Figo preto - A senhora podia ir presa por isso. Virou-se e deu de caras com um senhor de idade e nada ameaçador. - Por favor! Está tanto figo caído no chão, que mal faz aproveitar alguns da árvore e comê-los? É melhor deixá-los estragarem-se? - Antigamente, este era o ouro desta terra. Fresco, comia-se e vendia-se algum… Mas era o figo passado que trazia ranchos de gente a apanhar por essas fazendas além, gente que vinha de fora e por aqui fazia a época toda, ora para este, ora para aquele. E assim se governava quem apanhava e quem tinha as fazendas. O velho embrulhava as palavras no saudosismo de quem sempre amou a terra e na fidelidade desse amor construiu toda uma vida rica e prolongada. - Mas pode comer à vontade e pode levar para casa, que não há mal nenhum nisso. - O senhor é que é o dono? - Sou… ou era, porque… embora ainda não tenha entregue as fazendas aos filhos, já não tenho a força de quem cultivava isto tudo e arrancava com o suor do meu trabalho o sustento para a família. Também não tenho coragem para as deixar ao abandono, que me custaram tantos anos de luta e de lida quase diária para que fossem o que são hoje. Sou mais eu que lhes pertenço já, do que elas me pertencem. - Outros tempos. - A senhora é de cá? - Não, de Santarém. - É perto. - E sempre me lembra, em pequenita, do meu pai levar uns figos frescos, destes pretos, quando passava por estes lados e era tempo deles. Então, não achava muita graça… A minha mãe lamentava sempre que o meu pai não levasse os pingo mel… Hoje, que me começa a pesar a idade, o que maior prazer me dá é redescobrir os sabores antigos, com os quais outrora vivemos, sabores que nunca soubemos apreciar condignamente e que, por um motivo ou outro, nos vêm agora à lembrança e nos permitem embarcar numa viagem sensorial extraordinária… Desculpe, estou aqui a delirar parvoíces que se calhar não entende, mas, ao passar por aqui e ao ver estas figueiras de figos a cair pelo chão, quis parar o carro e matar saudades e redescobrir se, de facto, este era um desses sabores perdidos… E era. - Fez bem. Coma e leve, já que hoje pouco préstimo têm. Os meus, quando cá vêm, ainda comem alguns, mas nem os levam… A não ser secos, mas a mulher e eu também já não podemos… A senhora trazia um saco e nele foi pondo os que apanhava. - Esse não presta. Olhe este… e aquele… E havia neste gesto do velho toda uma ciência de uma vida inteira, de experiência feita, saber que não se enquadra nas modernas fórmulas economicistas de produtividade e de rentabilidade. - Antigamente, os figos valiam assim tanto? - Havia por este concelho, e creio que até ali para Tomar, mais de uma dúzia de fábricas de destilação do figo, que lhes chamavam até fábricas do álcool, porque era essencialmente do figo que se fazia o álcool. Pois hoje serão para ali umas duas ou três e nenhuma delas destila já o figo… O dinheiro a que pagam o figo seco já não dá para chamar pessoal para andar nas fazendas. Pelo chão seco estendido, sob as figueiras e nas clareiras livres de erva que o homem teimava em limpar, os figos pintalgavam de manchas pretas o chão castanho. Enquanto estendiam os braços e apanhavam das árvores os frutos maduros, os pés pisavam no chão os que, rendidos ao tempo, caíam pelo terreno e secavam ao sol do abandono. - Está com pressa, a senhora? - Hã… não… porquê? - Deixe-me contar-lhe uma história muito antiga a propósito dos figos e das fazendas e do roubar, que é coisa que hoje mais se faz e menos se castiga, mas talvez que antigamente também fosse de mais. Já me contava a minha mãe e quando contava isto falava sempre de um modo muito sério que eu creio que ela até conheceu as pessoas desta história. Era assim… Era uma vez, em tempos muito antigos, como eu dizia, do tempo dos meus pais, e isto já lá vão mais de cem anos, havia ali para ao lados das Rendufas… não sei se sabe onde é ou se já ou viu falar… não? Também não faz mal. É uma aldeia aqui perto e que também pertence ao concelho de Torres Novas. Pois bem, havia lá uma família que eram três irmãos e uma rapariga e os pais que tinham umas fazendas por aqui e por ali. A riqueza, então, media-se pelas terras que se possuíam e pelo que elas produziam, de modo que era, podia-se dizer, uma família avantajada e com algumas posses. Como eu dizia, naquele tempo era essencialmente o figo que alimentava as nossas gentes e era a riqueza da terra, embora também já houvesse amendoeiras… As laranjeiras eram lá mais para baixo, para a Chancelaria, que lá é que elas se dão. Por aqui, por estas fazendas fora, era essencialmente a figueira, embora houvesse também a oliveira… Pois então, dizia eu, lá nas Rendufas essa família vivia essencialmente dos figos, como as restantes, embora pudessem ter as suas oliveiras e a sua vinha, como era costume. Para lhe mostrar como o figo era importante, os donos vigiavam sempre as fazendas, que nem sempre eram perto de casa e não tinham cães por lá para as guardarem como têm geralmente em casa, e quando suspeitavam que as podiam roubar, que podia haver alguém a roubar os figos, ou as azeitonas, no caso das oliveiras, chegavam a ir dormir para as fazendas com cães e espingardas e atiravam a matar… atiravam, pois. Essa família tinha então uma rapariga já casadoira, que antigamente as pessoas casavam-se muito mais cedo, nem andavam na escola e mal começavam a sentir-se gente queriam era sair de casa e só o podiam fazer se casassem. Ora ela começou a falar, que antigamente era assim que se dizia, com um rapaz ali dos lados do Alcorriol, está a ver, ali para o outro lado. Pronto, não sabe onde fica, mas digolhe já que fica ali para aqueles lados, portanto fora da terra onde ela pertencia. Ora aquilo parecia mal aos rapazes da terra, que era vir algum chico esperto de fora roubar as raparigas da terra. Parece que eles se conheceram nas festas lá da aldeia e nesse tempo era muito frequente haver pancadaria entre a malta nova de aldeias diferentes e ajustes de contas constantes. Agora vou eu à tua terra e levo eu que quando fores à minha levas tu. Hoje as festas são mais pacíficas e ainda bem que assim é, porque festa é para dar alegria e contentamento ao povo e não para causar tristeza. E também se as festas são em honra de um santo, qual é o santo que gosta de ver as pessoas a lutarem entre si por questões tão miúdas como aquelas que então aconteciam? Pois a rapariga e o rapaz lá conseguiam ir falando e o namoro até parecia que ia em frente. Ora, quem não gostava da coisa eram os irmãos e mais um amigo deles, que nisto parece que tem de haver sempre um ciúme à mistura. Que esse amigo dos irmãos também gostava da rapariga e até lhe tinha andado a fazer a corte, como se dizia antigamente. Mas nestas coisas de amor, não é que o rapaz fosse mau rapaz ou fosse feio ou tivesse mau feitio… Como dizia a minha mãe, nestas coisas de amor ninguém consegue entender o coração das pessoas que se encantam por este e desprezam aquele, que num só encontram virtudes e noutro não as encontram. E vai daí que a amizade entre a rapariga e o rapaz de Alcorriol não fosse bem vista pelos irmãos, que não gostavam dos dessa terra, nem pelo amigo que nunca desistiu de ter a rapariga para si, que isto, casando, o homem sentia sempre que tinha o amor ganho. E como não gostavam do rapaz e andavam sempre a repreender a irmã e ela sem fazer caso ao que diziam, andava ela perdida de amores por ele que até já pensava em casar, vai daí pensaram num plano para se livrarem dele. Num Verão, penso eu que seria Verão, pois devia ser, que é quando os figos começam a ficar maduros, embora fossem as festas lá das Rendufas, as festas antigamente nem eram em Agosto como agora se faz por causa dos emigrantes, mas isso não interessa. Era Verão e eles então pensaram em fazer uma espera ao rapaz que devia vir namorar a rapariga por altura das festas e essa era a altura em que os namoros eram mais ao menos permitidos em redor da igreja, sob o olhar atento das mães que não gostavam de saber das filhas para ali entregues sem saberem a quem e a fazerem o quê. Foram os irmãos dizer ao pai que na noite anterior tinham andado a roubar os figos de sicrano e de beltrano, que se aproveitavam das pessoas estarem nas festas e limpavam algumas figueiras aqui e ali, mais afastadas, onde era suposto as pessoas estarem menos atentas. O pai lá consentiu que eles levassem a espingarda e fossem dar uma ronda pelos figueirais, não deixando de estranhar a ligeireza dos filhos em não gozarem a festa. Eles sabiam que, de regresso, o rapaz de Alcorriol haveria de passar por um lado ou outro, puseram-se à cata e foi só o tempo de o ver passar, mandá-lo parar, mas quem é que ia parar a altas horas perante dois ou três vultos desconhecidos que lhe saltam de repente para a frente do caminho e nem se conhecem as intenções nem se traz defesa nem companhia capaz de fazer frente a um combate tão desigual? Fugiu e ou paras ou levas um tiro e o melhor era fugir que sempre as hipóteses de escapar eram maiores. Mas quis o destino, ou Deus, que um dos irmãos não resistisse ao desejo do eliminar e apontasse acertadamente para o vulto escuro que nessa noite de luar se aprontava a escapar-se-lhes. É claro que o namorado da irmã deles morreu e logo ali combinaram os três uma história para se ilibarem do crime cometido e a coisa foi de o rapaz andar a roubar os figos. O caso meteu guarda e tribunal. Mas a família do malogrado rapaz era de poucas posses e não conseguiu arranjar um advogado que os defendesse e a história passou, que a malta da terra sabia que ele tinha estado na festa e as coisas tinham ocorrido apenas porque os irmãos não gostavam do cunhado ou que era para o ser, e assim se lavou a coisa e os irmãos e mais o amigo ficaram livres da cadeia. Mas… atenção que a história ainda não acabou e era também aqui que eu queria chegar. Quem não gostou nada disso e nunca se conformou foi, como é bom de ver, a irmã. Maltratou os irmãos, quis acusá-los, mas nunca os pais a deixaram. Desgraça, por desgraça, era ver a filha naquele estado, quanto mais terem de ver os filhos presos e retirados de casa. De modo que a rapariga ficou com ordens de não sair de casa. Dizem, quem a podia observar ao longe, que cosia e recosia o vestido de noiva que um dia iniciara para nunca terminar. Entretanto, nunca reposta da desgraça amorosa em que se vira mergulhada, a família foi lhe descurando a vigilância e ela deu em fugir de casa, altas noites, de vestido branco, por esses figueirais, ao encontro do amigo que tardava lá dos lados do Alcorriol. As pessoas, primeiro, julgaram tratar-se de um fantasma mas depois acabaram por reconhecer a pobre rapariga que perdidamente se ausentava pela noite dentro. A família tentou trancá-la, lamentando a sua loucura, mas ela conseguia sempre fugir por esses campos fora, até que um dia não voltou e nunca mais a voltaram a ver. As pessoas não deixaram de comentar o castigo que Deus quis infligir àquela família. Foi num dia de chuva que ela fugiu, vestida de branco, como sempre, e nunca mais ninguém a viu. O povo ainda hoje diz que, nesses dias de verão, quando uma chuva cai de surpresa, é a noiva de Rendufas que por ali anda, disfarçada numa nuvem branca, que vem chorando de mansinho, por sobre os figueirais, lançando uma chuva sentida que costuma azedar os figos. Manuel Filipe, 2012