UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
CAMPUS REBOUÇAS
Rua do Bispo, 83 - Rio Comprido
Rio de Janeiro-RJ
CAMPUS TOM JOBIM
Av. das Américas, 4.200 - Bl. 11
Rio de Janeiro - RJ
ORGANIZAÇÃO
Denise Trindade
COMITÊ CIENTÍFICO
Denise Trindade (Dra. Comunicação UFRJ/ prof. UNESA)
Eliana Monteiro (Dra. Comunicação UFRJ/prof. UNESA)
Flávio Di Cola (MS Comunicação UFRJ/prof. UNESA)
Lúcia Acar (MS Ciência da Arte UFF/prof. UNESA)
EQUIPE DE PRODUÇÃO
Cátia Castilho
Flávio Di Cola
Gisele Barreto
NUCINE
APOIO: Faperj
EDITORA: Synergia (Jorge Gama/editor)
ISBN: 978-85-61325-86-2
Sumário
Apresentação, 1
1 Que roupa é essa? Bia Salgado, 9
2 Civilizações em agonia: moda e estranheza em Satyricon
de Fellini. Flávio Di Cola, 13
3 A contraimagem na estética do filme Pina. Hélia Borges, 17
4 Dos corpos, das vestes, do movimento e da
catástrofe: Melancolia, de Lars Von Trier. Marta de Araújo Pinheiro, 23
5 A pele que habito: Vicente e o vestido. Eliana Monteiro, 31
6 Tramas de panos e planos: uma poética do visível no cinema de
Wong Kar Wai. Denise Trindade, 39
7 Est-éticas corporais femininas: o corpo/moda periférica.
Nízia Villaça, 47
8 O feminino vestido na fonte das mulheres.
Lúcia Acar, 59
9 Estômago e a indigestão das marcas culinárias.
Rogério Sacchi De Frontin, 61
10 Encenar a pele inglesa em Réquiem iconofágico: o circuito alegórico
limítrofe dos trajes de cena de Sandy Powell na obra de Derek Jarman.
Marcelo Augusto Teixeira, 65
11 O cinema e a moda – do dândi à celebridade. Elis Crokidakis Castro, 75
12 Anotações sobre cinema e moda: recortes e costuras
a partir do documentário de Wim Wenders sobre Yohji Yamamoto.
Andréa Estevão, 83
SUMÁRIO
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APRESENTAÇÃO
Como o bom alfaiate que confecciona um terno que só cai bem num homem
(ou dois) e um sobretudo que só serve em dois ou três, assim sou eu: meus
poemas só convêm, fit, a um caso (talvez a dois ou três). O paralelo é algo humilhante, mas só na aparência: acho-o apropriado e confortador. Se bem meus
poemas não tenham aplicação universal, têm-na parcial. O que não é pouco.
Garantem assim sua verdade. (Kostantino Kaváfis)
O projeto IMAGINÁRIOS DE CINEMA tem como propósito neste II Encontro debater relações entre cinema e moda sob vários aspectos. Em um primeiro momento, colocamos em cena o figurino, onde os dois campos se
encontram de modo pleno, convivendo, porém, com adversidades, como nos
aponta a figurinista Bia Salgado ao levantar a questão “Que roupa é essa?”.
Buscamos também compreender o destino incerto que as imagens cinematográficas vêm adquirindo ao longo de sua existência ao se aproximarem
de outros campos de conhecimento como a arte, a filosofia, a antropologia, a
sociologia e a comunicação. Para isso, contamos com abordagens singulares
de professores e pesquisadores de diferentes universidades do Rio de Janeiro.
Na primeira mesa, os lugares oníricos e exagerados de Fellini são vistos
por Flávio di Cola em sua aproximação com a arte e a atualidade, o que é reforçado por Hélia Borges, que acentua os gestos delicados e fortes de Pina
sob a ótica de Win Wenders.
Na segunda mesa, diferentes vestidos despertam sentidos imagéticos,
como o de noiva que estoura na tela para acentuar a Melancolia de Lars
Von Trier, como nos faz ver Marta Pinheiro ou aquele que refaz a pele de
Vicente em Almodóvar, pela abordagem de Eliana Monteiro, assim como os
que suscitam um olhar háptico proposto por Wong-Kar-Wai e percebidos
por Denise Trindade.
As roupas como inserção cultural será o tema debatido na terceira mesa,
onde a inclusão do corpo feminino da periferia aparece como resistência
em “Sonhos Roubados” e “Sou Feia, mas tô na Moda”, na fala instigante de
Nízia Villaça, ou como ato de persuasão em “A Fonte das Mulheres”, como
quer Lúcia Acar. Veremos também como as marcas, podem tornar-se produtos indigestos através do filme “Estômago”, em uma abordagem singular de
Rogério Sacchi.
Na quarta mesa, Elis Crokidakis nos faz perceber a moda como atitude
moderna em sua apresentação do dândi. Já Marcelo Augusto traça um percurso deste dandismo ao canibalismo, em sua dimensão simbólica e alegórica na
APRESENTAÇÃO
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relação entre Sandy Powell e Derek Jarman. Esta mesma atitude é apontada
por Andréa Estevão ao destacar o ato da roupa sair da tela para vida acentuando a dimensão poética nos trajes de Yamamoto vistos por Win Wenders.
As relações aqui desenvolvidas evidenciam que, além de produzir imaginários geradores de comportamentos, o encontro entre moda e cinema
desperta questões sobre a visualidade no século XXI.
Agradecemos aos professores e pesquisadores que participam deste
encontro e, em especial, a Nízia Villaça por sua presença e contribuição
inspiradoras.
2 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
Que roupa é essa?
Bia Salgado
Graduada em Comunicação Visual (PUC/RJ). Figurinista de Cinema e TV. Realizou
diversos filmes, entre eles “Os Sermões”, de Julio Bressane e Besouro João Daniel.
Na TV, elaborou vários figurinos, entre eles os da série “Carnaval”, de Cao Hamburger. Entre seus trabalhos mais recentes, estão “Chico Xavier”, de Daniel Filho, e “As
Aventuras de Agamenon, o repórter”, de Victor Lopes.
Roupa de verdade para um ser de mentira
Roupa de mentira para um ser de verdade
Estamos aqui para pensar o encontro da moda com o cinema.
Como figurinista de cinema, eu uso a moda (arte e técnica do vestuário),
as alterações corporais e outras formas de compor uma determinada figura,
de várias épocas diferentes, como um conjunto de significantes capaz de determinar o tempo e o espaço da narrativa cinematográfica, além de servir para
a composição dos diversos personagens desta narrativa. Sem esquecer que o
figurino não pode ser visto independentemente de outros elementos de um
filme: ele faz parte de uma obra junto com a direção de arte, a maquiagem, a
fotografia, a trilha sonora, a edição, a atuação e a direção, entre outros.
O que quero com isso é frisar a capacidade do figurino de funcionar
como linguagem, ou parte da linguagem do filme.
Cada profissional da área de cinema vai se relacionar com o filme de
forma particular: o fotógrafo irá traduzir o roteiro junto com o ponto de vista
da direção em cores, luzes e sombras; o diretor de elenco pensará nos personagens e suas características; e a grosso modo assim por diante, o mosaico
vai se formando.
O primeiro contato de um figurinista com um filme é quando ele lê o roteiro e começa junto com o diretor de arte a idealizar o universo onde o filme
acontece, e que será aceito pelo espectador como plausível, estabelecendo-se a verossimilhança da narração ou suspensão da descrença. Para que isso
aconteça, o figurinista cria um código que vai ser decifrado pelo espectador. Ao oferecer uma determinada figura, existente a priori no imaginário do
espectador, ele propõe que ele a reconheça em outro contexto com novos
significantes.
QUE ROUPA É ESSA?
|3
Cabe aqui citar uma definição da figurinista Edith Head:
“O que um figurinista faz é um cruzamento entre magia e camuflagem. Nós
criamos a ilusão de mudar os atores em algo que eles não são e pedimos ao público que acreditem que cada vez que eles veem um ator no palco ele se tornou
uma pessoa diferente.”
Clóvis Bueno, um dos maiores Diretores de Arte que conheço e com
quem tive a sorte de trabalhar diz que:
“O profissional de cinema é um traidor, pois o filme só acontece graças à capacidade que temos de trair uns aos outros para não trairmos a ideia que surge a
partir do roteiro. Para ele, cada filme é um mundo e ele surge quando os vários
profissionais envolvidos na criação desse mundo acrescentam algo da sua visão
à visão do outro, ou seja, o roteiro não pode ser seguido pelo Diretor, ele tem
que ser recriado e assim por diante, cada profissional acrescenta o seu ponto de
vista e assim ficamos diante de um mundo, o filme.”
Quem é Romeo?
Ele é um personagem de uma peça para teatro que se passa em Veneza no
ano X. Essa peça foi adaptada para o cinema. O ator que interpreta o personagem Romeo é alto, moreno, magro, longilíneo, tem 20 anos . Pelo seu
tom de pele, os tons escuros o transformam numa figura trágica. Romeo, o
personagem, é uma figura trágica.
Julieta, personagem da mesma peça, par de Romeo, é uma bela jovem
atriz napolitana, morena, esguia. As cores quentes acentuam o colorido de
sua pele e a tornam mais bonita. Bela como deveria ser quando Romeo a viu
pela primeira vez e por ela se apaixonou.
Desenhar um figurino para o baile em que Romeo e Julieta se encontram pela primeira vez e se apaixonam, é o desafio do figurinista. Vestir o
casal para o amor, para um encontro que acontece num dado momento de
um certo tempo. Cada um deve ser a imagem do desejo do outro , e também
a imagem do desejo do primeiro amor, do amor eterno, mesmo que isso só
exista idealmente, atualmente.
Podemos perceber estas características próprias do figurino em especial nos filmes de Fellini. Neles, os personagens usam roupas, perucas e/ou
chapéus que nada dizem sobre época ou sobre a moda, mas sim sobre perso4 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
nalidades e personagens, sobre memórias e sonhos. Aquelas roupas e acessórios só tomam algum sentido quando encontram e vestem os corpos e
rostos fellinianos dentro dos cenários da Cinecittá.
Quem é João?
João é um modelo que veste a roupa da moda. A roupa da moda no corpo do
modelo João é a roupa do desejo. Desejo de ser João? Desejo de ser a roupa?
O designer de moda veste um ser que não existe. Um ser idealizado, ser
do desejo. Um ser que se materializa quando João veste a roupa que não foi
feita para ele, mas para vários outros Joões, Josés, Joaquins. Uma roupa que
vai pertencer a todos, e que na vitrine não pertence a ninguém.
O designer generosamente deve oferecer a sua roupa para todos. Ele
vai vestir vários corpos diferentes e sua roupa vai ser recriada cada vez que
for usada.
Valorizar o homem na sua individualidade permite a existência da moda.
Fazer com que ele pertença à determinada tribo, ou grupo, também valoriza
a sua função.
O vestuário é expressão do homem moderno. A moda é expressão de
um recorte no tempo desse homem.
A moda passa, o vestuário segue com o homem.
Parafraseando Goethe: “Um filme não é apenas um fragmento do mundo, mas é ele mesmo um mundo.” O cinema, nesse aspecto, é para mim um
conjunto de significantes, no qual o figurino é um deles , que se unem para
que apareça a arte, uma arte comunitária que acontece no ritual do set.
No cinema, a moda passa a ser um pequeno detalhe no grande mosaico.
E a costura? Em que sentido a estamos empregando? Como uma técnica
comum tanto ao estilista quanto ao figurinista, já que ambos a empregam
como ferramenta da sua linguagem. Ou como algo que une tecidos e planos.
E os planos? São os que sucedem ou os que se superpõem? Ou ainda, uma
estratégia diante de um problema?
Perguntas, nem todas possuem respostas, pelo menos nem todas são
necessárias para a nossa discussão, que ainda busca o encontro, mas que às
vezes encontra também o afastamento.
E isso é importante para que as possamos entender nas suas particularidades, de cinema e de moda.
A moda caminha com o cinema desde os seus primórdios, ambos são
expressões da arte na modernidade, a arte pensada para ser reproduzida.
QUE ROUPA É ESSA?
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Mais do que o cinema, a moda, na atualidade, adquire uma aproximação
com a arte pela sua rapidez e capacidade de eterna mudança, e por estar
sempre à frente pela sua própria natureza. Cabe à moda passar, cabe ao
cinema ficar e aí os dois se distanciam.
A visão da arte como algo que permanece está fora de moda, pois assim
como a moda, a arte deve passar e se refazer como algo do homem, sempre,
e aí a moda e o figurino voltam a caminhar juntos.
Acho que a distinção entre ambos fica clara nos filmes de Fellini. Ele fez
filmes que se passavam em diversas épocas, e seus filmes, apesar de não
prescindirem das vestimentas, só as consideravam se estivessem em uso,
ou seja, aquelas roupas só poderiam existir junto com aqueles personagens.
Enquanto a moda pretende vestir a todos, o figurino pretende vestir um ser
único, o personagem, e aí mais uma vez moda e cinema se distanciam.
O designer generosamente deve oferecer a sua roupa para todos. Ele
vai vestir vários corpos diferentes e sua roupa vai ser recriada cada vez que
for usada.
Valorizar o homem na sua individualidade permite a existência da moda.
Fazer com que ele pertença a determinada tribo, ou grupo, também valoriza
a sua função.
O vestuário é expressão do homem moderno. A moda é expressão de
um recorte no tempo desse homem.
A moda passa, o vestuário segue com o homem.
E por aí seguem a moda e o cinema, ora de mãos dadas, ora afastados,
ambos como expressões da contemporaneidade.
6 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
Civilizações em agonia:
moda e estranheza em Satyricon
de Fellini
Flávio Di Cola
Publicitário, jornalista e professor nas áreas de cinema, moda e publicidade da Universidade Estácio de Sá. Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ.
Em pleno revival da moda e dos modos bem comportados da virada dos
anos 50 para os 60 que assola atualmente a indústria cultural global, um filme emerge como um totem dos derradeiros dois anos essencialmente revolucionários dos anos 60 – Satyricon, de Federico Fellini, iniciado em 9 de novembro de 1968 no Estúdio 2 de Cinecittà e lançado com todas as pompas
em 4 de setembro de 1969 na Bienal de Veneza. No final desse ano, o filme
é projetado à 1 da manhã no Madison Square Garden de Nova Iorque, após
um concerto de rock para um público de cerca de 10.000 jovens, “entre eles
muitos marginais, hippies e outros desajustados [...] dentro do local tem-se
a impressão de sufocar numa nuvem de haxixe”.1 Imerso nesse happening, o
diretor comentou: “Queria ser jovem hoje”.2
Satyricon foi escrito por Petrônio durante o reinado de Nero (54-68
d.C.) e é considerado, talvez, o primeiro romance (entremeado com poesia)
da literatura ocidental e um relato cínico e debochado dos costumes de diversos estratos da vida romana. Além de árbitro do bom gosto da depravada
corte do imperador, Petrônio exerceu vários cargos administrativos. O historiador Tácito o retrata como um refinadíssimo dândi que passava todo o dia
a dormir, enquanto as noites eram despendidas nas suas obrigações e prazeres. Envolvido numa conspiração contra Nero, Petrônio organiza um luxuoso
banquete em que – em meio à música, recitações e discussões filosóficas
– corta as veias antes que os carrascos de Nero o alcancem.
É possível estabelecer uma relação tão íntima quanto secreta entre
a inexorável “decadência” moral da Roma dos Césares e a irrupção da
1
2
KEZICH, Tulio. Fellini. Porto Alegre: L&PM, 2002, p. 347.
Ib.
CIVILIZAÇÃO EM AGONIA: MODA E ESTRANHEZA EM SATYRICON DE FELLINI
|7
irracionalidade e da desordem contraculturais instauradas a partir da segunda metade da década de 1960. Na verdade, todo o século XX testemunhou o
triunfo do choque e do feio, numa sucessão de movimentos artísticos, espirituais, filosóficos, políticos e sociais que propagaram como programa comum
o “fascínio da heresia”, na feliz expressão do historiador Peter Gay.3
Petrônio, ao narrar as perambulações do estudante-vagabundo Encolpio on the road pelos quatro cantos do Império Romano, pretendeu retratar
o pesadelo surrealista que deveria ter sido a vida sob uma civilização em
crise aguda. Jung, num ensaio sobre a obra seminal do século passado - o
“Ulysses” de James Joyce –, afirmou que o feio e o estranho de hoje seriam
os sintomas de alterações futuras profundas na vida mental da humanidade.
Já Umberto Eco nos lembra – citando Schelling – que “o perturbante é algo
de esquecido que brota, que reaparece depois de ter sido apagado, e que
tenha perturbado a nossa infância pessoal ou da humanidade mesma”.4
Fellini já escandalizara o mundo nove anos antes com um filme que fora
qualificado, à época, como um “Satyricon moderno” – A Doce Vida (1960)
– um inquietante inquérito da atmosfera reinante no auge da Guerra Fria
e do prelúdio da Crise dos Mísseis que quase levaria a humanidade à destruição um ano depois. Sobre esta sua obra magna, Fellini comenta: “Pus o
termômetro num mundo doente que, evidentemente, tem febre. Mas se o
mercúrio assinala 40 graus, no início do filme, continua a assinalar 40 no fim.
Nada mudou. A doce vida continua. Os personagens do afresco continuam a
mover-se, a despir-se, a agarrar-se, a dançar, a beber, como se esperassem
algo. Que esperam? Quem sabe? Um milagre, talvez. Ou a guerra, os discos
voadores, os marcianos”.5
Nove anos depois, Fellini identifica na obra de Petrônio uma oportunidade
de – através da “luxuriante perversidade”6 do mundo romano – caricaturizar
os vícios modernos e a histeria geral que contaminam a civilização moderna
diante da amarga consciência da falta de controle e da impotência perante
o que nos espera no futuro. Fellini, em Satyricon, praticamente “zera” a sua
filmografia, queimando “todas as pontes atrás de si para penetrar num continente inexplorado”.7 Portanto, as palavras normalmente associadas à obra
de Federico – tais como, sonho, fantasia, mentira, delírio e memorialismo –
3
GAY, Peter. Modernismo: o fascínio da heresia: de Baudelaire a Beckett e mais um pouco. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009
4
ECO, Umberto. Storia della bruttezza. Milão: Bompiani, 2011.
5
FELLINI, Federico. A doce vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
6
CORE, Philip. Camp: the lies that tells the truth. Nova York: Delilah Books, 1984.
7
KEZICH, op. cit., p. 336.
8 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
não se aplicam ao seu Satyricon. Pelo contrário, Fellini deserda acintosamente
qualquer pretensão reconstituinte e – junto com esta – toda a herança clássica com suas tentações pompeianas e estetizantes, cristalizadas pela tradição
pictórico-literária e pela nostalgia cinematográfica épico-hollywoodiana.
Distanciamento, estranhamento, desconhecimento, e uma implacável
mirada ótica perante a “desumanidade, a ausência de piedade e o clima de
matadouro”8 daquele planeta remoto e inexoravelmente misterioso que deveria ter sido a vida sob o Império Romano – estas foram às posturas estabelecidas por Fellini nessa viagem aterrorizante em “uma paisagem mineral,
quase esquizofrênica, em um mundo tão impenetrável como um manicômio,
suspenso como um nota longa que vibra em agonia”.9 A essa “etnografia do
impossível” corresponde um universo cujas bizarras aberrações encontram
lugar num novo gênero cinematográfico cunhado pelo próprio diretor: Satyricon é – antes de tudo – um filme de ficção científica arqueológico. Nessa
Roma nebulosa, escavada pela câmera fria e desinteressada do diretor, a
luz é sempre “estática, crepuscular, imóvel, como a mudez agonizante da
noite”,10 ou metafísica como num quadro de Di Chirico.
Danilo Donati, insígne cenógrafo e figurinista, e Luigi Scaccianoce, notável arquiteto, foram os artífices – ao lado do próprio Federico Fellini – da
representação do irrepresentável, resultando num partido visual que reprocessa alguns estilemas das modas romanas através dos filtros arcanos
do surreal. Minuciosas pesquisas sobre o vestuário, a arquitetura e a arte
imperiais foram diligentemente levadas a cabo pela equipe de Donati, mas
exatamente para evitar todas as suas referências. Nesse sentido, Satyricon
talvez reúna o conjunto de cenários, figurinos, maquiagem e adereços o mais
ambíguo, livre, indecifrável e inquietante do cinema. Tudo que é registrado
pelas lentes impávidas de Fellini parece irresoluto, incompleto, preso numa
confusão vivida com uma indiferença – totalmente irresponsável aos nossos olhos cristianizados e politicamente corretos – por personagens com
as quais não temos a mais remota possibilidade de identificação, simpatia
ou acordo. Nesse contexto, a única possibilidade de participação do público
é através do seu próprio incômodo e desconcerto diante do que vê na tela.
É verdade que à época de Petrônio e Nero sucedem as dinastias FláviaNerva-Trajana e Antonina, longo e progressivo período de rebuscamento e
excessos nos costumes, na moda, nas artes e na arquitetura. O Império atinge o seu fastígio e – com este – o fastio, expressos em Satyricon por túnicas,
8
FELLINI, Federico. Fellini Satyricon. Milão: Capelli Editore, s/d, p. 42.
Ibidem.
10
Ibidem.
9
CIVILIZAÇÃO EM AGONIA: MODA E ESTRANHEZA EM SATYRICON DE FELLINI
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véus, mantos e joias de uma extravagância sem paralelo, pelas maquiagens
caricatas, pela exibição de hordas de corpos ora hiperatrofiados pelos prazeres ora repentinamente mutilados pela violência cega e endêmica. Para
recrutar as multidões de figurantes que envergariam os figurinos de Donati,
Fellini estabelecera cinco padrões estético-gestuais: rostos pesados, portes
matronais, bichas enlouquecidas, monstruosidades e velhos de asilo. Esse
desfile tão fantástico quanto monstruoso guarda, portanto, uma certa relação com aquele período de poder, gozo, tédio, terror e agonia absolutos.
Essa parte ainda visível da romanidade decadente no Satyricon de Fellini
– expressa fundamentalmente na visão de moda-figurino de Danilo Donati
– fez com o que filme encontrasse uma profunda correspondência com o
espalhafatoso circo midiático global do período, em que se mesclavam a encenação fashion da dolce vita do recém-fundado jet set internacional com a
nova e coletiva tomada de consciência dos problemas mundiais, contradição
que seria dolorosamente vivida ao longo dos anos 70. Tanto que Fellini cogitou em convocar um elenco all star com as principais celebridades que agitavam os palcos dessa civilização escandalosamente inconsciente das suas extravagâncias. A lista de Federico recrutava Elizabeth Taylor, Richard Burton,
Peter O´Toole, Ringo Starr, Orson Welles, Groucho Marx, Danny Kaye, Mae
West, Anna Magnani, Mina, Alberto Sordi, entre outros nomes que incluíam
a mais bela modelo do mundo, a francesa Capucine, que viria a suicidar-se
em 1990, aos 62 anos de idade, pulando do oitavo andar do seu edifício após
uma crise de depressão.
Finalmente, o projeto de Satyricon como um gigantesco afresco do novo
e incompreensível mundo que se esboçava no final dos anos 60 não pôde
contar com esses nomes voluptuosos, mas – indiretamente – ele deixou-se
impregnar pelo universo pop-fashion por eles representado.
Referências
CORE, Philip. Camp: The lies that tells the truth. Nova York: Delilah Books, 1984
ECO, Umberto. Storia della bruttezza. Milão: Bompiani, 2011
FELLINI, Federico. A doce vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
GAY, Peter. Modernismo: o fascínio da heresia: de Baudelaire a Beckett e mais um pouco. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009
KEZICH, Tulio. Fellini. Porto Alegre: L&PM, 2002
10 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
A contraimagem
na estética do filme Pina
Hélia Borges
Psicanalista. Doutora IMS/Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2009). Professora da Graduação e da Pós-Graduação da Faculdade Angel Vianna. Coordena a
linha de pesquisa Corpo/Arte/Clínica vinculada à URRJ. Pesquisadora de temas ligados à corporeidade, filosofia da estética: arte – em especial a dança, o movimento e
processos de subjetivação.
Na segunda metade do século XX, um novo paradigma estético se coloca: a arte deixa de ocupar o espaço fechado das galerias e museus e passa
a fazer parte do cotidiano. A partir das forças de afetação propiciadas pelos
encontros a novos universos perceptivos. Joseph Beuys, Lygia Clark, Hélio
Oiticica, entre outros, em suas produções afetadas pelo relacional, convocam a arte para o encontro, para a vida.
A arte produzida por esses artistas pode ser entendida como Ações1
que, ao misturar arte com vida, produzem um alargamento do campo da
arte, no qual “a intervenção física do artista” (Gil, 1999:203) permite que o
invisível se atualize em novas imagens – denominadas por Beuys de contraimagens – que produzirão ações no espectador.
a contraimagem é o inconsciente e o inconsciente não é uma instância psíquica
individual [...] o inconsciente é uma força, e a arte, quer dizer, “a escultura social”
deverá comunicar o inconsciente do autor com o inconsciente do espectador
através da Ação.
(Gil, 1999:210)
Ao produzir ações, o espectador rompe, momentaneamente, com sua
inscrição em um sistema de representações, de sentido, o que possibilita
1
Gil (1999), argumentando sobre a obra de J. Beuys, denomina Ações as intervenções que este
artista realizava juntando elementos díspares e se introduzindo na cena. Partindo dessa ideia,
chamamos também de Ações determinadas obras de Hélio Oiticica, como os Parangolés, e as intervenções corporais de Lygia Clark pela dimensão pensamento-ação proposta por estes artistas
em suas produções relacionais.
A CONTRA-IMAGEM NA ESTÉTICA DO FILME PINA
| 11
a emergência do pensamento-ação, escapando da determinação de um
conceito. Realiza- se, então, a experiência estética: um choque sensorial que
faz existir novos horizontes.
Win Wenders possibilita contraimagens ao captar, em recortes privilegiados, a força expressiva do trabalho de Pina Bausch. Um filme intenso,
comprometido com a experiência do “entre”, sem fim nem começo, sem começo nem fim. As imagens circulam entre passado e futuro no presente imediato da percepção. Masculino e feminino oscilam, se fazem um, se fazem
múltiplos. Impregnam de paixão, sofrimento, alegria, dor, angústia, afetos,
ludicidade, cotidiano.
Nos figurinos fluidos e elegantes em corpos livres de formalismo, no
ecletismo musical, na influência de elementos ocidentais e orientais que utiliza em suas coreografias, Pina rompe a distinção tradicional das ordenações
binárias imputadas pela cultura. Marca uma dança que nasce na intimidade
do ser. Compondo com espaços e linhas, constitui-se na ideia de um corpo
que exibe uma multiplicidade de corpos, na ideia de que a vida e a morte são
inseparáveis e cheias de contradições
Minúsculos movimentos ampliados na dança e resignificados na tela nos
fazem videntes ao “nos deparamos com o intolerável presente na banalidade cotidiana [banalidade que] torna impossível pensar o pensamento e a si
próprio.” (MACHADO, 2009: 287)
Campo privilegiado de encantamento, o cinema como prótese cognitiva
aqui se encontra destacando nas imagens o fluxo intensivo dos movimentos,
que deslizam entre as coreografias de diversos trabalhos de Pina. Imagens, por
vezes, destituídas de sentido e apoiadas nas expressões de seus bailarinos, nos
seus movimentos, nos seus gestos, nas suas falas, nas suas paradas sustentadas em olhares que impõem a cena. “Você tem o direito de ser louca”, diz Pina
à bailarina que busca em sua gestualidade impregnar o mundo com sua força.
A dança-teatro de Pina Bausch, ao propor desvio ao sentido antecipatório realizado na desconstrução do gesto e a hibridização com outras formas
de arte, gera um desdobramento num campo infinito de movimentos, ritmos
e gestualidade que intensificam o espaço de afetação estética.
A dança é um absoluto efêmero; ela desaparece no momento mesmo
em que surge, detendo assim a ideia de infinito, lugar puro, nu, fora do nome,
para além do dizível. Vertigem: o infinito aparecendo na finitude do corpo
que é capaz de arte. A substância da arte como experiência material transmite o fugidio e, ao mesmo tempo, o familiar da senciência. Na arte, a forma
é dada imediatamente à percepção, mas vai além de si mesma.
Espaço deiscente dos devires intensivos, a dança-teatro de Pina se aproxima da experiência de dissipação e se produz na dissipação da imagem, pela
12 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
impessoalidade e largueza do estado de existência, no sentido dado por Ferenczi (FERENCZI, [1912]1988) ao termo introjeção: como extensão realizada
pelos movimentos autoeróticos ao incluir o mundo no eu – espaço que se
amplia, superfície de contato – desalojando, transtornando e transformando
os polos dominantes.
Ao pensar a ação do ator em cena, Eugenio Barba (1995) nos apresenta
a noção de corpo dilatado como constelação de ativos para a captação das
forças do mundo. Barba nos diz que o ser-em-vida é unívoco, é não linear;
o ser-em-vida é a negação da sucessão de fases diferentes de desenvolvimento; é um crescimento simultâneo por meio de entrelaçamentos cada
vez mais complexos, de modo que se tornaria possível acessar as experimentações não estratificadas do campo das forças. O fora do discurso, como
experiência de singularização do sujeito falante.
Barba associa a noção de corpo dilatado com o perezhivanie de Stanislavski revelando no “revivecer” a ideia de acontecimento que, ao operar nas
bordas do corpo, realiza um trabalho de desabrochamento de algo que permanecia congelado no corpo, por meio da ativação de sua sensibilidade física
e mental. A corporeidade se manifesta, então, na sua qualidade de ser transdutor de signos pelo fato de devolver à palavra o dom de encantamento, pelo
fato de poder reconstituir o dom de magia à palavra que, ao se transformar em
código, se torna oca. Esta propriedade acontecimental da palavra para além
do discurso se encontra no campo das forças, no corpo, antes da palavra, na
concretude, no fora: “é preciso distinguir a exterioridade e o lado de fora. A
exterioridade é ainda uma forma [...], mas o lado de fora diz respeito à força”
(DELEUZE, 2005: 93).
O fora do discurso é 0 modo como a linguagem se apresenta quando ela
se enuncia: é momento de fugacidade do discurso; aí surge o ritmo, escapando ao código, a marca singular do artista pode emergir através do silêncio da
palavra nos movimentos intensivos.
A partir desta perspectiva, podemos dizer que a arte do teatro-dança
de Pina se caracteriza como força agenciadora de novas formas, em que
os bailarinos restaurariam, a partir de estado de “aquecimento” do corpo, a
desestabilização do território conhecido e, como consequência, se tornam
capazes de produzir uma dilatação no campo expressivo.
A sensibilidade de Win Wenders ao utilizar o recurso 3D nos introduz no
filme, logo de saída, na dança de Pina através da transparência, da leveza e
do suave movimento de um tecido que desliza quase que tocando, ou ainda,
tocando nossa pele. Absurdo realista de uma dimensão que nos permite o
filme: nos abandonarmos à percepção do diretor na projeção realizada na tela,
pelos elementos coreográficos de Pina, que nos propõe viver intensamente
no corpo extenso as dramaturgias.
A CONTRA-IMAGEM NA ESTÉTICA DO FILME PINA
| 13
Nos bailarinos, os afetos se inscrevem em movimentos autoeróticos. Por
conter os registros da construção das formas das forças, são os gestos que,
investidos de seus ritmos característicos, se realizam nas bordas do corpo.
Campo pulsional, na fronteira, o entre se revela no obscuro da força que faz
o gesto mover. O que se apresenta no gesto dançado, carregado de ritmo,
é a expressão singular onde formas surgem a partir de um corpo senciente
manifestando o invisível, o ainda não representado.
Estes estados se sustentam na atualização de um campo de virtualidades sempre presentes que, como processo subjetivantes, operam através
das forças ainda não codificadas, transduzindo-se2 em formas.
Tais forças estão em um campo intensivo como virtualidades atualizadas no processo de construção de mundos a partir da apreensão perceptiva.
Embora não conscientes ou conscientizáveis, esses virtuais se dão aos
sentidos através das micropercepções, dos espaços moleculares e vão constituir parte do dialeto de cada um.
A alusão rítmica, conceito proposto por Gil3, parece estar referido ao
espaço idiolectal, entendido como o dialeto próprio, como algo singular que
se refere às inscrições já realizadas na trajetória pessoal, de forma a marcar a
instalação na subjetividade de um quase-território, mas que ainda não pode
ser nomeado mostrando-se como uma espécie de névoa que indicaria algum contorno.
José Gil (2001) se apoia nesta trilha das pequenas percepções para nos
trazer a contribuição da experiência da dança como produzida pelo encontro
dos corpos através de efeitos que ele designa como efeito nuvem. Esse efeito nuvem faria parte das experiências captadas para além do simbólico, além
dos signos, dos espaços localizáveis e que não temos uma consciência vigil.
O efeito nuvem poderia ser entendido como um lugar entre o visível (gestos
codificados) e o invisível (forma das forças). São estas nuvens de sentido que,
no avesso da intencionalidade, invadem o corpo pelos movimentos; constituindo a consciência do corpo, seus movimentos se tornam movimentos de
pensamento.
Estas nuvens de sentido sendo formas móveis, como poeiras que se organizam momentaneamente num sentido, mas que rapidamente se deslocam para outro movimento, infinitamente, possibilitariam a emergência de
2
O termo transdução aqui utilizado se refere à capacidade do corpo em realizar uma transformação no ato de conhecimento ao receber uma informação sensível e transformá-la em percepção,
operação realizada pelo campo intensivo do corpo.
3
Conferência apresentada no I Encontro Internacional de Filosofia e Dança, realizado no Espaço
Sesc-Rio em 2005.
14 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
comunicação entre os inconscientes que, segundo Beuys, não se liga a uma
experiência individual, mas a uma imagem-nua, a uma ação. Imagem-nua se
trata de algo que pertence às pequenas percepções, ao mundo a-significante, ao campo imanente da existência.
Este é o sentido radical de uma estética da imanência: “ela se deseja
gesto e não representação, Darstellung e não Vorstellung, processo e não
aspecto, contato e não distância.” (DIDI-HUBERMAN, 2003)
É neste sentido que nos provoca Beuys com sua proposta de campo
alargado da arte em que o artista possibilita, através de Ações, o acesso ao
inconsciente enquanto força permitindo que autor e espectador se comuniquem ao captar as forças e colocar em ação. Viabilizar que o invisível de algo
seja percebido.
A corporeidade se compõe de atravessamentos, de informações, que
se encontram virtualizados. Antes das formas, retendo a vontade que dirige
todo o pensamento, seria possível, através das contraimagens, a produção
de diferenciais.
Assim, ao interpelar as forças inconscientes do espectador, não o inconsciente recalcado, mas os vazios – o que se coloca entre ausência de
representação de coisa ou imagem e as pulsões –, o artista seria capaz de
expressar o caráter imanente das coisas do mundo. Uma ação, portanto, seria o dispositivo capaz de criar imagens inconscientes indutoras de forças
favorecendo a emergência das contraimagens. Assim como Beuys, no trabalho de Pina revisitado pelo filme de Win Wenders, se colocam em ação
as contraimagens, pois que na marca de cada bailarino se encontra o gesto
do pensamento, o plano de imanência. Didi-Huberman, refletindo sobre o
conceito de imanência através das lindas imagens de Victor Hugo sobre o
oceano, nos diz: “Assim move a imanência. O mundo faz ondas; tal é seu ritmo, sua respiração, sua vida. As tormentas chegam como espasmos, crises,
sintomas nesse corpo imenso.” (DIDI-HUBERMAN, 2003)
Por transitar neste espaço não estratificado, ou seja, no campo intensivo, pulsional, em que as formas ainda não surgiram moldando os estratos, os
movimentos, em seus ritmos, marcam nos corpos a experiência singular do
se deslocar no espaço-tempo. Segundo Gil (2001), na dança, pela abertura
do campo semântico, torna-se possível a expressão do fora.
Como nos diz Deleuze,
o cinema sempre contará o que os movimentos e os tempos das imagens lhe fazem
contar. Se o movimento recebe sua regra de um esquema sensório motor, isto é,
apresenta um personagem que reage a uma situação, então haverá uma história.
Se, ao contrário, o esquema sensório-motor desmorona em favor de movimentos não orientados, desconexos, serão outras formas, devires mais que histórias.
(DELEUZE, 2004:77)
A CONTRA-IMAGEM NA ESTÉTICA DO FILME PINA
| 15
A dança-teatro de Pina Baush que nos é revelada através das composições fílmicas de Win Wenders nos aproxima, mais ainda, da virtualidade de
sua inspiradora e, aqui, associamos à proposição de Beuys sobre o sentido
político da arte. Beuys afirma que a arte é um dispositivo de captação e de
inauguração de mundo, pois que, pelas afecções vividas através da arte, se
manifestam as micropercepções. Assim, neste intervalo entre a coisa e a força, é que nos instalamos: nas imagens captadas pela câmera do diretor, a
quebra sensório-motora resultante das contraimagens abre devires para que
novas ações no espectador possam emergir.
Referências
BARBA, E.; SAVARESE, N. A Arte secreta do ator. Dicionário de Antropologia Teatral. Campinas:
Hucitec, 1995.
BORGES, H. Sobre o movimento: o corpo e a clínica. Tese Doutorado. Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social. 2009
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.
______. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004.
DIDI-HUBERMAN, G. A imanência estética in http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext
&pid=S1517106X2003000100009&lng=en&nrm=iso acesso maio 2012.
FERENCZI, S. O conceito de introjeção in Escritos Psicanalíticos 1909 – 1933. Rio de Janeiro:
Taurus, 1988.
GIL, J. O corpo do bailarino. Conferência apresentada na Universidade de Columbia, Nova Iorque, abril de 1999, em seminário sobre Gilles Deleuze e Felix Guattari, 1999.
_____. Movimento Total – O corpo e a dança. Lisboa: Relógio d’água, 2001.
MACHADO. R. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
16 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
Dos corpos, das vestes,
do movimento e da catástrofe:
Melancolia, de Lars Von Trier
Marta de Araújo Pinheiro
Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Professora Associada da Escola de
Comunicação da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação Comunicação e Sociedade
da UFJF. Atua nas seguintes linhas de pesquisa: “Linguagens, materialidades e subjetivações” (PPGCOM/UFJF) e “Cultura e identidades” (CIEC/UFRJ).
No longo prólogo de imagens quase congeladas que se sucedem em tomadas lentas ao som da abertura da ópera Tristão e Isolda, de Wagner, uma
noiva corre por uma floresta. Seus pés e seu vestido se emaranham em fios
grossos e cinzentos que se confundem com os ramos e raízes das árvores que
parecem adquirir vida diante de um fundo inerte. Noiva e floresta insinuam
compartilhar o mesmo movimento de fuga de algo que as paralisa. Em outra
imagem, a noiva, segurando flores ao peito, submerge lentamente junto aos
panos de seu vestido branco nas correntezas de um riacho. Tem-se uma cosmovisão artística em que corpos, vestes, natureza e afetos compartilham sob
a atração do planeta Melancholia uma tensão entre a retenção e a expansão.
Após este início, nas cenas do casamento, Justine, a noiva, é uma imagem absoluta da feminilidade, envolvida em um vestido de casamento com
seus seios e corpo que estouram na tela. Só que Justine está sempre deslocada, sempre falhando em cumprir o papel que lhe é reservado, tal qual
a limusine que conduzia os noivos: ela é grande demais para uma realidade
que se apresenta estreita. Quando Justine desiste deste papel, ela retorna
doente usando cabelos mais curtos, vestindo jeans com camiseta preta em
um corpo esvaziado. Ela precisa de ajuda para as mínimas atividades: comer,
lavar-se, andar, e tudo agora é feito com muito esforço diante de um cansaço
sem fim que resiste ao movimento do corpo e do mundo. O momento de
passagem de Justine é quando, despida e já sem resistências, se banha no
brilho do planeta Melancholia, absorvendo a beleza do fim das coisas numa
cena saturada de azuis e verdes como algumas pinturas pré-rafaelitas.
Ao mesmo tempo que o cosmo se desdobra no céu, ele também parece
absorver a luta das pequenas ações que se desenrolam até o momento do
DOS CORPOS, DAS VESTES, DO MOVIMENTO E DA CATÁSTROFE: MELANCOLIA, DE LARS VON TRIER
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impacto final, tal como os pequenos cuidados de Claire, a irmã de Justine: o
café da manhã devidamente servido naquela última manhã do mundo antes
da colisão. O filme move-se entre o melodrama e a catástrofe, mas não se
trata da visão de um apocalipse “espetacular” e, sim, a de um apocalipse íntimo. Sobre o filme Melancholia, diz o diretor Lars Von Trier, em entrevista, que
escolheu essa maneira de contar a história porque o importante não é o que
acontece, mas sim ver como tudo acontece não só no mundo externo, mas
dentro das pessoas.
E ver como as coisas acontecem conduz à questão que pretendemos
abordar: como pode ser poeticamente encarnada no corpo de uma obra
esta catástrofe chamada melancolia?
Planeta Melancholia
Interrogado sobre as intenções de seu filme, Lars Von Trier respondeu que,
para ele, Melancholia não seria um filme sobre o fim do mundo, mas sobre
um estado de espírito.1 Queria que este estado de espírito fosse devastador
tal como ele o conhece, um buraco negro que aspira tudo, verdadeiro filme
de um depressivo.2
Melancolia é um termo usado continuamente por filósofos, poetas, escritores, artistas, médicos, psiquiatras, psicanalistas abrangendo realidades muito
diferentes. O que impressiona é a continuação deste conceito que começa no
século IV a.C, na Grécia. É lá que aparece pela primeira vez o termo formado
pela associação de duas palavras: “melan = escuro” e “kholia = bile”, sendo depois traduzido para o latim como melancholia no século III d.C. Ainda no século
IV a.C, Hipócrates localizava no corpo humano quatro humores: a bile negra
(melankholia) proveniente do baço, a bile amarela proveniente do fígado, a
fleuma das linfas e o sangue. A saúde era resultado do equilíbrio dos quatro
humores; e a doença, quando uma dessas substâncias se sobressaia. De tipo
1
“Pour Moi, cen’est pas vraiment un film sur la fin du monde, maissur un état d’esprit : la mélancolie. La Terre est entrain d’être détruite, mais à quoibonêtretroublépuisquenousallonstousmou
rir!”http://www.melancholiathemovie.com/http://www.festival-cannes.fr/fr/article/58569.html.
2
“Le mot ‘Melancholia’ a enlui-mêmequelquechose de cosmiqueetjevoulais que lamélancoliedupersonnageprincipal soitdévastatrice, qu’elle se matérialiseen une planètequiviendraitpercuterla
terre pour que çaenfinisse. Jevoulaisdécrirelamélancoliecommejelaconnais, commeuntrounoirqui aspire. Bref, c’est un vrai film de dépressif!”http://www.excessif.com/cinema/actu-cinema/
dossiers/melancholia-interview-lars-von-trier-6592138-760.html.
18 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
de humor causado pela bílis negra, com o cristianismo, os anacoretas em retiro
experimentaram uma espécie de melancolia conhecida como acedia, palavra
derivada do grego akêdia, que significa negligência, indiferença e abatimento.
Conhecida como “demônio do meio-dia”, a acedia passou a figurar na lista dos
pecados capitais da época.
Os astrólogos árabes, no século VII d.C, consideravam a melancolia como
um estado causado pela influência do planeta Saturno, que, com a sua lenta
evolução, paralisaria as pessoas; a astrologia “associava ao temperamento
melancólico como o planeta mais maligno, na intuição de uma polaridade
dos extremos em que coexistia, uma ao lado da outra, a ruinosa experiência
da opacidade e a estática ascensão para a contemplação divina” (Agamben,
2007, p.36).
A melancolia, no século XVI, retém a “contemplação divina” e é considerada a doença do homem excepcional e, durante o período romântico, o homem
melancólico passa a figurar no cruzamento do gênio criativo e da loucura. No
século XIX, de criativa e próxima da loucura, a melancolia se torna um desvio
mental; no século XX, ela passa a pertencer ao quadro das patologias descritas como depressão, e, no DSM III, esta adquire estatuto de entidade clínica
autônoma. Alain Ehrenberg, sociólogo francês que se dedica a pesquisar os
mal-estares da sociedade moderna, diz que a depressão é a situação de cada
indivíduo na sociedade ocidental. Ela é uma patologia do tempo (a pessoa
deprimida não tem futuro) e uma patologia de motivação (a pessoa deprimida
não tem energia, seu movimento é retardado, suas palavras, ininteligíveis). A
pessoa deprimida tem dificuldade em formular projetos, ela não tem energia e
motivação para realizá-los. Inibido, impulsivo ou compulsivo, o depressivo tem
problemas para se comunicar consigo mesmo e com os outros. Com nenhum
projeto de motivação, ou de comunicação, a pessoa deprimida está em oposição exata às exigências das normas sociais da sociedade contemporânea.
Depressão e vício são nomes dados para o incontrolável e, para Ehrenberg, eles estão aí para lembrar que o desconhecido faz parte de cada pessoa.
O desconhecido pode mudar, mas ele nunca desaparece. Hoje, a depressão
é um tipo de sofrimento psíquico que os medicamentos podem apaziguar
trazendo o equilíbrio dos neurotransmissores, entre eles, a serotonina. Para
o sociólogo, a referência contemporânea é o par sofrimento psíquico/saúde
mental que se difunde no contexto de uma medicina do bem-estar e da qualidade de vida em uma sociedade que adotou a linguagem da vulnerabilidade
individual. Isto não significa para ele que as pessoas são mais vulneráveis
ou que sofram mais do que antes, mas é isto que ganha evidência quando
se cruzam as duas faces da questão da saúde mental atual: de um lado, a
tendência à naturalização completa do espírito pela via das neurociências, a
DOS CORPOS, DAS VESTES, DO MOVIMENTO E DA CATÁSTROFE: MELANCOLIA, DE LARS VON TRIER
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tentação biológica e, do outro, o discurso sobre o sofrimento psíquico que
se tornou uma verdadeira ideologia, a tentação psicológica.
Trier filma o mal-estar contemporâneo com a câmera na mão nas cenas
da festa de casamento e busca expressar a melancolia para além destes enquadramentos frenéticos. Com imagens quase congeladas no prólogo e se
utilizando de suaves movimentos na segunda parte, o diretor vai ao encontro
deste incontrolável e estranho, o buraco negro da melancolia, em suas palavras. Recoloca em questão novamente se ela é algo real e portadora de alguma verdade buscando ir para além de sua redução atual como entidade
clínica. O que se escuta no filme pela fala do menino Léo3 é que o planeta
Melancholia não fora notado antes porque ele se escondia atrás do Sol, mas
que ele sempre estivera ali. Para Trier, a melancolia tem em si algo de cósmico4
e de íntimo5 que são reveladores. E é do encontro com esta melancolia não
definível que o filme trata.
No prólogo, a fragilidade do mundo é posta ao encontro de Melancholia,
imagens quase congeladas já anunciam o final, e ela contrasta com o clima
de felicidade artificial, quase histérica, da primeira parte do filme que se dilui
conforme a noiva, Justine, mergulha num estado de melancolia paralisante,
agora o retrato da fragilidade íntima e sofrida. É por meio de uma diversificada
e ampla filiação iconográfica que Trier faz alusão a este estado de alma. Entre
estas referências, está a imagem de Ophelia (1851-1852), de Everett Millais,
pintura que retrata a morte de Ofélia, personagem de Hamlet (1599). Ophelia
paira entre a vida e a morte flutuando sobre as águas. Uma das características
das pinturas pré-rafaelitas (1850-1880), movimento no qual Millais se insere,
é o uso de referências extraídas da natureza, pois seus artistas estavam preo-cupados com a forma pela qual uma abstração poderia ser poeticamente encarnada em um corpo físico humano ou em um corpo pictórico.
O pairar entre a vida e a morte, entre o que há e o que deixa de ser, isto é, a
espera pela experiência da catástrofe iminente, é que adquire corpo em vários
momentos com o uso de uma extensa imagem alegórica que se desdobra no
decorrer do filme. Melancolia não é só a alegoria do planeta que se aproxima, é
também a que atravessa uma série de imagens que vão deixando seus rastros:
o belo vestido branco de noiva das cenas iniciais, seu desmantelamento gradual
3
“Look. It’s a planet that’s been hiding behind the sun, and now it passes by us. It’scalled a flyby”,
Leo, Melancholia.
4
“Le mot ‘Melancholia’ a enlui-mêmequelquechose de cosmique”. In.: http://www.excessif.com/
cinema/actu-cinema/dossiers/melancholia-interview-lars-von-trier-6592138-760.html.
5
Tudo se passa no entre a casa e o campo de golfe como limite de onde não se passa, espaço do
jogo organizado e civilizado.
20 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
durante a festa (Justine até precisa rasgá-lo quando ele fica preso no carrinho
de golfe), o fio cinza do vestido que a aprisiona conforme ela relata à mãe; a
veste de Ophelia-Justine que flutua nas águas parecendo um grande lírio; o
corpo nu de Justine iluminado pela luz do planeta azul; o despojamento final,
Justine com suas roupas escuras, expressando o sentimento de esvaziamento
e de aceitação à espera da catástrofe.
Pela imagem alegórica, o outro fala (allos, “outro”, e agoreuein, falar em
público), este outro estranho e íntimo que se manifesta na dança da morte
sedutora que se trava desde o primeiro momento do filme, quando o planeta
se aproxima para depois se afastar, e a sua volta final. Esta imagem do colapso
não é mostrada diretamente no filme. É pelos rostos de Justine, Claire e seu
filho, todos amontoados em uma barraca construída por Justine, que se vê a
imagem do Apocalipse, palavra que em sua origem grega, Apokalupsis, significa revelação.
Alegoria do atmosférico
Em 1514, o artista alemão Albrecht Dürer criou a gravura “Melancholia I”. É
neste momento que a melancolia adquire autonomia em relação à teoria dos
quatro humores ou temperamentos, deixa de ser doença e pecado e torna-se uma alegoria. (Scliar, 2003). Naquele século XVI, todas as certezas foram
substituídas por outras que traziam muita inquietação como a Reforma, os
Descobrimentos, os espaços infinitos.
Etimologicamente, como vimos, o grego allegoría (allos, “outro”, e agoreuein, falar em público) significa “dizer alguma coisa diferente do sentido
literal”. Utiliza-se aqui a noção de alegoria na acepção desenvolvida por Craig
Owens (1984) feita a partir da obra de Walter Benjamin: a imagem alegórica
não inventa imagens, e sim as confisca. A saber, ela não restaura um significado original que teria sido perdido ou obscurecido; portanto, não se trata
de uma hermenêutica. Ela adiciona outro sentido à imagem para suplantar
os anteriores.6 (Owens, 1984, p.205)
Segundo Owens, uma das características da alegoria seria o olhar melancólico que permite tomar objetos de diversos contextos e colocá-los em
outros para desfazer seus sentidos anteriormente identificados e atribuir-lhes
6
“Allegorical imagery is appropriated imagery: the allegorist does not invent images but confiscates them”. (Owens, 1984: 205)
DOS CORPOS, DAS VESTES, DO MOVIMENTO E DA CATÁSTROFE: MELANCOLIA, DE LARS VON TRIER
| 21
outras significações. Neste sentido, a alegoria é constantemente atraída para
o fragmentário e o inacabado (Owens, 1984: 206).
Ao pesquisar o teatro barroco alemão em A Origem do Drama Barroco
Alemão, Walter Benjamin desenvolveu sua teoria de alegoria. Benjamin diz
que a gravura de Dürer, “Melancholia”, seria a de um melancólico que observa utensílios espalhados pelo chão agora sem qualquer serventia, pois é um
olhar que tira deles tudo aquilo que remete a uma vida ativa em prol de uma
vida contemplativa exercida em um exercício atento de observação.
No século XIX, a alegoria havia se tornado um conceito negativo no
discurso da estética romântica tardia, sendo vista como um gênero inferior,
convencional, racional e artificial, comparada à espontaneidade e à completude orgânica do símbolo. Walter Benjamin reformula o conceito de alegoria,
pois ela não representa apenas um modo de ilustração, tal como formulara a
tradição clássica, e sim uma forma de expressão (Benjamin, 1984, p.184) de
uma época, a de abandono do divino, de secularização e de decomposição
dos sentidos estabelecidos.
A alegoria seria uma progressão de símbolos em uma série de momentos, e o significado assim se separa da forma (Benjamin, 1984), o que faz a
imagem alegórica aparecer como um texto, pois não basta só a percepção
da forma para a apreensão de seu significado, sendo necessária a leitura de
uma série de símbolos que precisam ser decodificados.
No filme, a alegoria Melancholia também confisca imagens do imaginário melancólico e deixa seus traços para serem seguidos pelos espectadores.
No entanto, a alegoria no filme de Trier abandona os homens e seus objetos
para absorver o atmosférico, como a imagem de Justine com as mãos erguidas olhando surpresa a energia sendo tragada pelo empuxo gravitacional
do planeta que se aproxima. Esta dimensão atmosférica seria trazer para a
percepção a exteriorização do que é trágico e autodestrutivo, dimensão esta
que Melancolia, o estranho e desconhecido planeta, traz de novo ao absorver parte do ar da Terra, mostrando a sua fragilidade.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
EHRENBERG, Alain. The weariness of the self: diagnosing the history of depression in the contemporary age. 2012, McGill-Queen’s University Press.
22 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
_____.Depressão, doença da autonomia? In: Ágora v. VII n. 1 jan./jun. 2004. p.143-153
OWENS, Craig. The allegorical impulse: toward a theory of postmodernism. In.: October, vol. 12.
(Spring, 1980), pp.67-86.
SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos.SP: Cia das Letras, 2003.
MELANCOLIA (Melancholia, Dinamarca/Suécia/França/Alemanha, 2011, drama, 136 min.). De
Lars von Trier, com Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland, Alexander
Skarsgård, Charlotte Rampling e John Hurt.
melancholiathemovie.com/.
excessif.com/cinema/actu-cinema/dossiers/melancholia-interview-lars-von-trier.
virgula.uol.com.br/ver/video/diversao/2011/08/03/10685-entrevista-com-lars-von-trier-sobre-melancolia.
festival-cannes.fr/fr/article/58569.html.
DOS CORPOS, DAS VESTES, DO MOVIMENTO E DA CATÁSTROFE: MELANCOLIA, DE LARS VON TRIER
| 23
A pele que habito:
Vicente e o vestido
Eliana Monteiro
Doutora em Comunicação e Cultura – UFRJ. Curso de extensão: Université Sorbonne
Nouvelle- Paris 3;Théories des formes visuelles: Cinéma et art contemporain, les vitesses de l’ image. Professora da Unesa/Facha. Pesquisadora na área de comunicação e
cinema da Unesa.
“O corpo estava embrulhado por suave cor de sangue”1
Gôzô Yoshimasu
Vicente, o que habita o corpo, encontrava-se durante uma festa, prestes
a estuprar a jovem filha de um respeitado cirurgião plástico. Por este ato Vicente é sequestrado pelo pai da moça e à sua revelia tem seu corpo sexualmente alterado. Ao ganhar novas formas corporais, inicia-se um jogo entre
o visível e o invisível, entre os gêneros masculino/feminino. Vicente agora é
Vera e é sob esta pele que ele habita. Ao olhar-se no espelho, não se reconhece. Vicente percebe então que esta nova imagem sela para ele um novo
destino. É preciso existir na desaparição, e para isso buscar rastros, vestígios
entre o presente e o passado.
–“Sou Vicente, lembra deste vestido?”
O leitor/espectador certamente não esqueceu destas palavras, as últimas
ditas pelo personagem Vicente/Vera no filme A Pele que Habito (2011), de Almodóvar. Ao ouvi-las, a perplexidade estampa-se nos olhos da antiga amiga e
vendedora da loja de roupas. Diante dela o horror do presente. Prontamente a
cena estabelece um tipo de incomunicabilidade entre os personagens: Vicente, a vendedora e a mãe dele, que se junta aos dois, quando é dito mais uma
vez pelo personagem: “Sou Vicente”. Apesar da afirmação do personagem,
Vicente está ausente.
De imediato tende-se a crer que a ausência seria a negação de uma
presença. Diante das duas mulheres, outra figura feminina insiste em afirmar
ser o jovem Vicente. H. Bergson nos lembra que aquilo que está ausente
1
YOSHIMASU, Gôzô. Osíris, o deus de pedra. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão, 1992.
A PELE QUE HABITO: VICENTE E O VESTIDO
| 25
está, certamente presente em outro lugar. Ele nos diz ainda que só há ausência em um dado lugar face a uma expectativa desapontada: “Só há ausência
para um ser capaz de lembrança e de espera”.2
É bom lembrar que Vicente encontra-se há tempos desaparecido (ao
longo do filme, há cenas da mãe dele registrando na delegacia o desaparecimento do filho e da sua longa espera por ela). Na última cena, a figura
feminina de Vera se sobrepõe à verdadeira máscara do jovem personagem
masculino – tão conhecido – pelas duas mulheres. O dilema se constitui nisto: numa expectativa desapontada pela lembrança de uma espera. Para as
duas mulheres, ouvir daquela jovem a afirmativa “sou Vicente” é, portanto,
uma obscenidade. “Há escalas na obscenidade: apresentar o corpo nu pode
ser grosseiramente obsceno, mas apresentá-lo descarnado, esfolado, esquelético, o é ainda mais.”3
Nesta dualidade corporal – Vicente/Vera – o personagem se apresenta
sem a categoria de identificação: seu corpo foi descarnado e esfolado – é
impossibilitada qualquer correspondência entre a afirmativa “sou Vicente” e
sua existência física. Neste caso, não há reconciliação possível entre Vicente
e o novo corpo construído.
“Quando as coisas se tornam demasiadamente reais, quando elas são dadas
imediatamente, quando existem como realidade concreta, quando estamos
neste curto-circuito que faz com que as coisas se tornem cada vez mais próximas, estamos na obscenidade”.4
“Sou Vicente”. Mas, onde está Vicente? Neste instante há um curto-circuito. A ausência do corpo se realiza na lembrança da espera pelo seu
retorno.
Vicente: o ânus , as tripas e o apêndice
O autor português José Gil5 lembra-nos que o sentido de presença não é
algo do campo do individual, mas do coletivo; isto é, é preciso que o outro
ao nos olhar identifique nos corpos marcas, expressões. Logo, não basta o
personagem se dizer ser Vicente para se manifestar uma presença, é preciso
2
BERGSON, Henry. L’évolution créatrice. Paris: PUF, 1959, p.166.
BAUDRILLARD, Jean. Senhas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001. p.31
4
Idem BAUDRILLARD, p.30.
5
GIL,José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’Àgua, 1997. p.105.
3
26 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
que ele a presentifique através de suas marcas para aquelas duas mulheres.
“Sou Vicente”, reafirma a jovem. A cena ao soar da fala do personagem ganha dimensões fantásticas: nada se tem a dizer. O silêncio toma conta dos
personagens e de nós, espectadores. Sobem os créditos finais do filme.
A personagem Lulu do romance O Muro de Jean-Paul Sartre encontra-se deitada na cama com Henri quando ouvem um som “gru-gru” provocado
por um dos corpos. Lulu então diz: “Um ventre que faz barulho me aborrece
porque nunca posso saber se é o seu ou o meu (...). São líquidos que gorgolejam nas tripas”.
Nosso personagem experimenta esta desconexão corporal: Vicente/
Vera. Neles os líquidos gorgolejam nas mesmas tripas. De Vicente, de seu, da
sua própria carne só lhes restou o ânus, parte do corpo através da qual não
pode ser reconhecido. Há aí uma veleidade física, algo incapaz de lhes trazer
presença.
“(...) se lhes mostrassem meu apêndice (...) não o reconheceria. (...). Não pensaria “isto é dela”. (...) Talvez não gostemos dessas coisas por falta de hábito, se a
víssemos como vemos nossas mãos e nossos braços, talvez a amássemos (...).6”
O ânus, o que lhe restou da sua própria carne, embora não seja reconhecível – tal qual o apêndice da personagem de Sartre –, inflige a Vicente
alguma propriedade do antigo corpo, torna-se para ele o único ponto de
conexão com sua antiga existência física que, ao ser ameaçada de violação,
o leva a praticar o crime.
A aparição do desaparecido
– (Cirurgião) Continua doendo?
– (Vicente) Sim.
– (Cirurgião) Tentamos anal?
– (Vicente) Vai doer mais, não? Espera, hoje comprei um creme lubrificante.
(Procura o creme e não o encontra nas sacolas, vai ao outro quarto,
pega a arma e a coloca na bolsa. Antes de voltar para o amante que o aguarda na cama, vê, estampada na primeira página de um antigo jornal, a sua foto
com a manchete “ Desaparecido”. Vicente beija a foto e retorna ao amante.)
– (Cirurgião) Vera, rápido. Até que enfim, achei que tinha ido embora.
– Ainda não.
(Vicente mira e atira no peito do cirurgião).
Assim, Vicente assombra o corpo de Vera com sua presença imaterial.
6
SARTRE, Jean-Paul. O Muro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980 p.91.
A PELE QUE HABITO: VICENTE E O VESTIDO
| 27
As costuras de Louise Bourgeois
Uma das primeiras imagens do filme de Almodóvar remete ao trabalho da
artista francesa Louise Bourgeois (1911-2010), em especial a obra Arched
Figure (Figura Arqueada), realizada em tecido no ano de 2004. Nela, uma
figura feminina (há volume dos seios) encontra-se com o corpo completamente envolvido em tecido no qual há apenas cinco orifícios: dois nos olhos,
dois nas narinas e um na boca. Assim também viveu Vicente ao longo do
processo de desencarne do seu copo.
O filme de Almodóvar se estrutura numa tecitura que combina a narrativa com a obra de Bourgeois, pois nele os dois elementos movem-se juntos.
Nesse movimento inscreve-se o contínuo de um tempo marcado para a artista na infância e para o personagem no tempo “presente”. A linha que os
conduz está centrada no corte tanto dos tecidos quanto na carne de Vicente.
O uso de tecido na obra da artista reflete suas vivências na infância
onde, quando menina, recolhia os retalhos dos tecidos que sobravam das
tapeçarias trabalhadas pela mãe. Na época, sua mãe, por uma questão moral,
retirava das figuras dos cupidos retratados nas tapeçarias as suas genitálias.
O trabalho consistia em cortar os pênis e os substituir por flores e frutas de
tal modo que o contemplador das tapeçarias não percebesse o corte. Deste
modo, cortes e costuras alinhavaram as experiências de Louise Bourgeois
ao longo do tempo de sua infância. A artista, ao desenvolver sua arte nos
tecidos, enreda nos cortes e nas costuras as suas dores.
“O tema da dor é meu campo de trabalho. Dar significado e forma à frustração
e ao sofrimento. O que acontece com meu corpo tem de receber uma forma
abstrata e formal. (...). Não se pode negar a existência das dores. Não proponho
remédios ou desculpas. Simplesmente quero olhar para elas e falar sobre elas.
Sei que não posso fazer nada para eliminá-las ou suprimi-las. Não sou capaz de
fazê-las desaparecer; elas estão aí para sempre”.7
Almodóvar, através das imagens de Louise (Vicente tem no ambiente de
sua clausura catálogo e livros da artista), traz à tona a dor do seu personagem.
Apesar dos fios das linhas cirúrgicas terem costurado nele um novo corpo e
uma nova genitália, sobraram ainda em Vicente além do ânus “ (...) as lágrimas,
7
BOURGEOIS, Louise. Destruição do Pai/Reconstrução do Pai. Escritos e Entrevistas (19231997). São Paulo: COSAC & NAIFY, 2000, p.235. Louise conta em seu diário ter descoberto que a
amante de seu pai morava em sua própria casa e que era a sua governanta e professora de inglês.
28 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
o muco, a saliva, a cera do ouvido, a bílis, a urina, (...) o pus e o sangue”8 que, ao
vazarem para o exterior daquele corpo, equivalem a uma manifestação de dor
mas também de resistência: é Vicente quem habita aquele corpo e, quanto
mais mucos são expelidos de seu interior, menos o corpo construído existe
por si próprio. Neste caso, não é o corpo o sujeito da trama, mas os orifícios
deste corpo através dos quais Vicente manifesta suas dores. O personagem,
portanto, inscreve-se sob uma perspectiva orgânica, onde tudo se mantém.
Vicente, neste sentido, assume uma amplitude particular de presença,
uma presença subterrânea onde há uma lógica interna numa situação completamente ilógica. Surge aí um conflito: uma existência interna sob uma
aparência exterior que quer impor quem ele deve ser. O corpo costurado
procura encobrir com perfeição (tais quais as genitálias das tapeçarias da
mãe de Louise) Vicente na sua multiplicidade de presença. Há ali um jogo
de forças que através das costuras os faz ficarem juntos: “A costura é uma
defesa. Tenho muito medo das coisas que sou capaz de fazer”.9
Assim, os corpos costurados pela artista trazem com eles suas histórias,
já o corpo que oculta Vicente é um corpo sem histórias, sem experiências e
vivências; é somente um corpo modelado que faz dele o que ele é: um corpo
sem itinerário.
Lembra do vestido?
O vestido que veste Vicente é um tubinho florido em vermelho. O modelo de
corte clássico é conhecido no meio da moda como uma peça “coringa”, isto
porque pode ser usado em diversas ocasiões. O vestido no passado alimentava em Vicente uma fantasia sexual em relação a Cristina, vendedora da loja.
A última cena do filme se constrói como uma armadilha no tempo. Nela, o
vestido é a ponte capaz de conduzir os personagens inevitavelmente ao passado, onde os três (Vicente, Cristina e a mãe dele) tem a possibilidade de se
encontrarem.
A Cena
É dia, Vicente chega à loja de roupas. Cristina, a vendedora se aproxima:
– (Vicente) Não sei por onde começar, Cristina.
8
BOURGEOIS, Louise. Destruição do Pai/Reconstrução do Pai. Escritos e Entrevistas (19231997). São Paulo: COSAC & NAIFY, 2000, p.10.
9
BOURGEOIS, Louise. Destruição do Pai/Reconstrução do Pai. Escritos e Entrevistas (19231997). São Paulo: COSAC & NAIFY, 2000, p. 363.
A PELE QUE HABITO: VICENTE E O VESTIDO
| 29
– (Cristina) Você me conhece?
– (Vicente) Sou Vicente, acabei de fugir. Fui sequestrada, me fizeram
uma mudança de sexo. Olhe (tira a jaqueta de couro vermelha que usa sobre
o vestido).
Lembra deste vestido? Há seis anos disse que lhe daria de presente só
para ver como você ficava nele. Você disse que, se eu gostava tanto assim
dele, deveria usá-lo. Neste momento estamos sozinhas, você lembra?
– (mãe se aproximando) Por que estão chorando?
– (Vicente) Sou Vicente.
Mas, onde está Vicente? Não há como encontrá-lo sem o reconhecer. O
único reconhecimento possível entre eles é o vestido. O elo temporal, portanto, se resume nisso, no entrelaçamento de fios coloridos daquele tecido.
O vestido passa a configurar uma distância palpável que, ao mesmo tempo
que os aproxima, os distancia do jovem Vicente. Tudo está ali, contido naquela peça de roupa: o passado e o presente, a presença e a ausência, o homem e a mulher. “A vestimenta também é um exercício de memória. Leva-me a explorar o passado. (...). São como orientações na busca do passado”.10
O vestido torna-se, nos tempos (passado/presente), a representação
simbólica de uma vasta rede de relações que reúne diversas sequências de
caráter individual11 entre os três personagens. A peça de roupa, portanto,
revitaliza a linha temporal – há tempos interrompida – entre Vicente (o desaparecido) e as duas mulheres. Sendo assim, o vestido torna-se um objeto
capaz de libertar Vicente, o invoca, pelo menos por alguns instantes, do escafandro onde vive aprisionado.
Apesar do corpo que veste o vestido não pertencer a Vicente, ele vive
por alguns segundos no jogo de linhas e cores daquele tecido. É aí que ele se
faz reconhecer para a vendedora da loja – apesar da sua miséria de descarnado –, é quando a narrativa do passado impõe aquele corpo uma cena que
ele não viveu. Neste momento, o personagem inverte o jogo Vera/Vicente/
Vicente/Vera ao levar para o vestido a sua existência; nele, Vera não tem
presença nem destino.
O vestido inscreve-se, portanto, numa perspectiva onde tudo passa a
se corresponder, assumindo entre os personagens uma amplitude narrativa
particular; “Há seis anos disse que lhe daria de presente só para ver como
você ficava nele.” A peça de roupa passa a constituir uma lógica interna e
particular entre eles. Como foi dito anteriormente, Vicente nutria na época
10
BOURGEOIS, Louise. Destruição do Pai/Reconstrução do Pai. Escritos e Entrevistas (19231997). São Paulo: COSAC & NAIFY, 2000, p. 363.
11
ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 17.
30 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
desejos pela vendedora da loja, portanto, na cena o vestido modela o acontecido entre eles e faz dele (Vicente/o desaparecido), o que ele era. O vestido torna-se naquele instante uma força material que os relaciona no tempo,
a ponte dos antigos desejos.
“O tempo vivido, o tempo esquecido, o tempo compartilhado. O que o tempo
inflige – pó e desintegração? Minhas reminiscências me ajudam a viver no presente, e quero que elas sobrevivam. Sou uma prisioneira de minhas emoções.
É preciso contar sua história, é preciso esquecer sua história. Você esquece e
perdoa. Isso o liberta”.12
Vicente remete ao vestido sua figura, ao mesmo tempo impõe aqueles
que o contemplam a um visível que não se faz presença, no entanto, há nesta
aparição uma certeza: “eu respiro, sei que respiro”.13
Referências
BAUDRILLARD, Jean. Senhas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001.
BERGSON, Henry. L’évolution créatrice. Paris: PUF, 1959.
BOURGEOIS, Louise. Destruição do Pai/Reconstrução do Pai. Escritos e Entrevistas (19231997). São Paulo: COSAC & NAIFY, 2000.
GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’Àgua, 1997.
SARTRE, Jean-Paul. O Muro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
YOSHIMASU, Gôzô. Osíris, o deus de pedra. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão, 1992.
12
BOURGEOIS,Louise. Destruição do Pai/ Reconstrução do Pai. Escritos e Entrevistas (19231997). S.Paulo: COSAC & NAIFY,2000, p. 362
13
Uma das frases escritas na parede do quarto onde o personagem é mantido enclausurado.
A PELE QUE HABITO: VICENTE E O VESTIDO
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Tramas de panos e planos:
Uma poética do visível
no cinema de Wong Kar Wai
Denise Trindade
Doutora em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ. Professora nos Cursos de Cinema e Moda e pesquisadora em “Poéticas Visuais” da UNESA. Coordena a Pós-Graduação em Artes Visuais da UNESA.
Introdução
“…há em cada moda algo de sátira amarga do amor, cada moda contém todas as
perversidades sexuais da maneira mais impiedosa possível, cada uma comporta em
si resistências secretas contra o amor...”1
“Como você quer ser um alfaiate, se você nunca encostou as mãos em uma mulher?
É necessário tocá-las para senti-las.”
No filme The Hand, de Wong Kar Wai, esta pergunta é feita por Hua a
Zhang colocando em cena a relação entre olhar, tecido e imagem que abordaremos nesta comunicação. O filme é sobre um alfaiate que costura para
uma bela cortesã, a qual tem relações amorosas com vários homens. A história se passa em Xangai, em 1963, e enquanto confecciona suas roupas, ele
vive uma silenciosa paixão por ela. Este filme faz parte de uma antologia com
outros diretores sobre amor e erotismo chamada “Eros” (2004), o que constitui por sua própria temática um desafio em tornar visível o que as palavras
não conseguem traduzir e as imagens cinematográficas tateiam, como um
exercício de aproximação, inventando visibilidades.
1
BENJAMIN, Walter. Passagens UFMG. BH. Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo. 2006. p. 104.
TRAMAS DE PANOS E PLANOS: UMA POÉTICA DO VISÍVEL NO CINEMA DE WONG KAR WAI
| 33
Aos planos de fumaças, trens, corredores, chuva caindo, que aparecem
como elementos de passagem constantes nos filmes do diretor, acrescentamos aqui os vestidos femininos e os trajes masculinos em The Hand e
em Amor à Flor da Pele como retalhos de seu pensamento visual. Além da
efemeridade, característica presente no próprio conceito de moda, percebemos como tais vestes se transformam em imagens de desejo, amor e a
morte. Para isso, Kar Wai realiza planos que configuram espaços extensivos
através de suas texturas “lisas”, apresentando os tecidos como lugares de
afectos, aparecendo como aquilo que, segundo DELEUZE, seriam resultantes de um olhar háptico.
Percebemos que um vermelho intenso ou uma intensidade vermelha é
a primeira imagem de uma série de pinturas que, na abertura do filme, tem
como tema situações íntimas de casais. Como anuncia o título, as mãos são
sempre pontos de atenção: por vezes, acariciam, em outras brincam sobre o
rosto entre apertos de narizes e bochechas, em outras possuem o corpo do
outro. Os quadros vão se tornando manchas, em um efeito de transmutação.
As cores, como luzes em movimento, expressam a intensidade dos encontros,
enfatizando a própria percepção do corpo enquanto agente da experiência de
ver e dissolver a si próprio. O háptico torna-se, assim, sinônimo da instauração
de um acesso sensorial às imagens, em que estas dão menos a ver do que a
experimentar uma tangibilidade próxima da vida, em seu movimento. É por
isso que no filme The Hand a fita métrica, um instrumento utilizado pelos costureiros por suas características de precisão, parece insuficiente para obter as
medidas do corpo de Hua. Ela desafia Zhang a senti-la através do toque das
mãos, indicando que só através da proximidade ele se tornará um alfaiate.
Entendemos que, assim como os personagens, o cineasta persegue este
tipo de proposta visual em seus filmes: para ser um cineasta, faz-se necessário que os olhos toquem as imagens como mãos de um alfaiate os tecidos.
Propomos percorrer um pouco das tramas das imagens presentes nos
planos aproximados propostos por Wong Kar Wai, acentuando o uso das
vestes como um desafio de invenção de territórios nômades de poesia e
afecção em sua tradução da contemporaneidade.
O espaço liso e o nomadismo/tecidos
e patchwork
Ao procurar diferenças entre o espaço nômade e o espaço sedentário
e traçar configurações políticas sobre a contemporaneidade, DELEUZE
34 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
(1997;180) considera o primeiro, liso, e o segundo, estriado, lembrando que
os dois espaços só existem graças às misturas entre si.
É importante ressaltar que, ao propor uma compreensão de tais diferenças, ele utiliza um modelo, o qual classifica como tecnológico (que nos
permite neste momento abordar os têxteis), em que recorre a uma ideia
interessante para iniciarmos a reflexão entre cinema e moda. Através da
oposição entre tecido e feltro, ele opõe os fios verticais e horizontais dos
tecidos e das tapeçarias que se entrecruzam perpendicularmente produzindo espaços estriados ao feltro, que configuraria um espaço liso e nômade
no qual não existe distinção entre os fios, apenas um emaranhado das fibras,
sem centro, sem direito e avesso, aberto e ilimitado . Ele verifica que
No sedentário, o tecido-vestimenta tende a anexar à casa imóvel ora ao corpo,
ora ao espaço exterior; o tecido integra o corpo e o exterior a um espaço fechado. Ao contrário, o nômade, ao tecer, ajusta a vestimenta e a própria casa ao
espaço exterior, ao espaço liso aberto onde o corpo se move. 2
Outras oposições são apontadas pelo filósofo, como a ordem dos bordados com motivos centrais e o patchwork, descentralizado em seus retalhos. Mas sempre considerando que há um tanto de bordado nos patchworks,
como um tanto de tecido no feltro, o pensamento de Deleuze, ao remeter a
uma história de migração dos colonos que deixam a Europa pelo Novo Mundo
no século XVII, devido à penúria têxtil, verifica como os restos de tecidos e os
pedaços de roupas usadas recuperados, indicam seus deslocamentos. É assim
que o patchwork para o filósofo está ligado ao nomadismo. No que este toma
forma de trajetos, adquire características de velocidade e de movimento, permitindo aqui que nos aproximemos também das imagens cinematográficas.
Cinema e retalhos
Em sua pesquisa sobre um cinema de Terras e Fronteiras,3 Andréa França aponta a necessidade de se pensar as imagens cinematográficas em seu
próprio movimento, em seus deslocamentos, ao invés de reuni-las em uma
linguagem cinematográfica única. Para a autora,
2
3
O Liso e o Estriado. in Mille Plateaux vol.5 . Gilles Deleuze. Ed 34. 1997.SP.(p.181).
França, Andréa. Terras e fronteiras no cinema político contemporâneo. RJ. 7 Letras.2003.
TRAMAS DE PANOS E PLANOS: UMA POÉTICA DO VISÍVEL NO CINEMA DE WONG KAR WAI
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“os modos de construir espacialidades, sucessões e conexões no cinema apenas
reiteram e reafirmam que a imagem cinematográfica , antes de se referir a um
estado de coisas (ilustrar, representar ou reencenar uma realidade que lhe é
anterior), opera e apresenta um estado de coisa para além do mundo dado.”
(2003;p.56).
As imagens cinematográficas adquirem autonomia da realidade e suas
propriedades como sonoridades, ritmos, cores e temporalidades são as matérias onde o pensamento deve instalar-se, acompanhando suas tramas e
transformações, maneira pela qual o pensamento pensa e se pensa a si mesmo, num esforço de autonomia que a própria natureza do cinema reforça e
restaura.4
Os movimentos e as espacialidades do cinema de Wong Kar Wai, que
propomos pensar como um patchwork, principalmente nos filmes aqui abordados, possuem alguns planos que, de alguma maneira, correspondem aos
trajetos nômades como os corredores, a sala de espera, a fumaça e os cigarros, as cortinas, a chuva, telefones, as sombras nas paredes, as próprias texturas nas paredes, os abajures, a comida, os espelhos, o relógio e as vestes
dos personagens. Podemos compreendê-los como espaços lisos, existindo
na intensidades de cores e sons, compondo tessituras de visibilidades. As
imagens cinematográficas seriam então retalhos das passagens de lugares e
lembranças, configurando o próprio tempo em seu passar.
Um país, dois sistemas
Em 1997, Hong Kong deixa de ser colônia britânica e retoma seu status de
território chinês, vivenciando uma crise das noções de identidade e cultura,
que começam a ser trabalhadas através da literatura, da fotografia, da arquitetura e do cinema. A imagem aparece como uma forma a partir da qual se
pode tratar e abordar o estado.
A partir desta data, o cinema de Hong Kong, através de suas manifestações estéticas, vem evidenciando novas visibilidades.5 Porém, segundo
MONVOISIN (2008;287), apesar deste ano representar um marco histórico
4
ibidem.
Em seu artigo “O Cinema Contemporâneo de Hong Kong (1984-2007)”, Frédéric Monvoisin faz
um mapeamento interessante sobre as diversas fases do cinema de Hong Kong considerando as
transformações políticas que ali sucederam. (in Cinema Mundial Contemporâneo – orgs. Mauro
Baptista e Fernando Mascarello.Campinas,SP. Papirus.2008).
5
36 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
em seu cinema, juntamente com sua transformação em Região Administrativa Especial, é ainda cedo para comemorar sua autonomia como chinês.
Em 1997, Hong Kong tornou-se uma Região Administrativa Especial (RAS) por
um período de 50 anos, ou seja, até 2046, e é governada por uma pessoa nomeada em Pequim. Em síntese, no momento, a China desempenha o papel de
gestora de um espaço sobre o qual ainda não tem plenos poderes. Sua função
é um pouco de observadora, ao mesmo tempo observada, com possibilidade
de dar novos impulsos para orientar a evolução da cidade-ilha até sua anexação definitiva ao continente. Assim, sem alternativa, o governo chinês, que não
tem direito de fazer valer suas modalidades de funcionamento no território
de Hong Kong, comunicou aos industriais da ilha (abrangendo a indústria cinematográfica) que, se eles quisessem vender seus produtos no território chinês, estes deveriam se enquadrar nas normas chinesas. A doutrina “um país,
dois sistemas” esconde uma realidade bem sombria para um cinema singular.
(MONVOISIN,2008:288).
Verifica-se que a China tem pouco poder direto sobre o cinema de
Hong-Kong e a fórmula “um país, dois sistemas” aplica-se bem à sua produção. Ao mesmo tempo, este entre-lugar onde coexistem diferentes culturas
pode produzir através de seus “espaços lisos” expressões estéticas próprias
do nomadismo.
Para DELEUZE (1997;203), na arte nômade, não há horizonte, nem fundo, nem perspectiva, nem limite, nem contorno ou forma, nem centro. Todas
as distâncias são intermediárias. A pouca profundidade de campo nos filmes
de Wong Kar Wai pode ser vista como uma tentativa de evidenciar através
de imagens estas mediações e apresentar uma Hong Kong entre as culturas
da Inglaterra e da China. Através de planos fragmentados, o cineasta apresenta esse sistema social urbano e em crise, evitando os centros através
de enquadramentos diagonais, de visões parciais e aproximadas dos lugares,
dos rostos, dos corpos e, principalmente, das vestes.
Verificamos também que ele utiliza em diversas cenas espelhos para a
criação da imagem – imagem/reflexo –, desvelando a relação entre a complexidade das imagens e os problemas de relações de identidade. O espelho
é um recurso visual para reconhecimento dos próprios personagens e atores
em meio à complexidade dos dois sistemas, traduzindo a procura de conformação de um olhar.
O olhar háptico
Os panos, as vestes masculinas e femininas que adquirem formas de terno e
vestidos nos filmes, poderiam ser pensados como estriados. Mas como são
TRAMAS DE PANOS E PLANOS: UMA POÉTICA DO VISÍVEL NO CINEMA DE WONG KAR WAI
| 37
desfeitos e refeitos, diremos que eles produzem tessituras de visibilidade. Nos
filmes The Hand e Amor à Flor da Pele, são eles que provocam uma percepção
háptica, mais do que ótica, na qual percebemos espaços intensivos e não mensuráveis. Floridos, listrados, lisos, acetinados, os vestidos que se adequam aos
corpos que se movem contêm as angústias, os medos, as decepções, o ciúme,
a falta de ar. É através dos vestidos que nossos olhos se aproximam do desfilar
das caminhadas e o movimento da vida dos personagens entre corredores e
passagens. Também a elegância dos ternos corporifica o homem moderno que
transita por seu destino incerto, nômade, ajustando a vestimenta e a própria
casa ao espaço exterior, ao espaço liso aberto onde o corpo se move.
O conceito de háptico aparece primeiramente em Alois Riegl6 (1858), no
qual o historiador reúne as propriedades de uma visão aproximada a um espaço háptico. Ele opõe à “visão aproximada da arte grega a “visão distanciada”
da arte romana. Este tipo de visão é posteriormente abordado na oposição
entre Renascimento e Barroco proposta por Wollflin (método formalista), que
diferencia uma visão linear(das linhas e contornos) da pictórica (de massas),
e também pelo modelo estético proposto por DELEUZE para compreensão
dos espaços nômades. Para o filósofo, o Liso seria aquilo que é objeto de uma
visão aproximada e o elemento de um espaço háptico (que pode ser visual,
auditivo, tanto quanto tátil) como nos aparece o cinema de Kar Wai. No filme
The hand, essa relação é explícita. É através das mãos que o alfaiate Zhang conhece o corpo de Hua. Em uma masturbação, ela se aproxima dele, excitando-o em seu desejo. Seus vestidos são resultantes deste ato de aproximação e
sensibilidade.
O espaço liso, háptico e de visão aproximada caracteriza-se também
pela variação contínua de suas orientações, referências e junções. Em Amor
6
Segundo BAZIN, Alois Riegl (1858) dirigiu o departamento de arte têxteis, consideradas como
artes menores, conhecidas como “Artes Decorativas” por seu caráter mais artesanal do que
artístico. É interessante notar que ele as trata com tanta importância como a qualquer Michelangelo ou Rafael. Ele desenvolve análises sobre os têxteis ocidentais e orientais realizando um livro
em 1983 chamado “Problemas de Estilo”, no qual realiza um estudo aprofundado da estilística
da ornamentação em diversas épocas, como góticos, bárbaros, etc. Este estudo servirá posteriormente como referência para um outro livro intitulado “As artes aplicadas na época romana
tardia segundo as descobertas na Áustria-Hungria” ,no qual, ao pensar a arte romana, ele a desvincula da arte grega, na qual aquela aparece como degenerada, e reivindica uma associação à
intrusão dos bárbaros, provocando uma metamorfose das expressões artísticas. À sensibilidade
tátil do classicismo, a arte romana opõe uma concepção óptica que leva em conta, ao que parece, o conceito expresso por Hildebrand, que distinguia a estética do que é feito para ser visto de
perto da que é concebida para ser vista de longe.(BAZIN:132).
38 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
à Flor da Pele, vemos o mesmo modelo de um cheongsam, ou quipao)7
repetidos 46 vezes (uma outra alusão à política em Hong Kong, que terá
sua total autonomia de colônia da Inglaterra em 2046), apresentados em
diversas variações, no caso, as padronagens. Ao vesti-los, Li-Zhen vivencia
suas angústias e tensões descendo e subindo as escadas que ligam a rua
ao quarto da casa de cômodos em que ela está hospedada. Eles levam seu
corpo aos carrinhos de churros e aos corredores de dúvidas. A importância
deste modelo foi ressaltada em uma exposição neste ano, 2012, em Singapura, chamada “In the Mood for Cheongsam: Modernity and Singapore
Women”, fazendo alusão ao filme que em inglês tem como título “In the
Mood of Love”.8 Através de várias versões do vestido, a exposição aborda as
mudanças sociais e políticas que a mulher chinesa vem vivendo desde 1920.
O figurino dos filmes de Wong Kar Wai são assinados por William Chang
(que também produz e edita os filmes). O requinte da obra de tal parceria
nos permite uma visualização sutil da tradição e da modernidade em Hong
Kong através da costura de planos e panos. Se no deserto a mudança das
vegetações indica o passar do tempo, o figurino nestes dois filmes assinala
estes vestígios.
Pensar as propriedades das imagens cinematográficas em seus aspectos transitórios e nos movimentos em que elas agem em sincronia com nosso pensamento faz-se um desafio. O cinema de Wong Kar Wai, ao colocar
tais aspectos em cena, torna visível seu amor ao cinema e às imagens conjugando visão e sentidos, principalmente o táctil. Seus retalhos de tecidos e
imagens configuram um patchwork, como uma trama de poesia e memória,
tornando visível o tempo em seu passar através das vestes.
7
Cheongsam, em cantonês, ou Qipao (pronuncie tchipau) em mandarim, começou a existir em
1644 quando os cavaleiros da Manchúria tomaram o poder na China, derrubando a dinastia Ming
e com ela os seus robes folgados e confortáveis. Os uniformes militares dos conquistadores são
à base do Cheongsam, que no início eram exclusivamente masculinos e depois viraram unissex.
Diferentemente de quando começou a existir como robes folgados e confortáveis, o modelo que
conhecemos hoje, moldando o corpo, só surgiu nos anos 30, entre as duas grandes guerras, quando Shanghai era conhecida como a Paris do extremo-oriente, aberta e cosmopolita. As mulheres
chinesas, inspiradas pelas ocidentais que viviam na cidade, apertaram o corte dos Cheongsam e
passaram a usá-los sem calças por baixo como os homens, criando um ícone visual que persiste até
hoje. Nessa mesma época, os homens chineses abandonaram as túnicas tradicionais e adotaram
os ternos ocidentais. Esse estilo de vestir se espalhou para a também ocidentalizada Hong-Kong
e para o resto da China, até que foi reprimido nos anos da ditadura de Mao Tsé Tung, após 1949,
com a obrigatoriedade do uso dos uniformes folgados da Revolução Cultural. Isso vigorou até os
anos 80, com a abertura iniciada com Deng Xiao Ping .(Extraído de http://textileindustry.ning.com/
forum/topics/historia-do-vestido-chines-classico-o-cheongsam. Dia 11/05/2012)
8
http://www.nationalmuseum.sg/ExhibitionDetail.aspx?id=67&cat=2.
TRAMAS DE PANOS E PLANOS: UMA POÉTICA DO VISÍVEL NO CINEMA DE WONG KAR WAI
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Referências
BAPTISTA, Mauro & MASCARELLO, Fernando. Cinema Mundial Contemporâneo. Campinas SP.
Papirus. 2008.
BAZIN, Germain. História da história da arte. Martins Fontes. SP. 1989.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Editora UFMG/Imprensa Oficial. MG/SP. 2006.
DELEUZE, Gilles. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. vol.5. Ed 34. SP. 1997.
_____. Francis Bacon. A Lógica da Sensação. Jorge Zahar. RJ. 2007.
FRANÇA, Andréa. Terras e Fronteiras no Cinema Político Contemporâneo. 7 Letras. RJ. 2003.
Filmografia
Amor à Flor da Pele. Wong Kar Wai. China, França, Hong Kong. 2001.
The Hand. Wong Kar Wai. In Eros – França, EUA, Itália, Hong Kong, Luxemburgo. 2004.
Sites Consultados
http://textileindustry.ning.com/forum/topics/historia-do-vestido-chines-classico-o-cheongsam. Dia 11/05/2012).
http://www.nationalmuseum.sg/ExhibitionDetail.aspx?id=67&cat=2.(dia 08/07/2012).
40 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
Est-éticas corporais femininas:
o corpo/moda periférica
Nízia Villaça
Formada em Letras pela UFRJ. Tem Mestrado em Literatura Portuguesa, e Doutorado em Teoria Literária pela UFRJ e Pós-Doutorado em Antropologia Cultural pela
Sorbonne, Paris V. Atualmente, é Professora Titular da ECO/UFRJ do Departamento
de Expressões e Linguagens, Pesquisadora do CNPq nível 1 A e Coordenadora do
Grupo ETHOS: Comunicação, Comportamento e Estratégias Corporais.
O nu e o vestido: pequeno roteiro até as
midiáticas popozudas
A pequena introdução refletindo sobre a transformação de critérios sobre a
forma do corpo, sua aceitação e discriminação serve como provocação para
se refletir sobre o corpo/moda periférica e sua progressiva inclusão nos tempos atuais, como atesta poderosa repercussão na mídia com figurações pop.
No princípio era a nudez dos índios, metáfora de sua natureza selvagem.
Vestir os indígenas era colocá-los no seu lugar, constrangidos e desajeitados nas roupas dos brancos. E vieram os negros seminus nas galeras, examinados e vendidos como postas de carne no açougue. O filme Quanto vale
ou é por quilo?,1 de Sérgio Bianchi, é emblemático neste sentido. A senzala
assinalava o espaço de exclusão; era necessário manter a distância de toda
aquela diferença com seus cantos, requebros e feitiços. As bundas, até então
desfocadas, entram em cena, já que as índias de corpos esguios as tinham
mais achatadas. Descrito como lascivo e sensual em suas relações com os
aventureiros que haviam aprendido com o Renascimento a exaltação pagã
da vida física, o corpo indígena deixou na memória histórica sobretudo o
imaginário da espontaneidade nativa.2
1
Título original: Quanto vale ou é por quilo? Gênero: Drama. Tempo de duração: 110 minutos. Ano
de lançamento (Brasil): 2005. Direção: Sérgio Bianchi.
2
PRADO, Paulo. Província & nação paulística retrato do Brasil. São Paulo: Conselho Estadual de
Cultura, 1972. p.149-168.
EST-ÉTICAS CORPORAIS FEMININAS: O CORPO/MODA PERIFÉRICA
| 41
“Segundo os dicionários Aurélio, Nascentes, Figueiredo e o Houaiss –
transcreve Nei Lopes –, bunda é, primeiro, o designativo da língua falada pelos pretos de Angola e, por racista e escrota consequência, é o qualificativo
de qualquer linguagem corrupta e dissonante”.3 Considerada a protuberância da bunda negra, seu desvio paradigmático em relação ao padrão branco
dominante, chega-se ao nome de batismo atribuído à região glútea.
Na época colonial, o “nefando crime” (sodomia homossexual) se estende às passivas mulheres, difundindo o comportamento “bi” que já vai se
tornando “pluri” na sociedade contemporânea, marcada pela dissolução e
reconstrução das fronteiras de gênero, etnia e classe, num processo cujas
repercussões não nos é dado, ainda, apreciar.
Historicamente, a nudez, por motivos religiosos, culturais, conscientes
e inconscientes, constituiu-se como espécie de tabu que participou da organização social em contraste com a vestimenta, propiciando a criação de
um habitus social feito de restrições e liberdades. O par nu/vestido serviu às
negociações do poder, marcando lugares de exclusão e inúmeras hierarquias
simbólicas, dependendo da escolha de mínimos detalhes ligados à propriedade, à sobriedade, ao tipo de desvelamento etc.4
Parece que foi, sobretudo, a partir do modernismo e seu questionamento do colonialismo cultural que se iniciou a libertação do corpo popular do
padrão europeu. Anteriormente, a abstração da metáfora alencariana relativa ao corpo da mulher indígena procedia de idealização romântica calcada
em modelo francês e mais parecia uma instalação pós-moderna com a justaposição de cabelos cor das asas da graúna, lábios de mel e talhe de palmeira.
Na segunda metade do mesmo século, depois da libertação dos escravos e
sua invasão do espaço urbano,5 o corpo negro sofre forte discriminação, de
que dá depoimento a campanha de branqueamento feita na época naturalista. Já o modernismo busca uma linguagem física que expresse nossa singularidade e Macunaíma, com sua sem-vergonhice e hibridismo, é um exemplo.
O que gostaríamos de marcar com Macunaíma, de Mário de Andrade, é justamente a fuga à idealização romântica à crítica racista do final do século XIX
ou mesmo ao pensamento de mestiçagem identitária de um Gilberto Freyre.
Data daí a atenção à singularidade que se atribui hoje ao corpo periférico.
3
LOPES, Nei. “Sobre bundas e bundos”. In: Revista Bundas, n. 2. Rio de Janeiro: Pererê, 25 de
junho de 1999.
4
Ver GOLDENBERG, Mirian. (Org.). Nu & vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo
carioca. Rio de Janeiro: Record, 2002.
5
Ver sobre o assunto BUARQUE DE HOLLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995. p.71-92.
42 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
Portinari deu atenção ao corpo do trabalhador na representação artística
que, de instrumento invisível da produção, ganha um em-si por meio da arte.
Por outro lado, com Di Cavalcanti, surge a mulata como a síntese da mulher
brasileira em sua exuberância física. Não se poderia dizer que este veio tenha
sido exatamente benéfico para a construção seja da mulata, seja do feminino
em geral. De qualquer forma, o corpo feminino vem à cena com maior força,
tendo, também, contribuído para tanto a moda das casas de verão como as
que surgiram em Copacabana a partir da década de 40. Começa a oficializar-se uma qualificação da beleza feminina, pela qual o corpo é celebrado, já que,
até então, ela era mais adjetivada pelo decoro, modéstia, polidez, delicadeza,
como a literatura, com honrosas exceções, dá mostras. O viés realista no cinema e o desejo de inovação dos estilistas determinaram, mais recentemente, a
exposição e apropriação da diferença do corpo/moda periférica.
O tabu da nudez começa a ser desconstruído, sobretudo, a partir da década de 60. Na década de 50, mais comportada, alguns centímetros a mais
na região glútea ainda reprovavam branquinhas como Martha Rocha. Nos
anos 60, partimos para revoluções de todo tipo e tivemos movimentos de
liberação corporal com a queima dos soutiens, as minissaias, as roupas soltas
dos anos 70. O maiô de duas peças virou biquíni, que virou tanga, que virou
fio dental. A região calipígia torna-se quase que um totem nacional, tendo
deixado de ser tabu.6
Moda, corpo e est-éticas periféricas
A cidade contemporânea se expande hoje nas periferias que constituem um
formidável e heterogêneo movimento de formas, paisagens, modos de organização e modos de vida. A periferia oferece um potencial de experimentação tanto para os atores que as constroem, como pelos habitantes que
as vivem e os pesquisadores que as analisam, obrigando-os a pensar fora
das categorias estabelecidas. Na dinâmica midiática, processos de inclusão e
exclusão, de globalização e de proximidade se cruzam e negociam acesso à
cidadania por meio de maior intervenção dos atores periféricos.
Faz parte do senso comum considerar a diferença do espaço e do corpo
periférico como unidade que se distingue dos corpos de outras faixas sociais.
6
VILLAÇA, Nízia. Em pauta: corpo, globalização e novas tecnologias. Rio de Janeiro: Mauad:
CNPq, 1999. p.93-95.
EST-ÉTICAS CORPORAIS FEMININAS: O CORPO/MODA PERIFÉRICA
| 43
A moda vem operando a formação de um olhar que cria permanentemente
diferenças, deixando claro serem estas culturalmente produzidas. Ao contrário de Marc Augé,7 Renato Ortiz8 considera “espaço antropológico” o espaço
de investimento de sentido em que homens e mulheres constituem os limites
míticos e identitários, criando um “nós”, fonte de referência e de identidade,
ao qual se contrapõe um “eles”, fora de suas fronteiras, distante, distinto. Tais
lugares não se prendem apenas à geografia, mas também a simbolismos.
No mundo globalizado, o que temos são estilos de vida. Se pensarmos
na relação corpo/moda a partir dos anos 50, podemos notar a evolução do
comportamento social a partir de corpos dóceis e obedientes à cultura internacional dentro de uma ótica de oposição nós/eles, caminhando por meio
de acontecimentos sóciopolíticos-econômicos e, sobretudo, do campo mercadológico e comunicacional icônicos dos anos 80 em direção à globalização
que se quer inclusiva e híbrida. Da mesma forma que a moda japonesa não
se quer radicalmente distinta da ocidental, melhor seria pensar um viés de
troca onde as influências se dão sob a égide da domestificação e interpretação da cultura externa. As visões essencialistas da mesma forma atrapalham
o pensamento do corpo periférico. Não há uma entranha deste corpo, mas
produções episódicas que se desenvolvem sem que haja uma submissão aos
valores do que nessa ótica se chamaria de centro. A cultura de massa é um
dado e a criação de nichos de consumo de outros modelos, seu contraponto.
Não é necessário postular a existência de um corpo e uma cultura periférica,
pois estamos diante de uma cultura moderna que transcende tais lugares.
Assistimos a um movimento de transbordamento, e não de desaparição.
Em recente entrevista, o estilista Ronaldo Fraga afirmou peremptoriamente que a moda acabou. Não podemos tomar a afirmação ao pé da letra,
pois a moda sempre existiu como produção de diferença e sentido, mesmo
que apenas no século XIX tenha sido produzida como um campo específico a
ser estudado como sistema, envolvendo, progressivamente, um número maior
de intermediários, especialistas, produtos e espaços. É este filão que vamos
utilizar para pensar a moda e a sua relação com o corpo periférico. O crescente transbordamento dos limites da moda e seus espaços, notadamente a
partir dos anos 50, demonstram a evolução do comportamento social a partir
de corpos dóceis e obedientes que copiavam a cultura importada do exterior
e o caminho em direção a corpos mutantes, mutação cujos principais passos
se deram nos anos 60 e 70 por influência das lutas políticas de liberação e do
7
AUGÉ, Marc. Non Lieux: introduction à une Anthropologie de la Sumodernité. Paris: Seuil, 1992.
ORTIZ, Renato. O próximo e o distante: Japão e modernidade – mundo. São Paulo: Brasiliense,
2000. p. 137.
8
44 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
desenvolvimento das tecnologias da comunicação. Nos anos 80 encontramos
no cruzamento do mercado com a comunicação numerosos ícones que apontam para um corpo fetiche, onde as marcas iniciam sua ascensão e domínio.
Ainda caberia apontar a globalização pluriética e pluriétnica dos anos 90 e o
crescimento da estratégia mix que trabalha tanto com a refiguração do corpo
quanto com a transversalidade da moda.
Nesse período de tempo, o espaço da exposição de modelos e corpos
atravessou passarelas, abriu as portas dos espaços mais variados utilizando
um crescente número de plataformas, o que suscitou uma pluralidade de escolhas fashion que tornaram a passarela pouco dinâmica, como vem sendo
apontado em matérias jornalísticas que narram a crise do desfile de inverno
e discussões em torno de uma moda de rua autêntica retratada em blogs. No
universo da comunicação generalizada, todos querem criar e todos querem
ser vistos mais e mais. As tendências são infindáveis, a rua é tomada pelos
paparazzi dos anônimos criativos que não precisam ser perseguidos, mas
fazem pose para quem quiser. O corpo periférico ainda longe da perfeição
oscila entre a sombra pálida da miséria, a gordura que esbraveja em bondes,
os shorts e saias que parecem feitos para mostrar que o excesso não é defeito. Aí, os estilistas, consultores, coordenadores do mundo da moda nem
precisam dar tratos à bola para fazer marketing fashion a partir de personagens históricos, referências artísticas ou esquisitices narcísicas. Tá tudo aqui
na nossa frente e a mídia vem mostrando este fato de forma contundente.
A periferia, seu corpo e sua moda, ocupam as colunas sociais, as colunas
de cultura, propondo novas formas de viver a vida. O corpo periférico não
pode ser simplificado numa só representação, pois se encontra profundamente mixado ao imaginário do corpo perfeito buscado pelas classes altas,
como bem mostram filmes, notícias, blogs etc. A versão mais comum é a
que utiliza como emblema o nicho das funkeiras, mas nem tudo se resume a
estes corpos de expressão frequentemente excessiva. Tal homogeneização
se dá, sobretudo, pelo olhar da classe média querendo tirar partido da diferença. Daí surgirem os lugares-comuns a respeito da homogeneização do
corpo favelado.
É comum dizer que a mulher da periferia é mais feliz com o corpo, quer
seduzir com o corpo, enquanto aquelas de classe mais elevada procurariam
a beleza para satisfação própria no movimento narcísico. Entre as mais ricas,
a busca pela magreza das modelos; entre as mais pobres, bonito mesmo é o
corpo farto dos rebolados.
A grande diferença entre os dois grupos é o sofrimento diante do excesso de peso. As mais ricas tentam se esconder sob roupas largas. As mais
pobres exibem a gordura sem pudor em microshorts e tops justíssimos.
EST-ÉTICAS CORPORAIS FEMININAS: O CORPO/MODA PERIFÉRICA
| 45
A diferença no comportamento dessas mulheres chamou a atenção de
Joana de Vilhena Novaes, coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da
Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio e pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Para entender os motivos dos dois grupos,
Joana percorreu áreas chiques da zona sul carioca e subiu três favelas, entre
elas a Rocinha, que possui quatro academias de ginástica. O resultado foi o
livro Com que corpo eu vou?: sociabilidade e usos do corpo nas mulheres nas
camadas altas e populares.9
Depois de ouvir o relato de mais de 200 mulheres, Joana não tem dúvidas. As moças das favelas se preocupam tanto quanto as “patricinhas” endinheiradas em terem um corpo bonito. Fazem ginástica, entram na fila de
hospital público para fazer lipoaspiração, tomam chá para emagrecer, mas
o objetivo é bem diferente. Na elite, a motivação é o espelho. “Para essas
mulheres, o que importa é a relação com elas mesmas. Dizem que querem
ser magras para se sentir bem”, explica. Na favela, o interesse é conquistar
os homens: “Elas querem ser chamadas de gostosas, querem exercer sua
sexualidade”. Adriane Galisteu comenta que, quando é chamada de gostosa,
percebe que chegou a hora de emagrecer.10
9
NOVAES, Joana de Vilhena. Com que corpo eu vou?: sociabilidade e usos do corpo nas mulheres das camadas altas e populares. Rio de Janeiro: PUC-Rio: Pallas, 2010.
10
GALISTEU, Adriane. Apud, NOVAES, Joana de Vilhena. Op. cit.
46 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
A pesquisadora acredita que as mulheres das camadas populares são
muito mais felizes com seus corpos, mesmo quando estão gordas. “Uma mulher gorda na classe média é motivo de escárnio. Na favela, ela não precisa
se livrar dos recheios para ser admirada”, defende. Além do mais, as mais
pobres têm outras preocupações. “Elas gastam mais energia em garantir direitos básicos de sobrevivência, coisas que para a mulher de classe média
já estão resolvidas. Pelo menos nessa relação com o corpo, as moradoras
de favelas são bem mais felizes”, conclui Joana. Como ilustração da questão do corpo da favelada, temos, entretanto, que fugir das estereotipias e
acompanhar a semiologia dos diálogos que as mulheres da periferia estabelecem com a mídia pensando na construção de seus corpos. Joana Novaes
escolhe duas categorias, barangas e saradas, para captar os processos de
subjetivação que são incentivados em direção ao aperfeiçoamento corporal
e um sentimento de insuficiência de algumas mulheres faveladas em relação
a poder se socorrer de academias e embelezamentos que estão mais à mão
da classe média alta. Isto não significa que não se preocupam com estas
questões, mas apenas que elas não são definitivas no alcance de satisfações.
A febre de criar nichos de consumo e diferenças variadas não apenas
põe em perigo as passarelas, como até os sites de moda de rua que pareciam abrir uma alternativa. Tais sites ainda são acusados como apresentando
modeletes, fashionistas e aspirantes a celebridades. No Rio, Douglas Carlos
cria o blog que pretende mostrar a roupa do povão (colunistas.ig.com.br/
oqueopovaousa).11 Ele não brinca, nem faz chacota com a moda do povo.
Como exemplificação do imaginário variado destas mulheres/meninas
da periferia, vamos utilizar dois filmes com pegadas distintas: Sonhos Roubados12 e Sou Feia, Mas Tô na Moda. 13
Sonhos Roubados
O filme de Sandra Werneck é emblemático da cultura periférica em tempos de
globalização, informação e consumo. Os conflitos entre o desejo e a realidade
surgem logo nas primeiras cenas quando as meninas dialogam sobre seus
sonhos que vão do bem-estar familiar a produtos de consumo. Entre planos
de vida e desejos/necessidades imediatas, elas se movem numa velocidade
e numa multidirecionalidade que causa um certo espanto. Os personagens
11
WHITEMAN, Vivian. “Blog retrata moda da rua com fotos e modelos naturais”. In: Folha de S.
Paulo, 13 de janeiro de 2012, p. E5. Ilustrada.
12
Título original: Sonhos roubados. Gênero: Drama. Tempo de duração: 85 minutos. Ano de lançamento (Brasil): 2010. Direção e produção: Sandra Werneck.
13
Título original: Sou Feia, Mas Tô na Moda. Gênero: Documentário. Tempo de duração: 61 minutos. Ano de lançamento (Brasil): 2005. Direção, roteiro e produção: Denise Garcia.
EST-ÉTICAS CORPORAIS FEMININAS: O CORPO/MODA PERIFÉRICA
| 47
que encarnariam o controle das meninas praticamente não existem ou são
desconsiderados e caricatos. O pai de Daiana sistematicamente repele a filha;
a sogra, Jandira, acusa a nora Melissa/Jéssica de comportamento imoral,
retirando-lhe a filha, sugestivamente chamada Britney; o marido Anderson é
dominado pela mãe; o avô bêbado. Por sua vez, Sabrina namora um traficante
violento que a engravida e Daiana é criada pelo tio pedófilo e por uma tia
cúmplice. Todas são apadrinhadas pela cabeleireira personificada por Marieta
Severo, mãe protetora de perfil marginal.
Quanto ao item corpo, diríamos que as jovens, ao contrário da maioria periférica que tende a um corpo mais opulento, são bastante magras e vaidosas,
batendo pernas pelas lojas, fazendo unha e cabelo e sempre diante do espelho
ou dançando com seus microshorts, tops e blusinhas de alça. O filme percorre
os mais diversos cenários alternando de forma significativa o lazer na bicicleta,
na dança, na piscina e o trabalho seja do pai ou do avô, seja os delas mesmas
no cabeleireiro e na lanchonete. Surgem também cenas de prostituição que se
encadeiam a roubos, agressões, uso de tóxicos, violência masculina, trocas de
gentileza entre as meninas, bem como uma festa de quinze anos estilo asfalto.
O consumo é um dado fundamental a ser observado, pois até a mais nova,
Daiana, rouba shampoo, faz escova progressiva, terminando por se prostituir.
O olhar da diretora Sandra Werneck é tão compassivo quanto o da personagem da Marieta Severo que acolhe as meninas no bem e no mal. As sequências
em que esses dois pólos comportamentais se alternam são representativas de
uma quase amoralidade. A alternância entre os corpos sexualizados das meninas e os closes dos rostos tristes sugere uma consciência das dificuldades por
que passam e as transgressões que empreendem.
O final do filme é de happy end com as três meninas de braços dados
caminhando em direção a uma longa estrada que parece remeter à cena final
do filme O mágico de Oz.14
Sou Feia, Mas Tô na Moda
Em forma de desenho animado, com traço do cartunista Allan Sieber, a
abertura do documentário Sou Feia, Mas Tô na Moda, sobre o funk carioca,
apresenta uma imagem simbólica: um casal lindo e loiro curte a vida na praia
quando aparece uma máquina sonora em forma de “popozuda”, invade a
areia e o esmaga. Uma ilustração bem vívida da força que alcançou o fenômeno musical analisado por Denise Garcia.
Passando sua câmera rapidamente pela influência do Miami Bass, dos
14
Título original: The Wizard of Oz. Origem: Estados Unidos (1939). Direção: Victor Fleming.
48 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
anos 1980, e pelos polêmicos bailes Lado A / Lado B – em que jovens se dividiam em grupos para trocarem socos –, Denise põe em foco os protagonistas da cena atual (DJ Marlboro, Tati Quebra-Barraco e Deise da Injeção, entre
outros) e investiga como o funk usou a sensualidade para sair da decadência
em que se encontrava. Através das letras sexualmente explícitas cantadas por
mulheres, por exemplo, descobre-se uma reafirmação do feminismo, com a
qual as garotas do subúrbio deixam de ser objetos sexuais, abandonam a submissão em que se encontravam e impõem sua posição social.
E, antes que as bandeiras moralistas se levantem contra as letras e danças apelativas, os músicos e moradores dos morros cariocas criticam a hipocrisia da sociedade, que aceita as novelas com sexo em horário nobre e o
carnaval para exportação com dançarinas nuas em carros alegóricos. Mas o
documentário acerta mesmo em cheio quando um dos entrevistados lembra que a juventude que hoje canta e dança o funk era a criança que assistia
ao Faustão apresentar, em seu programa dominical, os concursos de loira e
morena do Tchan!, e aprendeu a ralar na boquinha da garrafa.
O documentário Sou Feia, Mas Tô na Moda, dirigido por Denise Garcia,
é uma tendência da retomada do cinema brasileiro, cujo espaço de realização ainda está sendo avaliado.
A primeira mudança ocorrida na última década foi técnica. Dezenas de
documentaristas, jovens e veteranos – com uma ideia na cabeça e uma câmera digital na mão –, vêm realizando novos trabalhos e fazendo com que a
produção cresça nos últimos anos em razão de seu custo mais barato (em
comparação ao filme de ficção), a fim de revisitar a memória nacional, explorar temas políticos, biografar personalidades culturais ou radiografar o Brasil
dos excluídos – esse, um tema recorrente e que tem mobilizado grande parte dos realizadores.
Contudo, um número pequeno deles consegue, de fato, exibi-los e,
quando isso acontece, é geralmente em circuitos de cinéfilos do eixo
Rio –São Paulo ou nos festivais nacionais e internacionais, onde encontram aceitação crítica e algumas premiações. Quanto à questão essencial para o gênero, ela continua a mesma e diz respeito à veracidade exibida em um documentário. Existe uma verdade capaz de ser mostrada
em filme? Há imparcialidade na hora de filmar? Não existe a pretensão
de filmar a realidade, mas sim os discursos sociais sobre a mesma visando à inclusão.15
15
PAOLA, Fernanda; LAVIA, Jairo. “Paixão pelo real”. In: Cult – Revista Brasileira de Cultura, N. 82,
Ano VII. São Paulo: Bregantini, Julho/2004. p. 33.
EST-ÉTICAS CORPORAIS FEMININAS: O CORPO/MODA PERIFÉRICA
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Deise, “a tigresa”, o personagem principal do filme Sou Feia, Mas Tô na
Moda, dirigido por Denise Garcia,16 se apresenta na boate – Lotus – em São
Paulo, onde se paga muito caro para assistir a seu show e, com outras funkeiras como Tati Quebra-Barraco, faz shows no exterior. O que se passou neste
espaço de tempo?
Em entrevista ao Mix Brasil, Garcia explica que a ideia de filmar Sou Feia,
Mas Tô na Moda surgiu a partir da forma como a imprensa retratava o funk,
principalmente aquele cantado por mulheres. A máxima era bater na tecla: a
música é um lixo, as mulheres são desbocadas e colocam-se na posição de
objetos sexuais. A diretora estranhou que a mesma cidade que se orgulha
do carnaval, com todas aquelas mulheres nuas em cima de carros alegóricos,
estivesse falando sério.
Encarado como uma manifestação genuína da cultura, o funk questiona
os tabus da sociedade e foi o responsável por transformar a vida de seus representantes. São vários os funkeiros que chegam a cobrar até três mil reais
por um show (veja o caso de DJ Marlboro, por exemplo). E a importância do
funk é justamente essa, segundo Garcia. Milhares de pessoas produzem, escutam, dançam o funk nas mais de quinhentas favelas cariocas todo o final
de semana. São milhares de jovens que estão reinventando seus papéis, tornando-se visíveis dentro e fora da comunidade. Ainda segundo a diretora, Sou
Feia, Mas Tô na Moda foi bem aceito pela mídia, o que foi muito importante.
O movimento funk, que já foi associado às brigas das galeras, ao tráfico
de drogas e à indústria pornô, cai nas graças da classe média, toma conta de
programas de auditório e ganha espaço nas revistas, causando discussões
sobre o valor do funk enquanto cultura popular periférica e o que alguns
consideram modismos e produto da indústria fonográfica e midiática que
são desenhados conforme princípios mercadológicos da massificação. As
“popozudas”, “purpurinadas” ou “cachorras” esquentam a discussão da imagem da mulher da sociedade contemporânea.
A doutora em sociologia Verônica Cortes defende a representatividade
de um grupo social. Reconhece que a violência original das batidas é atenuada pela mídia. Resumindo: a moda funk não só rende capital para empresas,
mas espaço no governo. Verônica Costa, da “Furacão 2000”, tornou-se vereadora. Todos buscam tirar uma lasquinha: dos grupos “funk-axé” à Rede
Globo com seu “tecno-funk”.17
Nosso objetivo é justamente, através do funk carioca, discutir as reais
possibilidades de inscrição dos atores femininos deste estilo através da mídia
16
17
GARCIA, Denise. Diretora do filme Sou Feia, Mas Tô na Moda. Rio de Janeiro, 2006.
CORTES, Verônica. Folha de S. Paulo, 19 de março de 2001, p.E3.
50 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
e sublinhar a reinvenção do espaço da jovem pobre, organizada fora do paradigma hegemônico ligado à etnia, à classe social e padrões de beleza da elite.
O interesse da indústria cultural pelas expressões periféricas suscita questões
em torno da promoção destas vozes, seja através da divulgação da violência
que praticam ou sofrem, seja através de eventos ligados à moda (que percorrem tais espaços em busca de inspiração e mão de obra), seja através dos
programas como Central da periferia, que busca fugir de visões maniqueístas
sobre tais grupos.
Discute-se a estratégia da indústria cultural e seu espírito publicitário
preocupado em transformar tais produções populares em uma diferença
cultural a mais para a cidade. Perguntamo-nos se este fenômeno não é apenas um subproduto da globalização, buscando para o país, ou para a cidade,
atingir maior prestígio no campo comunicacional.
Da mesma forma que, na época da industrialização selvagem, um filósofo propôs uma ciência alegre, as novas gerações requerem uma ciência sensível, uma sociologia compreensiva e responsável, ecologicamente orientada
e crítica de seus limites.
Na época da industrialização, as oposições eram mais radicais e visíveis,
organizadas em torno da lógica do trabalho, nos partidos, nos sindicatos e
nas fábricas. Agora, na sociedade de consumo do espetáculo, as questões
sociais se disseminam nas cidades. Aumenta o número dos sem-emprego,
das ocupações alternativas, e o trânsito entre a inclusão e a exclusão. O movimento funk sai das favelas e das periferias e as jovens burguesas “patricinhas” frequentam as festas funk imitando o seu estilo.18
Referências
AUGÉ, Marc. Non Lieux: introduction à une Anthropologie de la Sumodernité. Paris: Seuil, 1992.
BUARQUE DE HOLLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
GOLDENBERG, Mirian. (Org.). Nu & vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca.
Rio de Janeiro: Record, 2002.
NOVAES, Joana de Vilhena. Com que corpo eu vou?: sociabilidade e usos do corpo nas mulheres
das camadas altas e populares. Rio de Janeiro: PUC-Rio: Pallas, 2010.
18
VILLAÇA, Nízia. Mixologias: comunicação e o consumo da cultura. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2010. p.98-100.
EST-ÉTICAS CORPORAIS FEMININAS: O CORPO/MODA PERIFÉRICA
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ORTIZ, Renato. O próximo e o distante: Japão e modernidade – mundo. São Paulo: Brasiliense,
2000.
PRADO, Paulo. Província & nação paulística retrato do Brasil. São Paulo: Conselho Estadual de
Cultura, 1972.
VILLAÇA, Nízia. Em pauta: corpo, globalização e novas tecnologias. Rio de Janeiro: Mauad:
CNPq, 1999.
VILLAÇA, Nízia. Mixologias: comunicação e o consumo da cultura. São Paulo: Estação das Letras
e Cores, 2010.
Hemerografia
CORTES, Verônica. Folha de S. Paulo, 19 de março de 2001.
LOPES, Nei. “Sobre bundas e bundos”. In: Revista Bundas, N. 2. Rio de Janeiro: Pererê, 25 de
junho de 1999.
PAOLA, Fernanda; LAVIA, Jairo. “Paixão pelo real”. In: Cult – Revista Brasileira de Cultura, N. 82,
Ano VII. São Paulo: Bregantini, Julho/2004.
WHITEMAN, Vivian. “Blog retrata moda da rua com fotos e modelos naturais”. In: Folha de S.
Paulo, 13 de janeiro de 2012, p. E5. Ilustrada.
Filmografia
Título original: Sonhos roubados. Gênero: Drama. Tempo de duração: 85 minutos. Ano de lançamento (Brasil): 2010. Direção e produção: Sandra Werneck.
Título original: Quanto vale ou é por quilo? Gênero: Drama. Tempo de duração: 110 minutos. Ano
de lançamento (Brasil): 2005. Direção: Sérgio Bianchi.
Título original: Sou Feia, Mas Tô na Moda. Gênero: Documentário. Tempo de duração: 61 minutos. Ano de lançamento (Brasil): 2005. Direção, roteiro e produção: Denise Garcia.
Título original: The wizard of Oz. Origem: Estados Unidos (1939). Direção: Victor Fleming.
52 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
O feminino vestido:
na fonte das mulheres
(resumo do texto apresentado)
Lúcia Acar
Doutoranda em Sociologia pelo IUPERJ/UCAM e Mestre em Ciência da Arte pela
UFF. Professora e pesquisadora no curso de Design de Moda IZA/UNESA, onde desenvolve o Projeto de Iniciação Científica intitulado “Diálogos Estéticos entre a Moda,
o Design e a Arte na Contemporaneidade”. Membro do Conselho do Instituto Zuzu
Angel (IZA). Membro do Comitê de Honra do Design Latino-Americano da Universidad de Palermo, em Buenos Aires.
A guerra dos sexos, um tema difícil para os tempos atuais, não é novo.
Mas a maneira como é construída a narrativa de A Fonte das Mulheres, filme
do cineasta romeno Radu Mihaileanu, é o que faz a história se tornar atual e
interessante. O filme está baseado na comédia grega de Aristófanes, Lisístrata, representada em 411 a.C.
Cansadas de uma guerra que já durava 20 anos, as mulheres de Atenas,
de Esparta, de Beócia e de Corinto (cidades gregas mais duramente atingidas pela guerra), chefiadas pela ateniense Lisístrata, decidiram por fim às
hostilidades usando de uma tática pouco ortodoxa: uma greve de sexo!
A Fonte das Mulheres atualiza um tema já desgastado pelos filmes sexistas com humor e questionamento de tradições, apresentando de forma
respeitosa e poética os costumes de uma comunidade da Turquia por meio
do bom humor e do questionamento de suas tradições, que, longe de desrespeitar os costumes, apenas os questiona.
Centrada na guerra dos sexos, esta comédia dramática é uma fábula
moderna de uma pequena vila onde mulheres ameaçam os homens negandose a manterem relações sexuais com seus parceiros com a intenção de
chamar atenção para a condição de vida e para os trabalhos sociais, além dos
domésticos. A trama é inspirada em um recente fato registrado na Turquia,
quando mulheres muçulmanas já não enxergaram no cotidiano um modo
correto de viver. Elas fazem o trabalho pesado, em busca de água para o vilarejo
onde moram, enquanto os homens passam o dia bebendo chá e jogando
cartas, além de serem meros reprodutores. São valorizadas pelo dom da
O FEMININO VESTIDO NA FONTE DAS MULHERES
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maternidade, mas nem por isso deixam o trabalho braçal, fonte de ferimentos
físicos e emocionais durante o percurso de retirada da água. Quando Leila,
interpretada por Leila Bekhti, sugere uma greve de amor (leia-se sexo) para
que os homens percebam que o valor das companheiras não está apenas nos
serviços domésticos, instaura-se uma verdadeira revolução no lugarejo e os
moradores precisam lidar com o que supostamente diz o Alcorão e essa nova
realidade feminina.
No filme, o figurino assinado por Viorica Petrovich, costumer designer
romena que trabalha para ópera, teatro e cinema, e ganhou o prêmio de
melhor figurino, apresenta uma característica diferente do que se espera de
uma ação que tem por objetivo usar o corpo como instrumento de persuasão. Em geral, o que veríamos seria a visão generosa do corpo revelado e
não velado. Em uma guerra de sexos, onde o corpo feminino é a arma para
alcançar objetivos, a roupa teria um papel de extrema importância na construção de uma linguagem visual de sedução e desejo.
“A aderência ao corpo mais evidente é certamente a roupa: embalagem que
vela e revela, simula e dissimula. Fisicamente autônoma, ela é, entretanto, intimamente ligada ao corpo do qual recebe odores e calor e ao qual oferece um
estatuto. O tecido cortado ou drapeado torna-se imagem no momento em que
é vestido” (Villaça, 2007).
A imagem do filme revela um corpo feminino vestido que não quer seduzir pala aparência, mas, ao contrário, quer velar a forma e reivindicar uma
relação de igualdade com o homem colocando-se como agente e fonte de
uma força sensível que quer transformar a vida social de uma comunidade
machista e preconceituosa.
54 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
Estômago e a indigestão
das marcas culinárias
Rogério Sacchi de Frontin
Mestre em Letras pela UERJ e bacharel em Comunicação Social pela PUC/RJ. Atuou
como repórter, redator e autor-roteirista de TV. Hoje, professor dos cursos de Comunicação Social, Produção Audiovisual e Cinema da UNESA, exerce também o ofício
de dramaturgo, poeta e escritor. Tem publicado três livros de não-ficção, nos quais
contribuiu como autor: Almanaque da TV, Introdução à História da Comunicação e
Enciclopédia de Verbos das Literaturas de Língua Portuguesa. Recentemente, lançou-se como romancista e publicou em Portugal a obra Maculada Odete.
Se a semiose é o processo incessante de produzir sentidos1, o filme Estômago, de Marcos José, trabalha os signos da gastronomia dentro desta perspectiva, fazendo-nos refletir a respeito da fabulação simbólica da comida, codificada e recodificada a partir da narrativa épica do personagem Raimundo
Nonato, encarnado pelo ator João Miguel. Sob vários aspectos, o cozinheiro
assume o lugar do anti-herói antropofágico, que, ao devorar o outro (pessoas,
ingredientes, temperos e receitas), adquire força para sobreviver como ícone
no universo da exclusão – ele apreende a experiência e projeta-se sobre o meio
como aquele que parece e, nesse sentido, faz-se também um ser analógico.
– Alecrim, esse gorgonzola pode ser o queijo do caralho que for, meu
irmão. Tu pode fazer o que quiser com ele. Mas esse negócio não vai ficar
aqui dentro nem fodendo!
O brado do dono da cela do presídio, o Bujiú, vivido por Babu Santana, onde Raimundo Nonato se vê confinado, atendendo pelo vulgo Alecrim,
frustra, num primeiro momento, o cozinheiro que, para existir, tem de cozer
e narrar o próprio cozimento – se uma das duas ações falha, perde-se o encantamento do alimento, entendido como mito2, cuja relação significante/
significado deixa de ser arbitrária e passa a servir à moral particular do anti-herói. Como diz Roland Barthes, “o mito não se define pelo objeto da sua
mensagem, mas pela maneira como a profere”. Sem o apoio mítico, o personagem viraria mais um nordestino a vagar ao longo das ruas de uma São Paulo opressora, que sufoca quase toda tentativa de afirmação de identidade.
Do passado do anti-herói épico, sabe-se que nasceu do ventre de uma
mulher morta e, apesar disso, vingou. “Raimundo Nonato é eu”, afirma o
ESTÔMAGO E A INDIGESTÃO DAS MASCAS CULINÁRIAS
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personagem narrador, dando marca à sua assinatura. A passagem para a
aventura se faz por meio de duas coxinhas, que matam a fome do protagonista,
e, ao mesmo tempo, irão posicioná-lo em relação ao ambiente. Os salgadinhos
expostos no boteco do Centro de São Paulo estão velhos, engordurados e
sem atrativo. Não por acaso, a coxinha é um dos mais populares quitutes da
nação brasileira, apesar de alguns atestarem a ela uma origem nobre: uma
cozinheira, para enganar o filho doente mental de princesa Isabel, amante de
coxas de galinha, moldou com farinha e caldo o salgado, recheando-o com
peito. Esta fabulação imperial é perfeitamente dispensável na consolidação da
“coxinha”, associada como uma delícia nacional.
Não tendo dinheiro para pagar por elas, Raimundo Nonato é arrastado
por Seu Zulmiro para dentro do bar, onde começa a trabalhar como cozinheiro em regime quase escravo. Neste momento, o dono tranca a porta do
estabelecimento e a narrativa adianta-se no tempo para mostrar a abertura
de um outro portal: o do presídio que espera por Raimundo Nonato, destituído de toda identidade, indefeso.
– Apressa as coxinhas, porra, que o povo tá me enchendo o saco.
Daí, no passado recente, o talento de Nonato se revela: ele empresta
gosto e brilho às coxinhas do bar do Zulmiro, encantando bêbados, moscas
e a princesa de sua fábula, a prostituta Íria, que lhe fala sobre um prato chique que viu no programa de uma apresentadora de TV: um macarrão com
alcaparras, tomate e “alixe” – o putanesca.
– Ave Maria, puta vesga, é?
O ingênuo Nonato, desconhecendo totalmente o código, atira sem querer uma pedra na puta que está à sua frente, que, por sua vez, demonstra
ignorar a natureza semiótica da marca que ela mesma se apropria.
– É puttanesca. É italiano, tem nada a ver com puta não, é italiano, é
chique pra caralho. É puttanesca!
Se, como afirma Andrea Semprini, o projeto da marca passa a ser capaz
de produzir enunciados que a concretizam, percebemos que os excluídos, habitantes do periférico da vida e do mundo, como mediadores indesejados, são
capazes de ir muito além: eles subvertem as enunciações com rapidez anárquica, expondo o artificialismo dos valores que sustentam as missões e as manifestações das marcas. Quanto mais intensa a exclusão sócioeconômica, maior
seria a exposição delas, na perspectiva de Semprini, às armadilhas e aos desvios
que colocariam em questão a autoridade e a credibilidade de seus valores.
Íria, a mulher frondosa e viciada em comida, não é reconhecida por
Nonato como prostituta. Apesar das evidências, para ele, ela é a senhora,
a amante, a namorada e a futura noiva. Interessante notar que o roteiro e a
direção de Estômago reforçam inicialmente a ingenuidade do protagonista
por desconhecer os códigos de acesso básicos ao mundo hipermoderno que
o cerca, que parece devorá-lo. Decifra-o.
56 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
Identificado como cozinheiro, na prisão, Alecrim ganha o passaporte
para ir em direção ao mundo de Bujiú, aquele que “sabe convencer as pessoas do que quer bem dizendo”. Outro visto para Nonato, é-nos apresentado
por Giovane, ítalo-paulistano, dono do restaurante Bocaccio, que vai ao bar
de Zulmiro experimentar o tempero do nordestino e roubá-lo de lá, dando-lhe salário e carteira assinada. Nas mãos do futuro chefe, lê-se no jornal a
manchete sobre a rebelião num presídio: indício sobre a próxima casa que
vai abrigar o talento do cozinheiro, numa relação de causa já explicitada pela
narrativa épica do protagonista, que reconstitui sua trajetória num jogo entre
o presente e o passado.
No novo emprego, Giovane apresenta ao paraibano a mítica do vinho,
como guardá-lo, o valor, o Sassicaia italiano, elaborado com uvas francesas.
A ignorância do aprendiz sobre a simbologia do vinho mostra-se absoluta,
assim como a dos queijos. Sobre o gorgonzola, ele diz:
– Parece manteiga estragada!
Cena após cena, vemos um ser, que parece ingênuo, destituído de experiência ou intuição, que demonstra se encantar com a fala dos outros e
apenas reproduzir aquilo que lhe foi incutido - com talento, com muito talento. No presídio, Nonato faz uma surpresa para o chefe da sela: farofa de
formiga, que o companheiro disse ser prato admirado na Colômbia. Marca
exótica, estrangeiro. Não foi bem recebida pelo homenageado, que dá uma
surra no nordestino. De gota em gota de angostura, blend de ervas e especiarias, na cachaça de álcool noventa, a Maria Maluca, Nonato reconquista
a credibilidade perdida, a ponto de ser requisitado para fazer um banquete
para receber o grande poderoso bandido de entrada no presídio, o Etcétara.
Mas antes disso, acompanhamos Nonato e Giovane em visita a um açougue.
Este compara o filé mignon à bunda da mulher,
– Então filé mignon é na bunda, né?
Nonato sai devorando as metáforas, engolindo-as com literalidade, destruindo-as e, aparentemente, por esta sua incapacidade de decodificar as
marcas gastronômicas e suas simbologias de poder, apresenta a configuração de um perdedor, de um pobre coitado, que quer ficar noivo de uma
meretriz sem reconhecê-la como tal e que convida para padrinho o dono
do bar que o empregou em São Paulo em regime de trabalho quase escravo.
Antes de se revelar o motivo que levou Nonato à prisão, vamos ao banquete para o bandido maior, o Etcétera. As marcas gastronômicas selecionadas pelo cozinheiro, assimiladas em sua curta experiência em São Paulo,
mostram-se totalmente inadequadas: o vinho italiano com gosto de cachorro molhado, a carne crua do carpaccio. Somente nesta altura, orientando os
colegas na cozinha, o anti-herói revela-se para o espectador.
ESTÔMAGO E A INDIGESTÃO DAS MASCAS CULINÁRIAS
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– Meu irmão, baixa a voz. Minha cabeça tá na roda. Se eu perder meu
pescoço, eu te garanto que você perde o seu também.
O motivo da prisão de Nonato: um crime passional. Ele mata Iria e Giovane, flagrados na cama, e ainda corta uma tira das nádegas da noiva morta
para prepará-la como bife. O que o cega, revela-se na abordagem anterior da
câmera subjetiva, não foi tanto a consumação do ato sexual, mas o entendimento da palavra da mulher que, com o paraibano, tudo fazia, menos dar beijo na boca. Com o ítalo-brasileiro, ela o beija com calor após comer o romeu-e-julieta com queijo gorgonzola. Por detrás de cada uma daquelas marcas
gastronômicas, há símbolos de poder. Para tornar-se forte, seria necessário
devorá-los. O vinho Sassicaia, de safra de 1983, guardado por Giovane na
adega para comemorar os 60 anos dele, será o primeiro a entrar no ritual
indigesto, o que dará coragem para Nonato cometer o duplo homicídio.
– Ô Alecrim, tem um feijãozinho pra completar a mistura, não?
– Claro, chefe. Fiz um só pra você, sabia que você ia querer.
Se toda marca tem agregado um valor, importa saber manipulá-lo. O
ingênuo, o perdedor envenena o prato de Bujiú, que foi dado como morto
por indigestão.
– Quer dizer que se morre disso, é? Achei que era o veneno que eu pus
no feijão que eu fiz pra ele.
Naquele espaço, Nonato intuiu: a morte não tinha marca, pois o morto
nada representa no universo da exclusão. Importa quem sobrevive e ele, que
caiu nas graças do Etcétera, teria a ascensão garantida pelas marcas gastronômicas que dominava. Se um dia quisesse muito uma cela só para ele, promoveria uma nova indigestão com elas. A verdadeira conquista do território
faz-se de forma simbólica e o símbolo, que faz analogia à vida, pode levar o
consumidor à morte. Tudo vai depender da vontade daquele ou daquilo que
detém o poder.
Referências
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p.131.
Irene Machado. O ponto de vista semiótico, in: Antonio Hohlfeldt (org.), Teorias da
Comunicação, Petrópolis: Vozes, 2010.
SEMPRINI, Andrea. A marca pós-moderna. São Paulo: Estação das Letras, 2006.
58 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
Encenar a pele inglesa
em réquiem iconofágico:
o circuito alegórico limítrofe dos
trajes de cena de Sandy Powell
na obra de Derek Jarman
Marcelo Augusto Teixeira
Doutor em Letras – Ciência da Literatura (UFRJ). Mestre em Ciência da Arte (UFF).
Membro do grupo de pesquisa Estéticas-de-fim-de-século do CNPQ.
“Estou aqui para você aceitar que não existe...
...somos a escória...”
O Importante É Amar ,1975,
fragmento de monólogo
final do primeiro filme francês de Andrejz Zulawski
O naco sangrento da fala de um mafioso e produtor de fotonovelas de
triste erotismo reificado, no controvertido final de obra do cineasta europeu
Zulawski, surge como vertiginosa possibilidade de percepção da imagem, do
amor, do calcinado simulacro do imaginário da pornografia e dos diferentes
lugares da perversão ao apresentar e fixar o paradeiro dos malditos sociais
e seus espaços de codificação: guethos (DIDIER, 2008, p. 144 e 145).
O que podia parecer um desenho exemplar de cinema de tese sobre
identidade e cultura de lamentação,1 pode ser visto e escutado como nauseante fala da Doxa em seu desenho de interdito, em sua ronda normativa
(FOUCAULT, 2001, p. 372 e 373). Provavelmente, uma agulha destinada à
retina a arruinar o ânimo e a condição de pertencimento, ao socius, de estrangeiros, de negros, de homossexuais, de mulheres e de outros grupos
crivados como metáforas da marginalidade, loucura, doença, possessão e
disposição degradante e criminosa.
1
A visão pessimista do crítico de artes australiano Hughes sobre o valor totalitário das credenciais
das vítimas da arte identitária, que personifica os Estados Unidos e grandes centros culturais, na
década de oitenta. Observar o capítulo A moral em si: a arte e a falácia terapêutica.
ENCENAR A PELE INGLESA EM RÉQUIEM ICONOFÁGICO: O CIRCUITO ALEGÓRICO ...
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As estratégias de combate, as manifestações dos que não existem, dos
inomináveis, possuem um longo e repetitivo mapeamento na Cultura e Estado Ocidental: pena capital, assassinatos e execração públicos de seus feitos
e nomes, aprisionamento, tortura, exílio, ostracismo, lobotomia, perda de
direitos civis e as antigas celas dos manicômios. O mais corrente tratamento
a ser empregado e mais brutal, em sua perversão: a invisibilidade.
A criação fílmica limítrofe e avant guarde (HILL, 1999, 153-161) do diretor inglês Derek Jarman,2 em seus longas-metragens, carrega fixamente
a tentativa de leitura da homofobia da sociedade inglesa, que assassinou
furtivamente o dramaturgo homossexual Marlowe ou levou o crítico, dramaturgo e romancista bissexual Oscar Wilde à prisão, em regime de trabalhos
forçados, o banimento de seu nome, na vida de seus filhos até o final do
século XX e precoce morte em quarto de hotel anônimo.
Pensando na provável invisibilidade dos circuitos vitais e de um anônimo
lugar de mortalidade de seu ethos, Jarman, cenógrafo e artista plástico, revitaliza uma particular espacialização e crise temporal, em suas encenações.
O diretor inglês acompanhava a tirania da imaginação do realizador cinematográfico, poeta, dramaturgo, pintor Jean Cocteau e do ator, desenhista,
encenador teatral e cineasta de acento falsificante, Orson Welles. Orson, em
filmes como Cidadão Kane, 1941, ou Uma história imortal, 1969, joga com a
impossibilidade de reter o abissal caminho de vulto humano ou de uma história contada no cais do porto para seduzir homens do mar.
Esses cineastas, em sua polimorfia criativa, haviam organizado potente
desrealização do espaço transparente diegético do cinema clássico narrativo ou Movimento de Institucionalização da Representação do Capital
Estadudinense.
Tais diretores buscaram a fatura de encenações e histórias alternativas,
segundo diferentes tradições espaciais: Jean Cocteau elabora espaços mágicos, oníricos e abissais, em sua não linearidade, tal qual a tradição da montagem inventiva surrealizante (XAVIER, 2005, p. 55). David Lynch assumirá
papel desconstrutor a seguir a tradição surrealista de borrar conexões ente
plots em obras como Cidade dos Sonhos, Blue Velvet e Império dos Sonhos
Jean Cocteau observa a transmissão surrealista em refinada cifra, como
na sequência do Hades, além do espelho, de seu filme Orfeu, 1949. A jornada
de Heurtebise e Orfeu ao mundo dos mortos seria uma cabal prova desse outro locus, ensaiado na encantória transformação do rumor do bagaço do real
do cotidiano pós-guerra francês em misterioso labor imaginativo, que embrica
reinvenção do mito ático e da leitura da morte como elemento atrativo da
2
O historiador Jonh Hill caracteriza a produção de Peter.
60 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
obra e do artista. Truffaut, cria de Genet, Cocteau e Bazin, replica tal impressão e conceito em seu derradeiro filme, Chambre Vert, e no terrorismo do
Uno em sua política dos autores.
Já Orson Welles possui a transmissão do espaço caótico, cindido e
nodular expressionista associada às tendências falsificantes de sua narrativa
derrisória e rigorosamente pertubadora sobre as operações de edificação de
narrativas de senso determinado e convocado pela pobreza da Ratio.
Derek Jarman: a cena de um écrivain dandy,
o semblante de um death worker
Em 1994, a face de Derek Jarman firmava-se fria e desfalecida sobre a superfície de um leito, em um aposento similar a uma cela monástica. Provavelmente, um nicho do Hospital São Bartolomeu. Os despojos do artista, consumido
pelo enfrentamento do vírus HIV, foram cremados e suas cinzas espargidas
e unidas, por amigos e assistentes, a malha pictórica de suas últimas telas.
Depoimentos visuais criados em amplo grau de cegueira. Nas últimas pinturas
do criador de Depuis le Jour, a mescla entre circuito vital, luta, morte e subjetivação do mais pessoal, corajoso e estetizante artista de sua geração, na visão
do curador e crítico Michael O´Pray e do teórico e cineasta Peter Wollen3 , faziam-se constatar como último ato indicado de enfrentamento de um dandy.
Na franja fúnebre das escrituras de encenação espacial e suspenção
temporal em filmes como Jubilee, 1978, The Tempest, 1979, Caravaggio,
1986, The Last Of England, 1989, Edward II, 1991, Wittgenstein, 1992, levam
Jarman a assumir um posicionamento de ato limítrofe político e estético em
seu discurso visual e recodificação do mundo dos inauditos do Reino Unido
(BROADHURST, 1999, p.115).
3
Para o entendimento da poética e vivência política da obra de Jarman, vemos Derek Jarmam:
artist, film-maker, designer, a portrait, organizado por Roger Wollem N, 1996, como obra fundamental. Grennaway e Derek Jarman como francas sinalizações tardias de alto modernismo, no
cinema inglês, a partir da quebra de paradigmas de diretores dream like, como Nicolas Roeg, em
Performance, 1969 e Ken Russel em The Devils, 1970. Cujos filmes amaneirados e reflexivos não
deixavam de comentar, alegoricamente, os traços epocais de uma nação tragada por descontentamento da classe operária, convulsão social e bombas terroristas em pubs.
ENCENAR A PELE INGLESA EM RÉQUIEM ICONOFÁGICO: O CIRCUITO ALEGÓRICO ...
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Como Susan Broadhurst pontua em seu livro Liminal Acts:
The connections between power and sexuality that run through Marlowe’s
life and work are drawn by Jarman with all deftness of a painter’s hand.
The simplicity of the story allows the film to present homosexuality as
the key term to the understanding of the structure of English society,
pointing to its“ discursive formation” as a desviant “object of discourse”…
Na década de oitenta, estrutura-se mais abertamente o State-of-thenation-films no Reino Unido. Tal periodização, no cinema inglês, observava diferentes práticas narrativas e temáticas de enfrentamento do governo
neoliberal da Dama de Ferro.
Dentro desse campo de embate, a obra de Derek Jarman surge como a
mais poderosa alegoria, codificada por Walter Benjamin, da ruína Inglesa, no
compasso estilhaçado do novo pacto econômico da sociedade.
Com orçamentos muito baixos e um forte pendor à interrogação do cinema clássico, segundo a tradição de vanguarda fílmica europeia e norte-americana, Jarman enuncia novas estratégias para um cinema de contradicção
(WOLLEN, 1996, p.76).
Assim, o sucinto ensaio irá investigar as criações da figurinista, já reconhecida pelo sistema de Hollywood, Sandy Powell para Caravaggio, 1986, e
Edward II, 1991.
A figurinista teatral, seguindo uma linhagem que envolvia a estilista
Vivienne Westwood, o iconoclasmo andrógino de David Bowie, do performativo Oscar Wilde e do artista e estilista underground Leight Bowery,
alçaria um novo estágio na criação de roupas de cena. Além dos sinais de
contracultura, Sandy Powell revisita a tradição pictórica pré-rafaelita inglesa e no movimento punk para criar a híbrida figuração de Miranda, filha do
poderoso Próspero, em The Tempest. Powell também vislumbra, entre fascínio e ironia, uma leitura do retorno crítico de uma demarcação de poder
e ostentação dos caminhos da haute couture francesa, na final da década
de oitenta. Tal visão impulsionaria a figurinista de Orlando,1993, Saly Potter, Reino Unido, a criar figurinos associados ao anacronismo canibalizante
de referências para atingir volumetrias, cartelas de cor e cruzamento de
cifras identitárias epocais, sustentados e permitidos por seu repertório autorreflexivo e alegórico, em sua prévia relação com o signo teatral.
Sua estratégia de figurinos como comentários de um mundo em putrefação, em Jarman, ajudava a tramar um vigoroso campo de espacializações na
encenação do realizador de Imagining October,1986, Inglaterra/Rússia, derivativas de Jean Cocteau e Orson Welles, como já foi explicitado. A criação do
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escritor, cineasta e ativista pelos direitos civis homossexuais conduz um ácido
circuito paródico da sociedade de pares ingleses. A paródia do traje do bom
burguês ainda era banhada pelo eclosão do New Romantic no rock inglês oitentista, como nos escombros repertoriais da cultura camp e punk.
Caravaggio e Eduardo II: o passado revela
o presente do Reino Unido, na violência
extremada no roto cenário da alegoria
Caravaggio, 1986, tem a pintura barroca como estopim para narrativa falsificante, livremente criada a partir das pinturas do artista oriundo dos vinhedos
de Caravaggio. A biografia falsa do pintor tenebroso apontava, como trama
basilar, para a intolerância do governo inglês, a partir da cláusula 28, que
proibia comentários a formas de sexualidade alternativas no universo de ensino na Inglatera. Desta forma, a pintura de Michelangelo Meresi Caravaggio
não poder ser lecionada como forma de exaustão do idealismo religioso e
início de uma longa jornada da entronização do corpo e da luz como bases
para a fatura pictórica, dada a sua ambiguidade sexual e feitos criminosos.
Na bela abertura do maior sucesso jarmaniano, vemos a agonia do artista, em um estoico quarto, espancado pelo som das ondas do mar e rica
malha off, em Porto Ercole, em 1610, na Itália.
Nessa imagem terminal, vemos o poder de convocação visual econômica e vigorosa de Jarman e Powell. Seguindo a ruptura com o ilusionismo
idealista, o pintor italiano representava suas obras a partir de modelos tragados das ruas, com suas roupas do século XVII. Neste filme, o modelo de
home movie4 consolida-se com a chegada de brilhantes atores como Niggel
Terry, presente no cinema britânico desde o final da década de sessenta com
Leão do Inverno, 1969, e a descoberta de Tilda Swinton, sem formação de
4
Grennaway e Derek Jarman como francas sinalizações tardias de alto modernismo ,no cinema
inglês, a partir da quebra de paradigmas de diretores dream like, como Nicolas Roeg, em Performance, 1969 e Ken Russel em The Devils,1970. Cujos filmes amaneirados e reflexivos não deixavam
de comentar, alegoricamente, os traços epocais de uma nação tragada por descontentamento da
classe operária, convulsão social e bombas terroristas em Pubs. Tal modelo apresentou-se na vanguarda norte-americana como em Stan Brakhage, Kenneth Anger, Paul Sharrits, Hollis Frampton,
Jonas Mekas e no cinema europeu dos primeiros títulos de Buñuel, as primeiras obras de Cocteau
através de mecenato e , finalmente, as mais ricas passagens da obra de Agnes Varda.
ENCENAR A PELE INGLESA EM RÉQUIEM ICONOFÁGICO: O CIRCUITO ALEGÓRICO ...
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atriz, que se tornaria musa e uma presença indicial, durante sete anos, até a
morte do realizador, em 19 de fevereiro de 1994.
Caravaggio causou abalo crítico e intelectual, primordialmente pela forma de espacialização: a obra de ficção é toda realizada em um modelo antinatural de um construtivismo de estúdio marcado por frágil estrutura de
dependências da sala inglesa alugada com problemas de captação de som
direto e outros transtornos.
Nascido na forma crepuscular de flor de estufa, o cenário como o de
Edward II e Wittgenstein tem um decoração elegantemente despojada, contudo extremamente formal. Com tapadeiras que emitam estuque ou concreto, chão sujo de terra, mobiliário escasso atemporal e estrategicamente
orquestrado para a câmera estática ou para o desenho de travelling. Ao mesmo tempo que os figurinos são tão sofisticados e provocativos cenicamente,
que se pode pensar estar em um set de produção de uma campanha de uma
grande grife de roupas ou que a moda, depois da década de oitenta, busca
o teatro e o cinema para novas apresentações de suas miragens sobre pele.
Caravaggio de Jarman teve apenas uma sequência externa: o corpo da
prostituta Lena filmado, no rio Tâmisa, através de uma moldagem bidimensional de um corpo feito de couro, em plano relativamente fechado. Nesta
imagem floresce a possibilidade da demarcação da bissexualidade de Caravaggio e do assombro poético do off: Look alone again..., que explode na
solidão do artista com a falsa modelo morta.
Da Escola de Artes do Parque Lage ao Moma, perguntava-se sobre os
anacronismos mágicos perpetuados por motocicletas, máquinas de calcular,
carros da década de cinquenta e máquinas de escrever, que eclodiam estrategicamente como parte do cenário ou na condição de objetos que roubavam a transparência da escritura histórica de um filme preso ao século XVII.
Além desses objetos coreografados com grave rigor de composição na
pequena área do estudio, viamos roupas que transitavam entre a tradição
mediterrânea de envelhecidas mulheres, de roupas da década de quarenta
costumizadas para Tilda Swinton e a década oitenta do século XX, em seu
excesso ou refino pop. Tais figurinos são embaralhados a criações de tendência espetacular segundo a volumetria e os padrões das roupas eclesiásticas ,
arrancadas dos quadros, como silhuetas do século XVII, como o importante
vestido de Lena, trazido por um enviado de uma grande casa de Alta Costura,
presumivelmente do século XX.
Filmes de vultos históricos e artísticos costumam ter a paz de relatar
práticas sociais arqueológicas e vestes criadas na cadência de exaustiva pesquisa de traços e matrizes de época. Essa afirmação estética desmancha-se
nas mãos demiúrgicas de Jarman e Powell: espaço indefinido, vestes em
64 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
louca poligrafia relatavam a crise da sociedade contemporânea universal e
a tomada de consciência de que a criação formalista já percebida na década
de oitenta do século XX apresentava fissuras em seu utopismo liberador e
transgressivo.
Depois de roteirizar dezessete vezes a trajetória dos quadros de Meresi,
Jarman resolveu fazer um filme sobre os impasses da solidão do artista moderno e de sua subjetivação à busca de uma companhia presa a uma ronda
perversa de mercadorias e melancolias, onde o artista, por vezes, passa a
reproduzir as relações de violência e poder do próprio mundo capitalista
(BERSANI e DUTOIT, 1999, p.57).
Em Eduardo II, 1991, acompanhamos o mesmo carárer de resposta reflexiva às práticas governamentais de busca de normatização da conduta sexual
do povo inglês. Se em Caravaggio, víamos a apresentação do valor da experiência homossexual para a arte clássica e sua trangressão, em Edward II, temos um raio X da sociedade e realeza inglesa nos séculos XIII e XX.
O trabalho de Sandy Powell auxiliou Tilda Swinton a conquistar seu primeiro grande prêmio como atriz, no Festival de Veneza.
A rainha Isabela começa o filme em sua tentativa de reaproximação de
seu esposo Eduardo em silhuetas minimalistas, camisolas femininas e em tecidos onde a seda parece buscar resgatar o vínculo amoroso perdido a partir
da presença do camponês Piers Gaveston como preferido do Rei. Conforme
a Rainha passa a se desesperar com a irritação do Rei com o novo decreto de
exílio de Gaveston, em sequência memorável, onde assistentes e costureiras
fazem o trabalho de composição de um belo vestido branco minimalista para
Rainha, tal modelagem é interrompida pela explosão do ódio de Eduardo II,
que encerra a cena com o desolador enunciado para uma esposa, mulher e
rainha: Touch Me Not!
Esse momento de desprezo fulcral leva a Rainha Isabela à percepção da
morte em vida e do desamparo de sua situação. Assim, à deriva, ela escolhe
apoiar os pares que detestam a figura de seu marido no poder e tornar-se
amante de seu mais grave opositor, Mortmier.
No caminho escolhido por Tilda, Jarman e Potter, primeiro a Rainha surge como pálida figura em camisolas e roupas de desenho minimalista, recolhida e estoica. No avanço do clima homoerótico, no Reino, Swinton une-se
aos mais violentos pares, o excesso torna-se sua marca de presença e poder.
Isabela sufoca em uma escalada de pesados figurinos de haute couture que
convocam imaginários femininos, desde Joan Crawford, Margaret Thatcher,
Imelda Marcos e Ivana Trump (BROADHURST, 199, p. 119).
Finalizando, com a lembrança formal de uma cena, que leva a sala de
exibição ao colapso.
ENCENAR A PELE INGLESA EM RÉQUIEM ICONOFÁGICO: O CIRCUITO ALEGÓRICO ...
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A Rainha Isabela participa de um interrogatório a Kent, irmão de Eduardo II, sobre os planos do irmão. Isabela procura, vestindo um grave casaco
de noite negro, o pescoço de Kent como se fosse iniciar um novo circuito
amoroso e erótico pertubador, porém a permanência de Isabela, em sua garganta, torna-se um assassinato, pois a jovem Rainha passa a rasgar as veias
de seu cunhado com os dentes e finaliza o movimento cuspindo o sangue do
agonizante Kent e limpando a boca borrada com imensa mancha de sangue
com um lenço alvo de linho. Expode a fantasia da Vagina Dentada e seu caminho de mortes e perdas.
Outra sequência memorável, a partir da escolha e semântica do figurino,
surpreende-nos quando Gaveston é reenviado ao exílio e tem um número musical com a andrógina cantora pop Annie Lennox cantando “ Every time we
say goodbye” , de Cole Porter, com Eduardo e Gaveston, dançando abraçados,
usando Marks and Spencers pijamas (BLACKMAN, 2009, 136), o que foi uma
escolha dos atores, diretor e figurinista para comentar o código Hays, que durante anos determinou o que se podia apresentar da vida sexual de um casal. A
escolha do tradicional pijama, além de um campo de estranhamento, demonstra como é impossível imaginar a roupa de despedida de um casal gay, que o
Estado acaba de decretar seu fim e extradição da parte camponesa e maldita.
Referências
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O cinema e a moda
– do dândi à celebridade
Elis Crokidakis Castro
Pós-Doutora em Literatura brasileira pela UFRJ. Doutora com bolsa sanduíche na
Universidade de Roma” la Sapienza” e UFRJ. Formada em Direito e Letras pela
UERJ. Leciona no curso de Cinema e Letras na Universidade Estácio de Sá. Pesquisa
atualmente a relação memória, literatura e história.
Para Luiz Edmundo Bouças
Em 1869, em publicação póstuma, Charles Baudelaire, o poeta e também crítico de arte, escreveu um artigo que ficou conhecido como “O pintor
da vida moderna”. Nele, Baudelaire trata não só das pinturas que recheavam
as galerias parisienses daquele tempo, mas vai dar luz sobre o momento
histórico e algumas figuras que serão exaustivamente estudadas quando se
analisa a cena finissecular do XIX.
Aqui, tomando como base a reflexão baudelairiana sobre moda e modernidade, nos ateremos a algumas questões que habitam a cena do final do
século XIX, a transição do século XIX para o XX e os seus desdobramentos,
através dos registros cinematográficos. Mostraremos como o cinema, que
nasce nesse contexto da modernidade, age como uma espécie de divulgador
da moda, colaborando para que esta, hoje, tenha tamanha importância na
sociedade pós-moderna.
O contexto e o modelo
Do meio para o fim do século XIX, temos o momento em que a civilização
europeia vive um aflorar de transformações. O capitalismo se apresenta
como o principal sistema econômico e o modelo burguês industrial começa a firmar-se. Espalham-se as ideias liberais. O inchamento das cidades industriais é fato refletido pelo grande número de operários que vivem em
condições sub-humanas. As ciências sociais desenvolvem-se assim como as
O CINEMA E A MODA - DO DÂNDI À CELEBRIDADE
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naturais com os métodos de experimentação e observação da realidade, que
passam a ser os únicos considerados como capazes de explicar o mundo
físico. Pensadores como Auguste Comte, Proudhon, Darwin, Marx, Engels e
Taine desenvolvem suas ideias em seus campos de experimento.
A arte reflete essas transformações da realidade utilizando-se também
de instrumentos óticos que são criados e favorecem a uma mudança do
olhar do observador. A subjetividade passa a contar no foco de quem olha.
Baudelaire, em 1859, é reconhecido como um dos criadores do termo modernidade, quando se refere à subjetividade do artista moderno. Ou seja, a
mudança do olhar, a tecnologia e outros fatores colaboraram para a também
criação nesse final de século da transmissão simultânea da imagem e do
movimento.
É nesse contexto que Baudelaire vai dizer:
“a moda deve ser considerada, pois, como um sintoma do gosto pelo ideal que
flutua no cérebro humano acima de tudo o que a vida natural nele acumula de
grosseiro, terrestre, e imundo, como uma deformação sublime da natureza, ou
melhor, como uma tentativa permanente e sucessiva de correção da natureza.
(...) Todas as modas são encantadoras, ou seja, relativamente encantadoras,
cada uma sendo um esforço novo, mais ou menos bem-sucedido, em direção
ao belo, uma aproximação qualquer a um ideal cujo desejo lisonjeia incessantemente o espírito humano insatisfeito” (BAUDELAIRE,1997, p.58)
Percebe-se que o termo mode (em francês), em português moda, refere-se a modelo, maneira de agir, de vestir, que se na modernidade assume
um papel importante – de levar ao ideal de beleza o indivíduo insatisfeitoque dirá na pós-modernidade, quando a moda além de satisfazer o indivíduo
se torna um dos grandes aliados da sociedade de consumo.
Assim a artificialidade, fruto da cena finissecular do XIX, permanece e
atinge o seu auge no fim do século XX, invadindo todos os espaços onde é
permitido não ser perpétuo. Ou seja, a moda é viva e exige uma dinâmica
que não se concilia com a perenidade, mas com a liquidez das coisas atuais.
Dessa forma, a figura mais emblemática a ser descrita será o dândi. Esse
personagem tem origem não muito definida, remonta à Inglaterra com o poeta
Lord Byron. Mas é no caminhar do século XIX que o dândi se firma, principalmente quando Baudelaire o descreve em seu texto, ligando-o a modernidade.
São várias as figuras célebres da história real e ficcional que são a encarnação do dândi. Só a título de exemplo o Conde D’orsay (1801-1852), os
escritores Eugene Sue (1804-1857), Baudelaire (1821-1867), Oscar Wilde
(1854-1900), Gabrielle Danuzzio, Rubens Dario, João do Rio, Santos Dummont, os personagens Julien Sorel (Vermelho e negro – Stendhall), Henry
de Marsay (A comédia humana – Balzac), Des Essentes (As avessas – J.K.
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Huysmans), Lord Henry e Dorian Gray (O retrato de Dorian Gray - Oscar
Wilde), Monsier de Phocas (Monsier de Phocas – Jean Lorrain), O barão
Charles (Em busca do tempo perdido – Proust), Gonçalo (Quadragésima
Porta – José Geraldo Vieira).Todos esses nomes são de figuras que têm algo
que os torna semelhantes:
“homem rico, criado no luxo cuja profissão é a elegância. Sua única ocupação é
cultivar a ideia do belo em sua pessoa e satisfazer suas paixões, sentir e pensar.
Não visa o amor como um fim em si, e dinheiro para ele é indispensável para o
cultuar das próprias paixões” (CASTRO, 2004).
E nesse caminho o vestuário do dândi é o que mais chama atenção.
Segundo Catharina (2006, p.63), a etimologia da palavra dândi em francês difere então do sentido da palavra em inglês. Na Inglaterra, o termo era
usado para designar um grupo de jovens da alta sociedade que ditavam
moda, o que depois no romantismo veio a se desdobrar na França em “homem elegante que pretende seguir rigorosamente as modas” e “personagem cujo refinamento mostra um inconformismo e uma busca ética fundada no desprezo das convenções sociais e da moral burguesa”(CATHARINA,
2006, p.63).
O termo então vai sofrendo variação no que toca ao seu sentido, mas
tal variação leva em conta o fato de ser o dandismo para alguns fruto de um
momento histórico que coincide com as mudanças da sociedade europeia
pós-revolução francesa transbordando para o fin-de-siècle.
Pensamos assim que falar de dandismo não é falar de um movimento
com manifesto, programas, “nem se trata de uma moda passageira. Trata-se,
no fundo, de uma espécie de estado de espírito inusitado e transgressor que
condiciona algumas mentes(...) a verem de forma singular certos aspectos
da vida, tais como o dinheiro, a política, a arte, o amor, o belo”(CASTRO,
2006, p.225). Repetindo Baudelaire, ser dândi é ter “a necessidade ardente
de alcançar uma originalidade dentro dos limites exteriores das convivências” (BAUDELAIRE, 1997, p.49).
A figura do dândi, então, é aquela que traz o belo fugaz da moda em
oposição ao belo clássico. A moda é um elemento que faz parte do contexto
da modernidade e de tudo que vem posteriormente a esta. Para Baudelaire
e, “trata-se (...) de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno no transitório” (1995, p. 1163).
Logo, a moda será o representante da exibição dos valores da sociedade
burguesa e moderna. A moda, nos diz Catharina, é fruto do dinheiro e não
participa de um mesmo sistema de trocas, já que gasto inútil, não utilitário, é
o culto do fugaz e do provisório.
O CINEMA E A MODA - DO DÂNDI À CELEBRIDADE
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Em suma, é importante dizer que para Baudelaire a modernidade tem
duas partes; uma transitória, efêmera que é a da arte; e a outra que é eterna e
imutável, ou seja, parece paradoxal. Mas a figura do dândi e sua moda acabam
por tentar minar o modelo de dentro dele. Explico, o dândi com sua identidade
singular pontua de “forma irônica e mordaz, a desordem das coisas e se coloca
em cena em tensão com o capitalismo” (BAUDELAIRE, 1997, p.68). Ele é uma
figura do capitalismo finissecular, mas que de dentro desse mesmo capitalismo
critica e contesta seus valores, mostra que algo não era o que parecia ser.
Por isso a forma irônica e crítica do dândi, a sua moda, permanecem durante o início do século XX. E a ideia de moda atravessa os séculos e o meio
de comunicação específico responsável por isso foi o cinema.
Assim, se a moda foi o representante da exibição dos valores burgueses, o
cinema foi seu aliado fiel, que eternizará os modelos, as estrelas, não só criando modas mas também divulgado-a. Por isso a relação do cinema com a moda
é íntima, sem contar seu aspecto histórico, que o registro das imagens possui.
Os modelos e o cinema
Nessa segunda parte, o foco desvia-se para o cinema, esse aliado fiel da
moda.
No livro “As estrelas – mito e sedução no cinema Edgar Morin analisa
os elementos, as condições psicológicas, sociológicas e econômicas do star
system, este modelo é o que foi capaz de criar a figura da estrela, esta que
se torna, diz Morin, alimento dos sonhos.
Estrela, diz o estudioso, “são seres ao mesmo tempo humanos e divinos, análogos em alguns aspectos aos heróis mitológicos ou aos deuses
do Olimpo, suscitando um culto, mesmo uma espécie de religião” (MORIN,
1989, p.x)
Todavia, ao contrário da tragédia aristotélica, o sonho, que é o que a
estrela cria, não provoca a catarse, mas nos aproxima obsessivamente de
nossos fantasmas (MORIN,1989, p.97). Dentro dessa ótica, o papel da estrela
de cinema é então polarizar e fixar obsessões. Serão então as estrelas que
conduzirão “nossos atos, gestos, poses, atitudes, suspiros de êxtase, lamentações sinceras(...)”(MORIN, 1989, p.97): logo, todas essas formas representacionais (miméticas) serão também vistas no vestuário.
Assim, diz Morin, antes de 1914, época do auge do cinema francês no
mundo, quando um filme novo era apresentado numa capital, logo os modelos de vestidos e roupas eram copiados pelas mulheres elegantes. Desde
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essa época e depois com Hollywood é que a influência na moda se dá pelas
estrelas. Ou seja, a massa do público vê nas estrelas e na sua moda uma maneira de se assemelhar à elite. Naturalmente, a estrela, sendo “ arquétipo ideal
superior e original, orienta a moda. Ela é o que permite à elite diferenciar-se
dos comuns, daí seu movimento perpétuo, e o que permite aos comuns se
assemelharem à elite, daí sua difusão incessante” (MORIN, 1989, p.98).
Dessa forma, em 1930, o costureiro Bernard Waldam teve a ideia de capitalizar essa tendência (interesse do público pelo que as estrelas vestiam).
O costureiro lança no Modern Merchandising Bureau os Screen Star Styles
e as Cinema Modes, padroniza e espalha no mercado um gênero de roupa
inspirado em filmes de sucesso.
São as estrelas de cinema que farão a “vanguarda das grandes tendências
da moda, quebrando ou suavizando os tabus vigentes” (MORIN, 1989, p.98).
Exemplo disso é que, em 1941, atrizes de Hollywood adotam tecidos e
roupas masculinos (tweeds, shorts, camisas), enquanto as estrelas masculinas usavam tecidos e cores até então próprios às mulheres. Logo, nos diz
Morin, uma estrela é capaz de derrubar um dogma no reino fashion.
Clark Cable, no filme Aconteceu naquela noite, aparece nu sob camisa.
Essa cena é tão devastadora na venda de camisetas que o sindicato dos fabricantes de malhas pediu a eliminação da cena anticamiseta, nos relata o
crítico. (MORIN, 1989, p.98).
Esse fenômeno (vendas x cinema) podemos dizer que ainda persiste e
está longe da acabar. Cada dia mais vemos as estrelas participarem de anúncios de produtos de toda sorte; higiene, cosméticos, xampu, sabão em pó,
supermercados, bebidas, carros etc, e hoje os anúncios atingem muito mais
consumidores pela televisão.
A difusão da imagem de alguma estrela, e hoje também, celebridade,
vestindo uma determinada marca de roupa, faz a venda aumentar significativamente, a ponto de emissoras de televisão abrirem setores de vendas de
produtos, na maioria roupas e acessórios que são usados nas novelas.
Ainda copiando a década de 50, quando jornalistas ficavam em
Hollywood para coletar informações, fofocas e confidências sobre estrelas,
temos hoje os paparazzi que vivem perseguindo qualquer tipo de celebridade para tirar fotos e mandar para jornais, revistas, sites da internet. Parece
então que a figura da estrela transbordou da pessoa do ator e atriz de cinema, indo também para atores de televisão, jogadores de futebol, esportistas
e qualquer outra pessoa que apareça na mídia por mais de um minuto.
Para usar uma observação de Morin, “a vida privada (das estrelas) é pública, sua vida pública é publicitária, sua vida na tela é surreal, sua vida real é
mítica” (1989, p.xv).
O CINEMA E A MODA - DO DÂNDI À CELEBRIDADE
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Todo esse mecanismo de utilização da imagem da estrela sem dúvida só
pode ser compreendido quando analisamos alguns fatores como: as relações
que existem entre espectador - espetáculo, os processos psicoafetivos de
projeção-identificação, a relação entre economia capitalista e o sistema de
produção cinematográfica e audiovisual, a evolução sócio-histórica da sociedade burguesa.
Essa relações, identificadas por Morin, uma vez estudadas é que esclarecem como a partir daí a moda atingiu os patamares que hoje a sustentam.
Todo espectador quando vê uma estrela pensa que ele também poderia
sê-lo e isso é endossado pela mídia, vistos os milhões de escritos em programas tipo BBB, vista a publicidade em torno de uma casamento real recente
enfatizando o fato da noiva ser uma plebéia, enquanto se multiplicavam as
vendas das roupas usadas por essa mesma noiva princesa plebeia. Basta a
princesa aparecer com um modelo novo que toda terra, 2 horas depois, já o
copiou, dada a facilidade de veiculação das imagens hoje.
Nossa sociedade, então, parece estar o tempo todo em busca de uma
nova figura que a faça identificar-se para copiar seus modelos. Modelos de
estrelas tipo Marilyn Monroe, Grace Kelly, Ava Gadner, Brigite Bardot, Sofia
Loren, Ingrid Bergman, Caterine Deneuve e outras eram o foco dos anos 50
e 60, hoje, como já dissemos, convivem essas estrelas “clássicas” e mais toda
sorte de atrizes locais, pessoas da mídia, pessoas do esporte, celebridades de
um minuto etc.
Podemos dizer que os veículos midiáticos, cinema, televisão, internet
tenham, no século XXI, aumentado ao máximo o poder, ou o mito das estrelas, ou seja, achamos que a definição de estrela, que antes cabia para as atrizes de cinema, atualmente foi substituída pela abrangência do que chamam
celebridade e no meio disso talvez tenhamos perdido algo.
Antes eram atrizes talentosas, belas ou não, hoje não precisam ser nada;
a celebridade (que assim se torna por aparecer na mídia) vende qualquer
coisa da moda, qualquer tipo de produto, ou sua própria imagem que vende
por si só. Vide revistas que apenas têm imagens de gente numa ilha.
A maior eficácia da estrela, ou celebridade, em venda, no entanto, diz
respeito a mercadorias de magia erótica, como cremes, xampus, cosméticos,
maquiagem, roupas. Ou seja, o xampu das estrelas, o sabonete, pois todos
querem ser iguais a elas, usando os mesmos produtos, mesmo sendo isso
uma ilusão.
Daí modelos como Gisele Bündchen, exemplo de aumento de vendas,
que faz tudo que anuncia virar febre, sandálias, xampu, TV a cabo, loja de
roupas, todos aumentaram muito suas vendas.
74 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
No esporte isso é ainda mais significativo, gerando contratos milionários, jogadores que vestem determinada marca, grandes grifes como Nike,
Adidas, Gucci etc, exaltando a roupa, sua moda e também sua juventude.
Assim “a estrela é, essencialmente, padrão-modelo” (MORIN, 1989, p. 101).
Os processos psicoafetivos de projeção-identificação são então usados
pelo cinema para fazer difundir a moda e isso não é mais involuntário, mas
voluntário, sendo o alvo principal o jovem e a mulher.
Os jovens, diz Beatriz Sarlo, “até 1960, imitavam, estilizavam, ou no máximo, parodiavam o que era simplesmente a moda” (SARLO, 2004, p.38),
somente hoje, é que se vê uma moda para jovens ser difundida no cinema.
Assim, o jeans e a minissaia foram as primeiras peças desse universo de consumo que garantiram aos produtores de roupa mais um mercado voraz de
consumidores. Atualmente, esse mercado só cresce com o endeusamento da
juventude . As estrelas então vêm agora imitando os modelos jovens.
Ou seja, sem dúvida, é a conquista de um público em formação, que vem
construindo sua identidade, um público mais fácil de moldar dentro de um
modelo preestabelecido.
Assim, nosso passeio pelos séculos XX e XXI, iniciado no XIX, chega ao
seu final sabendo não ter sido um ensaio esgotativo de tema tão vasto em
suas conexões.
Todavia, é importante que a visualização do elo entre cinema e moda não
se perca, já que aquele foi uma dos maiores propagadores desta. Se no início
focamos a figura do dândi como o ser paradoxal que usa a moda para criticar o
sistema de dentro deste, no segundo momento pensamos que o star system,
através do cinema, colaborou concretamente em todo o século XX para a difusão de modelos de vestuário, de carros, de governos etc, e no século XXI ele
continua a colaborar. Trata-se então de um veículo que não só difunde ideias,
mas que também potencializa a venda de qualquer tipo de produto.
Por fim, não é apenas a moda em sentido estrito de vestuário que usufrui
do cinema, da televisão, da internet, mas a moda em sentido amplo de modelo, de forma de forma de agir, de fazer, de construir, de viver, de governar.
Em suma, no modelo econômico vigente, a moda e a imagem em movimento (seja em que veículo for) estarão sempre juntos e serão sempre
considerados, pois acima de tudo, geram o que mais interessa: o lucro.
O CINEMA E A MODA - DO DÂNDI À CELEBRIDADE
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Referências
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Anotações sobre cinema
e moda: recortes e costuras
a partir do documentário de Wim
Wenders sobre Yohji Yamamoto
Andréa Estevão
Professora Assistente da UNESA. Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/
UFRJ. Organizadora do livro Comunicação e Imagem. Conteudista da disciplina Estética da Imagem.
Este artigo é uma leitura do documentário Notebook on Cities and Clothes, de Wim Wenders, sobre o estilista japonês Yohji Yamamoto. Acompanhamos o cineasta na discussão que ele propõe sobre a questão da identidade, sobre os impactos das transformações tecnológicas no cinema, sobre os
efeitos da globalização nas cidades no contexto da pós-modernidade. Nesse
percurso investigativo, pontuamos impasses e soluções narrativas, novas experiências de linguagem e pontos de afinidade entre a confecção da moda e
a composição da tessitura fílmica.
Passados mais de 20 anos, o documentário Notebook on Cities and
Clothes,1 de Wim Wenders, sobre o estilista Yohji Yamamoto ainda aponta caminhos e reflexões convidativos sobre cinema, sobre moda e sobre as
tessituras possíveis do cinema com a moda no contexto que alguns autores
denominam como pós-modernidade (HALL, 2002), (HARVEY, 2001), outros
como hipermodernidade (LIPOVTSKY, 2004), ou ainda como modernidade
líquida (BAUMAN, 2001). Wenders propõe, logo de início, reflexão sobre a
questão da identidade na contemporaneidade de profundas mudanças e de
grande pluralidade, mobilidade, instabilidade. O questionamento radical que
ele empreende confronta a falência de vários paradigmas.
O ponto de partida e eixo de tensão do documentário será a interrogação sobre a criação e suas possibilidades nos dois universos em questão. Universos atravessados pela vertigem das transformações: o cinema se depara
1
Lançado em DVD pela Europa Filmes em 2007 com o título Identidade de Nós Mesmos.
ANOTAÇÕES SOBRE CINEMA E MODA: RECORTES E COSTURAS ... |
77
com as tecnologias digitais, linguagens, modos de produzir e editar imagens,
que abalam o cerne da sua própria identidade como produção cultural, como
representação de mundo, e a moda se reinventa, anualmente, na sazonalidade das estações, num diálogo mais ou menos fluente com as exigências,
necessidades e desejos, do aqui e agora, de quem está no mundo.
Quais as aproximações possíveis desses dois universos? De que forma
a investigação sobre o processo criativo no universo da moda pode indicar
caminhos para a investigação do cinema e suas novas formas de produção?
O que se pode esperar de potência poética nesses dois universos e na relação entre eles?
Poiesis2 cinematográfica
O documentário Notebook on Cities and Clothes é resultado de um convite
do Centro Nacional de Arte e Cultura Georges Pompidou, de Paris, para que
Wenders fizesse um documentário sobre o mundo da moda. O fato de o
filme ter sido motivado por uma demanda externa não impede que as recorrentes preocupações temáticas e estéticas de Wenders estejam presentes,
a saber: o outro como diferença, a questão identitária, o deslocamento, a
imagem, a vida nas cidades.
Notebook on Cities and Clothes (1989) é o terceiro documentário que
resulta do processo de elaboração de uma série de filmes qualificados como
“diários filmados”, projetos experimentais empreendidos de forma paralela
aos filmes de ficção. Os dois primeiros são: Chamber 666 (1983), produzido durante o festival de Cannes de 1982, onde Wenders propõe que vários
cineastas falem sobre a possível morte do cinema; e Tokyo Ga (1984), documentário sobre o cineasta Yasujiro Ozu, paixão formadora tardia, mas profunda. Em Tokyo Ga, Wenders comenta sua necessidade de partir em busca
do universo filmado por Ozu, especialmente o do filme Viagem a Tóquio, de
1953. Wenders se preocupa com o destino das imagens significativas diante
do excesso de imagens televisivas, ele quer encontrar traços da cidade de
Tóquio que resistiram ao tempo, ele busca a essência da cidade que julga ter
sido captada por Ozu.
Trabalharemos aqui com a constelação de sentidos que o termo evoca, particularmente a ideia de realização, produção criativa, transformação, dimensão do fazer que
tem por excelência a arte.
2
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Esses “diários filmados” são diários de pesquisa, que partem de inquietações temáticas e estéticas pessoais. Não se trata de investigação científica,
nem documentário etnográfico ou de observação. No caso de Notebook on
Cities and Clothes, o questionamento explícita e pessoalmente enunciado é
sobre a identidade num sentido amplo: identidade das coisas, das pessoas,
dos lugares, das imagens. Wenders questiona como quem está profundamente afetado pelos descentramentos da modernidade tardia e seus efeitos
(HALL, 2002), pela fragmentação da experiência subjetiva, pelas mudanças
tecnológicas na produção imagética, pelas transformações na cultura e nas
cidades no contexto da globalização.
Wenders reflete sobre a transformação nas formas de produzir imagens
e sua crescente complexidade. Segundo ele, o cinema e a fotografia são mais
complexos que a pintura. As tecnologias eletrônicas e as digitais são ainda
mais complexas que o cinema e a fotografia. Wenders critica as imagens eletrônicas3 como as responsáveis por uma multiplicação explosiva, “inferno de
imagens” que prolifera num fluxo em que a fotografia, que se caracterizava
pela dualidade original/cópia, é substituída pelo vídeo: “A própria ideia de
original ficou obsoleta. Tudo é cópia”. Segundo Wenders, “todas as distinções se tornaram arbitrárias” ao ponto de afetar a questão da identidade:
“Como reconhecer a identidade? Criamos uma imagem de nós mesmos e
queremos nos assemelhar a ela. O que é identidade: o acordo que fazemos
com as imagens que criamos de nós e nós mesmos?” As tecnologias de imagem, ao se transformarem, alteram também as linguagens, os hábitos, as
mediações que estabelecemos com as imagens e o mundo, com as imagens
e nós mesmos (SANTAELLA, 2007).
Essas e outras questões mais do que nunca pertinentes4 sobre identidade e imagem compõem a abertura do documentário, numa trama audiovisual em que a presença dos pixels e do “chiado” da tela vazia é propositalmente
evidente e funciona como suporte para o texto escrito que é, ao mesmo
tempo, narrado em voice over e off pelo próprio Wim Wenders.
3
Os anos 80 do século XX foram marcados pela descoberta em massa do meio vídeo, com
câmeras e aparelhos de vídeocassete a preços acessíveis, e também do surgimento do controle
remoto. É o momento que Lucia Santaella nomeia como era cultural do disponível e do transitório (2007), em que a plateia passiva dos meios de comunicação de massa começa a ganhar
autonomia, ter mais possibilidades de escolha e a experimentar o lugar de produtor de bens
audiovisuais – as famílias começam a adquirir câmeras de vídeo para gravar suas festas, passeios
e o crescimento dos filhos.
4
Vide os usos que vêm sendo feitos das imagens, principalmente fotográficas (digitais, ou digitalizadas e editadas com softwares específicos), nos perfis das redes sociais na internet.
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79
Apesar do tom apocalíptico que sugere o risco de desaparecimento do
que tradicionalmente compreendemos por cinema, da relação que somos forçados a estabelecer com as imagens eletrônico-digitais (“Aprendemos a confiar na imagem fotográfica. Podemos confiar nas imagens eletrônicas?”), Wenders se lança na investigação prática de suas questões, abraçando o desafio
de usar os mesmos recursos tecnológicos que critica. Ele produz o documentário utilizando imagens captadas em película, imagens de vídeo e fotografias,
num jogo de composição e tessitura que faz da sua narrativa uma narrativa de
linguagens e tecidos imagéticos híbridos com justaposições e superposições
paradoxais e irônicas, se tomadas à luz do seu próprio discurso interrogativo
e crítico. Wenders, ainda que desconfiado, ingressa na era da cultura das mídias, onde mistura e convergência midiática são pedra de toque (SANTAELLA,
2003 e 2007).
Tensões e paradoxos estão presentes em vários momentos do documentário: na abertura, quando destaca os pixels da imagem eletrônica, ao mesmo
tempo em que a desqualifica verbalmente; ou quando apresenta, por exemplo, duas imagens simultâneas de autoestrada, feitas de dentro de um carro
em movimento com câmeras diferentes. A justaposição deixa claro que uma
é vídeo, e a outra, película. O que fica óbvio é que semelhança não define
identidade, e nesse ponto a provocação é tanto sobre a natureza das imagens quanto sobre o aspecto das grandes cidades no contexto da globalização
(até que ponto Paris se assemelha a Tokio, ou as grandes cidades todas se
assemelham entre elas?). Em alguns momentos, Wenders além de explicitar
diferenças que reconhece na lida com câmera de cinema e câmera de vídeo,
admite a vantagem da câmera de vídeo como recurso menos invasivo quando
se dedica a registrar o cotidiano de Yamamoto e a equipe na preparação de
uma nova coleção de moda.
No contexto de múltiplas mudanças, a identidade, aos olhos de Wenders, está fora de moda. E o que está na moda é a própria moda. Ao enunciar essa asserção, ele sintetiza o espírito leve e líquido dos novos tempos
(BAUMAN, 2001) e esboça a crítica que é feita à moda como ocupação e
preocupação leviana.
Na década de 60, Roland Barthes se queixava tanto do preconceito que
a moda sofria como objeto de investigação acadêmica quanto do tipo de
pesquisa feita sobre moda, pautada por historiografias que deixavam de fora
a dimensão sociológica e comunicacional da moda. Passados mais de 20
anos, em 1987, Lipovetsky lança O império do efêmero, livro em que defende
a necessidade de reavaliar a moda como objeto de investigação, livrando-a
dos estereótipos da frivolidade e da busca desenfreada por distinção social.
Ele admite os paradoxos e ambiguidades em que a moda se inscreve – a criação de mitos, o excesso de informação com finalidades meramente mercadológicas e esvaziadas de convite à reflexão. Mas se, por um lado, reconhece
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os aspectos negativos, por outro, defende a moda como responsável por
livrar a humanidade do fanatismo e do obscurantismo, por conduzir os indivíduos na vereda da autonomia e da participação democrática, ainda que de
uma democracia individualista e liberal. Em pleno século XXI, o preconceito
persiste, como nos dá notícias Frédéric Godart em seu livro Sociologia da
Moda, lançado na França em 2010, em que defende a importância da moda,
de acordo com Marcel Mauss, como fato social total. (2010: 17)
Wim Wenders, por sua vez, ao ser convidado para elaborar um documentário sobre o mundo da moda, narra sua reação inicial de resistência para, imediatamente depois, suspender o preconceito recorrente de que a moda não é
assunto sério. Wenders assume que a moda é um objeto legitimo de investigação e diálogo, assim como outros que se inscrevem nas tensões entre criação,
produção industrial e mercado, como é, também, o caso do cinema.
As metáforas para narrativa sempre tiveram suas vinculações com o universo têxtil. Os tecidos narrativos são feitos de perguntas, de fios de raciocínio escolhidos dentre os disponíveis, e são os cortes, recortes e as possibilidades de costura, de composição, que permitem a apresentação de ideias, a
confecção de algum conhecimento sobre o que nos afeta, inquieta, surpreende. Procuramos acima percorrer aspectos do documentário Notebook on
Cities and Clothes pontuando os elementos materiais e imateriais a partir
dos quais Wenders tece sua obra, sua peça narrativa.
Resta uma pergunta inquietante: por que Wenders escolhe Yohji Yamamoto como personagem que lhe permite explorar os meandros do mundo
da moda? Seria porque Yamamoto se destaca na década de 80 como um
dos três grandes estilistas japoneses que despontam no cenário internacional da moda,5 até então dominado por costureiros europeus? Seria porque
Yamamoto sempre contestou publicamente a espetacularização midiática e
publicitária da moda, qualificando as coleções que ele próprio cria como anti-moda? Ou seria porque Wenders busca afinidades entre Ozu e Yamamoto
no sentido de delinear aspectos da identidade cultural japonesa que são caros a ele? Podemos conjecturar, mas não há como saber exatamente. Essas
indagações, entretanto, parecem um caminho privilegiado para conhecermos
melhor tanto o processo criativo e o estilo de Yamamoto quanto os de Wenders, ele mesmo.
5
Yohji Yamamoto é estilista de alta costura, nascido em Tóquio em 1943, e um dos grandes
representantes da moda japonesa ao lado de Issey Miyake e Rei Kawakubo. Conhecido internacionalmente, possui ateliês em Tóquio, Paris e Nova York, e além de alta costura, produz roupas
esportivas para a marca Y3, da empresa alemã Adidas.
ANOTAÇÕES SOBRE CINEMA E MODA: RECORTES E COSTURAS ... |
81
Poeisis da moda
Um criador do universo da moda não trabalha apenas com moldes, com linhas, tesoura e panos de múltiplas texturas. Embora a dimensão material,
tátil e visual da moda seja fundamental e de certa forma evidente, o designer
de roupas, ao conceber as peças da sua coleção, se depara, necessariamente, com perguntas sobre o sentido do vestir-se, sobre a dimensão simbólica
do vestuário e da moda. Essas e outras perguntas mais pessoais ou específicas estarão inscritas na vestimenta pronta, mas nem sempre são esses os
aspectos que a mídia nos dá a conhecer.
O documentário de Wenders combina, principalmente, entrevistas com
tomadas no ateliê do costureiro. Essas tomadas acompanham o processo de
concepção e de elaboração de uma de suas coleções. Em vários momentos ficará evidente que a seleção de imagens, falas, elementos em cena, próprios da
personalidade criativa de Yamamoto, coincidem com os interesses e inquietações de Wenders. O que resulta é um discurso em que as afinidades e pontos
de identificação estão em destaque, características que contrariam a ideia de
objetividade de um documentário clássico, mas absolutamente compatíveis
com a verve experimental de um diário filmado. As cenas em que tomamos
conhecimento do interesse de Yamamoto por fotografia como fonte de inspiração e estudo é um exemplo. Wenders capta Yamamoto folheando o livro
Men of the 20th Century, de August Sander (fotógrafo alemão que retratou
trabalhadores e pessoas comuns no começo do século XX), enquanto comenta sobre a importância da roupa como elemento de identidade.
Wenders simpatiza com as preocupações de Yamamoto sobre o essencial na vestimenta, o silêncio e a economia num contexto cultural de excessos: a escolha do preto como a garantia da atenção ao que é importante na
roupa, ou seja, o corte preciso e o caimento; a tensão entre o fundamental e
o temporal, descartando o meramente performático, o que não é mudança
estrutural que se experimenta no espaço e no tempo, na rotina da vida na cidade. Subverter os sentidos do vestir bem que estão associados ao glamour, à
produção de mitos e de aura, e considerar o conforto e a elegância do simples,
o assimétrico, o corpo imperfeito como inspiração são posturas defendidas
por Yamamoto que também ganham destaque no documentário de Wenders.
Roland Barthes (2005: 264-265) nos lembra, em seus artigos sobre
moda, que o homem não inventou o vestuário apenas por pudor, necessidade de se proteger ou se enfeitar. Ele defende enfaticamente que a mais
importante função do vestuário é sua dimensão profundamente social, de
82 | IMAGINÁRIOS DE CINEMA E MODA - II ENCONTRO DE CINEMA UNESA
comunicação, de significação. Ao escolher o que vestir, o homem e a mulher
selecionam sentidos a comunicar, mesmo que esses sentidos sejam construções míticas, fantasias disseminadas pela publicidade direta ou indireta
expressas nas páginas das revistas ou nos editoriais de moda da TV a cabo.
Mas a dimensão simbólica do vestuário não se restringe à necessidade
ou ao desejo de comunicação do seu usuário, da sua necessidade de distinção ou inserção social nos mais diversos grupos em que deseja ser aceito ou
reconhecido. Há, segundo Peter Stallybrass (2008:10), um valor simbólico das
vestimentas ligado ao seu uso, às marcas que imprimimos nas nossas calças
e casacos. As roupas são, portanto, além da possível expressão do estilo pessoal, delicadas e pungentes reservas de memórias. Podemos identificar nessa
expressão da vestimenta uma dimensão poética. Canclini (2004:33-34), para
dar conta dessa dimensão de significação particularizada dos objetos, faz referência ao que Baudrillard denomina como valor de símbolo.6
A roupa parece sustentar pelos menos três dimensões poéticas: a sua
concepção e criação estético-artística, peça de estilo, elemento da moda; a
vinculada ao valor de uso das peças do vestuário - valor que a vestimenta adquire das marcas concretas e semânticas de quem a usa e da memória que
esta guarda de seu usuário; e a sua concepção como figurino, seja no teatro,
na dança, no cinema. Dessas três, o figurino é a que está mais intrinsecamente ligada ao cinema, mas não é dessa dimensão que Wenders deseja
tratar, mesmo Yamamoto já tendo criado belíssimos figurinos para os filmes
Brother e Dolls, do cineasta japonês Takeshi Kitano.
A dimensão poética vinculada ao valor de uso, ou ao que pode haver de
simbólico nessa dimensão, geralmente é negligenciada na sua importância.
O documentário Notes on Cities and Clothes, de Wim Wenders, nos permite
tomar conhecimento de que o costureiro Yohji Yamamoto está atento a essa
dimensão. Isso ficará claro quando Yamamoto afirma que nossa relação com
as roupas deve ser como um encontro, um abraço de amigo, deve trazer a
sensação acolhedora de vestir o velho casaco disponível no armário, o casaco amigável, quando o inverno chega.
À guisa de considerações finais, podemos dizer que Wenders veste a
camisa de Yamamoto e essa observação não é metafórica. Wenders considera como parte da sua investigação sobre a moda que faz Yamamoto usar
as roupas que ele cria. E sobre essa experiência ele nos conta:
6
Canclini se refere ao que Baudrillard denomina de valores de significação dos objetos – valor
de signo e valor de símbolo –, tal qual aparece, no livro Crítica da Política Econômica do Signo,
texto em que Baudrillard complexifica a distinção marxista de valor de uso e de valor de troca
da mercadoria.
ANOTAÇÕES SOBRE CINEMA E MODA: RECORTES E COSTURAS ... |
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Meu primeiro contato com Yamamoto foi, num certo sentido, uma experiência
de identidade. Comprei uma camisa e um casaco. [...] Desde o primeiro momento, eles eram novos e velhos ao mesmo tempo. No espelho eu vi a mim, mas
melhorado. Mais “eu” do que antes. E tive uma sensação estranha: eu estava
vestindo a camisa “em si mesma” e o casaco “em si mesmo”. Dentro deles eu era
“eu mesmo”. Me sentia protegido como um cavaleiro em sua armadura. [...] Esse
casaco me recordou minha infância e meu pai, como se a essência dessa memória tivesse sido costurada na peça. Não nos detalhes, mas como se trançada
na própria trama do tecido. O casaco era a tradução literal desse sentimento e
expressava “pai” melhor do que as palavras.
A enunciação de seus questionamentos, impasses, contradições, bem
como suas decisões, métodos e discurso, anunciam que a motivação que
anima o filme não está oculta ou implícita, mas é literal e explicitamente parte do documentário, a pesquisa e seu resultado são imagens. Wenders defende com sua proposta que pesquisa e documentário têm autoria, não são
neutros, que não há lugar neutro e distanciado para falar sobre o mundo – só
se fala do mundo no mundo. Essa presença do cineasta na cena, suas dúvidas, sentimentos e pré-conceitos se inscrevem num tipo de experiência de
documentário que Nicholls qualifica como performática (2010: 137). Postura
compatível não só com os anseios de cineastas afeitos à experimentação,
como é o caso de Wenders, mas também como índice, na produção cultural,
a partir da década de 80, da crise do sujeito iluminista, racional, produtor de
conhecimento que se pretende completo e verdadeiro. Em tempos de fragmentação e descentramentos, o que Wenders, com sua obra, parece apontar como caminho é o enfrentamento das angústias e das dúvidas através de
um exercício produtivo de interpretação criativa, de realização, de poiesis.
Referências
BARTHES, Roland. Imagem e Moda. Inéditos vol. 3. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2005.
BAUDOT, François. Yohji Yamamoto. São Paulo: Ed. Cosac e Naify, 2000.
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
BHABHA, Homi. O Bazar Global e o Clube dos Cavaleiros Ingleses. Rio de Janeiro: Ed. Rocco,
2012.
CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, Desiguais y Desconectados: mapas de la interculturalidad.
Barcelona: Gedisa Editorial, 2004.
CONTRACAMPO: Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Dossiê: Comunicação e Documentários. Niterói, 2007.
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GODART, Frédéric. Sociología de la Moda. Buenos Aires: Edhasa, 2012.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP & A Editora, 2002.
LIPOVETSKY, Gilles. Os Tempos Hipermodernos. São Paulo: Ed. Barcarolla, 2004.
LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero: a moda nas sociedades modernas. São Paulo: Cia
de Bolso, 2011.
MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. São Paulo: Ed. Papirus, 2010.
SANTAELLA, Lucia. Linguagens Líquidas na Era da Mobilidade. São Paulo: Ed. Paulus, 2007.
_____. Culturas e Artes do Pós-Humano. São Paulo: Ed. Paulus, 2003.
STALLYBRASS, Peter. O Casaco de Marx: roupas, memória, dor. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
WENDERS, Wim. A Lógica das Imagens, Edições 70, Lisboa, 1990.
Referências Eletrônicas
CARVALHO, Ananda. Experimentações sobre o Cinema e o Vídeo no Documentário Notas
sobre Roupas e Cidades. In: res://ieframe.dll/acr_error.htm#intercom.org.br,http://www.
intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2008/resumos/R9-0379-1.pdf (consultado em
abril de 2012).
Entrevista com Wim Wenders, não incluída no documentário Janelas da Alma. http://www.
youtube.com/watch?v=mFIHnl4rmd0
Principais momentos da conferência do cineasta alemão Wim Wenders no Fronteiras do Pensamento. Título da conferência: “Cinema além das fronteiras”
Data: 18/08/2008http://www.youtube.com/watch?v=T62VSYKUru4&feature=related
Reportagem sobre Yohji Yamamoto – Maratona de Estilo GNT: http://gnt.globo.com/gntdoc/
videos/_1418097.shtml
DVD – Identidade de Nós Mesmos, Europa Filmes.
DVD – Tokyo Ga, Europa Filmes.
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