MANUEL NEVES
UM MODO PARTICULARÍSSIMO DE SER
0 Manel Neves
um relance biográfico
O Manel é um alentejano de sangue e coração. Nasceu em Montemor-o-Novo, no dia 4 de Março de 1953 e ali viveu até 1981, data em que veio a falecer a
sua mãe. Pouco depois do nascimento, em consequência de uma enterite, foi atingido por uma doença, que o veio impossibilitar da evolução e vivências
normais nas crianças. Mas a privação de algumas das suas faculdades intelectuais não impediram o Manel de crescer num mundo muito dele, onde
sempre foi visível uma elevada percepção da realidade, a qual se traduzia, na prática, na revolta pela incapacidade de uma resposta médica e social ao
seu problema e na avidez de acompanhar o dia a dia e as suas mutações, ao mesmo tempo que a sua forte ligação afectiva ao Alentejo o levavam a
reproduzir ou criar nas telas que pinta, o seu meio envolvente e as grandes alterações que se foram verificando ao longo dos tempos - as planícies e os
montes do Alentejo inundados da luz quente do sol, os velhos e gigantescos sobreiros à sombra dos quais se refrescam as loiras searas salpicadas de
papoilas, as cenas relacionadas com a tauromaquia, etc.
Com a morte de sua mãe, o Manel viu-se privado do seu grande e maior pilar de apoio afectivo e material, passando a viver um período de incertezas e
solidão interior. E foi novamente confrontado com a falta de condições sociais de protecção às crianças, jovens e, sobretudo, adultos, que nascendo ou
tendo-se tornado diferentes, muitas vezes, não encontram um lugar que lhes permita continuar a beneficiar do direito de viver e de desenvolver as suas
potencialidades. Este período da vida do Manel, agravado com a morte de seu pai, serviu de inspiração à fundação da Casa de Betânia, casa onde vive
actualmente com outros residentes, e na qual ele pôde, finalmente reencontrar parte significativa da estabilidade perdida, uma vivência em amor e
oportunidade para continuar a descrever, através do que pinta, o modo como o mundo se lhe vai apresentado.
De 1997 a 2000 frequentou "A Oficina de Artes" do Centro Paroquial de Carnaxide, onde é acompanhado pela artista plástica Olga Souto Rodriguez.
Nas "aulas de pintura" mais do que o contacto com as tintas e telas, o Manel revela-se com o seu espírito crítico, uma sensibilidade incrível e a sua
personalidade com "carácter de urgência"!- revela-nos Olga Rodriguez Entre os dois criou-se um forte laço de amizade e até de cumplicidade, embora
seja pena a professora "não perceber nada de agricultura", no dizer do Manel.
As suas inúmeras telas espalhadas em vários locais da sua terra natal, nas casas dos irmãos e amigos da Casa de Betânia, são pinceladas fortes e
diferentes à busca de uma sociedade onde a pessoa com deficiência tenha o lugar que lhe é devido e onde possa expressar toda a riqueza do seu mundo
interior e do seus valores profundos, que a nossa sociedade ainda teima em não aceitar, acreditar e valorizar. Que esta nova mostra seja mais um passo
para a compreensão da pessoa portadora de qualquer tipo de deficiência e para a transformação de uma sociedade numa sociedade mais aberta,
solidária e inclusiva, em 2003, Ano Europeu da Pessoa com Deficiência.
ISABEL PINTO
A Relação de Manel Neves com a Arte
O pintor Manel Neves exprime os seus sentimentos de um modo singular. A forma através da qual este artista dá a conhecer os
variados conteúdos da sua artisticidade é única. Cada quadro acabado é uma manifestação de uma vontade criadora, a qual
nunca se encontra satisfeita, procurando imediatamente a seguir a cada quadro acabado uma nova forma mais perfeita ou mais
adequada de dialogar com o mundo. Manel Neves considera um quadro acabado somente quando se sente reconciliado com o
tema que pintou. O pintor sente um prazer enorme na arte da pintura a óleo, usufruindo intensamente de um sentimento que
advém do simples prazer de pintar, a arte pela arte. Uma das professoras deste artista, Olga Souto, realçou a sua "(...) imensa
vontade de pintar a tela". Este pintor não se deixa limitar nem catalogar por estilos mais ou menos rigorosos. O que define a obra
é a mão que traça a pincelada e não a sujeição a uma determinada escola. Os seus quadros exprimem um olhar diferente sobre
vários temas. No dizer de Olga Souto: "(...) a sua preferência são os campos, os touros e as casas alentejanas, sentindo nele uma
enorme felicidade ao pintar as suas obras."
Segundo o testemunho de alguém que partilha com o artista muitos momentos de criatividade, este é um pintor que não só pinta
como também vive de um modo diferente. O estímulo que impele Manel Neves a pintar consiste num mundo interior prolixo e
sensível o qual, por vezes, se revolta contra o mundo exterior. A obra de arte resulta como tentativa de mediação entre dois
mundos diferentes, mas necessariamente indissociáveis e complementares, numa dialéctica que busca a reconciliação e o
términus do conflito latente entre o artista e a sociedade. É a harmonização entre o Artista e a Sociedade, através da Arte. É por
essa razão que os quadros do Manel Neves são Peças Únicas, genuínas obras de arte resultantes dos contínuos diálogos encetados
pelo artista com o mundo que o envolve e estimula.
Manel Neves perspectiva a Arte sob a óptica da vida e a vida sob a óptica do artista. É um pintor que considera o mundo como
palco exclusivo da inspiração para os seus quadros e, simultaneamente, concede artisticidade a essa realidade interpretada,
acrescentado-lhe, desse modo, uma diferença qualitativa.
A terminar a apresentação de Manel Neves, convidamo-lo, ao visitar esta exposição, a pousar o olhar nos quadros pintados por
este artista. Após alguns instantes, breves que sejam, confirmará que são obras de arte impregnadas de força e personalidade. As
pinturas de Manel Neves têm algo a dizer, apelam ao simples e puro no íntimo do espectador que examina os quadros. Após
analisar as obras de arte patentes nesta exposição, o visitante certamente compreenderá o muito respeito e carinho que se tem
por este artista
MANUEL BARROSO
Um modo particularíssimo de ser
Ao longo dos tempos tem-se martirizado o conceito de arte procurando dissecá-lo e analisá-lo sob diversas perspectivas, muitas vezes teorizando-se acerca dele sem
no entanto ter havido uma verdadeira relação com as obras de arte.
O século XX privilegiou essa relação, por um lado aplicando várias concepções e metodologias, que vão desde a psicologia da visão à linguística (iconografia), passando
por outros campos de análise estética de raiz filosófica. Inclusivamente disciplinas como a história, a sociologia e a antropologia (estas naturalmente mais tarde),
definiram um âmbito específico para a arte, assim como a psicologia, campos aos quais a psicanálise nas suas diversas abordagens veio contribuir para a compreensão
do fenómeno da criação artística e da obra de arte.
De certa forma, a arte foi-se aproximando da expressão infantil, da sua simplicidade e inventividade e da total ausência de regras, a não ser as resultantes dos
materiais e do próprio corpo da criança. Mas também da expressão daqueles que são diferentes e que a sociedade rejeita. O simbólico, o paranóico, o lírico, o
obsessivo são categorias da actualidade. E aquilo que vai no interior de cada um, sem preconceitos nem atilhos, tornou-se matéria da arte.
Para além de tudo a arte é expressão, comunicando sentimentos, afectos e ideais. O uso das cores e traços na narrativa dos gestos, pondera-se até à realização de uma
imagem construída passo a passo, até ser sentida como completa, mesmo que inacabada.
Aqui podemos enquadrar os trabalhos do Manel como projecções da sua íntima personalidade que não necessitam de artifícios formais para adquirirem o estatuto de
pinturas.
Vivendo ao ritmo da intensidade interior, estas imagens tematizam a paisagem e a figura humana. A paisagem de girassóis e outras, a lide do Pedrito de Portugal (tema
que o Manel aprecia muito), o homem a cavalo, o homem no barco (quem sabe se um desdobramento de sucessivos auto-retratos) constituem um mundo imagético
próprio com regras cromáticas e espaciais definidas pelo autor. Assim o uso da cor é contrastante e muitas das vezes puro, o gesto que desenha é incisivo e o espaço é
bidimensional excepto nalguns quadros, cujo domínio da perspectiva linear não sendo pleno é colmatado pelo recurso à mancha da cor.
As pinturas são expressivas e retratam um universo interior dinâmico que olha com curiosidade e observação o mundo externo na perspectiva de o conhecer mais
profundamente. Estas pinturas têm por conseguinte um sabor autêntico, não estão sujeitas a modas, e as lições que o Manel recebeu enriqueceram o seu vocabulário.
São referências a um universo pessoal que ecoa e se realiza através da visualidade, dando-lhe a possibilidade de dominar nesta dimensão a realidade, concretizando
algo de positivo e agradável. Não sendo o resultado de uma fuga ao Mundo, são pelo contrário um modo de reencontro com ele. Um modo maravilhoso e insaciável que
todos devemos reconhecer, além de ser uma maneira particularíssima de o Manel estar entre nós, ao nosso lado.
CRISTINA AZEVEDO TAVARES
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Manuel Neves - Casa de Betânia