Este amor
Tão violento
Tão frágil
Tão terno
Tão desesperado
Este amor
Belo como o dia
E ruim como o tempo
Quando faz tempo ruim
Este amor tão verdadeiro
Este amor tão belo
Tão feliz
Tão alegre
E tão irrisório
Tremendo de medo como uma criança no escuro.
Jacques Prévert
Introdução
Sofre-se muito por amor, essa é a verdade. Inclusive os que se
vangloriam de ter uma sintonia perfeita com o parceiro, no mais
íntimo do seu ser, às vezes abrigam dúvidas, inseguranças ou pequenos medos a respeito do seu futuro afetivo. Nunca se sabe...
Quem não sofreu alguma vez por estar com a pessoa errada, por
sentir que o desejo esfriou ou, simplesmente, pelo carinho que
nunca aconteceu? Não há nada mais sensível do que o amor,
nada mais arrebatador, nada mais vital. Renunciar a ele significa
viver menos ou não viver.
O amor é múltiplo. A experiência afetiva é formada por
um conjunto de variáveis que se entrelaçam de maneira complexa. Sem dúvida, sentir o amor é mais fácil do que explicá-lo,
porque ninguém nos educou para amar e sermos amados, pelo
menos não de forma explícita. O afeto, em quase todas as suas
formas, nos arrebata e transcende. Alguns dirão que o amor não
é para ser entendido, mas para ser sentido e aproveitado, e que o
romantismo não abarca nenhuma lógica. Nada mais equivocado.
A atitude sentimental, além de ingênua, é perigosa, uma vez que
uma das principais causas do “mal de amor” nasce justamente
das crenças irracionais e pouco realistas que elaboramos sobre
o afeto ao longo de nossa vida. As concepções errôneas do amor
são uma das principais fontes de sofrimento afetivo.
Racionalizar o amor? Sim, ainda que não exageradamente,
apenas o necessário para não nos intoxicarmos. Tanto o amor
Introdução
11
desejado (princípio do prazer) como o amor pensado (princípio de realidade) são necessários; razão e emoção em proporções
adequadas. O amor não somente deve ser saboreado, mas também
incorporado ao nosso sistema de crenças e valores. Trata-se de
incrementar o “quociente amoroso” e ligar o coração à mente
de tal maneira que possamos canalizar o sentimento de forma
saudável. Dito de outra forma: é preciso organizar e regular o
amor para torná-lo mais compatível com os neurônios. Não falo
de restringi-lo ou de cortar as suas asas, mas de ensiná-lo a voar.
O que queremos dizer quando falamos de amor ou quando dizemos que estamos apaixonados? Usamos como sinônimos
de amor inúmeras palavras que não significam a mesma coisa:
paixão, ternura, amizade, erotismo, apego, simpatia, afeto, compaixão, desejo e expressões desse tipo. Não conseguimos especificar o que é o amor nem unificar a sua terminologia. Para alguns,
amar é sentir paixão; para outros, amor e amizade são a mesma
coisa; e não poucos associam o amor à compaixão ou à entrega
total e desinteressada. Mas quem tem razão? Aqueles que defendem o sexo, os que preferem o companheirismo ou os que pensam que o verdadeiro amor é um fato espiritual?
Assim como os filósofos Comte-Sponville e Guitton, entre
outros, penso que o amor poderia ser mais bem estudado a partir
de três dimensões básicas. Quando esses elementos conseguem se
unir de maneira adequada, dizemos que estamos na presença do
amor unificado e funcional. De acordo com as suas raízes gregas,
os nomes que recebem esses três “amores” são: eros (o amor que
toma e se satisfaz), philia (o amor que compartilha e se alegra) e
ágape (o amor que doa e se compadece).
Há alguns anos, em outra publicação, propus uma estrutura similar, tripartite, do amor: o do tipo I (mais emocional),
12 Ame e não sofra
referente à paixão, o do tipo II (mais cognitivo/racional), que
tem a ver com o amor conjugal, e o do tipo III (mais biológico),
relacionado com o amor maternal. No entanto, a nova classificação proposta é mais completa e rica em conceitos, mais aplicável
à vida prática e mais fundamentada.
Um amor completo, sadio e gratificante, que nos aproxime mais da tranquilidade do que do sofrimento, requer a união
ponderada dos três fatores mencionados: desejo (eros), amizade
(philia) e ternura (ágape). Essa é a tripla condição do amor que se
renova a si mesmo, repetidamente, de maneira inevitável.
Um casal funcional não precisa ter relações sexuais cinco
vezes por dia (a qualidade é melhor do que a quantidade), concordar em tudo (as discordâncias leves reafirmam a individualidade) ou viver em um eterno romance (muita ternura enjoa). O
amor inteligente é um cardápio ativado de acordo com as necessidades: tudo em seu tempo, na medida e de forma harmoniosa.
Ainda que ao longo do texto eu aprofunde cada um dos
três elementos mencionados, farei aqui um pequeno esboço conceitual para facilitar a leitura posterior.
Eros
É o desejo sexual, a posse, a paixão, o amor passional. O mais
importante é o “eu” que deseja, que apetece, que exige. A outra
pessoa, o “tu”, não chega a ser sujeito. É a face egoísta e libidinosa
do amor: “Quero possuir você”, “Quero que você seja minha”,
“Quero você para mim”. O eros é conflituoso e dual por natu­
reza, nos eleva ao céu e nos faz descer ao inferno num instante. É
o amor que dói, que se relaciona com a loucura e a incapacidade
de se controlar. Mas não podemos prescindir do eros; o desejo é
a energia vital de qualquer relação, seja como puro sexo ou como
Introdução
13
erotismo. O eros bem conduzido não só evolui até a philia de casal (amizade com desejo), mas também costuma manifestar-se de
forma amável como dois egoísmos que se encontram, compartilham e desfrutam um do outro enquanto fazem e desfazem no
amor. O eros por si só não consegue configurar um amor completo, porque sempre vive na carência, sempre falta algo. É a ideia
de amor de Platão.
Philia
É a amizade – no nosso caso, “amizade de casal” –, o chamado
“amor conjugal” ou amizade conjugal. A philia transcende o “eu”
para integrar o outro como sujeito: “eu” e “tu”, ainda que o “eu”
siga na frente. Apesar do avanço, no caso da philia, a benevolência não é total, porque a amizade ainda é uma forma de se amar
a si mesmo através dos amigos. A emoção central não é o prazer
como desejo ganancioso, mas a alegria dos que compartilham:
a reciprocidade, estarmos bem e tranquilos. A philia não requer
uma união total (nunca a conseguiremos com ninguém, nem sequer com os melhores amigos), basta que exista certa cumplicidade de interesses, um traço de comunidade de duas pessoas
que convivem. Enquanto o eros decai e ressuscita de quando em
quando, se tudo vai bem, a philia torna-se mais profunda com
os anos. Mas de nenhuma maneira a philia exclui o eros; ao contrário, ela o serena, o situa em um contexto menos libidinoso,
menos predador, mas não o aniquila. Nas relações mais ou menos estáveis, fazemos mais uso da philia do que do eros, mas ambos são indispensáveis para formar um vínculo estável. Quando
o eros domina, nos transformamos em seres libidinosos e sem
limites, e somos “objeto” e “sujeito” ao mesmo tempo: objeto,
quando nos devoram; sujeitos, quando devoramos. A philia e o
14 Ame e não sofra
eros juntos supõem uma luxúria simpática e amena, fazer amor
com o melhor amigo ou a melhor amiga. A philia é a amizade de
Aristóteles e Cícero, por exemplo, transportada ao casal.
Ágape
É o amor desinteressado, a ternura, a delicadeza, a ausência de
violência. Não é o “eu” erótico que arrasa tudo, nem o “eu” e
o “tu” do amor amigável, mas o amor da entrega: o “tu” puro e
franco.
É a dimensão mais limpa do amor, é a benevolência sem
contaminações egoístas. Obviamente, não estou me referindo a
um amor irreal e idealizado, porque inclusive o ágape estipula
condições; falo é da capacidade de renunciar à própria força para
adaptar-se à fraqueza da pessoa amada. Não se trata de prazer
erótico nem da alegria amistosa, mas da pura compaixão, da dor
que nos une ao ser amado quando sofre, quando ele precisa de
nós ou nos chama; é a disciplina do amor que não requer esforço. O ágape não costuma ser necessariamente a última etapa
na evolução do amor, mas a sua aparição tampouco desloca ou
suprime os seus antecessores: uma vez mais, os inclui e completa.
Como será visto ao longo do texto, pode haver sexo agápico (eros
e ágape) e amizade desinteressada (philia e ágape). Em resumo,
o ágape é o amor de Jesus, Buda, Simone Weil e Krishnamurti.
Segundo o que foi exposto, não há um amor de casal, há
pelo menos três amores reunidos em torno de duas pessoas, e a
alteração de qualquer um deles fará com que o equilíbrio vital
do afeto se perca e aflore o sofrimento. A alteração afetiva pode
advir do eros (por exemplo, quando sentimos que não somos
desejados ou que não desejamos mais o nosso companheiro ou
Introdução
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a nossa companheira), da philia (quando o tédio fica cada vez
mais presente e a alegria desvanece), do ágape (quando a falta de
respeito e o egoísmo começam a ser frequentes) ou de qualquer
combinação deles que seja disfuncional.
Algumas pessoas tentam se resignar a um amor que não é
harmônico: mais cedo ou mais tarde, o déficit termina por alterar
a relação e a tranquilidade pessoal.
Amor de casal sem desejo? Bastante improvável; em todo
caso seria algo diferente. Conviver com o inimigo? Isso se tornaria insustentável. Despreocupar-se com o bem-estar da pessoa
amada? Seria muito cruel.
Insisto: somente na presença ativa e interrelacionada do
desejo, da amizade e da compaixão o amor se realiza. O amor
incom­pleto dói e adoece.
Conheço gente que dissociou os três amores até criar uma
espécie de Frankenstein afetivo. A respeito do eros: encontram-se
uma ou duas vezes por semana com o amante. Quanto à philia,
aproveitam-na no lar, com o marido ou a mulher. E deixam o
ágape para os domingos de missa. Quanto mais desagregados estejam os componentes do amor, maior será a sensação de vazio
e desamor.
Em outros casos, as necessidades e expectativas dos integrantes do casal não coincidem, e os componentes do amor perdem-se num emaranhado de confusão e mal-entendidos. Se não
temos um esquema cognitivo (mental) com o qual interpretamos
os fatos, fica impossível resolvê-los.
Adriana e Mário estavam casados havia onze anos. O casamento tinha sido aparentemente satisfatório – ao menos era essa
a imagem que projetavam para as pessoas. No entanto, lentamente
e de forma encoberta, o amor havia começado a fragmentar-se.
16 Ame e não sofra
Mário sentia que a sua vida sexual não era gratificante (preci­
sava ter relações com mais frequência e com maior qualidade), e
Adriana queixava-se de solidão afetiva (precisava de um companheiro com quem dividir e se comunicar). Ambos estavam presos num círculo vicioso do qual não estavam muito conscientes.
Ela não era capaz de abrir as portas ao eros sem o pré-requisito
da amizade entre o casal, e ele negava-se a qualquer aproximação
amistosa (philia) sem o eros. A armadilha psicológica também se
estendia ao ágape, já que, por estarem frustrados e magoados pela
carência que sentiam, nenhum deles se preocupava com o bem-estar do outro. Concluindo, não estavam presentes na relação
nem o eros, nem a philia, nem o ágape.
A solução não era fácil, porque implicava que ambos deixassem a obstinação de lado e pensassem no bem-estar do outro;
ou seja, era preciso ativar o ágape para conseguir que a sexualidade e a amizade pudessem se encontrar dentro e fora da cama.
Na prática, Mário deveria melhorar a sua philia, independentemente de que Adriana colocasse o eros para funcionar, e Adriana
deveria melhorar o seu eros, sem se preocupar que Mário se tornasse mais comunicativo e amigável.
Como dizia uma canção dos anos 60: “Há meio mundo
esperando/ com uma flor na mão/ e outra metade do mundo/
por essa flor esperando”. O orgulho imobiliza.
Somente com ajuda profissional eles foram capazes de
reestruturar e integrar (equilibrar, harmonizar) cada uma das
dimensões afetivas em sua justa proporção. Para assegurar uma
relação satisfatória e na qual não houvesse sofrimento, Adriana
e Mário tiveram de aprender uma nova maneira de processar a
informação. Os objetivos foram os seguintes:
Introdução
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• Identificar e reconhecer como estavam organizadas as dimensões básicas do amor (eros, philia e ágape).
• Cultivar cada uma delas para que se alcançasse o nível de
satisfação requerido.
• Integrá-las de forma equilibrada e flexível para que se manifestassem de maneira oportuna.
Ambos aprenderam uma nova forma de ler e de interpretar o amor que lhes permitiu, mais tarde, promover as mudanças
necessárias. Descobriram que a experiência afetiva tem uma narrativa particular, que é possível traduzir e assimilar à vida a dois
sem tanto sofrimento.
Ame e não sofra é dirigido a qualquer pessoa que deseje
avançar no seu processo afetivo, seja para fortalecer ainda mais
os aspectos positivos da sua relação, seja para deixar de sofrer
inutilmente por amor. O leitor não encontrará receitas mágicas
(elas não existem, menos ainda no amor), mas a oportunidade de
refletir sobre a sua vida afetiva e pensar em si próprio em relação
aos outros.
A proposta básica é que, se entrelaçarmos os “três amores com
os quais amamos” num esquema de amor unificado, não apenas
será incrementada notavelmente a capacidade de sentir satisfação,
como a dor psicológica terá menos espaço.
O amor não tem por que causar sofrimento se formos
capazes de eliminar as crenças irracionais que a cultura incutiu
em nós. Buda dizia que a ignorância é a origem de todo so­
frimento psicológico. Da mesma forma, um número conside­
rável de pensadores e mestres espirituais chamou a atenção para
a importância de se pensar corretamente para não se sentir
mal. Somos ignorantes no amor? Atrevo-me a dizer que sim.
18 Ame e não sofra
Analfabetos emocionais? Não acredito, talvez apenas disléxicos,
maus leitores.
Em Ame e não sofra pretendo ampliar as ideias que expus
em Amar ou depender?. Não se trata apenas de amar sem apegos
(uma das principais causas da dor afetiva), o que é uma conquista
importante, mas sim de acabar com todo tipo de sofrimento relacionado com o amor.
Este texto contém nove capítulos distribuídos em três partes. Na primeira parte, “Eros – o amor que dói”, indaga-se, na
natureza sem limites do enamoramento, o desejo, o erotismo e
a patalogia de eros. Na segunda parte, “Philia – da mania à simpatia”, analisa-se a amizade de casal e quais são os seus componentes; e na terceira parte, “Ágape – da simpatia à compaixão”,
examina-se o tema da ausência de violência e a compaixão afetiva. Cada capítulo completa-se com uma seção chamada “Para
não sofrer”, na qual se relaciona de forma simples o conteúdo do
capítulo com o sofrimento afetivo e são dadas sugestões para, se
possível, evitá-lo. Finalmente, este livro pretende aplicar as contribuições de diversas disciplinas, como a psicologia, a antropologia, a sociologia e a filosofia ao estudo do amor, de uma forma
acessível para o leitor, mantendo o nível científico e a profun­
didade que a temática requer.
Introdução
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