Um profundo mergulho nos (des)enlaces do amor
RAQUEL RIBEIRO COSTA
RESUMO:
Este trabalho propõe a articulação de uma abordagem mítica à leitura de alguns contos de Marina Colasanti. Revisitar a
história de Eros e Psique permite estabelecer/pensar configurações para o amor e o feminino que iluminam os contos A Princesa Mar a Mar e O Moço Que Não Tinha Nome.
Através da diversidade de símbolos presentes nos contos, o
texto desvela alguns olhares dentro de infinitos caminhos, que nos
levam a um tema comum: possibilidades femininas de amar. Abordamos diferentes aspectos do “ser mulher”, que não se restringe a um único comportamento, a um único paradigma. Da mesma
forma, multifacetada são as relações amorosas, o amor.
Ressaltamos ainda os aspectos relevantes à análise dos contos, ou seja, a força que advém do sentimento de amor imanente
aos textos, transfigurados por uma linguagem acima de tudo poética, em que brilha o vigor da metáfora.
A mitologia é, sem dúvida nenhuma, um tema que envolve
a humanidade. É uma tendência enraizada na oralidade que nos
leva à cultura popular e clássica ao mesmo tempo, tendo sua origem diversificada é fruto de diversas misturas.
A escolha de relacionar o mito aos contos de Marina Colasanti deve-se a seu poder simbólico incontestável. De acordo com
Johnson (1993), a história de Eros e Psique pode ser utilizada
para explicar a psicologia feminina. É um mito pré-cristão, registrado na era clássica, todavia sua fonte provém de uma tradição
oral.
Vários os estudiosos tiveram como fonte de pesquisa este
mito. Muitos psicólogos interpretaram a história de Eros e Psique
como sendo a representação do amor e da “feminilidade onde
quer que ela se encontre: seja no homem ou na mulher” (JOHNSON, 1993, p. 14). Entre esses psicólogos está Jung, que aprofundou os estudos sobre a alma humana, dando atenção especial à
expressão de padrões psicológicos básicos presentes no mito:
“Jung chamou de anima a faceta feminina do homem e de animus, a masculina da mulher” (Id., ibid., p. 14).
A história mais antiga de Psique é encontrada nas Metamorfoses, de Apuleio. Em linhas gerais, diz a história que Afrodite, devido à inveja, havia mandado seu filho Eros despertar em
Psique, possuidora de uma beleza incontestável, a paixão por um
ser horrível. Eros, porém, é acidentalmente ferido por sua própria
fecha, enamora-se da moça e a torna sua mulher. Certa de que
tinha se casado com um homem horrível, talvez um monstro,
Psique nunca consegue ver o rosto dele, pois ela o recebe à noite,
quando ele se torna invisível, isso a torna “prisioneira da própria
felicidade” (BRANDÃO, 1991, p. 211).
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Esse conflito perturba Psique, que ama um ser “sem rosto”,
que pode ser um monstro, assim como suas irmãs a haviam alertado. Segundo Junito Brandão (Ibidem, p. 212). Elas retornam
algumas vezes ao palácio, semeando a desconfiança em Psique e
orientando-a sobre a cilada para matar o “marido serpente”. Envolvida neste dilema, Psique decide desvendar o mistério e ver o
rosto do amado, mesmo tendo ele advertido-a de que não o fizesse. Robert Johnson (Op. cit., p. 33) relata esse fato ressaltando o
papel passivo que Psique exerceu naquele momento “Ela poderia
ter qualquer coisa que quisesse, viveria em seu paraíso, desde que
não o olhasse nem tentasse saber quem era ele. Psique concorda,
sem discutir. Afinal, quer ser sua esposa e fazer tudo que ele deseja”.
Quando Psique finalmente olha pela primeira vez o rosto de
seu amado - o qual pensava ser um monstro, que estava prestes a
matar -, ela se apaixona perdidamente. Devido à surpresa ao se
deparar com tamanha beleza, Psique “Afasta a lâmpada bruscamente e uma gota de óleo quente cai no ombro direito de Eros,
que acorda com dor” (Id., ibid., 37), sentindo-se traído Eros foge.
Essa dor não é só física, representa a descoberta do outro que se
dá de forma dolorida para os dois. . Psique decide conquistá-lo
novamente, agora consciente ela mesma da busca por seu amado.
Para reconquistar Eros, Psique precisa cumprir tarefas designadas
por Afrodite. Para Johnson (Op. cit., p. 71), “Psicologicamente
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falando, a carga das tarefas impostas por Afrodite à pobre Psique
é a mais pesada registrada na literatura.”.
Afrodite encaminha Psique até uma sala e mostra-lhe um
monte enorme de sementes misturadas: milho, cevada, papoula,
ervilha e feijão. Diz, então, que ela deve selecionar cada espécie
de semente em montes distintos, até o anoitecer. Psique cumpre a
primeira tarefa, ajudada por formigas.
Em seguida, Afrodite ordena a Psique que adquira amostras
de lã dourada que deveriam ser retiradas dos terríveis carneiros do
sol. Eram animais enormes, agressivos, providos de chifres, que
ficavam no campo. Por isso, se Psique tivesse que andar entre eles
certamente seria esmagada ou morta. Uma vez mais a tarefa parece impossível, até que um verde junco vem em sua ajuda e a aconselha a esperar até o pôr-do-sol, quando os carneiros se recolhem e se dispersam. Nesse momento, ela poderá apanhar com
segurança fios do velo de ouro das amoreiras, contra as quais os
carneiros tinham se raspado.
Para a terceira tarefa, Afrodite põe uma jarra de cristal na
mão de Psique e manda-a encher com a água de um regato proibido. O tal regata cai em forma de cascata de uma fonte no pico do
mais alto rochedo íngreme até a mais ínfima profundeza do mundo subterrâneo, antes de ser levado para cima através da terra para
emergir uma vez mais da fonte. O regato gelado também é guardado por dragões, o que torna a tarefa de encher a jarra quase
impossível. Desta vez, quem vem ajudar Psique é uma águia que
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“Alça vôo para o centro do rio, mergulha no meio daquelas águas
turbulentas e perigosas, enche-a e devolve perfeitamente a salvo
para Psique. Tarefa cumprida.” (JOHNSON, 1993: 83). A águia
simboliza a habilidade de ver a paisagem de uma perspectiva
distante e precipitar-se velozmente para apoderar-se do que realmente necessita.
Na última tarefa, Afrodite deseja que Psique enfrente o
mundo dos mortos (Hades) a fim de ir a Perséfone – deusa do
inferno – para que fosse colocado em uma caixinha um pouco da
beleza imortal. Psique é informada de que encontrará pessoas que
lhe pedirão ajuda e por três vezes deverá endurecer seu coração e
se negar a atender aos apelos, “não deveria deixar-se vencer pela
piedade ilícita” (BRANDÃO, 1991, p. 218) para poder continuar.
Para Johnson (1993:86), esta tarefa designa o passo mais importante na evolução de Psique: “Ao mesmo tempo em que é mais
difícil, essa quarta tarefa de psique também é a mais importante.
E muito poucas são as mulheres que conseguem atingir esse nível
estágio de evolução”.
Psique consegue cumprir tudo, mas não resiste, abre a caixinha que continha o pedido de Afrodite e cai em sono profundo.
Eros enfrenta sua mãe aliando-se a Zeus e acorda Psique do sono.
Zeus intercede por Psique e Afrodite reconcilia-se com ela. Finalmente, o casamento de Eros e Psique é realizado e ela torna-se
imortal.
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Numa interpretação psicológica do mito de Eros e Psique,
pode-se afirmar que Psique representa a capacidade de desvendar
a si próprio através da busca pelo outro. O desejo a impulsiona a
seguir em uma busca interior pela conquista do futuro: “A faculdade de amar da alma individual é divina e (...) a transformação
pelo amor é um mistério que edifica.” (Id., ibid., p. 249).
De acordo com Jean Shinoda Bolen, através da necessidade
de conhecimento de nós mesmos, desenvolvemos uma busca natural de pesquisa e reflexão. Por meio dessa incessante busca,
envolvemo-nos no mundo mítico onde a realidade ou a imaginação da realidade fluem na construção do “eu”. Então, conseguimos recuperar imagens simbólicas trazidas pelas deusas gregas.
Estas representam formas, imagens arquetípicas, descritas por
Jung, que oferecem diferentes aspectos do “si mesmo”, permitindo desvendar a alma humana.
Os arquétipos femininos, dentro de suas totalidades complexas, combinam-se entre si de acordo com determinado aspecto
de cada mulher. Juntos compõem o círculo das qualidades humanas. A capacidade de amar é sem dúvida uma delas e pode configurar-se de maneiras infinitas. Envolvida por essas possibilidades,
arrisco-me a descrever visões sobre esse sentimento vivido pelas
personagens, em destaque as femininas, criadas por Marina Colasanti.
No conto “A princesa mar a mar”, (COLASANTI, 1997, p.
7-12), há três moças que representam configurações arquetípicas,
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três diferentes paradigmas de comportamento feminino, representados pelas filhas do rei. Ele deseja casá-las, “não tendo filhos
homens precisava de espadas” (Id., ibid., p. 7), por isso providencia suas pinturas para que possam ser apresentadas a seus pretendentes. Contudo, as pinturas não conseguem capturar a essência
delas.
O embaixador do rei decide, então, representá-las através
de metáforas. Para a primeira filha associou uma pérola; para a
segunda, a representação seria uma rosa. Estas duas conseguiram
se casar. Mas a terceira filha não consegue, pois seu pretendente
amedrontou-se com sua representação: o MAR. Até que aparece o
Monarca dos Homens Navegadores e com ele, desbravador dos
mares, a terceira filha se casa.
Nas primeiras frases do conto percebemos que o pai desejava casar suas filhas. O desejo parte dele e não delas ou dos homens que as desposariam: “Três filhas tinha o rei. E as três [ele]
queria casar” (Id., ibid., p. 7, grifo nosso).
O pai esperou o momento adequado de maturação das filhas, esteve atento aos sinais que lhe indicariam o momento certo:
“dia-a-dia medindo-lhes a altura e sopesando-lhes as tranças”
(p.7). Desta forma, ele demonstra seu interesse pelas filhas, acompanhando atentamente o crescimento delas, ainda que seja
uma espécie de proteção para “negociá-las”, casá-las no tempo
correto. Em contrapartida, ele não deixou de suprir suas próprias
necessidades: mesmo amando suas filhas, não realiza o casamento
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para satisfazê-las. A paciência que o fez esperar não era de sua
natureza, pois, afinal, “a paciência deixou de ser necessária”(p.7),
ou seja, ele só foi paciente na medida do necessário, quando esta
virtude deveria fazer parte de um amor sem interesses, o que não
ocorre.
O tempo passa, o rei percebe que sua primeira filha está
pronta para casar e ordena que sua imagem fosse capturada através das mãos de um pintor, em uma tela: “deu-lhe a ordem que
pretendia vir a repetir mais duas vezes: que mandasse pintar o
retrato da princesa e o levasse às cortes vizinhas em busca daquele que a faria rainha” (Id., ibid., p. 7). A tentativa de retratar a
jovem foi inútil e mais duas tentativas foram feitas, pois a beleza
da princesa não se revelava nas pinturas e por isso fora “decapitado, sem demora, aquele que ousara enfear a filha do Rei” (Id.,
ibid., p. 8).
Já não havendo pintores dispostos a enfrentar tal missão, o
Embaixador do Rei resolve recorrer a outra forma de retratar as
donzelas, a metáfora: “Levarei o retrato de outra maneira” (p.8).
Neste momento é possível perceber que a constituição do ser não
se dá tão somente pelo exterior.
A representação da primeira filha é levada às fronteiras do
Norte para ser apresentada ao monarca, “a mais linda pérola
guardou–a num cofre pequeno” (Id., ibid., p. 8). Quando o embaixador chega ao castelo do monarca é inverno e ele apresenta a
pérola, “Bela, rara, pálida”( Id., ibid., p. 8). Na metáfora fica mar8
cada toda a passividade desta princesa sem forças, pois é frágil,
precisa ser guardada em um cofre pequeno “abriu o cofre pequeno, e sobre o fundo de veludo, exibiu a pérola” (Id., ibid., p. 8).
A representação da primeira filha é um objeto próprio para
admiração e cuidados, sem vida e movimento. O monarca a aceita
e ela se torna a rainha das Terras do Norte.
Chega o tempo de a segunda princesa se casar. O pai, que
não se mostrou conhecedor do interior de suas filhas, oferece ao
embaixador a chave do tesouro. Este por sua vez recusa, pois
tinha conhecimento de quem eram as princesas, e de que eram
diferentes entre si.
O Embaixador simboliza a segunda filha com um botão de
rosa. No verão, apresentou a princesa ao monarca, “tirou de debaixo do manto o botão que havia desabrochado, e exibiu à corte
a mais linda das rosas” (Id., ibid., p. 9). Esta princesa, porém,
apesar de sua aparente passividade já mostra alguma resistência.
Ela foi representada no verão pela mais bela rosa, que faz parte de
um lugar mais livre do que um cofre, um jardim. Mesmo hesitando em aceitar a donzela, por causa de seus espinhos, como advertiu o Embaixador, o monarca se casa com ela, tornando-a Rainha
das Terras do Sul.
O tempo de casar se aproxima da terceira filha. Quando enfim o embaixador chegou ao castelo, no alto da mais alta montanha daquele reino, a tempestade chegava com ele. Esta tempestade representa a incapacidade do monarca frente à potência e à
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plenitude do mar, ou seja, da própria princesa, pois essa foi a
metáfora escolhida para representá-la. O embaixador adverte:
“Ela é como o mar – disse lentamente. - Profunda e misteriosa.
Cheia de riquezas escondidas. Seus movimentos obedecem à Lua.” (Id., ibid., p.10).
A terceira princesa precisava de um homem a sua altura,
que não a temesse e que não a quisesse dominar ou prender, pois
ela não pôde ser guardada em um vidro, nem em um pequeno
cofre ou ainda debaixo de um manto. Ela não seria a rainha do
oeste, representação da morte, onde termina o brilho do sol.
O tempo passa, as suas irmãs mantiveram suas vidas cuidando de enxovais e filhos, como já se esperava – o que expressa
a expectativa social que recai sobre o comportamento feminino.
Foi quando veio do leste, representação do nascimento e da vida,
a notícia de que uma vela havia surgido do “Leste, onde não havia
fronteira porque o Reino terminava no mar” (Id., ibid., p. 12). O
amor não pode prender, pois é uma construção de autonomia,
como apresenta a história de Eros e Psique. No amor deve-se ter
conhecimento de si e do outro. O amor deve nascer “sem rosto”
para que depois possa ser concretizado. Mas, sobre este aspecto
trataremos no conto seguinte, quando apresentamos “O moço que
não tinha nome”.
Bons ventos trouxeram o Monarca Navegador. Dessa vez
não foi o pai da princesa que mandou apresentá-la, nem mesmo o
Embaixador levou sua representação. O Monarca a amava mesmo
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sem conhecer o seu rosto: “Como, sem tê-la visto, a conhecia
desde sempre. Como, conhecendo-a, queria casar com ela” (p12).
O Monarca não a temia, pois já era conhecedor dos mistérios do
mar. O rei custou a compreender o que acontecia. O pretendente
sem necessitar da intervenção de ninguém traz tatuado em seu
coração o conhecimento do AMOR em sua plenitude.
Desta vez não foi preciso falar com receios sobre a princesa
“- Aqui está o seu retrato - disse, alto, para que todos ouvissem gravado sobre o meu coração” (Id., ibid., p. 12). Nesse momento
a princesa encontrou, nos olhos dele, o reconhecimento de sua
identidade. Agora os dois tornam-se unidade, momento em que
ela teve a certeza de que seria ele seu marido: “Olhou para aqueles olhos, azuis de tanto se debruçarem sobre a água” (Id., ibid., p.
12).
A Princesa Mar a Mar vivencia esta experiência de se encontrar consigo mesma através do encontro com o outro, quando
vê seu próprio retrato tatuado no peito do Monarca Navegador.
Ela viu “aquele olhos, azuis de tanto se debruçarem sobre a água”
do mar, pois os olhos do monarca refletiam a própria imagem da
princesa que “soube com quanta alegria, que seu marido havia
chegado” (Id., ibid., p. 19).
O desfecho do conto justifica seu título “A princesa mar a
mar”, construção de um amor representado pela força do mar,
nascendo no leste, envolvido de vida, numa intensidade incomensurável como o mar, como o ato de amar. Ao pronunciar o título
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m-a-r-a-m-a-r, que se confunde como verbo amar há uma suave
explosão repetida pelo fonema /M/ bilabial (temos de unir os dois
lábios para poder pronunciá-lo) que simula o movimento das próprias ondas que beijam a areia do mar, consagrando a representação do AMOR.
No conto “O moço sem nome” (Id., ibid., p. 25-8), o amor
passa a ser o reconhecimento mútuo, o equilíbrio na descoberta
do auto-conhecimento. Este conto focaliza um homem que não
tinha nome e também não tinha rosto: “– Psiu! – chamavam-no as
pessoas” (Id., ibid., p. 25). Além de não ter rosto, “quem o tinha
chamado via em lugar do rosto dele seu próprio rosto refletido,
como num espelho. E enchia-se de espanto” (Id., ibid., p. 25).
Este espanto dava-se devido à falta de conhecimento que tais
pessoas tinham delas mesmas, devido ao medo do desconhecido,
pois olhar para si mesmo, reconhecer-se pode ser ato de tamanha
estranheza para aqueles que não têm a consciência de seu próprio
“eu”. Por não ter nada em seu rosto que indicasse o que era comum aos outros, essa ausência justamente o tornava único, “impossível de ser confundido com qualquer outro” (Id., ibid., p. 25).
Esse vazio no rosto ocupava também a alma, o homem sentia a
necessidade de partir “à procura do rosto que lhe pertencia e que,
certamente, havia de estar perdido em alguma parte do mundo”
(Id., ibid., p. 25).
Em sua viagem à busca de “si mesmo”, o moço passa por
caminhos que não o levavam a lugar algum, pois a resposta para a
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sua busca não estava no final da viagem, estava na própria busca:
“Passava de uma cidade a outra, de uma casa a outra, sempre
procurando” (Id., ibid., p. 26). Esta procura era a chave para o
caminho do seu próprio encontro: “E nesse caminho, um dia encontrou a moça que voltava da fonte” (Id., ibid., p. 26). De acordo
com Michelli (2006, p. 242), “O homem é compreendido como
um ser completo, inteiro e não uma metade que busca avidamente
seu complemento na tentativa de recuperar a unidade perdida,
sentindo-se, por causa desse sentimento de falta, inferiorizado”.
Compreender essa distinção torna-se essencial para estabelecer
que esta busca caracteriza-se pelo auto-conhecimento: “Ia tão
lentamente para não entornar o cântaro equilibrado no alto da
cabeça, que nem o viu chegar pela trilha. E quando ele se aproximou, oferecendo–se para carregar o cântaro, foi com surpresa
agradecida que encarou o rosto vazio. Mais do que com espanto.”
(COLASANTI, op. cit., p. 24).
Ao ver o moço sem nome, a moça que voltava da fonte olha-o “mais do que com espanto”, com surpresa agradecida e
feliz, sentimento que se mistura a outros tantos. Com cuidado de
que quem teme e deseja desvendar o desconhecido, a moça lançase ao desafio: “Andando devagar, para prolongar a caminhada o
moço acompanhou-a até sua casa” (Id., ibid., p. 26). É ela quem o
conduz pelo caminho, ele a acompanha, o desejo de descobrir e
conhecer o outro e, por conseqüência, a si mesmo é mútuo. Na
manhã seguinte, ele é quem a aguarda; ela é quem vai a seu en13
contro: “E quando ela chegou, novamente (ele) se ofereceu para
carregar o cântaro” (Id., ibid., p. 26, grifo nosso).
Os dias se passam e eles adquirem ter mais conhecimento
um sobre o outro: “Assim aconteceu também no outro dia, e nos
dias que vieram depois. Agora já se demoravam sentados à beira
da nascente, conversando sem pressa, enquanto o tempo escorria
junto com o regato”( Id., ibid., p. 27).
A moça apaixona-se inicialmente por um homem sem rosto, cuja imagem é desvendada com o passar do tempo, com o
convívio, essencial para o processo de maturação do amor. Ela
passou a amar o que havia por de trás do “rosto”: “E a cada novo
encontro, ela olhava para os próprios olhos refletidos nele e os via
ficarem mais brilhantes, olhava sua boca e só lhe via sorriso. Pouco a pouco, a ausência do rosto foi perdendo a importância” (Id.,
ibid., p. 27). De acordo com Johnson (Op. cit., p. 18), “Afrodite é
o princípio que está constantemente espelhando para nosso inconsciente cada experiência vivida”. O moço sem rosto espelha a
face da amada tornando-se mais próximo de sua própria identidade. Michelli (2001, p. 235) atesta que: “A história de Eros e Psique perfaz o caminho do amor. Inicialmente há um lado primitivo
do amor (...) Eros não quer que Psique o veja como forma de a
manter na ilusão, na fantasia de quem ele, no fundo, não é, imagem tecida por obra da paixão inicial.”.
No conto “O moço sem rosto”, o nascimento do amor se dá
na fonte, onde “começavam a boiar as primeiras folhas mortas”
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(Id., ibid., p. 27). A moça anseia encontrar com seu amado e assim o chama, concretizando o sentimento: “Em ânsia estendeu–
lhe as mãos. E quase sem sentir, num sopro, Amado! Foi o nome
que lhe deu” (Id., ibid., p. 27).
No encontro com seu próprio “eu”, ele e ela reciprocamente desvendam o amor. O moço estabelece sua forma, agora possuía nome, rosto, autonomia, identidade: “Traços cada vez mais
nítidos, desvendando o rosto enfim encontrado” (Id., ibid. p. 27).
Deste modo, é possível afirmar que o amor nasce da fonte
do conhecimento e da aceitação que se tem de si e do outro. Ele
nasce “sem rosto” e aliado à “busca” constante, associa-se ao
Prazer: “Pingentes de gelo formavam-se nas folhas. Adensavamse as nuvens. Mas ele, o homem que agora tinha rosto e nome,
sorria como um sol” (Id., ibid., p. 28; grifo nosso). Experimentar
a felicidade significa atravessar um processo de busca intensa e
ter conseguido encontrar, no fim.o “fruto” deixado pela união de
Eros e Psique: “O nome da filha de Psique e Eros é traduzido por
Prazer. Minha intuição me diz que melhor teria sido chamá-la de
Alegria ou Êxtase.” (JOHNSON, op. cit., 101).
Em âmbito comparativo, Afrodite é o parâmetro de beleza
e fertilidade até que surge Psique, movimentando um mundo de
novas possibilidades. Assim como a Princesa Mar A Mar, Psique
é diferente, não conseguiu casar na “época” certa, ambas tiveram
que passar por processo de espera e aprendizado, o que as torna
maduras, conhecedoras delas mesmas e de seus amados.
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Psique tinha o dom da beleza, mas não possuía a imortalidade de uma deusa. A princesa não era igual às suas irmãs, ela
não pôde ser representada, pois o embaixador não conseguiu encher “um grande frasco de vidro do mar em sua imensidão” (Id.,
ibid., p. 10). A profundidade que Psique representa, corresponde
ao mar interior com conflitos, névoas, dúvidas e medos, porém
“livre, forte, profundo e misterioso. Cheio de riquezas escondidas” (Id., ibid., p. 10).
Ao observarmos o nascimento de Afrodite e Psique, é possível perceber que elas são bem diferentes. De acordo com Johnson (Op. cit.), Cronos, o filho caçula de Uranos (deus do céus),
cortou as genitais de seu pai e arremessou-os ao mar, assim fertilizando as águas e permitindo o nascimento de Afrodite. Já Psique
foi concebida quando uma gota de orvalho do céu caiu sobre a
terra.
Neste aspecto, a princesa aproxima-se de Afrodite, pois esta deusa, assim como a princesa, não se deixa dominar. Ambas
são representadas pelo mar: “Pode-se admirá-las, ou ser esmagado por sua feminilidade arquetípica” (Id., ibid., p. 18). Assim se
sentiu o monarca a quem foi oferecida a sua mão, afirmando que
“– Ela é grande demais para mim.” (Id., ibid., p. 11).
A todo o momento, dentro de nós, os arquétipos de Afrodite e Psique vivem em conflito e harmonia. Segundo Robert Johnson (Id., ibid., p.19) cada vez que um ser humano “se apaixona e
vê as características do deus ou da deusa na pessoa amada, é A16
frodite refletindo em seu espelho nossa imortalidade ou qualidades divinas”.
No conto “A Princesa Mar a Mar”, o amor concretiza-se através do reconhecimento do homem em relação a sua amada: “É
ele quem vai a busca da amada, vindo do leste, nascimento e origem do sol, da própria vida” (MICHELLI, 2006, p. 8). O Navegador pode ser vinculado a Eros no sentido de que ambos fortalecem o crescimento de suas amadas. Johnson (Op. cit., p. 30) analisa Eros como o homem interior, ou seja, o animus da mulher,
acrescentando que “também podemos vê-lo como princípio da
união e harmonia, que é o clímax de nossa história. Eros não é
apenas sexualidade, bastando lembrar que suas flechas têm por
alvo o coração”. Assim como foi “Tatuado em seu peito” (Id.,
ibid., p. 11) que o Monarca Navegador trouxe a “imagem” de sua
amada.
A Princesa “soube, com quanta alegria soube, que seu marido havia chegado”. Ela o esperava sua vida seguiu sempre igual.
Esta espera da princesa não foi acompanhada pelo restante do
reinado, pois “o tempo não pára porque uma filha do Rei está sem
marido” (Id., ibid., p. 11). Contudo, ela soube reconhecer seu
amado: “olhou para aqueles olhos azuis de tanto se debruçarem
sobre a água” e ela viu-se refletida neles, assinalando uma relação
amorosa travada pela semelhança.
No conto “O moço que não tinha nome” evidencia–se a
jornada heróica que envolve incertezas: “Desse modo viajava,
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fazendo seu rumo como quem atravessa um rio pulando de pedra
em pedra” (Id., ibid., p. 26). Assim como a história Psique, o desejo impulsiona o moço a seguir “sem nunca naqueles anos todos,
afastar seu caminho da procura” (Id., ibid., p. 26). O reconhecimento de si mesmo no outro é metaforizado na passagem a seguir:
Ondejou seu reflexo no rosto do moço. Lentamente,
seus olhos espelhados perderam a nitidez, desfez-se o
contorno dos lábios. Naquele vazio, só restava uma névoa, trazidos de longe pelo chamado de um nome, começaram a aflorar duas sobrancelhas espessas, depois a
aresta de um nariz, a sólida linha de um queixo, a ampla testa. Traços cada vez mais nítidos, desenhando o
rosto enfim encontrado. (COLASANTI, 1997, p. 28)
A Moça da fonte amou um Moço sem nome, sem rosto,
primeiro amou seu interior, assim como “Psique simbolicamente
não tinha uma ‘imagem’ do ser que começou a amar. Primeiro
interagiu com ele, ‘conheceu-o’ biblicamente, para depois ‘ver’
que não havia monstro nenhum, descobrindo realmente quem era
o Amor” (MICHELLI, 2001, p. 236).
De acordo com Stuart Hall (2005, p. 38) a identidade é
formada através de processos inconscientes e não sendo algo inato: “Existe sempre algo ‘imaginário’ ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre ‘em processo’, sempre ‘sendo formada”. Ele defende a idéia de identificação
ao invés de falar da identidade. Para Hall (Ibidem, p. 39), a busca
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pela “identidade” é própria das nossas angústias, pois desejamos
ser considerados unos, completos e “construímos biografias que
tecem as diferentes partes de nosso eu dividido” (Id., ibid.).
A análise dos contos de Marina Colasanti, vinculados à história de Eros e Psique, afirma a idéia de “identificação” defendida
por Stuart Hall (Id., ibid.), pois os contos caracterizam-se pela
busca da identidade, tema comum entre eles. Através das análises
é possível perceber a tão presente “multiplicidade” de “identidades” que o autor anuncia. Os caminhos escolhidos para o encontro
de si mesmo variam em infinitas formas, mas unem-se, pois, assinalam: “identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno.”( Id., ibid., p. 46).
Psique representa o ser em construção, caracteriza “o sujeito pós-moderno” pois, possui características humanas e virtudes
de deusa. Representa o indivíduo comum que passa por caminhos
cheios de obstáculos na procura incessante pela felicidade. A
presença do arquétipo de Psique dentro de cada um é irrefutável,
uma vez que todos moldamos escolhas, baseados na fé e no poder
que o amor nos inspira.
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Um profundo mergulho nos (des)enlaces do amor