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Capítulo 2
A redação
O ditado
Wikenhauser publicou um interessante estudo sobre São Jerônimo e a taquigrafia.1 No que tange ao ditado, analisou os três tipos de trabalho do doutor de Belém: as cartas, os comentários e as traduções. Uma objeção: por acaso o autor não
estará supondo resolvida a questão, antes mesmo de abordá-la? Ele vê o taquígrafo acorrer com as tabuletas de cera cada vez que Jerônimo fala em dictare. Ora,
o importante é distinguir primeiro os diversos sentidos da palavra, para depois
descobrir a época e as circunstâncias nas quais foram feitos os ditados, e enfim
considerar o grau de perfeição com que o amanuensis seguia o escritor.
Dictare
Analisando as palavras dictatio e dictator, Gölzer explica: “O sentido geral de dictare é declarar muitas vezes, repetir, porém o mais empregado é o sentido especial
de dizer, ditar algo a alguém para transcrevê-lo”.2
Às vezes, o termo encontra-se voluntariamente oposto a scribere, como numa
passagem bem típica, em que Jerônimo enumera as fases de seu trabalho: “Aquilo
que digo, que dito, que escrevo (ou está escrito – a variante é duvidosa), que corrijo, que releio”.3 Se a leitura scribitur está correta, o sentido está absolutamente
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claro: Jerônimo dita, e o secretário escreve. Lembremos aqui o Comentário da
Epístola aos romanos. Nele, Jerônimo explica: “A epístola, escrita aos romanos foi
ditada àqueles que […]”.4 É no confronto com o texto de Rm 16, 22 que ele encontra a indicação de que o apóstolo não emprega um método diferente do seu, mas
não insiste sobre o caso do ditado. Portanto, quando quer possuir o espírito que
animava os apóstolos na composição de suas epístolas, a palavra dictare conserva
o sentido intermediário entre compor e ditar.5 As próprias circunstâncias em que
nasceram os escritos de são Paulo, em Roma, pensa Jerônimo, afastam qualquer
idéia de otium, indispensável à composição lenta e mais pessoal: ditava-se da prisão e entre as correntes.6
Aos olhos de Jerônimo, é totalmente diversa a posição de são Pedro. Na composição do Evangelho segundo são Marcos, as funções dividem-se assim: “Petro
narrante et illo scribente”. Por outro lado, o estilo das epístolas de são Pedro acusa
tamanhas diferenças, que Jerônimo conclui por uma mudança de tradutores, e
não apenas de taquígrafos e secretários.7
Ele não emprega a palavra dictare para são Pedro, porque seria dar com excessiva precisão a maneira de compor. A atividade de Pedro lhe parece menor, a sua
responsabilidade quanto ao estilo não é a de um dictator, que dita e compõe ao
mesmo tempo.
Na verdade, muitas vezes a palavra indica uma fase intermediária entre a composição e o ditado, com um subentendido: compor ditando. É o caso deste trecho
irônico: “Mesmo os escritos (scripta) dos imperadores que ordenam a expulsão
dos origenistas de Alexandria e do Egito foram compostos (dictata sunt) por sugestão minha”.8 Ora, por um lado, o imperador não se digna escrever, por outro,
não dita apenas: aqui, Jerônimo está querendo insistir na paternidade dos escritos: são de autoria do imperador, que os compõe ditando.
Wikenhauser coloca a Carta a Eustáquia 108 entre os opúsculos ditados por
Jerônimo,9 porque o capítulo 32 diz que Jerônimo ditou o livro.10 No entanto, é preciso ler, nesse mesmo capítulo, a frase que segue: “Cada vez que eu quis introduzir
o estilete e elaborar a obra prometida, meus dedos se endureceram, minha mão
caiu, e meu espírito se enfraqueceu”.11 Parece-me que, neste caso, dictare quer dizer
que a mesma pessoa compõe escrevendo. Ou terá o autor querido dizer que tentou
escrever, mas, apesar de todo seu esforço, foi obrigado a recorrer ao taquígrafo?
Neste caso, a meu ver, ele não teria deixado de insistir sobre esse detalhe.
O emprego da palavra dictare para o Espírito Santo, como autor dos livros sagrados, parece ter sentido um tanto especial; dictare quer, nitidamente, dizer: ser o
inspirador, o autor deles. Porém, mesmo nesse caso, Agostinho distingue duas fases:
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“O Espírito Santo não apenas te dá essas soluções, mas também as dita”.12 O dom indica o proprietário; o ditado, a transmissão das idéias em uma inspiração.
Acontece, naturalmente, que o sentido da palavra dictare seja prescrever, como
nesta passagem metafórica da Carta a Pamáquio: “belo ensinamento, o de prescrever, do alto da fortaleza, os golpes ao combatente”.13 Mas qual é o sentido primeiro e normal da palavra dictare na obra de Jerônimo?
Tentemos encontrar as marcas do ditado nas obras, para assim indicar os diferentes momentos na vida de Jerônimo. Vamos limitar-nos aqui a um exame
dos próprios enunciados do escritor. Wikenhauser14 constata que, em 25 cartas,
Jerônimo menciona que as ditou: as dezenove primeiras epístolas não apresentam
qualquer indicação de ditado; já as cartas escritas em Roma (19-45) dão interessantes indicações acerca disso; após a doença nos olhos, Jerônimo não pode mais
escrever, nem sequer as cartas dirigidas ao papa Dâmaso.15
Em primeiro lugar, há um pequeno erro a se corrigir. As dezessete primeiras
cartas não falam em ditado; a carta 18 a, 16, 2 diz: “as tabuletas de cera estão completas; paremos aqui o ditado”16. É exatamente neste ponto que Jerônimo emprega
pela primeira vez, em suas cartas, a palavra dictare. O fato parece menos estranho
quando se considera que as dezessete cartas, com exceção da décima a Paulo de
Concórdia, precedem sua temporada em Antióquia e Constantinopla;17 ou seja,
poderíamos pensar que o jovem monge, que ainda não se ordenara, estava sem
recursos para poder dispor de um amanuensis. Portanto, as dezessete primeiras
cartas teriam saído diretamente da pena de Jerônimo.
Todavia, outras informações parecem contradizer essa suposição. Uma delas
é a carta de são Dâmaso, da primavera de 384, na qual o pontífice fala das cartas
“que tu (Jerônimo) ditaste um dia no deserto, e que eu li e copiei com avidez”.18
Dâmaso relata as palavras de Jerônimo: dixisti. Assim, não se pode pretender que
o papa, um grande senhor, empreste ao jovem monge do deserto seus próprios
métodos de composição. Este, é bem verdade, poderia ter mudado de perspectiva
ao longo dos anos, sobretudo desde sua estada em Roma, mas o lapso de tempo
não foi bastante longo para isso. Além do mais, durante seu retiro no deserto,
Jerônimo tinha junto consigo alguns alumni, que se aplicavam à arte de copista.19
Portanto, ele poderia perfeitamente tê-los ocupado com o ditado.
Na verdade, a palavra dictare, impossível de se encontrar na obra de São
Jerônimo até meados dos anos 378-380, surge na mesma época não somente em
sua correspondência, mas também em seus comentários20 e em suas traduções.21
Ora, é justamente aí que o “boi se sente atrelado” e não refreia mais seus passos, apesar de toda a carga que arrasta. Por temperamento, em consideração
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a convites amigos, ao sabor das circunstâncias, Jerônimo viu-se assoberbado
de trabalho, desde sua estada em Antióquia (377-379)22 e, sobretudo, desde
Constantinopla (379-382).
Mas precisemos: no prólogo à tradução das Homilias de Orígenes sobre
Jeremias e Ezequiel, ele diz que a pobreza o fez perder o auxílio dos taquígrafos.23
Quer dizer que, naquele tempo (380), ele já se habituara com a colaboração deles.
Seria, pois, necessário recuar ainda um pouco a data. Depois, os taquígrafos não
o abandonam mais. Como poderia dispensá-los o secretário e correspondente do
papa, que é, ao mesmo tempo, tradutor da Bíblia e conselheiro dos círculos ascéticos? Só a lista das obras distribuídas nos anos seguintes já faz compreender que as
eternas queixas pela falta de tempo não constituem apenas vãs desculpas, e que o
hábito de ditar seus escritos, criado em Antióquia, mostrou-se praticamente indispensável, sobretudo no período em que compõe até mil linhas por dia.24
Mais conclusiva ainda é a observação das doenças do santo Doutor: justamente em Constantinopla (379-382), Jerônimo está com a vista cansada, e pede
a Vicente um taquígrafo que possa escrever seu ditado.25 Em 383, ele implora a
indulgência do papa Dâmaso “para seus olhos enfermos, isto é, para aquele que
dita”.26 Ele parece dizer que não escreve com a própria mão porque os olhos já não
lhe permitem.
No que tange aos anos 387-389, temos um testemunho muito explícito:
Jerônimo dita porque está enfermo.27
Do final de 397 até a quaresma de 398, ele fica muito doente, e depois, no outono
de 398, tem uma recaída. Mais uma vez, fala de copista e de taquígrafo.28
No outono de 406, Jerônimo sente que está envelhecendo, e descreve “os males da velhice […] os olhos que se obscurecem”.29
A partir dessa data, as doenças já não lhe deixam a tranqüilidade indispensável a uma elaboração paciente. Suas confidências discretas são bastante comoventes para convencerem de quanto o idoso precisa de colaboradores indulgentes:
“Estou velho e não longe da morte […] talvez minha morte esteja sendo adiada
para eu completar meu trabalho sobre os profetas […]”.30
As circunstâncias do ditado
Acabamos de indicar os motivos que levaram São Jerônimo a ditar seus escritos.
Ele os compôs, assim, seja lectulo decumbens, nas doenças ou enfermidades mais
ou menos graves, seja, mais freqüentemente, devido à imbecillitas oculorum,31
sempre porque o tempo coagia o autor.
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O ritmo em que foram compostas certas obras de Jerônimo chega à temeridade. A palavra “rápido” já não basta: ele vai ditar sempre de modo muito rápido
o que lhe vem de repente ao pensamento.32 Mesmo os assuntos mais importantes
são ditados com mais pressa do que conviria.33 É que o escritor se acostumou a
reunir uma grande quantidade de informações e a misturar suas próprias idéias
com as dos outros,34 sem proceder a uma triagem.35 É por isso que à noite, à luz
de um pobre fogo, quando já não está podendo pesar as palavras que dita a seus
taquígrafos, ele pensa nos inimigos, os Epicuros e os Aristipos, que não deixarão
de criticá-lo.36
Na verdade, ele se sente mal com as exigências do processo,37 pois dita (= compõe) com tamanha pressa, que não lhe resta mais tempo nenhum para a correção.38 Só dispõe das “horas aproveitáveis” que rouba ao sono para retomar o
ditado.39 O leitor há de perdoá-lo,40 pois ele lhe consagra seus poucos momentos
livres para compor seus escritos ditando.41
A narrativa torna-se comovente quando o fim parece próximo, e Jerônimo
sente os sofrimentos de Isaac cego: a velhice cobriu seus olhos com um véu.
O Doutor de Belém ainda aproxima do fogo o volume hebraico, a fim de tentar ler.
No entanto, nem mesmo o sol seria capaz de dar-lhe bastante luz para ele distinguir os pontinhos. Enquanto pela voz de seus irmãos ele repassa os comentários
gregos, aproveita a calma da noite para ditar – sente-se forçado a fazê-lo – como
as idéias lhe vêm,42 como pode, e não como gostaria.43
Um novo obstáculo provém do exterior. Os peregrinos do mundo inteiro e
seus próprios confrades lhe roubam as horas de repouso. A aplicação tem que
suprir a falta de tempo. Jerônimo dita a intervalos.44
O trabalho, é bem verdade, encontra seu animador no público. Mas, quando
este parece desaparecer, tornando assim inúteis tantos esforços, quando os
bárbaros destroem o que Jerônimo ama acima de tudo, ele continuará a ditar
depressa, tapando os ouvidos, para não ouvir a voz do sangue.45 Entre as mais
duras perdas, depois da tomada de Roma, conta-se a de Marcella. Dois anos
mais tarde, ainda, “os soluços cortam as palavras daquele que está ditando”.46
Após o massacre dos amigos, após esse luto perpétuo, o velho tem que se esforçar por muito tempo a fim de reencontrar a ternura necessária para falar
com uma criança, como Pacátula. Mas, assim mesmo, ele o fará numa linguagem transtornada.47
Cícero dizia que as leis calam-se durante a guerra, quanto mais os estudos da
Sagrada Escritura, que pedem tantos livros, que exigem o silêncio e a aplicação
dos copistas. Não se atinge este objetivo sem segurança e vagar.48
47
Sim, enquanto ele dita, as guerras devastam o império. As províncias da África,
mas sobretudo Roma, a Roma eterna, são destruídas.49 Será que continuará a ditar? Sim, apenas para não parecer que se calou totalmente.50
Impossível repousar. A noite anterior à partida do correio, ele a passa ditando.51 Em meio ao ditado, avisam-no de que fulano ou sicrano solicita uma carta.
O emissário Sisínio, pronto para partir, já quer levá-la consigo.52 E isso torna-se um
hábito: o barco está quase sempre pronto para soltar as amarras. Que fazer, senão
ditar rápido o que a memória e o coração guardaram das leituras anteriores?53
Em tais circunstâncias, os mais diversos leitores são servidos do mesmo modo.
As duas desconhecidas da Gália – se é que realmente existiram, aquela mãe e a
filha, que não se entendem – recebem a obra de uma curta vigília;54 Paulino de
Nola, o poeta e estilista, lerá as palavras que vêm à boca do Doutor sem nenhum
acabamento nem pretensão literária.55 Que Agostinho se lembre: Jerônimo mete
os pés como um boi fatigado. Ele dita com tristeza, porque jamais poderá abraçar seu douto confrade.56 O bispo Teófilo receberá uma carta ditada no leito, no
quinto dia de enfermidade, no calor da febre.57 Até o papa Dâmaso terá que desculpá-lo por sua pressa.58
Os inconvenientes do ditado
A simples enumeração das circunstâncias em que foram ditadas as obras de São Jerônimo mostra quais eram as conseqüências negativas para a perfeição de sua produção
literária. Ele próprio foi o primeiro a confessar os inconvenientes de seu método.
No prólogo do Comentário sobre são Mateus, ele promete voltar a seu trabalho
“para que saibas qual é a diferença entre a audácia repentina do ditado e o esforço
meditado da redação”.59
O ditado depende do acaso, pode tornar-se uma temeridade devido à pressa, e
representa um perigo para o talento e a doutrina.60
Quando se trabalha sozinho, sem taquígrafo como testemunha, não se tem
pudor de voltar atrás com o estilete para alisar a cera; faz-se isso tão livremente
como ao traçar nela os sulcos. Assim, escrevemos o que merece ser conservado,
ao passo que ao taquígrafo, cujos dedos estão sempre indecisos na expectativa,
ditamos tudo o que nos vem aos lábios; temos vergonha de nos calar.61
“Não ditamos com a mesma delicadeza com que escrevemos”,62 pois “a linguagem só pode ser embelezada se a polirmos com nossa mão”.63
Pensemos unicamente nas dificuldades do ditado de uma obra como a tradução da Crônica de Eusébio, para calcular-lhe os inconvenientes. Wikenhauser 64
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imagina o taquígrafo a copiar primeiro os números e os tituli regum diretamente
do original e em latim, para depois escutar Jerônimo, que lhe repete a cada vez
o ano ao lado do qual o texto latino deverá ser colocado. Assim se explicaria
a correspondência exata entre a versão e o original. Mas Jerônimo não parece
confirmar essa hipótese. Ele diz justamente que os números eram indecifráveis,
perdidos entre nomes bárbaros. Como confiar semelhante tarefa ao taquígrafo
sozinho? Parece-lhes mais difícil encontrar a ordem do texto do que chegar a
compreender o sentido.65
No que concerne à técnica dos taquígrafos, Jerônimo reconhece que é difícil utilizar os sistemas de abreviações para os livros importantes que tratam dos
problemas místicos, especialmente se forem ditados de afogadilho.66 Ora, ele se
vê quase sempre reduzido a este extremo: suas obras mais técnicas de filologia e
espiritualidade, ele as dita rapidamente ao secretário.
No entanto, ele se apega a este método, e, às vezes, até o defende. Se palavras
se dizem de modo inconsiderado, declara, se não se pode deixar amadurecer o
escrito por meio de uma composição pessoal, o ditado antes faz pecar contra a
gramática do que contra a doutrina.67 É com ironia que responde aos adversários:
“Que eles saibam que a situação das igrejas ainda não é posta em perigo se eu omitir algumas palavras, devido à rapidez do ditado”.68
Mais séria e ainda não totalmente sincera é a desculpa apresentada no
Comentário de Ezequiel:
O benefício trazido a outros por nosso trabalho ditado sobre os profetas é deixado ao
julgamento de Deus e à consciência dos que não se preocupam com o estilo declamatório,
com os aplausos e o arranjo das palavras, e sim desejam saber o que seu texto narra do
passado, revela do presente ou indica do futuro.69
Afirmo que aí Jerônimo não é realmente sincero, porque ele gosta, e com razão,
que um assunto elevado seja tratado em uma língua apurada. Esta é a tendência
que se manifesta a partir de santo Hilário.70
O valor intrínseco das obras de Jerônimo foi enfatizado por especialistas; portanto, não tentaremos estabelecer uma nova escalada com o que assinalamos sobre o seu ditado, sobretudo porque esse ditado estende-se por períodos inteiros
de sua vida, nos quais somente um ou outro dos pequenos escritos – mas teríamos ainda que determiná-los – terá sido composto por sua própria mão. Mas isso
tem que ser levado em conta para se estabelecer o texto e apreciar o estilo.
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Manu propria
Na Vida de santo Hilário, Jerônimo assinalou como um fato extraordinário que
o velho de oitenta anos tenha escrito com a própria mão seu testamento, que, no
entanto, se reduz a uma pequena carta.71
Quanto a Jerônimo, podemos afirmar com certa verossimilhança, segundo
Wikenhauser, que somente um número bem restrito de cartas foi composto por
sua mão.72 Grützmacher estima ser esse o caso do Comentário da Epístola de são
Paulo a Filêmon, mais independente e menos superficial que os comentários posteriores.73 Ora, já que o autor não faz aí qualquer declaração sobre seu método de
trabalho, a conclusão é certamente duvidosa, senão falsa. E eis aqui por quê. Uma
nota do Comentário da Epístola aos Gálatas, menciona o accito notario.74 Ora,
este escrito foi iniciado alguns dias depois do da Epístola a Filêmon.75 Custa-nos
compreender – após tudo o que dissemos anteriormente – que Jerônimo possa
mudar de método no espaço de poucos dias.
No prefácio da segunda parte do Comentário de Habacuc, Jerônimo diz:
“Alterum […] in Abacuc librum scribimus […]”.76 Wikenhauser admite que esta obra
também tenha sido escrita pela mão do santo Doutor. Mas é muito fácil constatar
que scribere significa mais facilmente compor do que escrever com a própria mão.
Em uma longa incursão sobre o método de redação de Jerônimo, Alfred
Leonhard Feder prova que a obra De viris illustribus tem que figurar entre o
grande número das que foram ditadas.77
Mesmo que Jerônimo escreva, às vezes, com a própria mão, seria ainda preciso
saber se necessita de um amanuensis para recopiá-lo da tabuleta para o papiro. Uma
carta escrita diretamente neste último conteria demasiado número de erros.78
Podemos, portanto, supor que a palavra dictare conserva o sentido de ditar,
quando as circunstâncias não exigem que se recorra a outra interpretação. No
caso de dúvida, o ditado goza de conceito favorável.
O taquígrafo
Entre o ditado feito pelo autor e o texto que é transmitido, há uma dupla etapa a ser
percorrida: primeiro, a passagem do ouvido à mão dos taquígrafos, que se substituem
alternadamente, em horas fixas, junto ao autor; depois, a segunda etapa, do olho à mão
dos escribas, que reconstituem a taquigrafia em escrita comum; enfim, a passagem do
olho ou do ouvido à mão dos calígrafos, que transcrevem definitivamente a cópia […].79
50
De fato, ainda que os dados sejam vagos, resta-nos um número suficiente de índices para podermos falar de uma floração da taquigrafia, nos primeiros séculos
da literatura cristã, em especial nos relatos dos Concílios.80 Em seu De doctrina
christiana, santo Agostinho gostaria até de ver a taquigrafia figurar ao lado da
escrita entre as artes úteis e preciosas de que se servirá o cristão.81
A palavra que designa o taquígrafo é notarius, a mesma que Jerônimo emprega
para traduzir ταχυγράϕοϚ.82
Como caracterizar este técnico? Prudêncio descreve o taquígrafo Cassiano,
que foi martirizado em Ímola, perto de Bolonha: “experto em representar todas
as palavras com sinais rápidos e em acompanhar com muita prontidão qualquer discurso, graças a pontos muito leves”.83 A própria expressão de Jerônimo
em uma Carta a Marcella inclui três pontos: a) “velox notarii manus”; b) “me
dictante”; c) “signare”.84 Na Carta a Princípia, ele acrescenta mais um traço aos
primeiros: “in tabulis”, em tabuletas de cera. Aí também ele explicita a palavra
signare por meio da menção de certo sistema econômico de abreviações quodam
signorum compendio.85
Falamos longamente do ditado, resta-nos agora comentar a rapidez e o sistema de abreviações.
A rapidez
Nos sermões, os taquígrafos acompanham o orador, e reproduzem com maior
ou menor perfeição o sentido e o estilo característico do discurso. Os sermões
de Jerônimo que foram encontrados no-lo provam.86 Mas tampouco podemos
esquecer que a memória dos orientais e mesmo dos romanos era mais alerta que
a nossa, e a imaginação deles terá sido capaz de completar o que faltou ao texto.
Infelizmente, quanto ao controle efetivo de Jerônimo na publicação de suas alocuções, ficamos limitados a conjecturas.87
Para se calcular a capacidade de seus taquígrafos, seria preciso saber o ritmo
de Jerônimo ao compor. Às vezes, ele precede os taquígrafos, e a “torrente de suas
palavras esmaga os sinais deles”; outras vezes, são eles que lhe roubam as palavras
com o auxílio dos mesmos sinais rápidos.88
Resta-nos um testemunho com indicações muito precisas, é o Prefácio ao
Livro de Tobias, obra cujo ditado terá exigido uma noite. Pretendeu-se inferir daí
a rapidez da taquigrafia antiga. Mas, para começar, como fixar a extensão de uma
noite? Algumas horas e mesmo alguns minutos de diferença mudam de modo
notável o cálculo em um assunto tão delicado.
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