adesões flutuantes. Já Pierucci, partindo dos mesmos dados, irá enfatizar o peso cristão – católico e evangélico – no resultado das estatísticas. “Vivemos na verdade num país noventa por cento cristão (89,2%). Isso quer dizer que do alto de seus oligopólios e prerrogativas o espectro do monoteísmo ainda ronda nossos confusos destinos pesadamente [e que] nossa diversidade religiosa ainda é balbuciante” (:51). No entanto, em minha visão, o que pode aparecer nesse debate como uma oposição – de realidade ou de posicionamentos – precisa ser considerado de outra forma. Ou seja, diversidade e hegemonização são vetores que convivem, sob modos que variam, na constituição do campo religioso brasileiro e na sua interação com a sociedade. O tema do ensino religioso em escolas públicas no Brasil serve como uma ilustração interessante.9 No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, por conta do modelo adotado, um concurso público para professores de ensino religioso tomou como critério para distribuição de vagas os dados sobre afiliação religiosa. Disso resultou que 68% das vagas tenham sido reservadas para professores “católicos”, 26% para “evangélicos” e o restante para “outras religiões”. Estabeleceu-se, dessa forma, uma hegemonia cristã. Em outros estados, para lidar com o ensino religioso, foram criados e credenciados “conselhos” com representantes de várias religiões. Nessa outra possibilidade, abre-se a questão de como a diversidade religiosa é reconhecida e representada (inclusive encetando novas hegemonias) em fóruns coletivos e quais suas implicações, por 9 Dediquei a este tema vários textos. Ver o mais recente deles, Giumbelli (2011). 8 exemplo, para a definição de conteúdos curriculares. O tema do ensino religioso nos revela ainda as reconfigurações que a pluralidade pode comportar quando se passa do cenário das afiliações religiosas da população em geral (terreno em que debatem Camurça e Pierucci) para quadros mais específicos. A assistência religiosa em hospitais, assim como a caracterização e gestão de espaços interreligiosos, é outro desses quadros específicos. A segunda questão que minha pesquisa permite levantar tem a ver com a noção de que a religião corresponde a uma esfera diferenciada da sociedade. Segundo Tschannen (1992), essa é uma das idéias basilares da tese da secularização. Para Casanova (1994), seria mesmo o ponto a ser defendido, o que permaneceria válido diante dos ataques sofridos por aquela tese. Isso não impediu que Asad (2003) discordasse da defesa levantada por Casanova. Considerando a constatação realizada pelo sociólogo acerca da “desprivatização da religião” em vários contextos recentes, questiona o antropólogo: “Quando a religião torna-se uma parte integral da política moderna, deixa de ser indiferente para debates sobre como a economia deveria funcionar, ou sobre como projetos científicos deveriam ser publicamente financiados, ou sobre quais deveriam ser os objetivos maiores do sistema nacional de educação. A entrada legítima da religião nesses debates resulta na criação de „híbridos‟ modernos: o princípio da diferenciação estrutural – de acordo com o qual religião, economia, educação e ciência estão localizadas em espaços sociais autônomos – não mais se sustenta” (Asad 2003: 182). Neste texto, minha preocupação não é discutir a tese da secularização. Afastada essa discussão, o que me parece pertinente considerar do debate entre Casanova e Asad é a maneira de trabalhar, empiricamente, com a idéia da diferenciação. A pergunta que podemos fazer a Asad é a seguinte: constatada a presença do que ele chama de “híbridos”, a diferenciação permanece ou não uma suposição, se afirma ou não como o ideal que deveria ser respeitado? A existência de “híbridos” corresponde a uma reconfiguração de posições sociais? A própria utilização do termo “híbrido” sugere que a formulação de Asad compartilha daquele suposto. O que dizer de outros atores sociais? Existem termos alternativos ao de “religião” para compor os tais híbridos? Enfim, parece-me que a questão mais importante não é se a diferenciação, como princípio, se sustenta, e sim o que com ela se faz em termos de configurações sociais. Como essa discussão pode ser desenvolvida considerando a presença da religião em 9 hospitais? Proponho algumas definições com o propósito de balizar a análise que vem a seguir. Dois processos de longue durée me parecem importantes de serem considerados. Um primeiro refere-se à limitação à participação de religiosos nos cuidados hospitalares. A história de muitos hospitais mostra que a administração e a terapêutica ali praticadas procuraram eliminar a presença de agentes religiosos. Estes foram circunscritos a um tipo específico de assistência, sujeita à demanda dos pacientes mais do que à oferta do hospital. De fato, as bases legais da “assistência religiosa” em instituições de internação coletiva visam resguardar os direitos dos usuários dessas instituições, cujo acesso aos lugares externos de culto está constrangido.10 Se no primeiro processo vemos ocorrer uma secularização, no segundo temos uma privatização da religião. À luz desses dois processos, cabe perguntar qual o papel esperado ou desempenhado pelos espaços religiosos que existem dentro dessas instituições. O que se pode notar é que ocorre uma expectativa de que esses espaços atendam ao princípio da pluralidade religiosa (Boldrini 2012). De que maneiras essa expectativa se manifesta e que transformações vem propiciando? Esta é uma das preocupações que provoca uma articulação entre as duas questões mais gerais aqui levantadas. Se insistirmos no tema da diferenciação, outros pontos tornam-se relevantes. Tanto a secularização, quanto a privatização podem ser com ele associados: a primeira pressupõe que a religião esteja separada da terapêutica médica; a segunda preserva para a religião um espaço que atende a uma demanda individual, como se a religião ocupasse na vida do paciente o mesmo lugar circunscrito que se espera que ocupe na sociedade. Tais concepções, porém, estão claramente estabelecidas e seguramente protegidas de alternativas? Não pode haver outras relações entre religião e terapêutica, que busquem alguma articulação ao invés da separação entre elas? O que, nesse caso, acontece com os agentes que pretendem oferecer a assistência religiosa, em termos do estatuto de que se reveste suas práticas? Veremos a seguir como esses pontos são encaminhados na experiência que se desenrola no Grupo Hospitalar Conceição. 3. Cuidando da espiritualidade: a assistência religiosa nos planos do Fórum InterReligioso 10 Ver a Lei 9982/2000, que é a norma federal no assunto, e sua análise por Leite (2008). 10 Em agosto de 2011, tomei conhecimento de um “Plano de Trabalho” assinado pela Coordenação do Fórum Inter-Religioso do GHC. Após trazer algumas informações sobre o GHC e de traçar um breve histórico do Fórum, o texto declara compromisso com a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde – especificamente, os dois princípios transcritos anteriormente – e com as garantias à liberdade religiosa expressas na Declaração Universal de Direitos Humanos e na Constituição Federal brasileira de 1988 – “principalmente o direito à saúde integral, que não é apenas a ausência de doença, mas é a situação de bem-estar físico, mental, social e espiritual de cada pessoa”. O texto continua assim: “O Fórum e a Direção do GHC consideram a assistência espiritual parte importante da integralidade da atenção e da humanização do atendimento, conforme prevê o SUS, que precisa acontecer de forma integrada e com transversalidade com os demais serviços de atendimento à saúde. Estudos no mundo inteiro já comprovam que a fé religiosa é responsável por boa parte da recuperação da saúde. O GHC viabiliza este direito através do trabalho do Fórum Inter-religioso constituído por representantes de cada uma das denominações religiosas que buscam prestar assistência espiritual”. Percebe-se que, nesse entendimento, os princípios de liberdade religiosa e de direitos dos usuários, atrelados à idéia de humanização, funcionam como justificativas para a proposição da noção de “saúde integral” e seu atrelamento com as práticas de assistência religiosa. O Plano de Trabalho foi divulgado juntamente com outro texto, que sugere exatamente uma regulamentação para a assistência religiosa. Seu primeiro artigo repete a frase inicial do trecho acima transcrito. Os demais artigos tratam de estipular as condições sob as quais se farão as atividades de assistência religiosa, prevendo o cadastramento, na administração hospitalar, de pessoas (chamadas de “visitadores”) de acordo com sua denominação religiosa. A contrapartida disso é uma das previsões do Plano de Trabalho: a “inclusão do item religiosidade no prontuário dos usuários”. Idealmente, a assistência religiosa funcionaria pela articulação entre os dois registros: “O usuário que desejar receber Assistência Espiritual deverá entrar em contato com a enfermeira do Posto que encaminhará a solicitação à Supervisão da Assistência Espiritual que, por sua vez, providenciará junto aos representantes do Fórum InterReligioso”.11 11 Trata-se da situação que pretende se constituir em regra. O regulamento prevê que visitadores não cadastrados, identificados na demanda de pacientes, possam também prestar assistência religiosa, mas em 11 O Fórum Inter-Religioso reuniria portanto representantes das denominações religiosas que demonstrem interesse em atuar na assistência religiosa nos hospitais do GHC. Mas também teria outro papel, que é o de promover, em nome do GHC, “cursos de formação e capacitação” dirigidos aos visitadores cadastrados para fazer a assistência religiosa. A regulamentação prevê que a participação nesses cursos, com 100% de freqüência, é condição obrigatória para o cadastramento e emissão de crachá correspondente. Na verdade, desde 2007 cursos dessa natureza vêm sendo organizados pelo Fórum. Parece que mais recentemente procura-se revisar seu conteúdo e conferir-lhe estatuto mais preciso para fins de cadastramento. Em 2010 e 2011, o curso foi oferecido dentro das novas diretrizes, estando dividido em quatro módulos, antecedidos por uma “plenária” de apresentação geral. De acordo com a proposta de regulamentação, os temas abordados devem ser: “a importância e o papel da Assistência Espiritual, conceitos e princípios do SUS, normas administrativas e de higienização e infecção hospitalar próprias de um hospital e específicas do GHC”. Procurarei desdobrar o conjunto de noções e entendimentos relacionado com a ideia de “saúde integral”, tendo como base os textos já apresentados, registros de outros pesquisadores, conversas com coordenadores do Fórum Inter-Religioso e observação de eventos ligados ao curso oferecido em 2011. Inicio com a noção de que “espiritualidade é saúde”, bastante disseminada entre os protagonistas do Fórum Inter-Religioso do GHC. Nos eventos e conversas, deparei-me com essa ideia várias vezes. Em sua dissertação, Boldrini (2012: 97) conclui que “os agentes públicos desse hospital afirmam abertamente que a religiosidade é boa e necessária para a recuperação dos doentes”. Nela se encontram afirmações, por parte dos coordenadores do Fórum InterReligioso, como: “assim como a assistência médica na recuperação da pessoa é importante, a assistência espiritual é importante”; “está comprovado cientificamente que 70% das curas das doenças só acontecem porque as pessoas acreditam numa coisa maior”; “a religião, ela pode ser uma parceira na saúde física, psíquica do paciente” (idem:95-97). Nos dois eventos que presenciei, coube a um pastor luterano, então membro da coordenação do Fórum Inter-Religioso do GHC, desenvolver esse tema. Pastor de uma condições distintas dos visitadores cadastrados. Em maio de 2012, recebi outra versão do regulamento, sem que haja diferenças significativas em relação à anterior. A inclusão do quesito religião no cadastro dos usuários é um tema ainda em discussão no âmbito do Fórum. 12 comunidade localizada no mesmo bairro que o Hospital Conceição, ele atua desde 2002 junto ao “Serviço de Dor e Cuidados Paliativos” desse hospital, realizando “atendimento espiritual a pacientes em fase terminal e seus familiares”.12 Suas exposições fazem referências explícitas à política de “humanização” do Ministério da Saúde. Sua preferência – e isso se expressa em outras manifestações da coordenação do Fórum Inter-Religioso – é pelo termo “espiritualidade” em vez de “religião”. Esta seria específica e institucional; já a “espiritualidade” é algo genérico e que cabe a cada pessoa gerir. Mais do que isso, a “espiritualidade” é constitutiva do ser humano, de suas criações e seus empreendimentos. É possível então falar em “inteligência espiritual” ou dizer que uma empresa é mais “espiritualizada” do que outra. Ainda de acordo com o pastor, o ser humano é composto por diversas dimensões: biológica, psicológica, social e espiritual; as doenças revelariam algum desequilíbrio entre essas dimensões. A assistência espiritual seria, portanto, importante para o cultivo dessa dimensão constitutiva do ser humano, contribuindo para o equilíbrio que caracteriza o estado de saúde. Sullivan (2010), a partir de um caso legal recente nos EUA, levanta pontos que nos são pertinentes. Uma instituição – que oferece, com recursos públicos, atendimento de saúde a veteranos de guerra e seus familiares – inclui entre os seus serviços o de assistência espiritual. Nessa concepção, o diagnóstico dos problemas de saúde do paciente abrange uma espécie de avaliação espiritual, a qual corresponde a um planejamento que contempla, no tratamento, um cuidado espiritual (que pode ou não ser aceito pelo paciente). Correlativamente, os capelães contratados por essa instituição são por esta considerados como parte da equipe médica. Conclui a autora: “ao menos nos Estados Unidos, embora a lei se apresente como secular, todos os cidadãos são crescentemente entendidos como universal e naturalmente religiosos – necessitando de cuidado espiritual”. Tal cuidado é prestado por agências estatais e não diretamente pelas igrejas; isso significa, segundo a autora, que a religião vem sendo – como ocorreu no século XIX, mas sob outras formas – naturalizada, avalizada pela lei. 12 “Através das visitas aos internados bem como das visitas domiciliares, ouve os clamores desses pacientes e com base na Palavra de Deus orienta, leva conforto, contribui para a melhoria das suas condições de vida.” http://projetoeliezer.blogspot.com.br/p/quem-somos.html, acessado em 08.05.2012. Sobre a relação entre “cuidados paliativos” e “religiosidade/espiritualidade”, ver Menezes (2006). 13 Parece que vemos algo semelhante acontecer no discurso expresso pela coordenação do Fórum Inter-Religioso. Um ponto a aprofundar, nos dois casos, é o papel de grupos religiosos na articulação e no apoio a esse discurso. Quais são as mediações que credenciam um religioso a atuar na oferta de “assistência espiritual”? O mesmo discurso, enunciado por uma autoridade católica, um pastor luterano ou uma adepto de religião afro-brasileira, possui os mesmos efeitos ou as mesmas implicações? Outro ponto – e neste serei mais consequente – refere-se ao modo como, nesses discursos, se pode transitar entre vários sentidos de “religioso”. Por exemplo, como se pode utilizar referências religiosas de um modo conciliável, entre certos pontos de vista, com o princípio da laicidade? Para Sullivan, a idéia de assistência espiritual integrada ao diagnóstico e tratamento de saúde equivale a “um novo estabelecimento da religião”. Mas esse não foi o entendimento do tribunal que desqualificou a queixa de que seria ilegítimo o apoio estatal à instituição dos veteranos. Fugindo desse debate jurídico, o que eu gostaria de salientar no caso do Fórum Inter-Religioso é a tensão que se cria entre várias enunciações do “religioso”. Segundo o Plano de Trabalho já referido, um dos objetivos da assistência espiritual (expressão mais usada do que assistência religiosa) é “Proporcionar a todas as denominações religiosas a possibilidade de expressar seus sentimentos de fé, paz e de solidariedade para com o próximo, consolidando os princípios da participação, da cidadania e da humanização no atendimento hospitalar”. “Fé”, “paz” e “solidariedade” aparecem assim como categorias que permitem o acesso do discurso “religioso” ao “atendimento hospitalar”. Se tomamos essa afirmação como referência, é possível notar, durante os eventos, algumas diferenças no modo como os porta-vozes de distintos grupos religiosos a efetivam. O pastor luterano, durante sua apresentação, cita Jesus Cristo como “paradigma”, independentemente, ele enfatiza, da aceitação de sua natureza divina; similarmente, menciona uma citação bíblica para ilustrar o que é “espiritualidade” quando a contrasta com “religião”. O padre católico opera articulação similar ao lembrar da “parábola do bom samaritano”, uma referência bíblica que, para ele, fala de princípios mais amplos. Já os representantes de algumas igrejas pentecostais não apresentam um discurso muito distinto daquilo que se pode ver em seus templos: testemunhos de conversão e do poder do “Senhor Jesus que opera maravilhas”. A mãede-santo, por sua vez, retorna ao registro anterior: não prometemos milagres e acolhemos sem preconceitos. Enquanto alguns pentecostais relatam curas milagrosas, 14 um dos coordenadores do Fórum lembra a importância de que, em certos casos, o visitador saiba ajudar um paciente a morrer com dignidade e de que, sempre, a assistência religiosa existe “não para ganhar fieis, mas para prestar serviço”. Voltarei a me referir, na próxima seção, a essas diferenças que podemos perceber entre os integrantes do Fórum Inter-Religioso do GHC. Gostaria ainda de levantar um último ponto a propósito da idéia de “saúde integral”. Tem a ver com a sua aceitação pelo “GHC”. Ao mesmo tempo em que o Grupo abriga o Fórum Inter-Religioso, designando funcionários para participar de sua coordenação, não há como não perceber alguma resistência. Não tenho registros de nenhum pronunciamento de uma autoridade do GHC que assuma essa resistência. Mas ela pode ser percebida de outras formas. Por exemplo: um dos coordenadores do Fórum, ao procurar fundamentar a importância da assistência espiritual, na plenária de apresentação do curso para os visitadores, criticou médicos que são incapazes de prestar tal reconhecimento. Creio que a seguinte ocorrência com a bolsista vinculada à pesquisa expressa percepção semelhante. Ao fazer observação de uma atividade que ocorria no espaço inter-religioso do Hospital Cristo Redentor, teve que explicar a uma das celebrantes o que fazia ali – “Ela pergunta: „não é médica, é?‟ e fica aliviada ao saber que não”. Um trabalho que é resultado de um curso de especialização faz também observações sobre tensões entre profissionais vinculados ao atendimento médico e à manutenção dos serviços do hospital, de um lado, e, de outro, os visitadores religiosos (Pires 2009). Relata reclamações de uma enfermeira sobre procedimentos dos religiosos que desrespeitam normas de higiene hospitalar ou ferem a autonomia dos pacientes (:17). Outro texto, resultado de pesquisa realizada com equipes médicas que atuam em postos do GHC, faz duas observações interessantes (Alves, Junges, López 2010). Primeiro, o fato de que a existência de espaços inter-religiosos não foi citada por nenhum dos profissionais entrevistados. Segundo, a constatação de que esses funcionários, mesmo expressando respeito pela “espiritualidade / religiosidade”, “em nenhum momento citam-na como um recurso a ser usado em sua terapêutica” (:435). Vale ainda relatar o ocorrido no evento com que culminou o último curso oferecido aos visitadores, que tive a oportunidade de observar em maio de 2012. Estiveram presentes alguns funcionários da área administrativa do GHC. Todos manifestaram acordo com a importância da assistência religiosa, utilizando inclusive termos que freqüentam o discurso que sustenta a noção de “saúde integral” do Fórum Inter-Religioso. Mas não se 15 tirou disso nenhuma conseqüência para as concepções terapêuticas. Ao contrário, o pronunciamento de maior impacto prático, expresso pelo gerente de internação de um dos hospitais do GHC, levantou a necessidade de haver um cuidado maior dos visitadores quanto aos procedimentos de controle de infecções. Assim, ao mesmo tempo que receberam seus certificados de conclusão de curso, os visitadores foram informados de que, antes de estarem autorizados a prestar assistência religiosa, precisarão fazer mais um módulo de capacitação. Em suma, é no mínimo incerta a articulação entre o atendimento médico do GHC e o discurso predominante no Fórum Inter-Religioso acerca da “saúde integral”. O que parece estar em jogo é a relação da assistência religiosa com a terapêutica oferecida pela instituição. A religião é uma dimensão extrínseca ao tratamento médico, demandando um cuidado desvinculado da terapêutica? Ou a religião, convertida em espiritualidade, uma dimensão constitutiva da pessoa, relacionada com sua saúde e com sua doença, pode ser, de alguma maneira, articulada ao tratamento? É interessante notar que, nos hospitais Conceição e Cristo Redentor, religiosas pertencentes a congregações católicas ocuparam cargos e funções até aproximadamente o período em que a instituição foi estatizada.13 Caso se aceite a concepção de que “espiritualidade é saúde”, ocorreria uma reversão nesse processo? Se a idéia de Sullivan (2010) de um “novo estabelecimento da religião” pode ser debatida, poderíamos no entanto concordar que os agentes e discursos religiosos conquistariam um novo lugar dentro do hospital. Ao menos, veríamos a diferenciação do religioso em relação a outras esferas passar por uma reformulação, na direção que é propiciada pela noção alternativa de “espiritualidade”.14 4. Manifestações da pluralidade: organização e atividades dos espaços inter-religiosos De acordo com o “plano de trabalho”, o Fórum Inter-Religioso se responsabiliza pela organização “do atendimento nos espaços inter-religiosos e da visitação dos usuários 13 “Antes elas estavam tanto na administração quanto no atendimento direto aos pacientes, as religiosas exerciam atividades técnicas [maternidade, bloco cirúrgico, enfermagem, nutrição, costura, serviços gerais] e pastorais, moravam nas dependências do hospital [Cristo Redentor], tinham a capela deste a sua disposição e participavam das festividades organizando celebrações religiosas comemorativas” (Santos 2011: 58). 14 A UNIMED de Porto Alegre produziu, relativamente aos anos de 2009 e 2010, um “índice de bemestar”, integrado por 12 “dimensões da vida”, entre as quais está a “espiritualidade”, entendida como “existência de algum verdadeiro propósito para a vida”. http://www.unimedpoa.com.br/empresas/ibe/conheca-o-ibe/712.aspx, acesso em 11.05.2012. 16 nos hospitais do GHC”. Vejamos agora então o que ocorre naqueles espaços dos hospitais Conceição e Cristo Redentor, considerando mais algumas características do Fórum. Embora o documento os considere como locais de “atendimento”, as manifestações e formas de ocupação daqueles espaços são variadas. A rigor, a noção de “atendimento” sugere que os espaços inter-religiosos seriam extensões de outras áreas nas quais os “visitadores” oferecem assistência religiosa a pacientes e seus familiares. Mas veremos que os espaços abrigam atividades diversas, que guardam relações também diversas com a idéia mais geral de assistência religiosa. Deve-se desde já notar que os profissionais que trabalham nos hospitais (sobretudo dos setores de enfermagem, administração e serviços de limpeza) é que se destacam como os freqüentadores mais regulares dos espaços inter-religiosos, seja para acompanhar as atividades oferecidas pelos grupos, seja para fazer uso individual.15 Tratemos, assim, das variações observadas nas atividades desenvolvidas nos espaços inter-religiosos dos hospitais Conceição e Cristo Redentor. Naquelas conduzidas por pessoas ligadas a religiões afro-brasileiras, predomina o atendimento, em um sentido talvez diferente daquele com que a palavra aparece no “plano de trabalho”. Como está ilustrado pela descrição com que este texto começa, formam-se filas para o recebimento de passes, com o auxílio de ervas, perfumes, etc. No caso de algumas igrejas pentecostais, a atividade adquire as características de um culto, com orações, leituras de textos bíblicos, testemunhos e cantos. O número de pessoas envolvidas na realização, em comparação com os grupos afro, é maior; em compensação, a atividade pentecostal parece não depender de um “público”, pois ela se desenrola igualmente mesmo quando mais ninguém está presente no espaço. Outra diferença entre as atividades é a relação com o atendimento em outras áreas do hospital. Os visitadores de religiões afro-brasileiras preferiam não prestar assistência religiosa fora dos espaços inter-religiosos. Alguns grupos pentecostais, embora o desejassem, não tinham a permissão para fazê-lo, pois seus membros não haviam concluído o curso para habilitação. Outros, também pentecostais, já estavam habilitados, e combinam o culto no espaço inter-religioso com perambulações por quartos e ambulatórios. Às vezes, parece que a atividade no espaço inter-religioso é tida 15 Não há dados precisos sobre a frequentação dos espaços. As indicações estão baseadas em observações de atividades nos espaços interreligiosos realizadas pela bolsista do projeto. As mesmas observações servem de base para o que vem a seguir. 17 apenas como uma referência para as visitas aos quartos e outras áreas onde se encontram os pacientes. É o que ocorreu em um horário reservado a luteranos; não houve atividade no espaço, mas se soube que os religiosos poderiam estar “evangelizando pelos corredores”. Ocorreu também no horário reservado a católicos, que previa celebração de missa: dois padres chegaram e em vez de permanecerem no espaço seguiram para atender pacientes em seus quartos. Mas, afinal – e aqui passamos a outro ponto – como é a distribuição que determina a ocupação dos espaços inter-religiosos nos dois hospitais? Baseei-me nas indicações que estão afixadas nas entradas dos espaços.16 No Cristo Redentor, não houve mudança da escala de distribuição entre 2010 e 2012. Seis grupos são especificados: a Igreja Católica, as religiões afro-brasileiras, a Seicho-no-ie, a Assembléia de Deus e mais duas igrejas pentecostais. A distribuição é desigual: os católicos estão programados para quatro dias na semana, totalizando cinco horas e meia de ocupação; os assembleianos, dois dias e quatro horas; os afro, um dia e três horas; os demais, um dia, entre uma e duas horas. É preciso considerar essa distribuição lembrando das formas diferenciadas de relação com o espaço, como vimos mais acima. No Hospital Conceição, o leque de grupos é maior. Considerando os três anos, 16 grupos são registrados. Esse número não inclui coletivos não religiosos (coral, grupos de apoio a pacientes), cujas atividades estão também previstas na planilha. Há poucas mudanças ao longo dos três anos: em 2011, não constam uma igreja luterana e uma assembleiana; a Igreja do Evangelho Quadrangular é mencionada apenas em 2011. Se tomamos como base o calendário de 2011, os resultados são os seguintes. A Igreja Católica mantém predominância com três dias e cinco horas. Outros grupos também se destacam: duas Assembleias de Deus, com quatro dias e nove horas; luteranos estão programados para dois dias, uma hora e meia; os afros, para um dia, quatro horas. Os demais são grupos pentecostais, a Seicho-no-ie e uma instituição espírita, que ocupam o espaço por apenas uma ocasião. Em 2012, os afros reduziram sua ocupação para apenas uma hora. Assim, apesar de serem as mais numerosas, as igrejas evangélicas não se destacam em termos de ocupação, com a exceção dos luteranos e dos assembleianos. Pode-se notar uma correlação entre a distribuição nos espaços e a composição religiosa da coordenação do Fórum Inter-Religioso do GHC. O Plano de Trabalho se encerra com 16 Reunindo registros próprios com os de Boldrini (2012), temos acesso a informações relativas a três anos (2010-2012). 18 uma lista de nomes, os quais compõem essa instância: a filiação religiosa dessas pessoas inclui catolicismo, luteranismo, religiões afro-brasileiras e Assembleia de Deus.17 Os que freqüentam os eventos promovidos pelo Fórum notam o protagonismo – considerando responsabilidades assumidas, uso da palavra, condução de atividades – de um padre católico, de um pastor luterano, de um leigo católico e de uma adepta de religiões afro. No caso das últimas duas pessoas, note-se que sua filiação religiosa é atenuada pelo fato de serem representantes do GHC na estrutura do Fórum. Mesmo com essa ressalva, pode-se concluir, após a observação da distribuição dos grupos nos espaços inter-religiosos e da formação da Coordenação do Fórum, que ocorre uma espécie de composição católico-luterana-afro-assembleiana. É preciso fazer outros comentários a fim de esclarecer mais alguns pontos acerca do modo como se concebe e administra a pluralidade religiosa no Fórum do GHC. A composição acima mencionada ganha um papel preciso na medida em que tende a atenuar a força de grupos pentecostais que possuam concepções de assistência religiosa e de intervenção junto aos pacientes que destoam daquelas que são promovidas nos eventos do Fórum. Essas concepções, como procurei mostrar na seção anterior, são produto de uma espécie de negociação entre os promovedores da assistência religiosa e os guardiões dos padrões biomédicos. Assim, apesar de serem mais numerosos nos eventos do Fórum, os grupos pentecostais exercem pouco poder na definição de seus rumos. É significativo que, em um desses eventos, a liderança assembleiana que é também membro da coordenação do Fórum tenha se expressado em nome do “povo evangélico”, antes que várias outras igrejas pentecostais se pronunciassem por meio de outras lideranças. O grupo a que pertence aquela liderança, em uma de suas atividades no espaço inter-religioso do Hospital Cristo Redentor, fez questão de expor suas diferenças em relação a “esses crentes barulhentos, que gritam, eles não fazem pra Jesus”. Quanto às relações internas aos que participam da composição católico-luterana-afroassembleiana, creio que temos um campo de tensões, constituído por várias dimensões. 17 No final de abril de 2012, a nova versão do regulamento de visitação lista um número maior de representantes. Seria preciso acompanhar as reuniões da coordenação e outras atividades do Fórum para saber se há alguma mudança em termos de maior participação desses novos representantes. Comparandose o cronograma dos espaços religiosos e o documento acima mencionado, verifica-se que alguns grupos (quase todos pentecostais) são mencionados no segundo e não no primeiro. Com base em outras informações, parece haver uma flutuação quanto à participação de igrejas pentecostais no Fórum. 19 Deve-se notar que não existe nenhuma regra formal de exclusão, o que significa que a ocupação dos espaços e a constituição da coordenação do Fórum estão sujeitas a mudanças e são definidas por arranjos variáveis, em que atuam fatores históricos e circunstanciais. Se tomamos como ponto de apoio a relação que se estabelece entre cristianismo e tradições afro-brasileiras, o quadro a que chegamos não é simples. Por um lado, não é difícil constatar o predomínio católico na ocupação dos espaços e nas posições do Fórum, mas ele é tencionado pela significativa presença evangélica. Por outro lado, o terreno conquistado pelas religiões afro-brasileiras contou com o acordo e a participação de pessoas vinculadas ao catolicismo que estão na coordenação do Fórum.18 É significativa a forma que adquiriu o símbolo do Fórum Inter-Religioso do GHC. Trata-se de um círculo formado pela união de mãos e braços de oito pessoas. Um dos coordenadores do Fórum explicou que se pretende expressar “solidariedade” e “amor ao próximo”, segundo ele, valores comuns a todas as religiões; ao mesmo tempo, se buscou uma solução que não recorresse a referências religiosas particulares. A diversidade se expressa pela presença de cores de pele mais claras e mais escuras, o que remete a uma leitura que valoriza a “matriz africana”. A questão dos símbolos é um ponto importante na definição das relações entre referências religiosas no GHC. Como vimos, embora se empregue nos dois hospitais a designação “espaços inter-religiosos”, suas configurações são muito distintas. No Hospital Cristo Redentor, a sala que veio em substituição à capela removida, possui cerca de 25m², está localizada no mesmo andar da entrada principal do hospital, com acesso indicado por placas. Uma porta de vidro dá acesso aos fundos da sala; à frente, fica uma mesa alta; no espaço entre a porta e a mesa, se distribuem conjuntos de poltronas, cerca de 20 lugares. Nas paredes, pintadas na cor azul clara, não há qualquer objeto, com exceção de dois ou três ventiladores. Não há nenhuma iluminação especial, nem janelas para o exterior. Às vezes, é possível encontrar, deixados sobre a mesa, pedaços de papel com pedidos e orações. O padre católico, pertencente à paróquia do bairro onde se localiza o Hospital, que nele mantinha atividades religiosas, foi contrário à modificação que fez desaparecer a capela 18 No início de 2012, o leigo católico que participava da coordenação do Fórum afastou-se de seu cargo (assessor da diretoria) no hospital. Como não houve a sua substituição no Fórum, a mudança fortaleceu o protagonismo da funcionária do hospital que é também adepta de religiões afro e atua junto à CEPPIR/GHC. 20 original. Segundo Boldrini (2012), houve negociações com o arcebispo; o padre que levantou reticências ainda é o responsável pela ocupação católica do espaço interreligioso. Durante algum tempo, houve controvérsias entre os usuários do espaço, pois funcionários católicos afixaram um crucifixo. O crucifixo era retirado por pessoas de outros grupos religiosos. Afinal, decidiu-se que não haveria nenhum símbolo. Atualmente, existe um banner ao lado da porta de acesso com o emblema do Fórum e uma folha com o registro da escala de ocupação da sala. Em eventos e conversas, foi levantada a possibilidade de haver alguma ornamentação. O outro padre católico, que participa da coordenação do Fórum, refere-se ao espaço como “esvaziado” (apud Boldrini 2012: 93). Outra pessoa da coordenação, vinculada às religiões afro-brasileiras, lembrou que se pensou em utilizar o mesmo emblema para decorar a sala, e também alguma planta. Mas imagens da natureza foram por ela mesma afastadas, pois remetem a religiões específicas (afro-brasileiras). Já no Hospital Conceição, o espaço inter-religioso corresponde ao mesmo lugar que existe desde a sua construção. Trata-se de uma capela com referências católicas. Possui acomodações para aproximadamente 90 pessoas sentadas, com bancos da mesma natureza que encontramos em igrejas. A disposição é a de um templo, com altar no fundo, perto do qual está um sacrário e uma grande imagem de Cristo crucificado. Nas paredes, quadros retratando as estações da via sacra. Os vitrais representam a eucaristia, a consagração e outros ritos e símbolos católicos. Na entrada, há uma grande imagem de Nossa Senhora da Conceição; a seus pés, uma caixa de papelão para depósito de pedidos de oração; entre a estátua e a porta, há uma caixa de madeira também para receber pedidos. Perto dali, apoiado sobre o espaldar do último dos bancos, há um exemplar da Bíblia com suas páginas abertas. Do outro lado, um mural, onde está afixada a planilha com o cronograma de atividades, uma folha destacando o horário das missas, além de outros anúncios. Quem olhar a partir do altar, vai ainda ver outro crucifixo, de pequenas dimensões.19 De acordo com Boldrini (2012), no começo da década de 2000 levantou-se a idéia de transformação da capela (por exemplo, com a retirada da imagem de Nossa Senhora), proposta que enfrentou muitas resistências por parte de funcionários do hospital. Lembremos que desde 2002 a capela passou a ser considerada ecumênica. Dois dos 19 Para maiores detalhes sobre as características físicas dos espaços interreligiosos do GHC, ver Boldrini (2012). 21 coordenadores do Fórum me contaram que as únicas modificações efetuadas envolveram a retirada de imagens de santos. A identificação “capela ecumênica” continua até hoje e, ao contrário do outro hospital, no Conceição não há placas indicativas com a expressão “espaço inter-religioso”. Outra diferença é que a capela fica em um local de grande circulação, não muito longe da entrada de visitantes, sendo facilmente visível. Nela já foram celebrados batizados, casamentos, aniversários e velórios de funcionários (Ranquetat 2012: 270), o que pode ter contribuído para as resistências acima referidas. Nada indica que vá ocorrer, no curto prazo, alguma modificação maior nesse espaço. No presente, o que se pode constatar são as diferentes atitudes de representantes religiosos frente ao contraste entre os dois espaços inter-religiosos. O padre católico que participa da coordenação do Fórum faz uma defesa das características atuais da capela do Conceição: o “respeito à história” e à “cultura” justifica essa preservação, alega ele, que acrescenta não se sentir incomodado de saber que no mesmo local “o pessoal de matriz africana vai dar um passe” (apud Boldrini 2012: 101-102). Já as sacerdotisas afro-brasileiras que ocupam uma vez por semana aquele espaço demonstram certo constrangimento. Isso é objeto de enunciação em conversas. Sobretudo, ganha uma expressão ritual, pois as pessoas que conduzem o atendimento preferem se posicionar em um dos cantos da capela, perto da entrada, no lado oposto onde está a imagem de Nossa Senhora. Recentemente, ali foi colocado, na parede, um quadro que retrata Jesus de corpo inteiro. Atualmente, ele compartilha o espaço com o banner que leva o emblema do Fórum. Uma outra luta de imagens e arranjos espaciais ocorre no espaço inter-religioso do Hospital Cristo Redentor. Foi-me relatado que, em algumas ocasiões, deixava-se a sala com as poltronas dispostas em círculo após a realização das atividades afro-religiosas. A pessoa que ocupa a coordenação do Fórum não considera ideal a presença da mesa, pois sugere uma configuração que não contempla essas religiões. E os grupos evangélicos? A pesquisa reuniu algumas observações interessantes. Durante as pregações que ocorrem nos “cultos” realizados nos espaços inter-religiosos, são comuns lembranças dos argumentos bíblicos que permitem a condenação da “adoração das imagens”. Mesmo os assembleianos tocam nessa tecla – ou talvez sobretudo eles. Indagados se sofrem algum incômodo por suas atividades se realizarem em espaço com tantos símbolos católicos, a resposta é significativa: por que se incomodar com algo que não tem valor? Penso que vale relatar uma das observações de uma atividade 22 assembleiana, pois ela dramatiza muito bem essa conciliação entre a crítica aberta e a presença confortável. Na verdade, como veremos, converte o símbolo que seria constrangedor na ocasião para melhor demonstrar a sua crítica. Eis a cena. Durante sua pregação, uma missionária aponta para a imagem de Nossa Senhora ao fundo e destaca que há uma lâmpada direcionada a ela. Ora, essa é a prova da sua fraqueza, precisar de uma luz artificial que a ilumine. Todos deveriam saber que a verdadeira luz é Jesus, conclui a missionária. Em suma, a pluralidade é uma questão que se apresenta com muitas facetas nas atividades geridas pelo Fórum Inter-Religioso do GHC. Procurei mostrar as recorrências e as tensões que caracterizam a constituição do Fórum que reúne grupos religiosos interessados em atuar na assistência religiosa hospitalar. Propus a formulação de uma composição católico-luterana-afro-assembleiana para traduzir a resultante (provisória e instável) que podemos atribuir à coordenação do Fórum e à definição do cronograma formal dos espaços inter-religiosos. Tentei com isso sugerir os contornos que adquire a pluralidade no Fórum. Mas o tema não se esgota aí, pois é ainda dele que tratamos quando acompanhamos as formas variadas com que os grupos religiosos se relacionam com a assistência religiosa e com a ocupação dos espaços inter-religiosos. É necessário aprofundar a compreensão dessas dimensões, sobretudo considerando a postura bastante diversa de católicos, assembleianos e afro-religiosos naqueles espaços. Pode-se sugerir que cada um deles vive dilemas próprios. A sala do Hospital Cristo Redentor poderá se adaptar à diversidade de seus ocupantes e ao mesmo tempo transmitir aconchego aos seus visitantes? A capela do Hospital Redentor resistirá aos ataques e aos protestos que acompanham as atividades dos grupos que acolhe? 5. Observações Finais O tema da presença da religião nos hospitais, evidentemente, não passa por investimentos e transformações apenas no Brasil.20 Seria muito interessante desenvolver análises que prezassem preocupações comparativas. Antes de fazer algumas observações finais sobre a pesquisa em Porto Alegre com duas unidades do GHC, 20 Noto a existência da Associação Cristã de Assistência Espiritual Hospitalar do Brasil, que atua desde 2008 com essa denominação, organizando cursos e eventos. Para maiores informações, ver Boldrini (2012). 23 levanto alguns pontos que comentam brevemente a situação em outros países, em função de fontes a que tive acesso.21 Na Inglaterra, existem disposições legais que prevêem a existência de capelanias em hospitais mantidos com recursos públicos. Mesmo na vigência de um regime de oficialização do anglicanismo, há recentemente movimentos e até legislação que exigem a inclusão de outras religiões. Isso é claro no caso do islã, que até há pouco contava apenas com “visitadores”; dados de 2007 apontam a existência de 43 capelães (quatro em tempo integral) que são pagos pelo Estado para atuarem em unidades hospitalares do Sistema Nacional de Saúde. Foram criados cursos em instituições de ensino superior para a formação e capacitação de capelães muçulmanos (Gilliat-Ray 2008). Os espaços religiosos também refletem essa importância do islã. Em alguns hospitais, manteve-se a capela cristã e criou-se um local específico para muçulmanos. Mas há também exemplos de espaços compartilhados e de criação de “silent rooms” como alternativas. A interferência da espiritualidade no tratamento médico é um assunto debatido (Collins 2007). Nos Estados Unidos, apesar da existência de outro regime de relações entre Estado e religiões, as capelanias são comuns. Segundo Sullivan (2010), há mesmo uma proliferação delas: em serviços de saúde, nas Forças Armadas, em escolas e universidades, em agências governamentais, em locais de trabalho. Aos capelães que são contratados com recursos públicos, exige-se três requisitos: formação superior (Master of Divinity degree), créditos cumpridos em disciplinas correspondentes a Clinical Pastoral Education e uma credencial eclesiástica. A lista de instituições que podem oferecer tanto a formação escolar quanto a credencial eclesiástica é enorme, sobretudo no segundo caso. Isso nos permite concluir que nos Estados Unidos uma lógica pluralista está atrelada ao funcionamento desse sistema de capelanias. Lembremos que, de acordo com a mesma autora, existe uma relação entre a proliferação de capelanias e a oficialização da concepção de que o cidadão é alguém necessitado de cuidado espiritual. 21 Não são muitas as referências sobre o tema, mas elas tendem a crescer. Ver algumas questões mais gerais levantadas no texto de Hewson e Brand (2011) e no projeto em que estão envolvidos na Universidade de Manchester: http://www.sed.manchester.ac.uk/architecture/research/mfs/ (acesso em 11.05.2012). 24 Na França, se poderia esperar que a laïcité tornasse o tema obtuso e esdrúxulo. Não é o que nos faz pensar a consulta ao livro de Lévy (2004), concebido como uma espécie de manual.22 A lista de assuntos abordados é extensa, embora, em contraste com o caso inglês, as provisões legais não sejam numerosas. Mas o tema dos espaços religiosos é rapidamente abordado, dando-se ênfase a seu uso – que deve ser aberto a todas as confissões, segundo o manual. Um aspecto significativo é que o livro está estruturado para contemplar basicamente três tradições religiosas: cristianismo, judaísmo e islã. Isso revela a existência de uma concepção que organiza o campo religioso em segmentos mais ou menos precisos, em contraste com o sistema estadunidense. Correspondentemente a isso, atribui-se a assistência religiosa a capelães credenciados por autoridades eclesiásticas, contemplando-se outras religiões com visitadores eventuais. Chamo ainda a atenção, a propósito do livro de Lévy, para dois pontos, que nos servem tanto para indicar preocupações da autora quanto características do quadro no qual atua. Primeiro, há lamentações sobre preconceitos contra a religião por parte de administradores e profissionais da saúde; ao mesmo tempo, a questão da participação da espiritualidade no tratamento médico não é sequer levantada. Segundo, há alertas para privilégios conferidos ao catolicismo; mas as demais religiões parecem ser tratadas segundo o modelo e como extensão do catolicismo.23 Voltemos ao Brasil, mais especificamente a Porto Alegre e ao GHC, para retomar nossas duas questões centrais. Os coordenadores do Fórum Interreligioso do GHC atuam com uma dupla concepção acerca da assistência religiosa: como direito do paciente e como parte do tratamento médico. Os cursos que oferecem aos “visitadores” buscam uma adequação às normas do hospital quanto aos cuidados exigidos pela biomedicina; e também a disseminação da idéia que faz equivaler assistência e serviço (e não pregação religiosa). Vimos como as pretensões de participação na terapêutica encontram resistências de vários tipos. Isso não significa que não haja interesse nessa questão; mas talvez a tentativa de considerar dimensões espirituais na terapêutica tenha mais chances de ser contemplada caso parta de profissionais da medicina. Na Inglaterra, segundo Collins (2007), a perspectiva do “atendimento holístico” vem sendo entendida 22 23 Agradeço a Bernardo Lewgoy, de quem tive a referência ao livro de Lévy. Segundo reportagem do Le Monde, 30.06.2011, o projeto do edifício que abrigará em Paris a administração militar francesa prevê um espaço de culto, organizado em uma sucessão de salas moduláveis. Mas: “um „alvéolo‟ será exclusivamente reservado ao altar do culto católico”. 25 como parte da responsabilidade dos médicos, ameaçando (ao invés de reforçar) a existência das capelanias. Enfim, não há dúvidas de que o Fórum do GHC é uma tentativa muito interessante de ser conseqüente no compromisso com o pluralismo religioso. Isso não significa que não haja predomínios, que tentei expressar com a formulação “católico-luterana-afroassembleiana”. Menos que um bloco, essa composição indica um campo de tensões. Procurei também indicar que há uma espécie de diálogo de diversas religiões com o tema da pluralidade, mediado pela existência de duas configurações muito diferentes de espaço interreligioso. Em contraste com a situação nos três países acima mencionados, a experiência no GHC aponta para um modo de relação com a diversidade que tende a abrir mão da instituição da capelania.24 A existência de capelanias coloca sempre alguma forma de limitação a priori da diversidade – embora, como mostra o caso estadunidense, ela possa ser bastante elástica. O Fórum Inter-Religioso do GHC vem apostando em um gerenciamento mais aberto da diversidade, oferecendo-se como um espaço que pode contemplar toda e qualquer religião e procurando administrar a resultante a partir de condições específicas constituídas pelos participantes. É uma experiência que merece continuar a ser acompanhada. Referências bibliográficas ALVES, Joseane de Souza, JUNGES, José Roque e LÓPEZ, Laura Cecília “A dimensão religiosa dos usuários na prática do atendimento à saúde: percepção dos profissionais da saúde”. O Mundo da Saúde, 34(4):430-436, 2010. http://www.saocamilo-sp.br/pdf/mundo_saude/79/430a436.pdf ASAD, Talal. Formations of the Secular: Christianity, Islam, Modernity. Stanford: Stanford University Press, 2003 BOLDRINI, Marcos. Desconfessionalização dos espaços religiosos e assistência religiosa em hospitais de Porto Alegre. Porto Alegre: Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, PUC-RS, 2012. BURITY, Joanildo A. Identidade e política no campo religioso: estudos sobre cultura, pluralismo e o novo ativismo eclesial. Recife: IPESPE/EDITORA UFPE, 1997. 24 O modelo da capelania é adotado no Brasil nas Forças Armadas. Segundo Boldrini (2012: 112): “Existe um total de 67 vagas para capelães nas Forças Armadas, sendo que o número de capelães de cada grupo religioso corresponde a proporção de adeptos na população brasileira, tendo como base o censo demográfico do IBGE”. 26 CAMURÇA, Marcelo Ayres. “A realidade das religiões no Brasil no Censo do IBGE2000”. In: F. Teixeira e R. Menezes (orgs.). As religiões no Brasil – continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006. CASANOVA, José. Public religions in the modern world. Chicago: The University of Chicago Press, 1994. COLLINS, P., et al. NHS Hospital ‘Chaplaincies’ in a Multi-Faith Society: The Spatial Dimension of Religion and Spirituality in Hospital (Final Report). 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