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MARIA APARECIDA GUIMARÃES
Introdução
Eu nasci aqui, em Manguinhos, não vim de lugar nenhum (risos). Nasci no
caminho de Itaoca e fui criada na Praia Pequena, que nós chamamos de Prainha.
Prainha é onde tem um conjunto de sinais, onde vai para o Jacarezinho, na
Democráticos com Suburbana. Quando chove a água vai até lá, é um trecho muito
baixo. Minha avó morava ali.
Os primeiros tempos
Minha mãe saiu de lá nos anos 40, em 1947, por aí. Eu nasci em 41 e tinha uns
seis anos nessa época. Minha mãe alugou um barraco na Democráticos, onde
falam que é o “Buraco do Lacerda”. Nunca deixamos de freqüentar Manguinhos,
Jacarezinho, porque nossas compras eram feitas na Prainha, que só lá é que tinha
comércio. Essa área não era Manguinhos. A área de Manguinhos era só da
Democráticos pra cá.
Minha sogra veio do Caju pra cá, aqui pra Manguinhos, quando meu marido
tinha treze anos.
Tinha uma pontezinha no rio Faria –Timbó, muito caidinha, muito simples, e nós
fomos morar naquele pedaço. Ali tinha poucas casas. A estradinha, que hoje em
dia é a Estrada de Manguinhos, era só um caminho que chegava na estação. A
estação era antiga, tinha que descer dois degrauzinhos pra subir no trem, a “maria
fumaça”, que era um trem de pau.
Eu não me lembro da Praia do Amorim, só lembro que minha mãe dizia assim:
“Vamos à Praia do Amorim.” Tenho uma ligeira impressão que é nesse pedaço
que pegou a Vila do João. Tinha um aeroclube e eu me lembro muito bem dos
aviõezinhos. Lembro que a Embratel era perto. Isso foi bem antes da Avenida
Brasil.
Foram surgindo as casas, os barracos, e era tudo brejo. Não tinha o Instituto de
Manguinhos. Tinha o Castelo, mas não tinha o posto de Saúde. Tinha muito mato,
muita água, e o esqueleto da construção daquele prédio grandão que tem aqui no
posto, o Torres Homem. Naquele pedaço de Manguinhos, no CHP2, era tudo
brejo, manguezal, não tinha casa. A gente ia lá e entrava na lama pra apanhar rã.
Da Leopoldo Bulhões até a Democráticos só tinha a estrada, a Suburbana, mais
nada. Tinha armazéns onde vendiam arroz, feijão, essas coisas, que depois foram
acabando. Eram ali, onde depois fizeram a ponte. Começaram a aterrar e a
construir. Em Manguinhos mesmo, depois da linha do trem, até chegar à
Suburbana, aterraram, depois construíram umas casas de madeira, umas
verdinhas, outras ‘azuizinhas’. Era aquele bloco grandão, barraco mesmo, dividido
por dentro. Depois fizeram o colégio, mas, no momento, eu não lembro o nome
dele. Eu não estive nesse colégio.
Ali também tinha uma igrejinha da Assembléia de Deus, uma igrejinha de pau.
Por aqui não tinha igreja católica. Depois é que criaram a Igreja de São Daniel
para ficar sendo “filial” da Santa Bernardete, uma filial da outra.
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Não tinha aquele parque ali, aquelas casas, era tudo barraco. As casas vieram
muito depois.
Aqui sempre teve luz e água. Manguinhos é o rei da água, não falta água em
Manguinhos. Tinha água nos bicões, tinha água encanada dentro de casa... Quem
podia puxar a água pra dentro de casa, puxava, quem não podia, tinha no bicão.
Tinha um corredor de tanques pra quem não tinha tanque em casa pra lavar
roupa.
Esgoto também não foi muito difícil. Teve urbanização dos esgotos, essas
coisas. O esgoto sempre saía nos rios. O encanamento era direto pra o rio.
A gente não ligava pra essas coisas, não. O negócio da gente era morar: se
estivesse morando, estava bom. A gente devia ligar pra essas coisas, mas a gente
precisaria ter alguém, uma pessoa grande junto com a gente. A gente não tinha
como reclamar, não tinha com quem. O “grande” que tinha era o administrador, o
seu Artur, coitado. Às vezes a nossa luz ficava meio fraquinha, de madrugada. Ele
levantava, corria, ia ver por que é que a luz estava assim, por que é que caía. Na
época se usava muito transformador. Quem tinha um transformador mais
possante puxava mais força.
As remoções
Caiu uma casa, um barranco, lá no Lins, e o governo transferiu muita gente pra
cá. Veio o pessoal do Lins, do Morro do Lins, pessoal do Esqueleto...
Eu me lembro que teve uma época que o pessoal do Lins queria botar a escola
de samba na rua, mas não tinha componentes, os componentes estavam todos
morando pra o lado de cá, espalhados. O pessoal do Lins saía, de porta em porta,
levando cortes de fazenda, carimbados assim: “Lins Imperial”. Se alguém quisesse
sair em outra escola de samba, não podia, estava tudo carimbado. Iam de porta
em porta: “Quer sair no Lins? A nossa escola caiu, a quadra caiu, morreu muita
gente. A gente quer botar a escola na rua.”
Veio gente do Caju também. A minha sogra, o meu sogro e o meu marido
vieram de lá, foram removidos.
As pessoas chegavam em grupos. Eles faziam as casas e botavam as pessoas.
Aqui, pra gente, não alterava nada, não mudava a vida da gente, estava tudo bom.
Só de uns tempos pra cá, de uns vinte anos pra cá, é que começou a ter
alteração. Mudou em matéria de violência. Manguinhos não era tão violento como
é agora. A gente ainda podia sair de noite, podia andar por aí. Agora não tem mais
condição.
A comparação entre Manguinhos e Jacarezinho
Eu acho que a Estrada de Manguinhos parou no tempo, não evoluiu. Eu digo
isso porque eu conheci o Jacarezinho ‘puro’. Tinha uma chácara, lá atrás do
Jacarezinho, onde minha mãe mandava eu comprar verdura. Eu tinha quinze
anos. De lá para cá o Jacarezinho evoluiu muito mais do que Manguinhos.
Manguinhos parou. Continuam aquelas mesmas valas negras... A gente ainda
encontra lá alguns barracos daquela época.
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O comércio de Manguinhos é mínimo, não é igual ao do Jacarezinho, é
totalmente diferente. Em Manguinhos tem um açougue, tal, mas se a gente olhar o
Jacarezinho, vai ver quanto modificou, e Manguinhos é bem mais antigo que o
Jacarezinho. Manguinhos está precisando de muita coisa, tem muita coisa pra
fazer aqui dentro.
O posto da Fundação e alguns outros pontos da área
Veio a construção do posto da Fundação. Isso tem muito tempo. Eu fiz pré-natal
de um filho lá, há 36 anos. Fiz o pré-natal de todos os meus filhos na Fundação,
até do último, que está com 27 anos. O tratamento da minha filha, quando ela
tinha sete anos, eu fiz no posto da Fundação.
Aquelas casas que tem em frente à quadra foram consertadas. Urbanizaram
aquele pedaço e fizeram um tabernáculo, a Igreja Brasil para Cristo. Era uma
espécie de circo, com uns bancos e uma lona pregada em volta.
A quadra de Manguinhos era pequenininha, na Estrada de Manguinhos, na Vila
Turismo.
Tinha o Clube do ‘seu’ Juvenal. Não era bem um clube, era um palco que ele
botava pra o lado de fora. Era perto da Associação do CHP2, depois da torre1.
Antigamente ali não era a Associação, era a tendinha do Juvenal. Ele gostava
muito de samba, de pagode, de festa, de tudo. Ele botava um palco e fazia uma
roda de samba. Todo mundo cantava ali. Dia de sábado e de domingo era de festa
no Juvenal. Ele fazia angu, feijoada no copo...
Também tinha um clube no CHP2, que depois transformaram numa casa. A
chácara da Marlene era o quintal do clube. Era um clube enorme, bom pra
caramba. A gente ia pra lá e dançava, curtia muito, pintava e bordava. Sempre
tinha festividades.
No Parque João Goulart tinha o campo do Jossi. Lá tinha festa junina, juntava
todo mundo. Eu até tenho uma fotografia de lá. Tem muita fotografia lá em casa.
Botávamos um montão de barracas... Era uma festa boa mesmo, muito gostosa.
Tinha um grupo de escoteiros dentro de Manguinhos. Eu conheci o Robson,
que fez parte desse grupo. Eu não sei quem levou o clube de escoteiros pra lá,
mas era na casa onde morava a Lena, onde morava a irmã Ione. Aqui era a casa
e aqui tinha o Rio Jacaré, tinha pouco espaço. Depois o grupo saiu dali porque era
muito apertado e foi pra Igreja Adventista do Sétimo Dia, na Vila Turismo. Meu
filho fez parte desse grupo. Eles passeavam, acampavam, faziam ginástica...
Levavam eles pra Jacarepaguá, naquela coisa de aviação, se divertiam muito
mesmo. Eles faziam essas atividades pra ocupar o tempo das crianças.
A condição da infância e da juventude
Antigamente a gente não via garoto na rua, nem no meio de gente que não
‘tinha’ um nível legal. Eles mesmos perguntavam: “O que é que está fazendo
aqui? Aqui não é o seu lugar! Vou falar com o seu pai que você tá aqui! Vão
embora!”
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Torre do Parque João Goulart, em frente ao campo.
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As crianças tinham ocupação. Nas pensões tinha marmita pra eles carregarem.
Arrumavam emprego em quitanda, em botequim, em padaria, tinha até o salário
do menor. Talvez não tivesse tanto estudo, nem tanta coisa assim pra fazer, mas
tinha serviço. As madames chamavam as crianças pra trabalhar em casa. Meu
irmão mesmo, era garoto, foi chamado: “Quer trabalhar na minha casa? É pra
você lavar o carro, lavar o jardim, molhar as plantas, fazer feira, pagar as contas
de luz, de água, de banco, tudo...” Meu irmão trabalhou muito assim. Meu irmão
trabalhou no IAPI da Penha, encerando de vermelhão a escadaria daqueles
blocos de apartamento. Os moradores faziam uma vaquinha e botavam uma
pessoa pra limpar.
O menor não ficava na esquina, parado. Ficavam satisfeitos porque ganhavam
um dinheirinho, uma coisa, outra. Meu irmão muitas vezes foi pra casa levando
roupa usada, sobra de comida que as madames davam pra ele. Hoje ele é
funcionário do IBGE, tem 27 anos de IBGE, mas batalhou muito pra chegar lá.
Entrou numa época que não precisava muito de burocracia.
O Governo fez uma coisa muito errada: “Não, o menino tem que estudar.” Tá,
tudo bem, mas cadê recurso? “Ah, não, porque escola dá isso, dá aquilo... A
escola faz, a escola acontece...” Mas o garoto não quer só isso. Ele vê no pé de
um outro um tênis bonito e quer um também. Ele não quer só estudo. Tinha que
ter o estudo e ter um meio de ele ganhar um dinheiro. Antigamente tinha esse
meio.
As escolas também ajudavam. Muitas vezes eu não tinha dinheiro pra comprar
uniforme pra minha filha. A gente fazia o atestado de pobreza, levava na escola e
a escola dava o pano pra blusa e pra saia, o emblema, a meia, tênis... Muitas
vezes eu fiz a saia dela à mão. Eu não tinha máquina. Máquina era um luxo, era
igual a televisão, geladeira. Só há vinte e sete anos que eu consegui ter a minha
primeira geladeira. A televisão era aquela em preto e branco, tinha mais risco do
que tudo, mas não tinha tanta bobagem como tem hoje.
Hoje a gente já não vê uma mesa com a família toda em volta pra comer,
conversar, dar conselho. Hoje a pessoa faz o prato e senta no sofá em frente à
televisão. O pai fala e o filho: “Hum, hum.” A mãe fala e ele: “Tá legal, mãe, valeu.”
Eu tinha que viver 63 anos pra ver essa modificação.
Eu gostaria muito que voltasse a ser o que era. Parece que tinha mais
humanidade, compreensão, mais amor em todo mundo. Todo mundo se
cumprimentava. A gente criava um filho e, quando ele começava a falar, eu me
lembro que a gente dizia assim: “Tome benção ‘a’ fulano porque é mais velho que
você.” “Cumprimente o fulano.” Hoje não é mais assim, é: “Fale com o fulano.”
“Oi.” Ficou um negócio assim, esquisito! Os meus netos dizem assim: “A minha
avó é moderna. A minha avó bota uma calça comprida, uma calça jeans, senta
com a gente, bate papo...” É, realmente eu sou moderna, mas tenho lá minhas
‘antigüidades’ e acho que elas valem muito!
Essa mudança veio da parte do governo, da parte das pessoas, da parte
financeira, da parte da religião. Tem muita gente que não tem um Deus vivo, não
liga. Antigamente parecia que tinha mais religião, mais amor. O Governo não tá
nem aí, mas o que é que ele pode fazer? Ele já encontrou o negócio bagunçado,
já tá assim há mais de 30 anos, não tem como consertar. Autoridade. A gente olha
e diz assim: “Vou pedir informação àquele guarda ali.” De repente a polícia já
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ataca, lhe rouba e sai correndo. Você fica sem saber o que fazer: “Vou pedir ou
não vou? Será que ele é sério, honesto, legal?”
O Comando Vermelho e a ilegalidade
O Comando Vermelho não foi criado dentro de Manguinhos. Foi criado muito
distante daqui, com gente que não era daqui. Entrou gente de Manguinhos e ainda
tem, até hoje. O Comando Vermelho tem tantos anos! Eu sou capaz de dizer que
ele foi criado no Jacarezinho. Eu conheço pessoas de noventa anos – não sei se
já morreram – que participaram da criação do Comando Vermelho. Não me lembro
de data, não me lembro quando, mas, com certeza, não foi criado em
Manguinhos.
Naquela época em Manguinhos não tinha marginal, era uma coisa muito
restrita, ninguém via, ninguém sabia quem era, quem não era, era tudo misturado.
Não é igual é agora, que eles acendem, jogam fumaça na cara da gente e fica por
isso mesmo. Naquela época não tinha isso, não se falava em Comando Vermelho.
O Comando Vermelho vem de muitos anos, vem do tempo de Madame Satã. De
repente foi até antes de eu nascer (risos).
Eu não conheço essa Casa Amarela2, não sei onde é. Só quando eu tinha
quarenta e sete anos que eu fui conhecer tóxico. Eu pedi a essa menina que tá
aqui, a Gelsa, que hoje é cristã, nem brinca mais carnaval: “Gelsa, me mostra o
que é pó e o que é maconha.” Ela falou: “Por quê? Cida, espera aí, vai entrar
nessa agora também?” Eu falei: “Não, Gelsa, não é nada disso. Eu quero
conhecer porque pode, um dia, uma pessoa chegar com um embrulho e me dar, e
eu não saber o que é. Se eu souber o que é, já não vou pegar.”
Uma vez eu vinha do Jacarezinho, com uma bolsa de plástico. Eu sempre
carrego uma bolsinha de plástico e um dinheirinho porque pode aparecer alguma
coisa baratinha... Eu vi uma fila lá na Praça da Concórdia. Escutei falar: “É, tem de
10, tem de 20!” Eu pensei: “Ah, legal, vou levar pra casa porque vai me adiantar a
‘janta’. Eu já estava na rua há um tempão! Quando eu saía de casa eu não tinha
vontade de voltar. Entrei na fila. A fila andando e eu andando com a fila (risos). “Lá
deve ter sardinha, qualquer coisa.”
Daí a pouco chegou um rapaz, botou a mão nas minhas costas, falou: “Tá
fazendo o que aí, tia?” Era um colega dos meus meninos. “Ah, meu filho, vou
aproveitar essa liquidação e vou comprar, vou levar pra fazer a ‘janta’.” “Não, tia,
vem cá.” Começou a falar baixinho comigo e foi me puxando, me tirando da fila.
“Tia, isso aí é maconha, tia, isso é pó.” Eu falei: “O quê?” “Não, tia, não posso nem
falar alto com a senhora porque o pessoal pode ver. A senhora quer comprar o
quê?” “Não queria comprar nada, queria só aproveitar a liquidação e levar alguma
coisa pra ‘janta’.” “Que liquidação, tia? Isso é pó. Se a polícia passa aí, a senhora
vai de roldão. A senhora ia ‘rodar’ direto e sem explicação. Vamos embora, tia. Eu
passo com a senhora no açougue e compro um negócio. Tem dinheiro aí? Não
tem, não? Eu compro, eu compro do meu dinheiro.” Comprou um quilo de bife,
atravessou a rua comigo, com a mão nas minhas costas, me botou do outro lado,
aí falou: “Sabe, nesses troços assim a senhora não pare, não.” Eu falei: “Caramba,
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Há uma hipótese de que o Comando Vermelho teria sido criado em Manguinhos, nessa Casa Amarela.
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eu ia entrar numa fria! Eu ia pra cadeia sem saber o que é que é!” Aí eu ia me
lembrar daquela música do Bezerra da Silva: “Não sou agricultor, mas conheço a
semente.” (risos)
Eu cheguei em casa, contei pra os garotos, eles riram: “Mãe, que furo! A
senhora já pensou? A gente ia ter que sair daqui pra ir buscar a senhora na
cadeia, mãe! A gente ia ter que ir lá na escola buscar a Gleide, uma normalista,
fazendo o curso dela de professora, pra pegar a senhora na cadeia, mãe! O que é
isso?” “Mas eu não sabia!” Nunca mais, podem gritar à vontade...
As mudanças
Atualmente eu moro na Penha, na Rua do Crato. Mudei daqui tem dois meses,
mas toda minha vida foi em Manguinhos. Morei em tudo quanto foi lugar em
Manguinhos. Nunca fui de ficar parada em um lugar só, me sinto mal. Quando não
consigo mudar de casa mudo os móveis de lugar (risos).
Morei no CHP2, na Rua J, morei atrás da quadra, na Coréia... Depois da Rua J
eu me mudei pra Santa Cruz e fiquei quatro anos lá. Mudei porque queria tirar
meu filho daqui. Ele estava com doze anos e eu não queria que ele se misturasse.
Não adiantou nada porque ele não estudou mesmo.
Voltei pra Manguinhos, pra uma rua que eu nunca soube o nome, no final da
Rua São Daniel. Dali eu troquei meu barraco, fui pra uma casa maior na beira do
rio Jacaré. Depois apareceu uma troca, aí eu vim mais pra frente, na Rua São
Miguel. Era um barraco grandão, de madeira, de dois andares.
Depois voltei pra Rua Aliança, fui pra Mandela 23. Fiquei sete anos em Mandela
2. Meu filho quis trocar de casa comigo, então eu fui pra Penha e ele ficou aqui.
Não me desliguei muito de Manguinhos, estou aqui quase todos os dias (risos).
Nessas mudanças eu sempre fui procurando evoluir, melhorar. Quando o lugar
não melhorava, eu melhorava de lugar, saía. Meu marido dizia assim: “Você é
maluca! A gente tá tão bem aqui, você já quer trocar?” Muitas vezes, quando ele
chegava do trabalho, dizia assim: “Cadê os móveis? Você trocou?” “Troquei.”
”Estão onde?” “Vem comigo que eu vou te mostrar.” Ele dizia: “Você só não leva o
guarda-vestido e a geladeira porque são pesados.”
Não sei qual é o meu destino, de repente eu volto pra Manguinhos de novo. Eu
não estou com saudade, mas eu olho assim, na Penha, e digo: “Não é meu lugar.”
A Cemasi
Eu faço parte de um grupo da Terceira Idade. Esse grupo é ligado à Cemasi4.
Nós trabalhamos fazendo tapetes, artesanato, pintura... A minha atividade mesmo
é pintar em tecido. Faço jogo de cozinha, de banheiro...
Nós fazemos passeios nos museus, teatros, parques... Já fomos no Museu da
Imagem e do Som, no Parque da Varig... Muitos não entendem nada, inclusive eu,
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O mesmo que Samora Machel.
Segundo Gleide Guimarães a Cemasi é uma Instituição da Prefeitura. A Prefeitura terceiriza o trabalho
contratando dinamizadoras que vão trabalhar com os idosos. Além de artesanato, promovem passeios
culturais, etc.
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mas eu olho tudo (risos). Nós vamos para a Ilha de Paquetá. Eles têm ônibus,
tudo. Não é a gente que escolhe o lugar. Eles escolhem, perguntam se a gente
quer ir e a gente aceita. Eu não perco uma, sempre quero ver, sempre vou (risos).
Quando tem festa lá no Cemasi a gente participa do desfile de moda pra idosas.
Tem também festa junina, curso de maquiagem pra idosas, muita coisa.
Eu acho que nós ajudamos muita gente e isso é muito bom. Tem gente que diz:
“Ah, não vou porque já estou muito velha, cansada, não dá.” A gente conversa
com as outras idosas e acaba levando elas pra lá, pra o nosso grupo.
Esse grupo é aqui em Manguinhos. Eu saio da Penha e venho pra cá. Eu não
tenho vindo porque tive um ‘problemazinho’ de derrame. Se eu ficar parada, tudo
bem, mas não posso ficar saindo.
O samba
Eu acompanhava as festas de Manguinhos. Elas eram sempre dentro da
quadra. Festa fora da quadra quase não tinha, só as festas juninas, mas eu não
participava, não gostava. Eu ia, olhava tudo, mas não participava.
Dentro de Manguinhos eu participei de muita coisa. Já fui madrinha da ala de
compositores da Escola de Samba de Manguinhos, fiz samba–enredo... Sambaenredo meu já ganhou em Manguinhos, no ano da Maria Clara Machado5, e no
Jacarezinho.
A minha casa no Jacarezinho virava barracão. Eu tirava tudo da sala, botava
quatro, cinco máquinas de costura e levava tudo pra lá. Até meados de junho,
julho, a gente olhava no chão e tinha saco de paetê, miçanga, tudo (risos). Não
adiantava varrer. Juntavam quatro, cinco mulheres, cada uma numa máquina, e a
gente fazia as fantasias pra o carnaval. Meu marido participava: cortava as palhas,
pintava as sandálias... Ele também era compositor. Eu desfilava em Manguinhos,
saía do Jacarezinho, mudava de roupa... Meu marido dizia assim: “Olha, vou botar
você lá dentro do Salgueiro.” Aí eu mudava de roupa, me enfiava dentro do
Salgueiro. Teve um ano que nós desfilamos na Imperatriz. Um temporal e a gente
lá, a toda.
Nós fazíamos as festas de compositores. Eu sempre gostei de cozinhar. Ia pra
cozinha, com uns panelões, e fazia as comidas. Uma vez era angu à baiana, outra
vez era feijoada... Eu ia fazer as compras com eles e ajeitava tudo na cozinha.
Levava comigo duas, três meninas, e a gente fazia aquela ‘comidarada’! Era uma
festa, era uma maravilha a festa de Manguinhos!
Eu desfilava muito na Avenida, na Marquês6. Manguinhos, hoje, coitadinho, já
acabou. Eu acho que está desfilando lá pra Magé afora, mas já esteve na
Marquês.
Eu acho que acabou porque é aquele negócio: se bota um presidente que tem
intenção de levantar a Escola, tudo bem, vamos levantar a Escola, tudo o que fizer
é pra Escola. Se faz um almoço, se faz uma rifa... Mas se o presidente só quer
apanhar pra ele, aí acaba.
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Tema do enredo daquele ano.
Marquês de Sapucaí.
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Eu desfilei em 87, 88, 89, 90... Em 90 foi o ano que o Neguinho da Beija-Flor
desfilou e nós homenageamos o Moreira da Silva. Eu sei que foi em 90 porque eu
lembro que a gente cantava assim: “... noventa anos de Moreira...” (cantando). Era
o ano em que ele fazia 90 anos e desfilamos com ele. No ano seguinte desfilamos
com Neguinho. Em 92, o ano de Maria Clara Machado, eu desfilei em Manguinhos
e no Jacarezinho. Esse foi o último samba-enredo que nós fizemos,
homenageando Maria Clara Machado. Depois não desfilei mais, não brincamos
mais o carnaval. Perdi a motivação, não tive mais vontade de desfilar porque
houve um problema muito chato na minha vida.
A Escola de Manguinhos continuou, mas foi caindo, caindo... Vieram outros
presidentes, outros morreram, colegas também morreram... Me chamaram para
ser presidente da ala das baianas. Eu não quis porque foi justamente na época
que meu filho foi preso. Falei: “Não, não tenho alegria, não tenho motivação, não
dá pra mim.” “Ah, deixa de ser boba. O que é que tem isso? Seu filho vai ficar oito
anos preso e você não vai mais desfilar?” Eu digo: “Não, não vou, isso é uma
opinião minha. O meu filho é o meu ídolo.”
Se eu botasse uma baiana o meu filho ficava doido: “Mãe, espera aí, deixe eu
ajeitar essa saia, tá torta! É hoje que a senhora tem que buscar a sua fantasia.
‘Deixa’, não vá porque é muita gente, muito calor. Eu vou buscar pra senhora.”
Quando eles eram pequenos, ficavam em casa e eu ia brincar. Só levava o de
doze anos, botava ele pra brincar o carnaval comigo. Levava a minha filha
também, mas ela era muito chata, chegava na rua e começava a chorar. Não é
minha cópia fiel (risos). Ela não gosta de carnaval, não gosta de pintura. Agora ela
tá um bocadinho melhor.
Eu comecei com quinze anos e não parei mais. Acho que só vou ter uma neta
ou bisneta que vai puxar a mim (risos), no samba e no bordado.
A quadra
A Imperatriz7 tinha muita raiva de Manguinhos porque queria juntar Manguinhos
a ela. Isso era porque a quadra de Manguinhos era a maior que tinha.
A gente se reunia na quadra, a ala dos compositores, independente de
carnaval. Eram trinta e cinco homens e só eu de mulher. Era uma roda de samba,
todo mundo numa mesa grande. Na época eu não bebia, mas fumava, então era
maço de cigarro pra lá, maço de cigarro pra cá... Eu era chamada de madrinha,
como sou até hoje. Eu participava porque eles não iam sem mim. Era gostoso, era
bom, era uma amizade sólida, uma amizade bacana...
A gente se reunia toda semana, nas terças-feiras. A reunião começava às oito,
nove horas, e terminava às dez, só que a gente só chegava em casa à meia-noite
e meia, uma hora, isso era de praxe. Isso durou muitos anos, acho que durou
minha mocidade toda, e eu me diverti muito.
Era uma comunidade muito unida, a gente se queria muito! Tudo o que um fazia
o outro concordava. “Vamos comprar pano?” “Vamos, claro.” Manguinhos era um
só: CHP2, Favelinha, Amorim, tudo. Unia-se todo mundo em torno do carnaval,
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Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense.
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em torno da quadra. Quando terminava o ensaio ou a festa, um pegava na
vassoura, varria, outro pegava a mesa, guardava...
Flozina era uma mulherzinha desse ‘tamanhinho’, uma anãzinha. Eu não sei, eu
não vi, mas dizem que, quando ela fazia feijoada, ela entrava dentro da panela pra
amassar o feijão com os pés. (risos) Ela deve estar bem velhinha porque era bem
mais velha que eu. A gente fazia a nossa farra, eu, ela e as irmãs dela.
A maior parte das músicas está guardada lá em casa. Eu não registrei, nós não
registramos. As de samba-enredo foram gravadas. Eu não tenho samba-enredo
de minha autoria, mas tenho participação porque ele é feito por várias pessoas.
Não é todo mundo que tem uma cabeça maravilhosa pra fazer um samba-enredo
sozinho. Nós tínhamos várias pessoas fazendo sambas-enredo. Nós éramos, por
exemplo, cinco. A gente pegava uma sinopse e os cinco participavam. Eu só
cantava, só botava a minha parte lá, dizia: “Bota isso assim, assim. Bota essa
parte aqui, assim. Vem cá, por que não bota isso aqui assim, ao invés disso?” “Ah,
é mesmo! Pô, Cida, tu ‘deu’ uma idéia legal!” Eu botava letra e música... Eles
escreviam e ficava bom. No fim das contas, saía, fazia um boi com abóbora
(risos).
A compositora
Compus muita coisa com o meu marido. Quando a gente estava duro, sem
nenhum tostão, a gente deixava as crianças em casa, sempre acompanhadas pela
minha mãe ou pela minha comadre, e ele dizia assim: “Vamos pra onde?” Tinha
uma adegazinha na Democráticos, aí: “Vamos pra adega. Estou com um trocado
aqui, dá pra tomar uma cervejinha.” Eu: “Mas eu não tomo cerveja, nunca bebi.”
Ele: “Então a gente compra um guaraná.” Ele pegava uma caixa de fósforos, eu
pegava outra, e a gente fazia o samba ali.
Era ele que escrevia porque eu sou semi-analfabeta. Sei ler muito bem, leio que
é uma maravilha, mas só escrevo o meu nome. Não escrevo nome de filho, nem
de ninguém. Levei dezesseis anos pra trocar meus documentos porque não sabia
escrever o sobrenome do meu marido, mas agora eu sei.
Numa madrugada fomos pra uma rádio. Era uma rádio que tocava samba de
madrugada... a Globo, Programa Adeusam Alves. Acho que tá gravado lá, eu
cantando. Agora eu não canto, nem encanto, estou sem dente, mas posso até
cantar uma musiquinha das que eu fiz. Ela diz assim: (cantando) “Levanta, sacode
a poeira, / esqueça que um dia / ela foi a sua companheira. / Levanta, sacode a
poeira, / esqueça que um dia / ela foi a sua companheira. / Quem guarda passado
é diário. / Levanta da queda, amigo, / não seja otário. / Quem guarda passado é
diário. / Levanta da queda, amigo, / não seja otário. / Se realmente ela gostasse
de você, / não ia embora sem lhe dizer. / Esqueça esse momento / que foi pura
ilusão / e a alegria voltará / ao seu coração.” Essa foi uma das que eu fiz.
Quando eu conheci meu marido ele disse assim: “Faz um samba.” Eu falei: “Ah,
não estou afim, não.” Aí: “Pega a caixa de fósforo que eu vou ver se eu consigo
fazer algum samba.” Tentei, tentei, mas não consegui. Aí, vindo do trabalho, de
Copacabana, fiz um samba. Como eu não sabia escrever, vim decorando ele, de
Copacabana até a Praça Sete. Minha mãe morava no Engenho Novo.
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Quando cheguei em casa falei pra o meu irmão: “Pega a caneta e um papel. Eu
fiz um samba e quero escrever.” Meu irmão: “Você é burra, não sabe escrever
nada.” Eu falei: “Eu não sei, não aprendi. Não tive tempo porque tive que criar
vocês.” O meu marido era separado, me conheceu, então o samba era assim:
(cantando) “Vivia sozinho, desprezado, / tristonho e amargurado, / encontraste em
mim uma grande razão. / Mas eu não me chamo Madalena, / nem tampouco Maria
Helena, / para amenizar seu coração. / Andaste por esse mundo afora, / como fez
até agora, / a procura de um alguém. / Mas se você quer uma guarita, /
encontraste uma Aparecida, / que quer uma guarita também.” (risos)
Aí ele ficou louco! A ex chamava-se Maria Helena e eu era a Aparecida. Ele:
“Pô, nêga, ficou legal! Tu ‘tem’... Vamos jogar na quadra8?” Eu falei: “Não vamos
jogar na quadra porque o nome dela vai ser muito divulgado e o meu também.” Ele
concordou. Eu fiquei pensando como é que a gente ia fazer. O tempo passou,
passou, e eu bolando o que é que eu ia botar no lugar de Maria Helena e de Maria
Aparecida. Aí pensei assim: (cantando) “Vivia sozinho, desprezado, / tristonho e
amargurado, / encontraste em mim uma grande razão. / Mas eu não me chamo
Madalena, / nem tão pouco Maria Helena, / pra amenizar seu coração. / Andaste
por esse mundo afora, / como fez até agora, / a procura de um alguém. / Mas, se
você quer uma guarita, / vai tratar da tua vida / que eu trato da minha também.”
Isso pra poder tirar “Aparecida” fora. Eu tinha que tirar a “Aparecida” de qualquer
maneira (risos). “Maria Helena” ficou, mas ninguém sabe quem é, tudo bem. A
“Aparecida” era eu, que vivia na quadra, ali, junto com ele, agarrada nele. Se eu
cantasse assim ali, iam dizer: “Pô, tá muito visível!” (risos) Ele: “Pô, ficou legal!” Aí
ele jogou na quadra e foi um sucesso. Todo mundo brincou, todo mundo sambou.
Eu me lembro que eu fui numa festa e ficaram me perturbando: “Canta, Cida,
canta!” Meu marido era meu fã número um. Ele era divulgador, então, quando ele
pegava o microfone, me chamava pra cantar. Às vezes eu não estava a fim de
cantar, ou não estava preparada, mas ele insistia. Eu: “Vou fazer um bocado de
hora com a cara dele, vou cantar um samba que ele nem conhece.” Aí cantei
assim: “Eu canto, sim, / samba pra mim, / mas não sou poeta / e nem tenho lira. /
Quisera eu / saber como se inspira. / Não sou poeta / e nem tenho lira. / Quisera
eu / saber como se inspira. / Eu tenho lá em casa / muito samba de sobra, / mas
tem gente que diz / que aquilo não é samba, / é um boi com abóbora. / Quisera
eu... inspiração. / Eu não sei se é com lápis / ou com papel na mão. Eu canto
assim.” E ele ficou maluco: “Onde você foi buscar isso?” Eu: “Ah, não sei. Você
mandou eu cantar.” Fiz ali, na hora (risos).
A gente fazia samba assim. A gente chegava de madrugada e ele dizia: “Vamos
fazer um samba?“ “Vamos.” Ele esquentava um café, me dava, sentava ou deitava
no sofá, e a gente ficava fazendo samba. Fizemos, muitos, muitos mesmo. Tem
muito samba que eu não lembro. Estão todos escritos, guardados.
Tem um samba que eu fiz com meu irmão, que fala assim: (cantando) “Tenho
que ter coração forte / pra resistir a essa falta de sorte / que o destino levou, /
tenho que ter. / Tenho que ter coração forte / pra resistir a essa falta de sorte / que
o destino negou. / Espero que o amanhã seja bem diferente. / O sol nasceu pra
toda gente, pra mim ainda não brilhou. / Quero fazer as pazes com a felicidade / e
8
O mesmo que divulgar, apresentar na quadra de samba.
11
viver na claridade pra me produzir. / Espero que o destino me ‘conduz’ / me liberte
da escuridão / pra eu enxergar a luz.” (risos)
Eu e meu irmão fizemos outros sambas também. Teve uma correria no morro
onde mamãe morava. Meu irmão e um colega dele ficaram com medo e saíram
porque era muita confusão. Nos encontramos em Niterói: eu, meu marido, meu
irmão e esse colega dele. Tinha muito tempo que a gente não via ele, que ele não
ia em casa. Ele: “Pô, Aílton, vamos tomar uma cervejinha? Meu irmão disse:
“Olha, a minha irmã não bebe.“ “Ah, não tem problema, a gente compra guaraná
pra ela. Vamos botar ela embriagada de guaraná.” Aceitamos. Com uma caixa de
fósforo e uma caneta batendo na garrafa fizemos um samba que diz assim:
(cantando) “Oh, meu camarada, / mais uma vez, como vai você? / Daquela
jornada / eu não posso me esquecer. / Quem marcou bobeira / ficou pra trás / e
dessa maneira / o tempo se vai. / As folhas que morrem / não tornam a voltar. / A
sua história / ficou no placar. / Naquela marola / que o vento se foi / e dessa
história / restou só nós dois. / Naquela marola / que o vento se foi / e dessa
história / só restou nós dois.” Foi uma coisa que marcou muito porque meu irmão
saiu assim do Morro São João. Eu já estava na minha casa, em Manguinhos. Esse
rapaz sumiu, nós nunca mais vimos ele. Através desse samba eu fui vendo como
é que o tempo passa e aquelas velhas amizades vão sumindo, acabando, cada
um vai pra um canto. Uns casam, outros morrem, outros mudam... Aquela marola
não volta mais e a gente fica com aquela saudade. Eu cantei muito esse samba
pra os meus filhos, dentro do presídio. Meu filho mais velho dizia: “Mãe, canta
aquele samba, canta aquele samba pra mim! Cara, vem cá, vem cá escutar a
minha mãe, escutar aquele samba, um samba bacana pra caramba!”
A Escola de Samba de Manguinhos
Começou como um bloco pequeno, mas não lembro o nome. Era formado pelo
pessoal da comunidade e pelo pessoal que trabalhava na fábrica de cigarros
Souza Cruz.
A Souza Cruz fazia um bloco com todo mundo vestido de havaiano. Tinha uns
calçolões por baixo e, por cima, a havaiana de maço de cigarro. Tinha a ala do
“Hollywood”, que era vermelha, a ala azul e branca, que era do “Continental” e a
ala do “Caporal Amarelinho”, que era amarela. Era uma coisa muito engraçada! As
baianas vinham de chitão. Amarravam um turbante, botavam uma cestinha com
uma fruta.
Esse pessoal que saía na Souza Cruz era o mesmo que saía no bloco aqui
dentro de Manguinhos, que depois se transformou numa Escola. Assim formou-se
a Escola de Samba Unidos de Manguinhos, a verde e branco.
Depois a Mangueira9 resolveu batizar Manguinhos, então botou verde, branco e
rosa. A Mangueira ajudava muito Manguinhos. Quando botaram o rosa eu não
gostei, mas saí assim mesmo. Eu puxava mais pra o verde, pra o branco, deixava
o rosa de lado. “Ah, Cida, vai fazer dama de que cor?” “A minha dama é branca.”
“Não, mas não tem que botar...?” “Tudo bem, boto, vou botar o verde.”
9
Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.
12
A Escola foi crescendo nesse ritmo porque o sr. Milton Costa, que era
presidente, fez muito pela Escola, muito mesmo.
Tinha uma ala que, quando foi formada, eu mesma fiz as fantasias. Quando fui
comprar o pano já era na sexta-feira, véspera de carnaval, e não tinha mais lamê
nenhum. O lamê que tinha era o mais feio do mundo, então eu falei: “É esse
mesmo.” Éramos treze na ala. Meu marido pintou os sapatos todos de prateado e
eu fiz as fantasias. Pintamos as fantasias com aqueles “emblemas” africanos, um
negócio ‘africanado’.
Quando chegamos na quadra, o Milton Costa falou assim: “Parem vocês três aí!
Quem é o chefe da ala?” “A chefe da ala sou eu.” Ele olhou, olhou... Todo mundo
estava quase do mesmo tamanho, os mais baixinhos de sapato de salto. Foi lá
dentro, pegou umas lanças e botou uma lança na mão de cada um. Eu falei: “Tá
bom.” As meninas ficaram com uma raiva danada porque queriam sambar, mas eu
não, eu não sabia sambar, nunca soube. Ensinava todo mundo, mas nunca
aprendi. Eu só sabia fazer evolução, mais nada, até hoje. Quando a gente chegou
na Avenida, o Milton Costa disse assim: “Olha, nós não temos comissão de frente.
Como vocês são todas muito iguaizinhas, muito bonitinhas, muito bem feitas,
vocês vão ser a comissão de frente.” Quase que eu apanhei: “A gente quer
sambar e não pode!” Agora as comissões de frente viraram bagunça, todo mundo
samba, mas antes a gente tinha que ficar durinho. A Escola andava, a comissão
tinha que andar. Ninguém sambou. “Amanhã não vou, não, não vou desfilar!” Isso
era na Presidente Vargas.
A gente se vestia naquele edifício, o “Balança mas não cai”. A gente tinha uma
sala lá, vazia. Tinha um cara do PT que era muito chegado a mim...
Naquela época não podia beber, não podia ter bebida, não podia mesmo! Hoje
o pessoal dá um jeitinho, o famoso jeitinho brasileiro: botam no “sacolé”10. Eles
faziam batida e, como eu estava de dama, uma dama bem rodada, bem armada,
eles punham os litros embaixo da minha saia. Eu ficava em pé, parada, na
concentração, que era na Central. Eles: “E aí, Cida, tem alguma coisa pra gente?”
Eu não era madrinha nessa época. “Tenho, debaixo da minha saia.” O guarda lá
na frente, me olhando, e eu olhando pra cara do guarda, rindo. Timbira era o
primeiro. Tirava a bebida, botava num copinho de plástico, bebia: “Bom, agora dá,
agora tá tranqüilo, agora tá bom.” Depois: “Ah, tá na hora do desfile, tá na hora do
desfile!” Aí vinha todo mundo, pegava as garrafas de bebida, guardava num
canto...
Eu nunca saí pelada, só teve um ano que eu saí de biquíni. Era um biquíni
bacana, um biquíni que agora não é biquíni. Naquela época era indecente, mas
agora... Eu desfilei, de biquíni, em Manguinhos, depois no Salgueiro. Eu fui muito
levada, Nossa Senhora!, eu pintei! Por isso que eu não tenho saudade de nada.
A rádio e as gravações
O presidente da Escola, César Gomes, nos levou no Adeusan Alves, um
programa de samba, na Rádio Globo, de madrugada. “O Adeusan Alves tá
10
Saco de plástico, longo, com formato aproximado de um picolé, onde normalmente se coloca sorvete para
venda.
13
esperando a gente.” Passamos a madrugada todinha na rádio, dando entrevista.
Muitas vezes tinha gravação de samba. A gente ia, eu e meu marido. A gente saía
do trabalho às 4 horas da tarde, ia pra gravação, chegava às cinco horas da
manhã do outro dia. A gente ficava lá, gravando o samba-enredo pra o Museu da
Imagem e do Som: eu, Fernando... No outro dia a gente já chegava tomando
banho, apanhando a bolsa pra ir pra o trabalho de novo, que a nossa vida era
essa.
Teve uma passagem que o Timbira foi. Fomos: eu, Nonoca e Timbira. Quando
chegamos lá, o Jorge, que é um rapaz que acho que também abandonou o
samba, cismou de cantar o samba-enredo. O Bidi, Alcebíades, irmão do Nonoca, e
o Timbira queriam cantar e gravar o samba. A voz dos dois combinava. O coro
quem ia fazer era eu, Nonoca e Marli. Mas o Jorginho: “Não, eu quero gravar.” Ele
começou a gravar o samba da Suzana. Isso foi lá pra 1970. O samba não podia
ser cantado por ela porque mulher não cantava samba-enredo. Era assim:
(cantando) “Suzana, quando abandonou a choupana, / o Vice-Rei encarregou...”
Não lembro do resto. Ele chegou no microfone e começou: (cantando) “Suzana,
quando abandonou a choupana...” Aí, vira o Bira: “É samba-enredo ou é seresta?”
“Não é seresta.” “Você está cantando igual Chopin! (risos) Você tá cantando
ópera? É seresta? É ópera? O que é afinal?” Eu e Nonoca começamos a rir no
meio da gravação. A gravação saiu toda errada, quase bateram na gente. E o
Timbira: “Não, não vai fazer nada com as meninas! Elas têm que rir mesmo
porque você tá levando o samba enredo igual a samba de seresta!” Ele ficou muito
danado da vida, largou todo mundo lá e foi pra o ponto de ônibus. Aí o Timbira
cantou o samba. Ele cantava muito bem. Já tá velho, sem dente, igual a mim, mas
canta direitinho.
Os troféus
Na verdade, não são troféus, são canecas. (risos) A gente sempre fazia essas
canecas comemorativas. Essa: “2º Festival do Chope, promovido pela Unidos de
Manguinhos”. Outra: “Comissão de Frente pela Unidos de Manguinhos, 1980.”
Aqui a gente botava o nome de todos eles, da direção. É de 25 de outubro de
1980. Aqui estão: Gargalhada, que já morreu, Zuca, que morreu também, Nilson,
Jaci, Walter Veneno, que morreu também, Haroldo, Beto, que tá vivo, Dudu,
Martim, Désio, que também tá vivo, Ramalho e Orlando, vivos.
Essa aqui é de uma ala de crianças. Essa é do Festival de Chope e essa do
Festival de Guaraná. Está escrito: “Faça sempre uma criança feliz.” Essa era uma
das canequinhas dos meus filhinhos e funcionava como ingresso. A ala
organizava a festividade pra ganhar dinheiro pra fazer fantasia. Isso era em
Manguinhos, na quadra.
“Salve o Ano Internacional do Deficiente Físico.” Isso foi uma coisa que nós
fizemos e eu guardei. Ninguém tem mais esses canecos, todo mundo já jogou
fora, já quebrou, mas o meu tá aí. Ainda tem mais dois lá em casa. Eu tenho um
caneco do Salgueiro, que foi no IV Centenário. Tá velhinho, mas tá lá, o meu
Salgueiro. Tem outro que eu comprei na Portela e mais um outro de Manguinhos
também. Esse foi no ano da máscara.
14
Eu participava muito, era muito ativa dentro de Manguinhos. Adorava ficar aí
dentro! Eu não deixava de trabalhar, de cuidar dos meus filhos, de cumprir minhas
obrigações em casa, mas Manguinhos estava em primeiro lugar. Eu não ia
sozinha, ‘era’ eu e meu marido, aí ficava mais fácil (rindo).
As fotos de carnaval
Tenho muitas fotos. Essa é de um casal de mestre-sala e porta-bandeira da
Escola de Manguinhos. Eles eram muito bacanas, só tiravam nota dez, mas viviam
brigando, brigavam pra caramba. A foto foi tirada na Marquês [de Sapucaí], em 87.
Eu sei que foi em 87 porque foi o ano que tinha um samba falando assim: “Pele de
onça, pele de onça de madame...” Eu vim no carro, vestida de madame, com um
chapelão. Vim danada da vida porque vinha no carro. A minha foto queimou.
Essa outra tem uma história tão gostosa! Foi no ano do Neguinho da Beija-Flor.
Todas essas coisas do enredo, as alegorias, eu fiz lá em casa. Foi um desespero!
Os homens tinham que vir de calça branca e camisa do Flamengo. Eu dizia: “Eu
não vou. Eu sou América, não sou Flamengo, vou de vermelho e branco.” Todo
mundo se arrumou, me chamou: “Vamos embora, vamos embora! Tá perto de
apresentar o samba e você tem que estar na quadra pra arrumar as alegorias...”
Eu: “Vão levando as alegorias.” Eu fiquei pra trás. Eu estava com o cabelo duro
porque eu não tive tempo de esticar ele. Pensei: “Como é que eu vou fazer agora,
em cima da hora?” Tomei meu banho, mudei minha roupa, botei um batonzinho.
Peguei esse chapéu aqui, enfiei ele, virei ele pra um lado, embuti meu cabelo nele,
botei os brincos de argola e fui. Ninguém podia tirar meu chapéu porque meu
cabelo estava durinho (risos), grande e duro. Quando cheguei na quadra: “Cida,
você tá linda! Como você tá maneira! Deixe eu ver.” “Não, não pode ver porque eu
não gosto que tire o chapéu da minha cabeça. Só pode ver assim. Meu cabelo tá
duro, tá sem esticar!” Elas riram muito: “Ah, Cida, eu não agüento você”, e tiraram
esse retrato. Meu marido dizia assim: “Gente, pelo amor de Deus, não ‘tira’ o
chapéu da minha mulher, senão vou ter que pedir desquite agora.” Eu: “Cale a
boca. Se alguém disser que meu cabelo tá duro, eu vou te largar aqui!” (risos).
Essa aqui é do meu marido, foi no ano do leão. Foi no ano que esse rapaz saiu
de índio. Aqui tem uma da comissão, já tinha a comissão de frente. O Neguinho11
tá aqui em cima. Muitos já se mudaram, muitos morreram... Esse rapaz mesmo,
de índio, já morreu, essa menina já morreu...
Aqui é uma ala de bateria. Acho que essa foi a última ala que eu fiz, não fiz
outra, foi toda feita na minha casa, e nosso Manguinhos foi muito bem.
Se procurar retrato meu aqui, não vai encontrar, eu nunca estou. Eu estava
sempre no meio da Escola, vendo uma coisa, vendo outra... Eu me vestia e saía
em ala, mas eu tinha que ver se as meninas estavam todas direitinhas, se estava
tudo certinho, arrumadinho, organizado.
Nessa aqui tá o Marcelo Dias, deputado estadual do PT, a Vera, o Jaime...
Todos saíam na nossa ala. Essa aqui é a sobrinha do Marcelo Dias, sobrinha em
termos... O Marcelo era muito chegado a mim. Ele que facilitava a nossa entrada
numa sala vazia do “Balança mas não cai”, pra gente mudar de roupa. Eu ficava
11
Neguinho da Beija-Flor.
15
muito sem graça, nunca dei muita confiança pra político. Meu marido: “Ah, porque
o Marcelo Dias...” Eu digo: “E o que é que é?” “Não, é o Marcelo Dias! Você tem
que dar...” “Vem cá, eu tenho que render homenagem a ele?” “Não, Cida, mas ele
é fulano de tal!” Eu: “Tá, tudo bem, mas ele vai estar de fantasia, igual a mim,
então ele é igual a mim e eu não quero saber de assunto.” (risos) Aí ele vinha de
lá, me abraçava: “Poxa, estou todo feliz!” O Marcelo, a Vera e o Jaime12 iam lá em
casa, no barraco, pra fazer a fantasia deles, experimentar...
Essa outra foto é de uma menina que se candidatou a vereadora, se não me
engano, há um tempo atrás. Essa vivia lá em casa, enchendo meu saco: “Minha
fantasia tá pronta?” Era meu marido que fazia aquelas fantasias de palha de
esteira. Tinha que cortar a palha, tudo isso.
As fotos da localidade
Essa foto aqui tem uns barracos que ficavam atrás da casa da minha tia Zuleica.
Não estou me lembrando o nome do lugar. Esse é o mesmo morro, mas sendo do
outro lado. Essa é a manilha que sai dos prédios dos ex-combatentes. Os
apartamentos de lá são muito antigos, tão antigos quanto esses barracos. Eu tinha
uns dez anos quando fizeram esses barracos. Eu nasci em 41, então... Os outros
apartamentos fizeram depois. Quem morava era um pessoal que tinha vindo de
fora, não lembro de onde. Esses barracos já estão de frente pra esse morro de
Bonsucesso, pra cá. Os barracos eram todos azuizinhos, outros verdinhos. Esse
aqui era na beira da rua.
Nessa foto a gente tá olhando pra esses morros da Tijuca. Essa outra é atrás
da casa do Nenê, em cima do cano. Tem uma foto que aparecem as torres, atrás
da casa do Nenê. Aqui é onde agora tem as queimadas, onde pegou fogo.
Aqui é a estrada-de-ferro. A estação Oswaldo Cruz tá mais pra cá. Esses
morros são os morros daquelas torres que tem... lá no Abrigo13, olhando pra
Bonsucesso. A Leopoldo Bulhões fica pra o lado de lá e a estação fica do lado de
cá. Essas torres são lá, apontando pra o Abrigo. Aqui tá o Morro do Adeus, na
altura da Avenida Itaoca. Era tão descampado que a gente olhava...
Eu não me lembro quando foi construído o Viaduto de Bonsucesso. Antes do
Robson nascer tinha o rio, mas não tinha o viaduto. Eu queria saber o que tinha
naquele lugar, não consigo me lembrar. Tinha a ponte, que eu até me lembro que
uma família da Penha veio passear e a lotação caiu dentro do rio. Morreu a família
quase toda. O rapaz só conseguiu salvar uma cunhada dele.
Todas essas fotos de casas são das mesmas casas. Elas foram construídas
quando eu tinha uns dez anos. A mãe do Alexandre, a dona Anita, morou numa
dessas. É o Parque João Goulart. Desses barracos eu me lembro muito bem,
lembro da construção deles. Aqui na frente tinha a casa da minha tia. Atrás da
casa da minha tia, que era na Democráticos, em frente ao muro da Souza Cruz,
próximo do cano, fizeram esses barracos. Ainda deve ter um ou outro barraco
desses no João Goulart. No CHP2 não tem quase nenhum, já foram muito
12
Segundo Gleide Guimarães, Vera e Jaime são responsáveis por uma ONG na Vila Turismo, que administra,
dentre outras coisas, uma creche. Localiza-se perto da igreja, na mesma rua do CCAP.
13
Abrigo Cristo Redentor.
16
mexidos. Depois derrubaram esses barracos todinhos e fizeram os apartamentos.
Os apartamentos duraram por muitos anos. Eles já eram de alvenaria, de quatro
andares. Derrubaram os apartamentos e ficou aquele descampado.
A Democráticos tá por aqui. Isso aqui deve ser num tempo de chuva mesmo, tá
tudo cheio de enchente. A Refinaria de Manguinhos é aqui. Não dá pra ver a
Democráticos porque a Refinaria é aqui na frente. Isso tudo aqui era a Baía14, tudo
mangue.
Essa aqui é onde tem hoje a Vila do João, Vila Pinheiro. Isso tudo foi aterrado.
O Fundão seria pra cá e essa é a Ilha dos Macacos15 Minha mãe dizia assim:
“Vamos pra Praia do Amorim.” Ela subia essa ruazinha com a gente e descia pra o
outro lado. Lá tinha praia, era nesse pedaço aí. Devia ser um laguinho que era
chamado de praia.
Nessa foto estão as casas onde morava a mãe do Alexandre, nessa frente de
rua, todas verdinhas. Parecem um vagão de trem. Eram divididas no meio. Aqui
era uma porta e aqui era a outra porta, não tinha mais nada. Eu fico olhando e não
tenho um pingo de saudade dessas casas. Quando dava enchente jogava todo
mundo na água, ficava o desespero. A água subia e saía arrastando todo mundo.
Essa cobertura é de um colégio que tinha lá na frente da Suburbana, do lado
das casas, o Olavo Freire. Esses pés de árvore eram lá na Suburbana, onde
agora tem os apartamentos novos dos ex-combatentes. Os prédios dos excombatentes eram só naquele pedaço dali pra trás. Aqueles que tem na frente são
muito antigos, mas não são da época que eu tinha nove anos. Tem três ou quatro
conjuntos ali dentro. Eu me lembro que a minha mãe dizia assim: “Vá brincar no
parque.” O parque era lá nos ex-combatentes, lá atrás, perto da linha do trem. Lá
na frente eram os novos ex-combatentes, a Casa da Moeda...
Isso aqui é a antiga Rio – Petrópolis. Eu atravessei muito de trem pra levar a
Gleide pra se internar em Petrópolis. Naquela época não tinha ônibus. Ela foi
internada em Pedro do Rio. A gente tinha que pegar o trem na Leopoldina, saltar
em Petrópolis e pegar o ônibus pra Pedro do Rio. Tinha uma estrada de carro
também, atravessei muito.
As recordações – as enchentes e os incêndios
Tem coisa que eu não me lembro, mas meu marido lembra. Ele veio pra cá com
quinze anos. Ele é da minha idade, tá com sessenta e três. Teve muita enchente
quando ele veio morar aqui. Ele veio com treze anos e eu vim com quinze. Teve
uma enchente – parece que tinha dois ou três meses que ele estava aqui – e o
barraco dele foi com tudo pra dentro do rio. O pai dele ficou desesperado.
Nós passamos também por uma enchente, lá na Coréia, mas não deu pra
destruir. A Gleide já era mocinha, tinha quinze anos. Ela saiu levando um irmão no
colo, eu levando o outro e puxando mais outro pela mão. Meu marido falou assim:
“Não dá pra salvar nada? Vamos fazer o seguinte...” Trancou a porta e deixou
tudo boiando lá. Fomos pra os apartamentos, que já tinha os apartamentos.
Ficamos lá até baixar a água e a gente poder voltar pra casa. Quando chegamos
14
15
Baía de Guanabara.
Ilha onde ficavam os macacos da Fiocruz.
17
em casa, tinha panela de feijão virada dentro d’água, o fogão boiando, roupa,
panela de pressão, tudo dentro d’água. Acho que essa foi a segunda enchente
que eu passei.
Só presenciei dois incêndios. O último foi há pouco tempo. Teve um incêndio
feio, perto da minha casa. Tinha umas crianças que estavam brincando. A mãe,
que é cristã, foi no portão atender a um irmão que estava chamando. O menino
pegou um papel, acendeu no fogo, botou na cortina. Em vez de ela dizer: “Gente,
me acode! Tá pegando fogo, tá incendiando!”, coisa e tal, não, ela começou a
gritar: “Aleluia, Senhor! Glória a Deus! Aleluia! Ah, Senhor, tenha misericórdia!” O
pessoal não saía do lugar porque pensou que ela estava orando. Quando ela
conseguiu gritar “incêndio”, já tinha queimado um bocado de troço. Quando foram
ver, já tinha queimado tudo (risos). Só deu tempo de tirar as crianças. Todo mundo
perdeu tudo porque o fogo pegou nos outros barracos. Só não pegou no meu
porque ele era ruim demais, não queimava assim, não. Ficou torto, quase caiu,
mas não queimou (risos). Depois o negócio foi cômico, a gente riu, mas na hora
não deu pra rir, a coisa ficou feia. Só restou cinza. Teve gente que ficou só com a
roupa do corpo. Eu ajudei muito, arrumei muita roupa...
Meu marido tinha mania de juntar coisa velha, roupa, ferramenta, essas coisas.
Quando ganharam as casas da Mandela, a maioria delas não tinha maçaneta. Ele:
“Vai lá em casa que lá tem.” Tinha um montão de maçanetas, ele deu muitas.
Tem coisa que eu não lembro, assim, na hora, mas tem muita coisa pra
lembrar. Vou juntar minhas memórias e vou mandar escrever. (risos)
Fim
* Essa edição é referente a duas fitas de entrevista.
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GUIMARÃES ED