A RELEVÂNCIA DOS POBRES PARA O CARISMA DEHONIANO Comissão Teológica Dehoniana Continental – América Latina (CTDC-AL)1 Com a eleição do Papa Francisco, no dia 13 de março de 2013, os olhos do mundo se voltaram para a América Latina ou, como disse o próprio Cardeal Bergoglio em sua primeira aparição: “o papa que veio do fim do mundo”. De fato, era o primeiro pontífice não europeu em 1200 anos de história. Logo nos primeiros dias ele já indicou a linha mestra do seu pontificado: “Como gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres!”2 Parecia repetir a emblemática frase de João XXIII feita às vésperas do Concílio Vaticano II e que marcou fortemente bispos e teólogos latino-americanos naquela ocasião: “Para os países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta como é e como quer ser, como Igreja de todos, em particular como a Igreja dos pobres”.3 Teólogos como Gustavo Gutiérrez assumiriam este pronunciamento profético como missão pessoal e tarefa irrenunciável da reflexão teológica. Identificamos nestas palavras do papa uma das grandes motivações do pensar teológico de Gutiérrez: pensar a fé a partir da “Igreja dos pobres”.4 Nascia assim a Teologia da Libertação, muito falada, mas nem sempre lida e conhecida. O Concílio não deu aos pobres a relevância que seria de se esperar. A questão da secularização, do diálogo ecumênico e interreligioso, dentre outras, pareciam mais urgentes. Por isso, os bispos latinoamericanos continuaram a reflexão conciliar nas Conferências Gerais do Episcopado Latino-americano. O CELAM havia sido fundado na primeira de suas conferências, em 1955, no Rio de Janeiro. A segunda foi em 1968, em Medellín, na Colômbia. Seguiu-se a Conferência de Puebla, no México, em 1979, a de Santo Domingo, na República Dominicana, em 1992 e a quinta Conferência do CELAM, em Aparecida, no Brasil, em 2007. Este itinerário produziu a célebre “opção preferencial pelos pobres”, que foi assimilada pela Doutrina Social da Igreja no pontificado de João Paulo II. Depois a conjuntura eclesial mudou sensivelmente. Houve até quem cogitasse que Bento XVI iria desautorizar esta expressão durante sua presença na Conferência de Aparecida. Porém, suas palavras já no discurso inaugural foram tão breves quanto certeiras ao legitimar e enquadrar teologicamente a opção pelos pobres e a libertação teologicamente, evitando qualquer tipo de reducionismo, em especial o sociológico.5 Passados quase nove meses do início de seu pontificado, Francisco trouxe à luz seu primeiro documento oficial com um projeto orgânico de evangelização, a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium.6 O texto tem a marca característica de sua coloquialidade latino-americana. Parece uma junção do Vaticano II, encerrado com a publicação, em 1965, da “Gaudium et Spes”, e o magistério de Paulo VI com a sua sempre atual “Evangelii Nuntiandi” (1975). De fato Francisco cita, logo nas primeiras páginas, a Exortação Apostólica Gaudete in Domino (1975), de Paulo VI. A segunda referência é a Bento XVI com sua Deus Caritas Est (2005). Tudo isso seria de se esperar em uma exortação que teria como objetivo organizar as diversas Este texto representa a síntese dos debates ocorridos ao interno da CTDC-AL no ano de 2014 tendo em vista o Capítulo Geral – 2015. Participaram os membros da comissão: P. André Vital (BRE), P. Hugo Salas (ARG), P. António Manuel Teixeira (VEN), P. Rubens Rieg (BRM) e P. João Carlos Almeida (BSP), coordenador da comissão e responsável por esta síntese. 2 A afirmação foi feita diante de uma legião de jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas, na Sala Paulo VI, no dia 16 de março de 2013. 3 Palavras pronunciadas no dia 11 de setembro de 1962. In: AAS, v. 54, p. 682, 1962. 4 GUTIÉRREZ, G. La verdad los hará libres. Confrontaciones. CEP; IBC, 1986, pp. 234-247. 5 Discurso de Bento XVI, pronunciado em Aparecida, a 180Km de São Paulo, Brasil, no dia 14 de maio de 2007, na abertura oficial da 5ª Conferência do CELAM. 6 A Evangelii Gaudium foi promulgada no dia 24 de novembro de 2013. Antes dela, em 29 de junho de 2013, apareceu a Encíclica Lumen Fidei que é ainda em grande parte da lavra de Bento XVI, como confessa o próprio Papa Francisco no texto do documento que trás seu nome e algumas de suas contribuições. 1 1 proposições do Sínodo para a Nova Evangelização, ocorrido em 2012, ainda no pontificado de Bento XVI. O que causou espanto foi que, logo na quarta nota, Francisco cita o Documento de Aparecida, no qual ele próprio participara como membro da comissão de redação: “Na doação, a vida se fortalece; e se enfraquece no comodismo e no isolamento. De fato, os que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de comunicar a vida aos demais. [...] Aqui descobrimos outra profunda lei da realidade: A vida alcança-se e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros. Isto é, definitivamente, a missão.”7 Não foi a única referência ao Documento de Aparecida no texto do Magistério Pontifício. Além de citar a homilia inaugural de Bento XVI em Aparecida, na nota 13, existem pelo menos doze referências literais a Aparecida.8 Inclusive o número 124 do documento faz uma referência explícita no texto.9 Os pobres, por sua vez, recebem 64 menções na Evangelii Gaudium. Chama a atenção o número 198 que recolhe a sensibilidade de seus antecessores, João Paulo II e Bento XVI, no contexto das reflexões do CELAM, no que se refere à opção preferencial pelos pobres situada no quadro da misericórdia de Deus: Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus “manifesta a sua misericórdia antes de mais” a eles.10 Esta preferência divina tem consequências na vida de fé de todos os cristãos, chamados a possuírem “os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus” (Fl 2,5). Inspirada por tal preferência, a Igreja fez uma opção pelos pobres, entendida como uma “forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja”.11 Como ensinava Bento XVI, esta opção “está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com a sua pobreza”.12 Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a emprestarlhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendêlos e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles. Desde modo verificamos que o magistério de Francisco toca o âmago dos nossos debates preparatórios para o XXIII Capítulo Geral. Conhecer algo desta sensibilidade na América Latina pode ser útil para mergulharmos em águas mais profundas, seguindo a ordem de Jesus a Pedro: Duc in altum (cf. Lc 5,4). 7 CELAM, Documento de Aparecida, 360. Apud: FRANCISCO, Evangelii Gaudium, 10, notas 4 e 5. Ibidem, notas 13, 17, 18, 21, 63, 103, 104, 106, 107 e 147. 9 Ibidem, 124. 10 JOÃO PAULO II, Homilia durante a Santa Missa pela evangelização dos povos (Santo Domingo, 11 de outubro de 1984), 5: AAS 77 (1985) 358. 11 JOÃO PAULO II, Sollicitudo rei socialis (30 de dezembro de 1987), 42: AAS 80 (1988), 572. 12 BENTO XVI, Discurso na Sessão inaugural da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe (13 de maio de 2007), 3: AAS 99 (2007), 450. 8 2