VI.A.03-01747
“Rodrigo, Obrigado por sua carta, que me foi...”
Cartas de LC a Rodrigo M.F. de Andrade - 1952-53. Carta n° 10.
Rodrigo,
Obrigado por sua carta que me foi encaminhada de Lisboa. Conheço melhor do que ninguém a sua vida atropelada do ministério e bem avalio o
que significa manter em dia tão volumosa correspondência, só que às vezes,
quando o intervalo é muito grande, fico preocupado pensando nalgum impedimento mais sério. Achei muito acertada a deliberação de instalar definitivamente
em S. Paulo o museu de moldagens, pois alem da parte essencial que já está
feita ,– a iniciativa, o planejamento e a orientação do museu hão de constituir
valiosa contribuição do governo federal para os festejos comemorativos da cidade eleita.
Quanto a mim só poderei voltar em março, embora me seja
penoso passar aqui o inverno que se mostra prematuro: já outro dia nevou
seguidamente e ficou tudo branco e hoje amanheceu de novo tudo coberto e
neva sem parar. Não me pude demorar na Itália alem da semana prevista para a
tal conferencia porquanto a minha presença na Suíça se fazia necessária, mas no
fim do mês poderei voltar a Portugal. O cacete é a fronteira espanhola, pois cada
visto só dá direito a três entradas e três saídas e já esgotei três visados; terei
agora que pleitear o favor outra vez. No mais as viagens, conquanto fatigantes –
seja de trem, seja de carro – têm corrido sem maiores contratempos. Nos
percursos do sul da França durante o verão havia sempre estudantes nórdicos
carregados de mochilas exaustos a pedir carona, mas em Portugal ando quase
sempre só, não somente porque esses companheiros eventuais atrapalham o
serviço como porque algumas vezes fui mal sucedido quando pretendi oferecer
condução. Ainda me lembro de uma mulher idosa com uma criança numa
estrada poeirenta e sem vislumbre de sombra nem fim – mas acho que já foi na
Espanha. Ela não aceitou e vi pelo espelho os dois vultos sumindo numa nuvem
de pó. A lembrança do olhar espantado da menina cansada me martirizou o
resto da viagem. É que, viajando sozinho fico a remoer durante horas e horas os
mesmos pensamentos, ou Montana, ou certas impressões que se resumem em
imagens ou frases soltas que fico repetindo como velho caduco. Assim, quando
escrevo a você tenho sempre a sensação de estar a reprisar com as mesmas
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palavras coisas anteriormente já ditas.
Mas de Veneza, pelo menos, ainda não lhe falei. Houve a princípio
cenas engraçadas: A primeira sessão de trabalho, por exemplo, na ilha de S.
Jorge, resultou numa balbúrdia porque as paredes brancas da sala comprida e
abobadada do mosteiro quinhentista restaurado pela Fundação Ceni, se
revelaram anti-acústicas por excelência ,– o som ecoava e não se percebia
patavina. Começou então um zum-zum pela assistência. O presidente, um
maestro de cabelos brancos, ar bondoso e franzino, vestindo paletó de veludo
preto, procurou explicar que já se estava providenciando outra sala para o dia
seguinte; ponderou, contudo, que se deveria prosseguir ali mesmo com a eleição
dos presidentes de honra e presidentes das várias comissões. Mas já então
ninguém se entendia porque a zoeira era ensurdecedora. Afinal alguém gritou do
meio da sala: “On n’écoute rien!” – “Mas o que estou lendo carece de
importância”, respondeu o presidente. “Mas se não tem importância não precisa
ler”, o outro retorquiu. Aí um poeta inglês que se mostrava agitado propôs que
fôssemos para o pátio, pois que talvez ao ar livre nos entendêssemos melhor, e a
esta voz a debandada foi geral. D’outra vez, já na sala nova, um cavalheiro de
aspecto distinto lia, em voz muito baixa, ao microfone o relatório de uma
determinada comissão. Alguém então reclamou do fundo da sala que não ouvia.
“Tant pis!”, bradou ele, e prosseguiu na leitura sem altear a voz. O desabafo foi
tão espontâneo que a sala toda riu. Notei da parte da delegação francesa certa
tendência no sentido da reabilitação das artes decorativas. Assim p. ex., como eu
fizesse na apresentação do meu trabalho certa ressalva nesse sentido, o Lurçat –
o dos tapetes – tomou a coisa a peito e se melindrou como se a referência o
visasse pessoalmente e aos artesãos. Mas a. conferência foi útil e graças à
habilidade e paciência dos responsáveis da UNESCO teve conclusão feliz apesar
da estréia acidentada. Houve mesmo certa euforia na sessão de encerramento,
mas ao que presumo há de ser sempre assim nas reuniões deste gênero.
Interrompi porque Helena me chamou para ler uns versos que
estava inventando para Maria Elisa. Entre vários rodeios naturalmente infantis e
sem maior significação havia isto que me surpreendeu:
Flores do campo,
Como sois harmonizadas,
Sereis por acaso fadas,
Em flores enfeitiçadas?
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Ela agora está na escola pública daqui e fico feliz de vê-la de novo
animada e com amigas para brincar. Sai cedinho bem agasalhada e na hora do
recreio ouço do meu quarto a algazarra que elas fazem no terreiro contíguo à
escola.
Lembranças em casa e um abraço do
Lucio
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