48 Medicina e novas tecnologias Nelson Akamine1, Ruy Guilherme Rodrigues Cal2 1 2 Médico Supervisor do Centro de Terapia Intensiva de Adultos do Hospital Israelita Albert Einstein São Paulo (SP). Médico Especialista em Cirurgia Cardiovascular, Medicina Intensiva, Medicina de Urgência e Cirurgião Cardiovascular do Hospital Israelita Albert Einstein - São Paulo (SP). Conceitos básicos A Medicina, assim como todas as demais áreas de conhecimento, sofre hoje uma grande influência de novas tecnologias e metodologias. Muitas dessas novas técnicas encontram-se interligadas, o que pode causar alguma dificuldade em distinguir os diferentes conceitos de computação, informática, telecomunicação, tecnologia de informação e novas tecnologias. Os desdobramentos da aplicação dessas diversas técnicas no cenário médico resultam em um vasto conjunto de possibilidades, que são englobadas de forma genérica numa especialidade conhecida como Informática Médica. Ainda que esse nome seja limitado, incluímos freqüentemente neste termo todas as novas tecnologias aplicadas à medicina. Esse imenso conjunto de conceitos torna difícil, até mesmo para os especialistas da área, definir quais os objetivos fundamentais da especialidade. Após 25 anos de sua fundação, as diversas revisões críticas e uma abordagem mais macroscópica da especialidade, permitem-nos dizer que os fundamentos da informática médica são(1): Produzir estruturas de representação de dados e conhecimentos de modo a permitir o melhor entendimento de processos e relacionamentos complexos. Desenvolver métodos de aquisição e apresentação de dados de modo a evitar a sobrecarga de informações. Gerenciar as mudanças necessárias nos usuários, nos processos e nas tecnologias empregadas de modo a otimizar o uso de informações. Promover a integração de processos mais que a soma de tecnologias de modo a oferecer a melhor performance para cada cenário. Mostraremos abaixo uma análise crítica do contexto atual da Medicina e dos novos recursos disponíveis em nosso meio, fundamentados nos postulados acima relacionados. Informações médicas Estima-se que o volume global de informações produzidas anualmente seja da ordem de 1032. Este número einstein. 2004; 2(1):48 é tão grande que não consegue ser processado por computadores comuns, correspondendo a um empilhamento de CDs com 32 km de altura. As bases de dados mundiais projetam que 2% das informações existentes referem-se à Medicina. Temos então 640 m de CDs com temas médicos. Supondo que somente 2% sejam relevantes para a nossa especialidade principal, teremos 12,8, metros ou 8.500 CDs. Restringindo-nos a uma subespecialidade, que reduza este total a 1%, obteremos 85 CDs/ano ou sete CDs/mês. Hoje, o acesso à informação deixou de ser o principal problema. Temos acesso a extensas bases de dados com muita facilidade e a custo acessível. No entanto, quantos dispõem de tempo e competência para filtrar e memorizar os dados mais relevantes para o nosso setor de atividade? Em alguns anos necessitaremos de sistemas de filtragem de informações confiáveis para tomada de decisão. Além dos componentes habituais para atividade clínica, o acesso rápido a informações filtradas por especialistas passará a ser um fator determinante para nossa eficiência profissional. O impacto do enorme volume de informações médicas disponível é tão grande que o nosso conhecimento fora da especialidade é semelhante à de um leigo que se dedica a estudar qualquer tema médico por iniciativa própria. Logicamente, o simples acesso à informação não substitui o senso crítico, a visão humana, a experiência e a capacidade de integração do médico. Da mesma forma, de nada valem todos estes qualificativos médicos se ele não dispõe de informações relevantes, porque a sua memória não está capacitada para armazenar 5.600 megabytes a cada mês. Acrescentando-se competência a uma sólida base de dados antes de definir a melhor conduta para cada paciente deverá ser uma rotina médica a ser incorporada. Telemedicina Um número enorme de processos pode ser incluído dentro da telemedicina. Várias tecnologias permitem a interação a distância, incluindo-se linhas telefônicas convencionais, redes a cabo, Internet, fibras ópticas, sistemas de radiofreqüência, satélites e telefonia celular. Listamos abaixo as principais possibilidades(2). • agendamento de processos • administração de recursos • interpretação de imagens • sistemas de educação para profissionais e leigos • segunda opinião 49 • • • • • • • • interconsulta ou junta médica monitorização domiciliar de pacientes monitorização de pacientes hospitalizados controle remoto de monitores teleconsulta suporte a procedimentos feitos por paramédicos exame físico cirurgias Para que estes processos tenham eficiência é necessário um conjunto de requisitos. Os equipamentos e os sistemas de conexão precisam estar disseminados e disponíveis a custo acessível. Tanto médicos quanto pacientes e familiares precisam ter assimilado uma cultura de uso, o que envolve freqüentemente uma mudança nos fluxos de processos tradicionais. A legislação e os órgãos controladores precisam estabelecer claramente as regras de uso. Os modelos comerciais de uso precisam estar estabelecidos. A listagem acima se encontra em ordem crescente de complexidade na implantação, considerandose os fatores relacionados anteriormente. O impacto futuro da telemedicina até hoje é incerto. Potencialmente, os médicos de algumas especialidades teriam grande aumento em suas capacidades de atendimento. Particularmente, os que trabalham com imagens para confecção diagnóstica ou acompanhamento terapêutico. O que aconteceria num ambiente onde existisse ampla disponibilidade de recursos e banalização dos processos? Como migraremos do nosso modelo tradicional para o da telemedicina sem perdermos os indispensáveis vínculos humanos? Como definiremos responsabilidades, honorários, turnos de trabalho e padrões éticos de atuação? As experiências em todos os setores da telemedicina são animadoras. Em cada cenário foram necessárias adaptações para atender aspectos técnicos, culturais ou éticos característicos de cada atividade em locais e situações particulares. Certamente, exame físico e cirurgias ainda demorarão a integrar a rotina médica, mas os cinco primeiros itens da nossa lista encontramse em fase de rápida implementação. Uma das principais expectativas da telemedicina é oferecer especialistas em áreas remotas e com custos reduzidos. Paradoxalmente, as novas tecnologias são implantadas apenas nos grandes centros, por motivos econômicos, ficando os aspectos sociais em segundo plano. A teleconferência via satélite terá enorme impacto neste campo de atuação pela possibilidade de conectar qualquer ponto do planeta aos melhores centros médicos, utilizando-se modelos comerciais conhecidos e custo compatível. As tecnologias encontram-se hoje tão amadurecidas, estáveis e disseminadas a ponto de atender quase qualquer particularidade. Não devemos nos opor à telemedicina, por ela não ser um modelo universal para qualquer especialidade, modelo de atendimento ou cultura. Afinal, não dispomos de nada capaz de fazêlo. Por mais que sejamos exigentes, a evolução tecnológica permitirá, em curto espaço de tempo, atender várias demandas dos novos cenários da saúde. Restará a todos nós fazer uso inteligente destes recursos. Computação móvel Um famoso aforisma em informática diz W W W: web, wherever, wireless. Interpretando: coloque tudo na web, torne a web disponível em todo lugar e finalmente, acesse os dados com tecnologia sem fio. O grande apelo da computação móvel é a ausência de fios: cabos elétricos e cabos de rede. Os equipamentos de computação móvel têm baterias cada vez mais duráveis e, com tempo de recarga encurtado. Os cabos de rede são substituídos por infravermelho, radiofreqüência ou telefonia celular de banda larga. Mesmo sem as conexões sem fio, os notebooks e palmtops proliferam no ambiente médico. Os sistemas infravermelhos permitem conexões muito limitadas e encontram-se em franco declínio. De outro lado, os sistemas por radiofreqüência e celular encontram-se em franca expansão. Entre os sistemas por radiofreqüência já padronizados para uso em larga escala temos duas plataformas: Bluetooth e WiFi. Os sistemas de comunicação por Bluetooth têm um alcance restrito a alguns metros. Eles possuem tamanho bastante reduzido e podem ser colocados em quaisquer equipamentos. Este sistema permite a comunicação de até oito elementos distintos: computador, notebook, palmtop, celular, fones de ouvido, crachá eletrônico, monitores, frascos de medicamentos e bulas eletrônicas, por exemplo. O alcance pequeno não é um problema e sim uma característica que permite ao Bluetooth funcionar com um sensor de presença. Desta forma, ao aproximarmos nosso crachá de um computador, este poderá ser personalizado para nosso uso individual. Ao aproximarmos um frasco de medicamento de um palmtop, este poderá nos dizer o seu conteúdo e data de validade. Dois médicos poderão trocar informações com seus notebooks, celulares ou palmtops, sem a presença indesejável dos cabos. Este cenário, inimaginável até pouco tempo, já é realidade em ambientes pioneiros aqui em nosso país. einstein. 2004; 2(1):49 50 Os sistemas de radiofreqüência WiFi têm o alcance de algumas dezenas a centenas de metros e podem se constituir numa nuvem que cobre um complexo hospitalar. Os acessórios WiFi têm tamanho maior que os Bluetooth e podem ser adaptados somente a desktops, notebooks e palmtops. Este sistema permite acesso à rede convencional e à Internet com velocidade bastante aceitável. Além dos usos convencionais já conhecidos de um computador de mesa, podemos antecipar a possibilidade de uso móvel de sistemas de apoio à decisão, a coleta de dados beira-leito, a videoconferência móvel e a interação a distância com equipamentos médicos. Podemos identificar agora três grandes nuvens de redes: a. as convencionais a cabo metálico ou fibra óptica (de alcance mundial); b. as WiFi (cobrindo complexos hospitalares) e c. as Bluetooth (cobrindo um único ambiente). Este conjunto de possibilidades traz até nós um novo conceito: a telepresença. Existem tantos equipamentos ligados a redes com e sem fio que poderemos interagir com qualquer pessoa ou equipamento. Assim podemos antecipar a possibilidade de estarmos constantemente monitorando nossos pacientes e, de forma recíproca, os profissionais beira-leito disporem de informações de quaisquer especialistas em tempo real e de qualquer local. Como reestruturar nossa atividade neste novo contexto não será fácil nem rápido. Como explorar ao máximo nosso potencial produtivo sem perder nossa privacidade? A clássica frase dita pelos médicos aos seus pacientes “Pode me procurar a qualquer hora...” ganha dimensões assustadoras neste novo contexto das novas tecnologias. Informática médica baseada em evidências As publicações sobre temas ligados à informática médica raramente apresentam uma boa consistência metodológica. O fascínio causado pelo novo freqüentemente encobre o necessário rigor da pesquisa científica. Podemos facilmente constatar que os textos da especialidade limitam-se a mostrar as técnicas em si, as bases lógicas do seu emprego ou casos de sucesso. Pontos relevantes ficam esquecidos e caímos no anacronismo de julgar que as novas tecnologias são inevitáveis: “Ou nos adaptamos aos novos tempos ou seremos engolidos pelos computadores...”. einstein. 2004; 2(1):50 As novas tecnologias, assim como as antigas, não se constituem em panacéia ou uma metodologia a ser empregada sistematicamente frente a qualquer desafio. É certo que profissões desaparecerão e novas surgirão. Problemas desaparecerão e novos passarão a ocupar nosso dia-a-dia. Devemos nos afastar de falsos mitos desta área de atuação: “Lápis e papel serão desnecessários”; “O computador substituirá o homem”; “Mudanças acontecerão em um piscar de olhos”; “Teremos uma enorme redução de custos e de trabalho”; “Não devemos nos opor ao novo”. Uma atitude mais racional é a de entender o potencial das novas tecnologias à luz do conhecimento de suas qualidades e limitações. A medicina é uma das atividades mais tradicionais e conservadoras de toda sociedade. Esta postura pode promover lentidão a alguns processos, mas resulta numa filtragem de novas tecnologias que fracassaram ao ser implantadas em setores onde a incorporação tecnológica é costumeiramente mais rápida. As instituições de saúde possuem um mecanismo eficaz de assimilar apenas as tecnologias mais adequadas para cada cenário. Os jovens talentos trazem os novos e revolucionários projetos, mas são apenas os tradicionais senhores quem os aprovam e assinam os cheques que os custeiam. Referências 1. Lorenzi NM. The cornerstones of medical informatics. J Am Med Inform Assoc. 2000; 7(2):204–5. 2. Doolan DF, Bates DW, James BC. The use of computers for clinical care: a case series of advanced U.S. Sites. J Am Med Inform Assoc. 2003; 10(1):94– 107.