CAPITALISMO E GESTORES NAS OBRAS ADMIRÁVEL MUNDO NOVO E
1984
Thiago Oliveira Martins1
Aldous Huxley e George Orwell são atores históricos de um século concebido por
muitos intelectuais como o século da barbárie, período em que a humanidade
testemunhava sua própria aniquilação em decorrência de uma grande crise no Ocidente
“civilizado” que culminaria com a realização de duas guerras mundiais.
Huxley nasceu na Inglaterra, em 1884, morando ainda na Itália, na França e nos
Estados Unidos. Quando foi professor em Eton, teve como aluno George Orwell, que
nasceu nas Índias Britânicas, em 1903, e mais tarde lutou na Guerra Civil Espanhola,
momento em que assistiu à derrota do POUM (Partido Operário de Unificação).
Os dois autores testemunharam, portanto, o surgimento de uma sociedade de
economia global, que se configurava em meio à consolidação de monopólios
capitalistas e à ocorrência de duas grandes guerras, responsáveis pela destruição das
cidades, dos artigos de consumo e de vidas humanas.
Dessa forma, ambos conviveram de perto com o caráter imperialista das disputas
bélicas ocorridas no final do século XIX e início do século XX e, em razão disso,
traçaram em suas obras perfis interessantes para esta mesma sociedade que se
reordenava diante da barbárie.
Já no primeiro capítulo de Admirável Mundo Novo, escrito em 1932, Aldous
Huxley demonstra o que seria, de fato, a primeira conseqüência das mudanças
promovidas pelas guerras para melhor atender aos interesses do capitalismo. Neste
sentido, a Divisão Internacional do Trabalho – iniciada desde a Revolução Industrial –
ia sendo reconfigurada em níveis outrora inimagináveis, os quais Huxley apresenta em
termos bastante precisos ao projetar, por exemplo, em sua ficção, o condicionamento
dos embriões para o trabalho nos trópicos ou para trabalhos específicos, como o
conserto de aviões em pleno vôo.
1
Graduando em História ,4º Ano, pela Universidade Federal de Goiás.
Também George Orwell, na obra 1984, escrita em 1948, deteve-se em demonstrar
o verdadeiro objetivo das guerras do século XX, encontrando na Divisão do Trabalho a
real finalidade para a destruição em massa que se propagava naquele momento:
“Na medida em que a guerra tem objetivo econômico direto, é uma guerra pela
mão-de-obra”.2
Quanto a isso, as formulações do historiador Eric Hobsbawn apresentam uma
síntese bastante profícua para ilustrar as transformações iniciadas – e levadas adiante –
com relação ao trabalho, no sentido de se assegurar o crescimento econômico em níveis
globais:
“A história da economia mundial desde a Revolução Industrial tem sido de
acelerado progresso técnico, de contínuo, mas irregular crescimento econômico, e
de crescente ‘globalização’, ou seja, de uma divisão mundial cada vez mais
elaborada e complexa de trabalho; uma rede cada vez maior de fluxos e
intercâmbios que ligam todas as partes da economia mundial ao sistema global”.3
Certo é que tanto Huxley quanto Orwell tecem em suas obras uma crítica severa à
sociedade dos fins do século XIX e início do século XX, de modo a antecipar vários
aspectos materiais que, em seguida, constituiriam essa mesma sociedade permeada por
guerras e conflitos de toda a ordem.
A exemplo disso, George Orwell denuncia o caráter imperialista das disputas
bélicas empreendidas pelos três Super-Estados que, em 1984, ficcionalmente controlam
o mundo – a Oceania, a Eastásia e a Eurásia –, conforme se observa:
“Todos os territórios disputados contêm valiosos minerais, e alguns produzem
importantes produtos vegetais, tais como borracha, que nos climas mais frios é
necessário sintetizar por métodos relativamente caros. Acima de tudo, porém,
contém uma prodigiosa reserva de mão-de-obra barata. Quem quer que controle a
África equatorial, ou os países do Oriente Médio ou a Índia meridional, ou o
arquipélago indonésio, dispõe também de massas de dezenas ou centenas de
milhões de peões diligentes e mal pagos. Os habitantes dessas regiões, reduzidos
mais ou menos abertamente à condição de escravos, passam continuamente de
conquistador a conquistador e são gastos, como o carvão ou o petróleo, na corrida
para produzir mais armamentos, capturar mais território, controlar mais braços,
2
3
George Orwell. 1984. São Paulo: Nacional, 2003, p. 180.
Eric Hobsbawn. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.92.
para produzir mais armamentos, para capturar mais território e assim
infinitamente”. 4
Este trecho foi extraído do livro fictício de Goldstain, um crítico da sociedade sob
o controle do Grande Irmão (Big Brother). Na seqüência do romance, torna-se notório
que Goldstain fora, na verdade, uma invenção do Partido para difundir um sentimento
de medo entre a sociedade, algo muito característico na Rússia após a Revolução de
1917.5 Neste caso, esta personagem representa, portanto, um “inimigo do sistema”.
Já em Admirável Mundo Novo, Huxley aborda, de maneira exemplar, o contraste
entre o ‘moderno” e o “atrasado”, tecendo críticas pungentes ao desenvolvimento
“prodigioso” da ciência, que, segundo o autor,
ao contrário de promover
benesses à sociedade, contribuiu para o surgimento de diversos problemas de ordem
social que posteriormente não seriam resolvidos. Sob esta perspectiva, a personagem
John – “o Selvagem” – confronta-se diretamente com o mundo moderno, reiterando a
impossibilidade de convivência entre o tradicionalismo e o mundo da ciência.
Também George Orwell traz à cena, em 1984, as conseqüências preliminares
desta sociedade moderna que se desenvolvia no ritmo da ciência e dos avanços
tecnológicos:
“No começo do século vinte, a visão de uma sociedade futura incrivelmente rica,
ociosa, ordeira e eficiente – um refulgente mundo anti-séptico de vidro, aço e
concreto branco de neve – fazia parte da consciência de quase toda pessoa
alfabetizada. A ciência e a tecnologia se desenvolviam num ritmo prodigioso, e
parecia natural imaginar que continuassem se desenvolvendo. Isso não ocorreu,
todavia, em parte por causa do empobrecimento causado por longa série de guerras
e revoluções, em parte porque o progresso científico e técnico dependia do hábito
empírico do raciocínio, que não podia sobreviver numa sociedade estritamente
regimentada”.6
Para além desta crítica à ciência, Orwell consegue ainda projetar em sua obra o
surgimento de uma nova classe social que há muito buscava afirmar-se na sociedade
capitalista. Trata-se dos gestores, classe inicialmente auxiliar da burguesia no processo
de ampliação do capitalismo, que, em momentos seguintes, sobrepõe-se à própria
burguesia. Observe-se como o autor descreve e avalia as origens desta nova classe:
4
George Orwell, op. cit., pp. 180-181
Basta lembrarmos que Lênin, ao assumir o poder com o Partido Bolchevique, instaura o medo de uma contrarevolução capitalista na sociedade russa.
6
George Orwell, op. cit., p. 182.
5
“A nova aristocracia era composta, na sua maioria, de burocratas, cientistas,
técnicos, organizadores sindicais, peritos em publicidade, sociólogos, professores,
jornalistas e políticos profissionais. Esta gente, cuja origem estava na classe média
assalariada e nos escalões superiores da classe operária, fora moldada e criada pelo
mundo estéril da indústria monopolista e do governo centralizado.” 7
Como se percebe, esta nova classe social atuava tanto nas empresas privadas –
tendo como principal incumbência promover a articulação entre os diversos processos
de produção – quanto nas ações promovidas pelo Estado – garantindo, pois, as
condições gerais de produção.
Neste sentido, a sociedade descrita por Orwell em 1984 configurava-se como uma
sociedade já dominada pelos gestores. Sob esta perspectiva, João Bernardo avalia os
motivos ficcionais deste autor da seguinte maneira:
“Embora a ação ocorra apenas num dos três grandes estados fictícios, a Oceania,
percebemos que os outros dois, a Eurásia e a Eastásia, obedecem ao mesmo
sistema social, marginalizando completamente a produção de bens de consumo e
sustentando a economia em formas de trabalho-intensivo”.8
Por outro lado, a sociedade descrita por Aldous Huxley é, segundo João Bernardo,
um modelo da fusão de três tipos de sociedade – a norte-americana, a soviética e a
fascista –, o que converge para o estabelecimento de uma singularidade inconteste a este
universo: o consumo.
“O fundamento comum, que permitira a convergência dos três regimes, é a
sociedade de massas, entendida duplamente: do lado da produção, consiste no
fabrico de enormes quantidades de artigos indiferenciados, perdendo-se na massa
dos objetos qualquer especificidade particular; ao lado do consumo, consiste na
redução das pessoas a padrões estereotipados, perdendo-se toda a individualidade
na massa social.”9
Outro aspecto marcante desta mesma sociedade é o hedonismo, o prazer
individual buscado a todo momento que, se por um lado harmoniza aparentemente a
7
Idem, ibidem, p. 197.
João Bernardo. “Aridez e futilidade: Parábola acerca da mais-valia absoluta e da mais-valia relativa”. In: Educação
e Sociedade, Revista Quadrimestral de Ciência da Educação. 1999, p.37.
9
Idem, ibidem, p.38.
8
convivência entre os indivíduos, por outro, detém qualquer possibilidade de existência
de sujeitos críticos, conforme preconiza João Bernardo:
“A reflexão é perigosa porque suscita a apreciação crítica e traz discórdia, pondo
em causa a estabilidade indispensável a um regime totalitário. São essas ocasiões
de conflito que as autoridades querem a todo custo evitar, em vez de aguardarem
para punir-lhes as conseqüências, porque um sistema assente no consumo de
massas e numa produção capital-intensiva tem de praticar a conciliação; não a
repressão.”10
Sob este enfoque, a realidade é posta de lado e o homem se torna dependente do
consumo e do prazer que este lhe proporciona. Noutros termos, os indivíduos se vêem
presos a uma realidade imposta, sem qualquer possibilidade de contestação ou
formulação de um olhar mais crítico, capaz de libertá-los desse “mundo de amarras”
ancorado no consumo absoluto. Como conseqüência, é inevitável que se instaure o
fracasso diante da realidade, arraigado a um constante sentimento de incapacidade que
só é aliviado quando, por exemplo, se ingere a soma – uma espécie de alucinógeno que
cria sensações de satisfação quando esta é empecida de ser alcançada de outra maneira.
Uma outra perspectiva sobre o homem, sugerida na obra de Aldous Huxley,
aproxima-se muito das concepções fascistas, no sentido de que o indivíduo pertenceria à
sociedade, sendo, pois, incapaz de prevalecer-se sobre esta. Basta recorrermos ao
discurso de Alfredo Rocco, de 1938, para comprovarmos esta assertiva:
“Daí, que a relação entre sociedade e indivíduo apareça na doutrina do fascismo
como perfeitamente oposta ao individualismo. A fórmula das doutrinas liberais,
democráticas e socialistas da sociedade para o indivíduo, é substituída no Fascismo
por outra o individuo para a sociedade. Com uma diferença: enquanto aquelas
doutrinas anulam a sociedade no individuo, o Fascismo não anula o individuo na
sociedade. Subordina o individuo, não o anula, já sendo o individuo parte da sua
geração, é sempre, como tal, um elemento, ainda que infinitesimal e transitório, da
sociedade. Quando proporcionados e harmônicos, o desenvolvimento e a
prosperidade dos indivíduos de qualquer geração tornam-se condições do
desenvolvimento e da prosperidade de toda a unidade social. Daí, o interesse da
sociedade na prosperidade dos indivíduos.”11
Como este discurso foi proferido seis anos depois da publicação de Admirável
10
Idem, ibidem, p.40.
Alfredo Rocco. “A Doutrina Política do Fascismo”. In: Para a Compreensão do Fascismo. Lisboa: Nova
arrancada, 1999.
11
Mundo Novo – época em que ainda não havia sociedades declaradamente fascistas,
embora os ideais do Fascismo já tivessem sido apregoados em alguns países europeus –,
é evidente que Huxley já conseguia antever uma sociedade futura, como a fascistanazista da Itália e da Alemanha, ainda que o universo ficcional criado por este autor
assumisse os aspectos de uma sociedade absolutamente utópica.
Não há, portanto, como negar, diante do que já foi aqui exposto, que as leituras do
mundo propostas por George Orwell e Aldous Huxley perfazem, sobretudo, uma
perspectiva acerca do processo histórico de uma sociedade estéril, já controlada por um
capitalismo de gestores, conforme o próprio Orwell observou em 1984.
Tal sociedade – representada em termos ficcionais nas duas obras em questão,
mas acertadamente antevistas pelos autores – promove a anulação do indivíduo, ora
através do incentivo a um consumo desmedido, ora por meio do policiamento constante,
instaurado por mensagens do tipo: “Sorria, você está sendo filmado”, conforme se
observa tão precisamente nos dias atuais.
É, portanto, com a finalidade de prever e denunciar esta sociedade totalitária que
Huxley e Orwell investem na criação de um contexto ficcional pertinente e amplamente
válido como documento histórico de uma época, capaz de ilustrar uma realidade já
pautada em ideais fascistas sobre o papel do indivíduo, ao passo que também arraigada
aos valores de um capitalismo que se afirmava com o surgimento de uma nova classe, a
dos gestores.
Enfim, estas perspectivas enunciadas pelos dois autores alcançaram, de fato, uma
Visão de Mundo12 satisfatória e o Máximo de Consciência Possível13 sobre sua época.
12
Visão de Mundo não é um dado empírico imediato, mas, ao contrário, um instrumento conceitual de trabalho,
indispensável para compreender as expressões imediatas do pensamento dos indivíduos. Sua importância e sua
realidade se manifestam mesmo no plano empírico, desde que ultrapassem o pensamento e a obra de um escritor.
13
Só raramente, indivíduos excepcionais atingem, ou pelo menos quase atingem, a coerência integral. Na medida em
que chegam a exprimi-la, no plano conceitual ou imaginativo, serão filósofos ou escritores e suas obras serão tanto
mais importantes quanto mais se aproximarem da coerência esquemática de uma Visão do Mundo, ou seja, do
Máximo de Consciência Possível do grupo social que exprimem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, Sigmund. O Futuro de Uma Ilusão. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
GOLDMANN, Lucien. Dialética e Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
HOBSBAWM,E.J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. (Tradução de Lino Vallandro e Vidal
Serrano). 2ª edição. São Paulo: Globo, 2004.
BERNARDO, João. “Aridez e futilidade: Parábola acerca da mais-valia absoluta e da
mais-valia relativa”. In: Educação e Sociedade, Revista Quadrimestral de Ciência da
Educação. São Paulo: 1999..
ORWELL, George. 1984. (Tradução de Wilson Velloso). 29ª edição. São Paulo:
Nacional, 2003.
ROCCO, Alfredo. “A Doutrina Política do Fascismo”. In: Para a Compreensão do
Fascismo. Organização de Antônio José de Brito. Lisboa: Nova Arrancada, 1999.
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