TEOREMA DE LEGENDRE GABRIEL BUJOKAS A nossa meta hoje é responder a seguinte questão: Questão. Para a, b ∈ Z∗ , determine se a equação (∗) x2 = ay 2 + bz 2 tem uma solução com x, y, z ∈ Z, além da solução trivial x = y = z = 0. Quem respondeu essa questão foi Legendre. É a resposta dele é o começo de uma história muito legal! Exercício 1. Mostre que as seguintes equações não tem soluções inteiras além de x = y = z = 0. a) x2 = 2y 2 + 3z 2 b) x2 = 3y 2 + 3z 2 c) x2 = 7y 2 − z 2 Depois de resolver o exercício acima, você deve ter encontrado uma técnica pra mostrar que não tem solução: olhar módulo n. Vamos formalizar esse método. A gente chama uma solução não trivial (x, y, z) de primitiva se o mdc de x, y, z é 1. Se a equação (∗) tem uma solução não trivial, ela também tem uma solução primitiva. Agora olha essa solução primitiva módulo n. Nós concluímos que a equação x2 = ay 2 + bz 2 mod n tem uma solução não trivial primitiva (aqui primitiva significa que nenhum fator primo p de n divide os três números x, y e z). O seguinte teorema mostra que essa é a única obstrução para a existência de soluções inteiras! Teorema 0.1 (Legendre). A equação (∗) x2 = ay 2 + bz 2 tem solução com x, y, z inteiros, não todos iguais a zero, se, e somente se, (A) a > 0 ou b > 0, (B) Para qualquer inteiro n, a equação x2 = ay 2 + bz 2 mod n tem uma solução não trivial e primitiva. Observação. A primeira vista, se alguém te der um par (a, b), a condição (B) parece difícil de verificar. Na verdade é fácil. Daqui a pouco a gente vai aprender como lidar com ela. Date: Sexta Feira, 22 de Junho de 2012. 1 2 G. BUJOKAS Exercício 2. Vamos dividir a demonstração do teorema 0.1 em uma sequência de exercícios. A discussão acima provou uma direção do teorema. Vamos provar a direção oposta: a gente assume (A) e (B), e quer construir uma solução inteira para (∗). a) Mostre que nós podemos assumir, sem perda de generalidade, que a, b não são múltiplos de quadrados perfeitos. b) Nós vamos aplicar indução em |a| + |b|. Resolva o caso base |a| + |b| = 2. c) Suponha agora que |a|+|b| > 2, a,b não múltiplos de quadrados, e |a| < |b|. Mostre que para qualquer divisor primo p de b, a mod p é um resíduo quadrático. Conclua que existe um inteiro b0 tal que t2 = a + bb0 d) Mostre que podemos assumir |t| < |b|/2. Conclua que |b0 | < |b|. e) Mostre que x2 = ay 2 + bz 2 (∗) tem solução inteira não trivial se, e somente se, (∗0 ) x2 = ay 2 + b0 z 2 tem solução inteira não trivial. f ) Mostre que (∗) tem solução não trivial e primitiva módulo n se, e somente se, (∗0 ) tem solução trivial e primitiva módulo n. g) Conclua o teorema de Legendre. O passo (e) é o essencial. Esse tipo de técnica as vezes é chamado de root flipping. 1. Lema de Hensel A gente vai precisar de uma ferramenta nova. Seja p um número primo, e f (x) um polinômio. Questão. Dado um inteiro xn tal que f (xn ) ≡ 0 mod pn quando existe um inteiro xn+1 tal que xn+1 ≡ xn f (xn+1 ) ≡ 0 mod pn mod pn+1 Nós podemos adaptar o método de Newton para provar o seguinte lema: Lema 1.1 (Lema de Hensel). Seja 0 ≤ 2k < n. Se pk ||f 0 (xn ), e pn |f (xn ), então existe xn+1 tal que xn+1 ≡ xn mod pn−k f (xn+1 ) ≡ 0 mod pn+1 Exemplo. Considere a equação x2 + y 2 ≡ 0 mod 5 TEOREMA DE LEGENDRE 3 Ela tem uma solução (x, y) = (1, 2). Vamos extender essa solução para módulo 25. Seja f (x) = x2 + 4. Aqui 5|f (1), e 5 não divide f 0 (1). Então existe x0 tal que 25|f (x0 ), e x0 ≡ 1 mod 5. É fácil de achar esse x0 . x0 ≡ 1 mod 5 =⇒ x0 = 5z + 1 Substituindo em f (x): f (x0 ) = (5z + 1)2 + 4 = 25z 2 + 10z + 5 Então 25 divide f (x0 ) se 5 divide 2z + 1. Por exemplo, a gente pode escolher z = 2, e x0 = 11. Exercício 3. Prove o lema de Hensel (1.1). 2. De volta ao teorema de Legendre Agora a gente tem que lidar com a condição B: (B) Para qualquer n ≥ 2, x2 = ay 2 + bz 2 mod n tem uma solução primitiva não trivial (módulo n) Exercício 4. Mostre que é suficiente provar a condição B para n = pk , para primos p. Vamos introduzir a seguinte notação. Definição 2.1. Para a, b ∈ Z∗ , nós definimos o símbolo de Hilbert ( 1, se a condição B é verdade para n = pk , para qualquer k, (a, b)p = −1, caso contrário. A gente pode reescrever o teorema de Legendre da seguinte forma. Teorema (Legendre). A equação (∗) x2 = ay 2 + bz 2 tem solução em Z não trivial se, e somente se, (A) a > 0 ou b > 0 (B) (a, b)p = 1, para qualquer primo p. Agora o nosso trabalho é calcular o símbolo de Hilbert. Exercício 5. Prove as seguintes propriedades do símbolo de Hilbert. (1) (a, b)p = (b, a)p (2) (a, bk 2 )p = (a, b)p (3) (a, −a)p = 1 (4) Se (a, b)p = 1, então (a, b0 )p = (a, bb0 )p Agora vamos calcular o símbolo de Hilbert. Seja a = pα u, b = pβ v, e p não divide u e v. Como a gente pode assumir que a, b não são múltiplos de quadrados, α, β = 0, 1. Caso (i): p é um primo ímpar. (a) p não divide a e b, isso é, a = u, b = v. 4 G. BUJOKAS Exercício 6. Mostre que a equação (∗) tem uma solução primitiva módulo p. Use o lema 1.1 para extender essa solução para qualquer n = pk . Isso é, (a, b)p = 1. (b) a = pu, b = v. Exercício 7. Mostre que (a, b)p = v p (c) a = pu, b = pv. Exercício 8. Mostre que (a, b)p = onde (x) = −uv p = (−1)(p) u p v p , x−1 2 . Caso (ii): p = 2. Defina x−1 2 x2 − 1 ω(x) = 8 Exercício 9. Mostre que (x) = (a, b)2 = (−1)(u)(v)+αω(v)+βω(u) , A princípio a gente pode fazer todos os casos de a, b módulo 8. Mas dá pra reduzir o número de casos! Vamos recolher essas resultados em um único teorema. Teorema 2.1. Seja a = pα u, b = pβ v, e p não divide u e v. β α v (−1)αβ(p) up , se p um primo ímpar, p (a, b)p = (−1)(u)(v)+αω(v)+βω(u) , se p = 2. Exercício 10. Determine se as seguintes equações tem solução inteira além de x = y = z = 0. (1) x2 = −97y 2 + 13z 3 (2) x2 = 97y 2 − 19z 3 (3) x2 = −8y 2 + 3z 2 (4) x2 = −7y 2 + 8z 2 (5) x2 = −5y 2 + 6z 2 (6) x2 = 2y 2 + 7z 2 (7) x2 + 3xy = 5z 2 − 4y 2 Exercício 11. Mostre que o símbolo de Hilbert satisfaz (a, bb0 )p = (a, b)p (a, b0 )p Observação. A gente já tinha visto isso no caso (a, b)p = 1. Para o próximo exercício, a gente precisa definir uma notação. Seja V = {∞} ∪ {p ∈ Z| p é primo} e defina (a, b)∞ ( 1, se a > 0 ou b > 0, = −1, caso contrário. TEOREMA DE LEGENDRE 5 Com essa notação, o teorema de Legendre é x2 = ay 2 + bz 2 tem solução não trivial inteira se, e somente se, (a, b)v = 1, para qualquer v ∈ V Exercício 12. Fixe a, b ∈ Z∗ . Mostre que (a, b)v = −1 para um número finito de v ∈ V . Prove a seguinte fórmula Y (a, b)v = 1 v∈V Observação. Essa fórmula é essencialmente equivalente a reciprocidade quadrática. A importância dessa fórmula é que ela ainda é verdade para outros anéis! Com ela a gente pode extender a reciprocidade quadrática, cúbica, quártica, ciclotômica, e mais! 3. Formas Quadráticas O teorema de Legendre é parte de uma história maior. Para ler mais sobre o assunto, olhe o livro do Serre [1]. Aqui vai uma introdução rápida: Seja f (x1 , x2 , . . . , xm ) um polinômio homogêneo de segundo grau com coeficientes racionais. Nós chamamos f de forma quadrática. Uma questão básica é: Questão. A equação f (x1 , x2 , . . . , xm ) = 0 tem uma solução (x1 , x2 , . . . , xm ) ∈ Qm além da solução trivial (0, 0, . . . , 0)? Se a resposta dessa pergunta é afirmativa, nós dizemos que a forma quadrática representa 0. Nessa linguagem, o problema de Legendre é se a forma x2 − ay 2 − bz 2 representa 0. Uma questão mais fácil é se f (x1 , . . . , xm ) = 0 tem uma solução não trivial nos números reais. Se esse é o caso, nós dizemos que f∞ representa 0. Claramente, se f representa 0, então f∞ também representa. Outra observação é que como f é homogêneo, se f representa 0 com (x1 , . . . , xn ) ∈ Qn , então a gente pode assumir que xi são inteiros sem nenhum divisor comum. Nesse caso, a gente chama (x1 , . . . , xn ) ∈ Zn de solução primitiva. Olhando essa solução módulo pk , a gente conclui que a equação (3.1) f (x1 , . . . , xn ) = 0 mod pk tem uma solução tal que p não divide nenhum dos xi . Nós chamamos tal solução em Z/pk Z de primitiva também. Se a equação 3.1 tiver uma solução não trivial primitiva pra todos os valores de k, nós falamos que fp representa 0. 1 Nós provamos o seguinte: 1Normalmente essa definição envolve números p-ádicos, e é mais limpa. Se você quiser saber mais sobre isso, me pergunte, ou leia o livro do Serre que está na bibliografia. 6 G. BUJOKAS Proposição 3.1. Se f representa 0, então fv representa 0, pra qualquer v ∈ V = {∞} ∪ {p ∈ Z| p é primo}. Exemplos: (1) A forma f = x2 +y 2 +z 2 não representa 0, porque f∞ não representa zero (a única solução é (0, 0, 0), mesmo nos reais). (2) A forma f = x2 − 2y 2 não representa 0, porque f2 não representa 0. De fato, olhando módulo 4 x2 = 2y 2 mod 4 implica que x e y são pares, e portanto (x, y) não é uma solução primitiva. (3) Para a forma f = x2 − ay 2 − bz 2 , e v ∈ V , fv representa 0 ⇐⇒ (a, b)v = 1 A generalização do teorema de Legendre é a seguinte: Teorema 3.2 (Hasse, Minkowski). O converso da proposicão 3.1 é verdade. Se fv representa 0 para qualquer v ∈ V , então f também representa 0. Observação. O teorema de Hasse-Minkowski tem a seguinte interpretação geométrica. O conjunto V é chamado o conjunto de “lugares". A pergunta “fv representa 0?” é chamada de local, e a pergunta “f representa 0"de global. O teorema de Hasse-Minkowski é chamado de princípio de local para global : Se f tem solução localmente em todos os lugares, então f tem uma solução global. Observação. O princípio de local para global não é verdade para qualquer polinômio. Por exemplo, Selmer mostrou que 3x3 + 4y 3 + 5z 3 = 0 tem solução localmente em qualquer lugar, mas não tem solução inteira! 4. Preliminares O primeiro passo é fazer uma substituição de variáveis para simplificar a forma f . A técnica é completar os quadrados. Por exemplo, vamos simplificar: f = x2 + 3xy + 5xz + 2z 2 + 2y 2 Seja x̃ = x + 23 y + 52 z. Então f = x2 + x(3y + 5z) + 2z 2 + 2y 2 3 5 9 15 25 = (x + y + z)2 − y 2 − yz − z 2 + 2z 2 + 2y 2 2 2 4 2 4 1 15 17 = x̃2 − y 2 − yz − z 2 4 2 4 Agora a gente substitui ỹ = 12 y + 15 2 z 1 15 17 f = x̃2 − y 2 − yz − z 2 4 2 4 1 15 = x̃2 − ( y + z)2 + 52z 2 2 2 = x̃2 − ỹ 2 + 52z 2 TEOREMA DE LEGENDRE 7 Finalmente, trocando z̃ = 2z, a gente consegue f = x̃2 − ỹ 2 + 13z̃ A observação é que f representa 0 se, e somente se, x2 − y 2 + 13z 2 representa 0. Esse exemplo pode ser generalizado da seguinte maneira. Nós dizemos que duas formas f, f 0 são equivalentes se existe uma substituição de variáveis invertível que transforma f em f 0 . Nós denotamos a equivalência como f ∼ f 0. Proposição 4.1. Qualquer forma quadrática é equivalente a uma forma f = a1 x21 + a2 x22 + . . . + an x2n onde ai são inteiros não nulos e que não são múltiplos de quadrados. Note que essa representação não é única. Por exemplo, x2 + 3xy + 5xz + + 2y 2 também é equivalente a −13x2 + 2y 2 + 2z 2 . Outra questão interessante é a seguinte: 2z 2 Questão. Classificar formas quadráticas (de acordo com essa relação de equivalência). O primeiro passo na classificação é achar invariantes: quantidades que não dependem da escolha de representante a1 x21 + . . . + an x2n . Um invariante é simples: o posto da forma. Definição 4.1. O posto de f = a1 x21 + . . . + an x2n é n (assumindo ai 6= 0). Exercício 13. Mostre o posto é um invariante da forma. Isso é, se 2 a1 x21 + . . . + an x2n ∼ b1 y12 + . . . bm ym então n = m. Exercício 14. Prove o teorema de Hasse-Minkowski para formas f de posto menor ou igual a 3. Referências [1] "A Course in Arithmetic", Jean-Pierre Serre, 1973 E-mail address: [email protected]