5 a 18 de Janeiro de 2015 | Nº 73 | Ano 3 Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00 ECO DE ANGOLA PÁG. 4 - 7 KWANZAA e NCWALA PRIMEIROS FRUTOS E NOVO ANO AFRIKANO LETRAS PÁG. 8-10 2014.VISÃO PANORÂMICA DO ANO LITERÁRIO NACIONAL GRAFITOS NA ALMA PÁG. 17-18 ELOGIO DA CIVILIDADE CARTILHA DA ÉTICA HISTÓRIA PÁG. 21 BULAMBEMBA E YELALA PATRIMÓNIOS ESQUECIDOS A evolução da poesia nigeriana DIÁLOGO INTERCULTURAL PÁG. 23-24 DIÁLOGO INTERCULTURAL PÁG. 22 DESCOBERTA A MAIS ANTIGA IGREJA DA ÁFRICA SUBSAARIANA 2 | ARTE POÉTICA 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura Dois poemas de Niyi Osundare Ode à Cana de Açúcar Ó tu de voz áspera, Quantos oceanos gemeram sob os teus pés Na tua viagem para esta terra Os chicotes assobiaram para agradar aos teus ouvidos Costas curvadas pronunciaram a tua altura A tua armada atravessou oceanos de suor Que ventos incitaram a tua ronda Primo do milho-miúdo com raízes pouco fundas Irmão da erva elefante Embora quase rico, a tua grande tribo Qual o tamanho da tua vela de folhas Que idioma quebrou o teu silêncio num solo roubado? A tua ilha de egos desconhecidos O teu tagarelar em pidgin; o arranhar da gramática Da tua língua mãe quando a História gaguejou pelo Teu texto, com a boca cheia de vogais em falta O teu arquipélago de cascas flutuantes Teatro à deriva de sonhos em fuga A estrofe segmentada do teu canto, As suas junções sumarentas, anéis eloquentes multiPlicando-se como a cavaqueira verde de luas à conversa Dançarino em andas, a tua sombra, Mãos agitando-se no vento Mais negras que o medo febril dos fogos do pôr-do-sol O tom indolente e xaroposo das tuas ordens Cortadas pela catana em cortesia, as copas imperiais curvam-se Em direcção à terra, sempre tão atentas à frágil distância Entre as feridas gotejantes e a dor aberta Ecos sem valor de vidas extraídas Dedos peganhentos à borda da água E as mansões que instilaram na tua doçura A alegria amarga das suas salas Bancos que acumularam as suas fortunas Na pocilga da tua lascívia Tu, corredor em terras sem sapatos Castigado pelo sol, mastigando sangue, chupando os ossos Falo pálido de um império De investidas de florete através Da inocência dos crepúsculos aturdidos Tu de voz áspera Onde puseste o céu Onde deixaste o mar O que foi que a História te sussurrou ao ouvido Da última vez que se encontraram nos sulcos verdes? Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 Lua Polígama Uma lua polígama não consegue gerir A sua praga de esposos Os acenos e pretensões erguem-se rígidos Em armários lunares, ou pendem claudicantes Na árvore de um guarda-roupa penitente Raios ciumentos desemaranham ARTE POÉTICA| 3 Cultura Jornal Angolano de Artes e Letras Um jornal quinzenal comprometido com a dimensão cultural do desenvolvimento. Nº 73 / Ano III / 5 a 18 de Janeiro de 2015 E-mail: [email protected] site: www.jornalcultura.sapo.ao Telefone e Fax: 222 01 82 84 CONSELHO EDITORIAL Director e Editor-chefe | José Luís Mendonça Editor de Letras | Isaquiel Cori A castidade da noite O desejo banha as suas rugas Assistente Editorial | Coimbra Adolfo (Matadi Makola) Marketing e Rel. Públicas | Filomena Ribeiro Fotografia | Paulino Damião (Cinquenta) e Arquivo do Jornal de Angola Na ânfora de um leite pagão Arte e Paginação | San Kaleia, Jorge de Sousa Noite tão escura, tão quente Até os substantivos esquecem os seus nomes Um séquito de adjectivos faz De bobo no pátio de sombras líquidas Fluindo para trás e para a frente Como as túnicas dos chefes que comem A lua, polígama e calma, O seu rol povoado de anseios apaixonados O seu aroma aspirado com coisas sem nome Sem saber o que fazer com o consorte escuro Da noite, e um bando de estrelas Piscando com coqueteria para os seus garanhões expectantes. Tradução | Maria José Fresta COLABORAM NESTE NÚMERO: Angola: Ana Koluki, Araújo dos Anjos, Inácio Rebelo de Andrade, Luísa Fresta, Mário Pereira, Nobre Cawaia, Norberto Costa, Rossana Oliveira Moçambique: Carlos dos Santos, Dom Andira, Japone Arijuane, Mar- celo Panguana Brasil: Fábio Rocha Portugal: Sérgio O. Sá Cabo Verde: António Barbosa da Silva, Nuno Rebocho França: Lauren Ekué Nigéria: Niyi Osundare, Odimegwu Onwumere FONTES DE INFORMAÇÃO: AGULHA, Revista de cultura, São Paulo, Brasil Correio da UNESCO, Paris, França AFRICULTURES, Portal e revista de referência das culturas africanas, Les Pilles, França MODO DE USAR & CO, revista de poesia sonora e visual, em vídeo, e também escrita. NORMAS EDITORIAIS O Jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e recensões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais. Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação ao jornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmos artigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribuições serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serão comunicados aos autores. Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ou gráficos já publicados, são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Os textos devem ser formatados em fonte Times New Roman, corpo 12, e margens não inferiores a 3 cm. Os quadros, gráficos e figuras devem, ainda, ser enviados no formato em que foram elaborados e também num ficheiro separado. Niyi Osundare. Poeta nigeriano, nascido em IkereEkiti, formado na Universidade de Ibadan, na University de Leeds e na York University em Toronto. Voltou à Nigéria para trabalhar como professor universitário e jornalista. Desde 1985 que leva a poesia a um vasto público através da sua coluna regular no jornal Tribune. Um dos poetas contemporâneos mais prolíficos e respeitados na Nigéria, Osundare utiliza na sua obra um vasto leque de idiomas vernáculos e literários para expressar de modo lírico e satírico a sua preocupação com a justiça social. As suas principais recolhas de poesia incluem Songs of the Marketplace (1984), Waiting Laughters (1990), Songs of the Season (1990), Selected Poems (1992), e Midlife (1993). The Eye of the Earth (1986) ganhou o Prémio de Poesia da Associação dos Autores Nigerianos e o Prémio de Poesia da Commonwealth. É um intérprete aclamado da sua poesia, que tem afinidades com a tradição oral da Nigéria. Sede: Rua Rainha Ginga, 12-26 Caixa Postal 1312 - Luanda Redacção 333 33 69 Telefone geral (PBX): 222 333 343 Fax: 222 336 073 | Telegramas: Proangola E-mail: [email protected] Conselho de Administração António José Ribeiro | presidente Administradores Executivos | Catarina Vieira Dias Cunha Eduardo Minvu Filomeno Manaças Sara Fialho Mateus Francisco João dos Santos Júnior José Alberto Domingos Administradores Não Executivos | Victor Silva Mateus Morais de Brito Júnior 4 | ECO DE ANGOLA 5 a 18 de Janeiro de 2015 | KWANZAA e NCWALA Cultura A ‘CELEBRAÇÃO DOS PRIMEIROS FRUTOS’ E DE UM ‘NOVO ANO AFRIKANO’ Ana Koluki Rio Kwanza Kwanzaa, ou “Nesse Mar tem Rio” É interessante observar-se as várias manifestações culturais criadas pelos Afro-Americanos para se manterem tão próximos quanto possível das suas origens ancestrais. Na verdade, em várias áreas da sua vida, eles criaram mesmo uma espécie de ‘micro-cultura’ de inspiração Afrikana, embora nem sempre com uma clara ou directa correspondência nas práticas culturais observáveis no Continente – o que se deverá, por um lado, aos sincretismos culturais e religiosos de vária ordem e diferentes origens que os conformam e, por outro lado, às varias (per)mutações e con(sub)jugações culturais verificadas em Áfrika ao longo dos séculos. É o caso do Kwanzaa (também grafado Kwaanza), que é actualmente celebrado por mais de 20 milhões de pessoas um pouco por toda a Diáspora Afrikana nesta esta altura do ano, durante sete dias – de 26 de Dezembro a 1 de Janeiro – coincidindo com o período do Natal Cristão (e também do Judaico Hanukkah) e do Ano Novo. O seu nome poderia ter sido inspirado no nosso, inteiramente angolano, Rio Kwanza, mas, das fontes que nos foi até agora possível consultar, tal inferência nao é explícita. Kwanzaa deriva da expressão kiSwahili “matunda ya kwanza”, que significa “primeiros frutos”, ou “começo” – apelando ao acto da criação, tal como acontece no Natal Cristão. Porém, sendo o kiSwahili uma língua Bantu e Pan-Africana, torna-se de algum modo intuitivo que o nosso Kwanza possa ter nela o mesmo significado e, sendo o único rio afrikano com esse nome, somos facilmente levados a concebê-lo como o “começo” de um longo percurso que, do Oceano Atlântico em que desagua, fez com os navios negreiros a travessia para as Américas e lá fertilizou o chão do qual continuam a brotar todos os anos os “primeiros frutos” da “nossa colheita ancestral”… Ou, inspirando-nos no título da canção belamente interpretada pela brasileira Maria Bethânia, dito de outro modo: nesse Mar, que separa a Áfrika da sua Diáspora, tem Rio e esse rio tem um nome e é nosso: Kwanza! A criação da celebração do Kwanzaa, em meados da década de 60 do século passado, ficou a dever-se ao então militante do Movimento Negro Americano, hoje Professor de Estudos Africanos nos EUA, Ron (Maulana) Karenga, que apresentou na altura o seu objectivo como sendoo de “proporcionar aos Negros uma alternativa às festividades natalícias existentes e dar-lhes uma oportunidade de se celebrarem a si próprios e à sua história, deixando assim de simplesmente imitar as práticas da sociedade dominante.” Anos mais tarde, perante uma crescente aderência de pessoas de várias origens e crenças religiosas ao Kwanzaa, Karenga viria a reformular os seus postulados iniciais em ‘Kwanzaa: A Celebração da Família, da Comunidade e da Cultura Afrikana’ (1997), afirmando: “O Kwanzaa não foi criado para proporcionar às pessoas uma alternativa às suas próprias religiões ou festividades religiosas; o seu significado e mensagem central estão enraizados na elevação e propulsão do modelo ancestral Africano de produzir, colher e partilhar o bem no mundo. O Kwanzaa enfatiza a importância de plantarmos as sementes da bondade em todo o lado, de as cultivarmos com cuidado, amor e carinho, de colhermos os produtos dos nossos esforços com alegria e partilharmos o seu bem por toda a comunidade e pelo mundo. Daí que, de todas as formas ricas e caras em que podemos expressar o significado e a mensagem do Kwanzaa, nenhuma é mais importante do que vê-lo e abraçálo como uma época de celebração do trazer o bem para o mundo.” Ou, de forma mais sucinta, como o narrou a poeta Maya Angelou, falecida em Maio deste ano, em ‘The Black Candle’ (A Vela Negra – a vela central da celebração do Kwanzaa): “É um período em que nos reunimos no espírito de família e comunidade para celebrarmos a vida, o amor, a unidade e a esperança.” Durante os sete dias do Kwanzaa, praticam-se vários rituais, envolvendo libações, acender de velas, oferta de presentes e um banquete precedido de jejum e abstinência. Poder-se-ia então dizer que, nesse aspecto, não difere muito do Natal Cristão ou do Hanukkah. Mas, é o significado, em kiSwahili, de cada um dos sete dias do Kwanzaa, designados ‘Nguzo Saba’, ou ‘Os 7 Princípios da Herança Africana’, baseados no Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 ECO DE ANGOLA | 5 Rio Kwanza Kwanzaa deriva da expressão kiSwahili "matunda ya kwanza", que significa “primeiros frutos”, ou “começo” – apelando ao acto da criação, tal como acontece no Natal Cristão. Celebracao do Kwanzaa presidida por Ron Karenga ‘Kawaida’ (expressão kiSwahili que combina ‘tradição’ e ‘razão’), que Karenga descreveu como “o melhor do pensamento e prática Afrikanos, em constante permuta com o mundo”, que estabelece a diferenciação: Umoja (Unidade): Obter e manter a unidade na familia, comunidade e nação; Kujichagulia (Auto-Determinacao): Definirmo-nos a nós próprios, nomearmo-nos a nos próprios, criar por nós proprios e falar por nós próprios; Ujima (Trabalho e Responsabilidade Colectiva): Construir e manter a comunidade coesa e fazer nossos os problemas dos nossos irmãos e irmãs e resolvê-los em conjunto; Ujamaa (Economia Cooperativa): Construir e manter as nossas próprias propriedades, lojas e negócios e partilhar em conjunto dos seus lucros; Nia (Propósito): Fazer nossa vocação colectiva a construção e o desenvolvimento da nossa comunidade, com o objectivo de restaurar a grandeza tradicional do nosso povo; Kuumba (Criatividade): Fazer sempre tudo o que pudermos, como pudermos, por forma a deixarmos a nossa comunidade mais bela e benéfica do que como a herdámos; Imani (Fé): Acreditar com todo o nosso coração nos nossos semelhantes, pais, professores, dirigentes e na justeza e vitória da nossa luta. Os Símbolos e Cerimoniais do Kwanzaa O ‘mkeka’ é uma esteira geralmente feita de palha que simboliza a história e a tradição ancestrais como a fundação sobre a qual todos os outros símbolos do Kwanzaa assentam. O ‘kinara’ é um candelabro de sete receptáculos, representando as origens do povo Africano. As ‘mishumaa saba’ (sete velas) representam os Sete Princípios (ou ‘Nguzo Saba’) acima descritos para cada dia da celebração: no centro, a vela preta representando ‘Umoja’, à sua esquerda três velas vermelhas representando ‘Kujichagulia’, ‘Ujamaa’ e ‘Kuumba’, à sua direita três velas verdes representando ‘Ujima’, ‘Nia’ e ‘Imani’. Os ‘muhindi’ são as espigas de milho que representam os brotos (crianças) dos galhos (os pais da casa). Os ‘Mazao’ são os frutos e vegetais representando as colheitas. Os ‘zawadi’ (presentes) representam a recompensa do trabalho dos pais e os frutos das sementes plantadas pelos filhos. Embora o cerimonial do Kwanzaa não faça explicitamente referência ou apelo a um ‘Ser Supremo’, é frequente encontrarmos na base do ‘kinara’ o símbolo Adinkra ‘Gye Nyami’, ou Gyé Nyamé – com o mesmo significado nas línguas Akan/Ashanti da África Ocidental (Gana, Togo e Costa do Marfim) ou nas línguas Lingala e Kikongo da África Central (Zaïre, Congo e Angola): Sé Nzambé ou Sé na Nzambé – Só Deus/ A Supremacia de Deus, ou Tudo nas Mãos de Deus (cf. fontes orais Yako Tanga e Sadi Ulo). A cerimónia do acender das velas, central à celebração do Kwanzaa, tem lugar quando todos os membros da família estão presentes, com destaque para as crianças. Inicia-se com o ‘Tambiko’ (libação), uma forma Afrikana de louvação com que se presta homenagem aos ancestrais pessoais e colectivos. A começar, o Mais Velho da família verte vinho, sumo ou uma bebida espirituosa do ‘Kikombe Cha Umoja’ (Copo da União) sobre a terra ou sobre um recipiente cheio de terra. Enquanto verte o líquido, o Mais Velho faz um discurso de homenagem aos membros da família falecidos pela inspiração e valores que deixaram aos descendentes. Depois do ‘Tambiko’, como um gesto de união, o Mais Velho bebe do ‘Kikombe Cha Umoja’ e, em seguida, passa-o para todos os presentes o partilharem, posto o que lidera a chamada do ‘Harambee’ (Unamo-nos!) a que todos respondem repetindo-a sete vezes. Na noite de 31 de Dezembro (sexto dia) observa-se o ‘Karamu’, uma alegre celebração festiva com comida, bebida, dança e música para o colectivo da família e amigos. É uma ocasiao de júbilo, reavaliação e reengajamento. Os ‘Kawadi’, presentes para as crianças, brinquedos e artefactos, geralmente feitos à mão, ou livros, poderão ser abertos durante o ‘Karamu’, ou no dia final do Kwanzaa, quando se observa o ‘Imani’. Mas, na tentativa de estabelecer uma relação mais firme, coerente e objectiva entre o nosso Kwanza e o Kwanzaa da Diáspora Afrikana, em 6| ECO DE ANGOLA 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura Símbolos cerimoniais Rei Mswati da Swazilandia Nckwala 5 O símbolo ‘Gye Nyami’ consulta com o estudioso e divulgador cultural Angolano Yako Tanga, obtivemos dele as seguintes formulações: “Analisando o conteúdo de valores do Kwanzaa, os Ngúzo Sába (7 Princípios), os símbolos da prosperidade (rio, peixe e moeda), agricultura (rio), trabalho colectivo (peixe) ou cooperativa (pescarias), empreendedorismo (indústria ligada ao sector fluvial) e energia (barragens, etc) que o Kwanzaa leva quando bem entendido, a ajuda mútua (likelemba, créditos mais humanos e micro-créditos), o respeito à nossa Tradição africana (Kawaída / KiMúnTu / Ubúntu / Kemet / Adínkra, etc) casam-se bem. Enraizado no passado, firme no presente e rumo a um futuro nada menos vitorioso e harmonioso. Kwanzaa ajuda ao ReNascimento de um Povo Afrikano, em todos os lados que ele se encontra no Mundo, tornando-o mais forte, completo e no caminho mais certo. Kwanzaa é a ideia Panafricana da “diáspora” e, sobretudo, KwanzaaSankofa do Adinkra. Ele vai ReColher todos os valores positivos do passado e, considerando o presente, projectando-se no futuro, ReOrga- niza a nossa luta aos níveis múltiplos de forma coerente: Cultura, Economia, Espiritualidade, Indústria, Educação, Autonomização, Potenciamento de cada um como Povo, etc.” Ncwala: Um Novo Ano Afrikano Fazendo regressar a nossa memoria ancestral ao Continente Berço, encontramos um ‘parente próximo’ do Kwanzaa na nossa região: o Ncwala (tambem escrito Incwala) – o mais importante cerimonial tradicional anual em alguns países da África Austral, especialmente na Swazilândia, no Malawi e na Zâmbia. Mas, é na sua celebração na Swazilândia, país que mantém de forma mais genuína as suas tradições, que nos iremos deter. O Ncwala sagrado ou, tal como o Kwanzaa, designado “Cerimónia dos Primeiros Frutos”, que está neste momento a decorrer naquele país, tem lugar em finais de Dezembro/princípio de Janeiro de cada ano e destina-se a renovar a força do Rei e da Nação Swazi para o ano seguinte. Tendo visto o significado e os rituais do Kwanzaa, é-nos possível estabelecer paralelos significativos entre este e o Ncwala, nomeadamente no que diz respeito ao período do ano em que tem lugar, a sua duração, o lugar central dos “primeiros frutos”, a atribuição de significados específicos a cada um dos dias em que são celebrados, o regresso simbólico às terras ancestrais e à água (dos rios e do mar). Tais paralelos tornam-se perfeitamente evidentes à luz do facto de ambos terem as suas raízes nas “Celebrações dos Primeiros Frutos” relevando das Culturas de vários povos Afrikanos, que, sendo embora a eles anteriores, encontram referências históricas desde o Antigo Egipto e a Núbia. Nao é feito qualquer anúncio da data oficial do dia principal do Ncwala. É o quarto dia depois da lua cheia mais próxima do dia mais longo, 21 de Dezembro. O Ncwala significa “cerimónia dos primeiros frutos”, mas a prova da nova colheita pelo Rei é apenas um aspecto entre muitos neste longo cerimonial, também chamado “Cerimónia do Reinado” – quando não ha’ Rei, não há Ncwala. Constitui alta traição a realização do Ncwala por qualquer outra pessoa. Todos os Swazis podem participar nos actos públicos do Ncwala, especialmente no seu clímax, o quarto dia do Grande Ncwala. As figuras centrais são o Rei, a Rainha Mae, as esposas reais e seus filhos, os governadores reais (indunas), os chefes, os regimentos guerreiros e os bemanti ou “gente da água”. Na lua cheia de Novembro, os bemanti partem da casa da Rainha Mãe em dois grupos: um, maior, que se dirige a kaTembe (Catembe, sul de Maputo – considerada a terra ancestral da Nação Swazi), para recolher água do mar e outro, mais pequeno, que vai recolher água dos principais rios nacionais. Os bemanti regressam à capital real com a lua nova de Dezembro. Tem então lugar o Pequeno Ncwala, marcado por dois dias de danca, música e rituais que são taboo durante o resto do ano. Catorze dias depois começa o Grande Ncwala, que assim decorre: Primeiro Dia: Apanha do Lusekwane – Rapazes solteiros convergem para a aldeia da Rainha Mãe, de onde o Rei lhes ordena que marchem cerca Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 ECO DE ANGOLA| 7 Nckwala Nckwala Nckwala Nckwala de 50 quilómetros até Egundvwini para cortar ramos de lusekwane (um arbusto local) sob a luz da lua cheia. Segundo Dia: Deposição do Lusekwane – Os rapazes regressam por volta da meia noite e depositam os seus ramos de lusekwane num enclausuramento especial no curral real. Enquanto os rapazes descansam da sua jornada, os mais velhos entrançam os ramos entre os postes do inhlambelo – o santuário privado do Rei. Terceiro Dia: Dia do Touro – Manhã: jovens rapazes cortam ramos do imbondo negro (outro arbusto local) que são adicionados ao inhlambelo. Tarde: enquanto o Rei recebe os remédios tradicionais no seu santuário, um touro negro é atiçado para fora do curral. Os rapazes do lusekwane agarram e dominam o touro e retornam-no ao santuário. Aí é sacrificado e dele são retirados ingredientes rituais para o tratamento do Rei. Quarto Dia: O Comer dos Primeiros Frutos e o Lançamento da Cabaça – O dia principal: todos os principais participantes realizam um cerimonial espectacular dentro do enclau- suramento, onde o Rei e regimentos guerreiros aparecem vestidos em indumentária feita de peles de boi e leopardo e envergando os seus adereços de guerra. O Rei trinca e cospe certas plantas da primeira colheita no seu inhlambelo. Em seguida, come parte do interior de uma cabaça (abóbora) sagrada, luselwa, e lançaa para fora do inhlambelo, onde é apanhada com um escudo negro por um dos rapazes do lusekwane. Só depois deste ritual é permitido ao resto dos Swazis consumirem as novas colheitas. Quinto Dia: Dia de Abstinência, Descanso e Meditação – O Rei permanece em reclusão na “grande cubata”. Os bemanti circulam pela capital real fazendo cumprir as regras deste dia: nenhum contacto sexual, tocar em água, uso de adornos, sentar em cadeiras ou esteiras, apertar de mãos, coçar-se, cantar, dancar ou galhofar. Sexto Dia: Dia do Tronco – Os regimentos guerreiros marcham para uma floresta e regressam com troncos de lenha. Os mais velhos preparam uma fogueira no centro do enclausuramento. Nele são queima- dos certos objectos rituais, marcando o fim do ano velho, enquanto os participantes principais dançam e cantam canções que são tabu durante o resto do ano. O Rei mantém-se em reclusão até a lua cheia seguinte quando, para significar o início do novo ano, os ramos do lusekwane são removidos e queimados numa monumental fogueira, sendo então os espíritos dos ancestrais invocados para a apagar com água da chuva. O Ncwala termina com um grande banquete. E assim nasce um Novo Ano Afrikano, no Continente Berço e na sua Diáspora… Fazendo regressar a nossa memoria ancestral ao Continente Berço, encontramos um ‘parente próximo’ do Kwanzaa na nossa região: o Ncwala (tambem escrito Incwala) – o mais importante cerimonial tradicional anual em alguns países da África Austral, especialmente na Swazilândia, no Malawi e na Zâmbia. 8 | LETRAS 5 a 18 de Janeiro de 2015 | 2014 Visão panorâmica do ano literário nacional Cultura Isaquiel Cori O ano de 2014, no domínio da literatura angolana, caracterizou-se pela reconfirmação da veia criadora de um leque de autores há muito consagrados, a confirmação de um punhado de jovens e a revelação de outros tantos. Luanda deixou de ter o “monopólio” dos lançamentos de livros, com alguns autores, sobretudo neófitos, a preferirem serem eles próprios a editar as suas obras e a lançá-las, em primeira mão, nas suas províncias de origem ou residência. Com os lançamentos literários a ocorrerem nas várias cidades, um fenómeno propiciado, sobretudo, pela multiplicação das universidades regionais, tornou-se mais difícil acompanhar e avaliar globalmente a qualidade do que se publica. Passamos a apresentar um resumo do que foi publicado em 2014, uma visão que há-de pecar, certamente, por não ser exaustiva, tanto pela impossibilidade de podermos captar toda a dinâmica do mercado livreiro nacional como pela limitação de espaço. Desde já pedimos desculpas pelas omissões. O escritor Manuel Rui entregou ao público leitor, no dia 15 de Janeiro, o romance, "A Trança", editado pela Mayamba. Como o autor sinalizou, o novo livro representa uma mudança de estilo e de abordagem da sua própria escrita. "Talvez 'A Trança' possa ser encarada como uma mudança de estilo, uma mudança de ideias. Mudar não é triste, nem é triste mudar de ideias. Triste é não ter ideias para mudar". Na ocasião, a linguista Amélia Mingas diria que "A Trança" é, no fundo, o país que Manuel Rui tanto ama e que é um melting pot de saberes, de sabores, de ideias, pensamentos e criação próprias". Manuel Rui, pela mão da UEA deu a estampa, em Abril, o romance “A Bicha e a Fila”, escrito a quatro mãos com o escritor brasileiro Marco Guimarães. "O livro não é muito de humor, é mais chaplinesco. A comédia cruza sempre com a tragédia. [...] Quando há tragédia a gente pode dançar, chorar e rir ao mesmo tempo", explicou Manuel Rui. Ainda em Abril publicou “Quitandeiras e Aviões”, livro de contos. Maria Celestina Fernandes lançou, com chancela da Plural Editores, a 28 de Janeiro, nos vinte e cinco anos da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde, o livro “Lagoa Misteriosa”, vencedora ex-aequo do Prémio Caxinde do Conto Infantil relativo ao ano 2012. Segundo a autora, o conto foi idealizado a partir da visita que fez ao jardim Majorelle, na cidade marroquina de Marraquexe. “Saí de lá tão encantada que tive vontade de escrever alguma coisa”, disse, acrescentando que enquanto escrevia não lhe saía da cabeça “uma história que ouvi em tempos sobre o mito que gira à volta de uma das nossas lagoas, em que é preciso ter permissão dos mais velhos para mergulhar e passar por alguns rituais”. No dia 5 de Fevereiro foi lançado no jango da UEA o volume com as 12 edições do boletim “Cultura” (segunda série) da Sociedade Cultural de Angola. O trabalho, resultado de uma pesquisa e selecção de Irene Guerra Marques e Carlos Ferreira, foi apresentado pelos escritores e sobreviventes da geração da Cultura, Henrique Guerra e Arnaldo Santos. O livro da dupla de pesquisadores contém igualmente a reprodução de um relatório exaustivo e analítico da PIDE, datado de 17 de Setembro de 1965, sobre o que considerava actividades subversivas da Sociedade Cultural de Angola e do seu jornal "Cultura". Ainda em Fevereiro Hendrik Vaal Neto deu de presente ao público os romances “Gamal” e “Makala”. Segundo Carmo Neto, que apresentou a obra, Gamal é um intenso diálogo com a miséria, “socorrendo-se duma linguagem simples” que conta “a história de Mutama, um nobre e tradicional chefe africano, criador de gado, caído em desgraça por culpa do mundo: um homem outrora rico, presenteado com a desgraça como herança (…)”. Já “Makala” é um retorno do autor ao cenário do Roque Santeiro, o antigo mercado de Luanda, tido como o “maior de África”. “Esse motor da economia informal Luandense que alimentou milhares de famílias constitui o núcleo temático central da narrativa de Hendrik Vaal Neto”, constatou o escritor António Panguila, ao apresentar o livro. “Como narrativa que é, Kalucinga acaba por ser uma colagem ou, melhor, uma perfeita osmose entre a ficção, a realidade autobiográfica e a utopia da autora, que, sem pertencer Clássicos Ondjaki Marta dos Santos à famosa geração do mesmo nome, continua a sonhar com uma terra de justiça e fartura para todos num contexto histórico completamente diferente, onde em princípio o sonho da primeira geração já devia estar realizado mas não está, porque virou miragem”. Foi assim, de rompante, que o jornalista Reginaldo Silva começou por introduzir os potenciais leitores ao livro “Kalucinga”, da estreante autora Alexandra de Vitória Pereira Simeão. No Espaço Verde Caxinde, também em Fevereiro. Henrique Guerra, um dos últimos sobreviventes da geração da “Cultura”, cuja obra, como ele próprio diz, sendo “curta em volume”, tem o con- dão de ser uma das mais representativas da literatura angolana, voltou aos escaparates a 26 de Fevereiro com o livro de contos “O Tocador de Quissanje”. O velho autor foi homenageado em Janeiro pelo Ministério da Cultura e em Fevereiro pela UEA, de que é um dos membros fundadores. “O que me motivou a escrever foi uma vez ter lido no jornal ‘A Província de Angola’, lá para o ano de 1952 ou 1953, o poema do Aires de Almeida Santos, ‘A Mulemba secou’. Fiquei tão fortemente impressionado que tentei fazer uma música à volta desse poema”, disse, em entrevista a este jornal. “Verifiquei que para além daquilo que dávamos através dos com- Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 pêndios escolares, na disciplina de Literatura Portuguesa, havia uma realidade angolana, um quotidiano que estava arredado da literatura oficial”, explicou. Em Março, 07, o escritor Adriano Mixinge recebeu o Prémio Sagrada Esperança 2013 ao mesmo tempo que procedeu ao lançamento do romance premiado, “Ocaso dos Pirilampos”. O autor, no seu romance, desvela os medos e os fantasmas do homem angolano, imerso numa época de imensas encruzilhadas e incertezas quanto ao futuro e à própria existência. O livro já conta com uma edição portuguesa, pela editora “Guerra e Paz”. Brigitte Caferro publicou o poemário “Do Meu Íntimo Mais Íntimo” que, segundo o escritor Soberano Canhanga, nos seus 76 poemas “apregoa, acima de tudo, o amor, o ser e a sociedade”, sendo a sua escrita sobretudo intimista, com o seu grito a ir “ao encontro do ‘nós’ social”. Canhanga saudou Brigite Caferro, nas páginas deste jornal, como uma autora que “vem preencher o seu lugar e trazer vida à criatividade artística na Lunda Sul”. Arnaldo Santos deu à luz pública (27/03) “O Mais-Velho Menino dos Pássaros”, obra literária que emerge do Kinaxixi mítico da sua infância (que nem por sombras lembra o actual), em cuja floresta exuberante chilreavam as rolas, os bicos de lacre, os bigodes, os cardeais, os catetes, os maracachões, os pardais, os pica-flores, as pírulas, os rabos de junco, os siripipis e as viuvinhas negras. Está-se logo a ver, aquele Kinaxixi era o paraíso das crianças, que nele se entretinham a caçar os pássaros com as suas fisgas certeiras, quando não se ficavam simplesmente a admirar os muitos prodígios da natureza. O livro, que conta com ilustrações saídas da pena e imaginação de Luandino Vieira, contém, segundo o sociólogo Paulo de Carvalho, que o apresentou ao público na União dos Escritores Angolanos, “elementos que podem contribuir para os pais aprimorarem a forma de educação dos seus filhos”. Por sua vez Arnaldo Santos afirmou que “gostaria que o livro fosse um bom pretexto para (…) relacionamento e compreensão das coisas do mundo”. No dia 4 de Abril, o da consagração da Paz em Angola, Pichel de Lukoko, etnólogo, historiador e pesquisador da tradição oral, apresentou ao público do Huambo o livro “Wambu Kalunga em Elegia”, que, segundo José Luís Mendonça, que lá esteve e escreveu neste jornal, apresenta “o retrato literário do rei cuja autoridade perdurou pelas embalas e sobados que hoje integram a província do Huambo e à qual legou o seu nome para a posteridade”. No dizer do historiador Venceslau Cassessa, “o livro do mais velho Pio Chiwale tem muito mérito. Vem colocar um pilar muito importante no Lopito Feijóo LETRAS | 9 Jonh Bella Patissa e Ningi conhecimento do que é Angola. Porque é que o Huambo se chama Huambo. A história dos reinos da região do Centro de Angola”. Ainda segundo o historiador, tudo isso “são matérias que precisam de ser escritas pelos mais velhos”, para que o seu conhecimento não desapareça. “Quem semeia com dor, colhe com alegria”, resumiu assim o autor a satisfação por dar parto ao livro. A Mediateca de Benguela acolheu, a 3 de Abril, a cerimónia de lançamento do mais recente livro de poemas da autoria de Isabel Ferreira, intitulado “O Leito do Silêncio”, num acto co-organizado pela Rádio Benguela e o Movimento Lev’Arte. O docente e historiador Tuca Manuel, que cuidou da apresentação, sublinhou, segundo correspondência do nosso colaborador Gociante Patissa, que se estava diante de uma autora “a retratar a sua vivência e a de sua gente, mas sem ser com uma voz de soberba, portanto longe de alguém que se coloca no papel de subalternizar os demais em função das suas habilidades”. Por sua vez Mário Kajibanga, director provincial da Cultura, a propósito do livro referiu: “por um lado, podemos ver o conselho de não levarmos a público coisas que acontecem na intimidade do lar. Por outro, podíamos dizer que é a falta de partilha de coisas boas que pode levar a violências. Porquê calar, se podemos partilhar coisas boas?”. Carlos Ferreira, o Cassé, jornalista e escritor, entregou ao mercado (18/04, na União dos Escritores Angolanos) o livro “Memórias de Nós”, cerca de centena e meia de poemasletras para canções escritos ao longo de trinta anos, sendo mais de metade criados ao longo da década de 1980. A obra tem um enfoque geracional, sendo uma oferta do autor, sobretudo, mas não só, para aquela geração de angolanos que, no contexto estrito da literatura, o crítico literário Luís Kandjimbo cunhou como sendo Das Incertezas, e que Paulo Flores, num contexto mais geral, cantou como tendo sido feliz sem o saber. É a geração convencionalmente referida como a dos anos ‘80 e princípios dos ’90 e cujos integrantes estão hoje na faixa etária dos 40/50. “Janelas de Orvalho” é o livro de poemas de Graça Arrimar, apresentado por Agnelo Carrasco, que a dado momento disse: “duma temática inicialmente muito pessoal, a autora transita para temas muitas vezes mais universais. Poder-se-á dizer que a primeira parte não se continua na segunda. (…) Se na primeira parte os poemas constituem um conjunto homogéneo pelas afinidades de conteúdo que apresentam (…) o mesmo já me não parece tão linearmente possível na segunda parte”. Agnelo Carrasco sublinha: “os poemas, de um modo geral, não se continuam, cada um assume um conteúdo que não é repetição, nem continuidade”. “A vivência e a sobrevivência através de uma infância, adolescência, seguidas de uma juventude em tempos de possibilidades precárias; a desordem espiritual, colectiva, traumas antigos e do pós-guerra, bem como inconsistências e desnivelamentos que não vale a pena nem classificar nem enumerar”, segundo o poeta João Tala, “formam um quadro inquietante” que sobre um formato estético emprestam o conteúdo ao livro de poemas “Rua da Insónia – Um manifesto de inquietações”. O poeta António Pompílio, que apresentou o novo poemário a 25 de Abril, na UEA, lembrou que João Tala é médico e que, talvez por isso, no seu livro “ele faz um diagnóstico à alma”. Cristóvão Neto selecionou e reuniu alguns dos seus melhores poemas na antologia “O Lugar do Nome”, que apresentou ao público em Abril, na sede da UEA. “Apesar de sofrido, magoado, introspectivo, [O Lugar do Nome] é sobretudo uma exaltação ao amor, um verdadeiro canto de esperança, um hino à vida. É assim que o vemos. Recusamo-nos a vê-lo de outro modo”, afirmou o também poeta Conceição Cristóvão, ao ler o texto de apresentação que intitulou “Da Arqueologia da Palavra à Reinvenção do Signo”. “Mesmo sendo um livro muito profundo, o poeta teve o condão de utilizar uma linguagem magistralmente simples, apesar de conotativa, pelo que qualquer leitor poderá fruir de uma boa e enriquecedora leitura”, não necessitando de “mobilizar quaisquer competências específicas, típicas da crítica e análise literárias”, rematou. Em Maio Albino Carlos deu a estampa, com chancela da UEA, o livro de estórias “Issunji”, que em Novembro seria distinguido com o Prémio Nacional de Cultura e Artes. José Luís Mendonça escreveu no texto de apresentação: “das treze estórias, nove são aquilo que eu chamaria de painéis carregados de tintas emocionais e emocionantes. Consistem em flashes instantâneos em que a função poética da língua, em termos de fotossíntese, transmuta o quadro concreto da vida social em imagens ou frescos agitados pelo manancial de um surrealismo mágico”. A escrita de “Issunji”, prossegue JL Mendonça, “escorre como tinta de painéis expostos em série, dos quais o pintor teria escolhido como tema um país (Angola) e uma época (o conflito pós independência) e as suas bifurcações ou emanações calamitosas. Para sofrer a dor das armas, não é preciso estar debaixo de fogo. Basta nascer numa geografia conflituosa. Sofre-se na mesma”. E sublinha: “O estado da alma de um país. Um autêntico livro aberto que revela a história da desgraça inscrita nos destroços e traços da guerra”. José Luís Mendonça, no seu primeiro romance, “No Reino das Casuarinas”, que veio a público em Junho, “relata a história de sete angolanos vítimas da síndroma da amnésia auto adquirida, provocada por traumas devido à sua experiência de guerra, no período compreendido entre 1961 e 1987”, explica uma nota editorial da 10| LETRAS Texto Editores. “Durante o internamento no Hospital Psiquiátrico de Luanda, o grupo decide evadir-se para fundar um Estado na Floresta da Ilha de Luanda, denominado ‘Reino das Casuarinas’”. Por ocasião dos 90 anos do nascimento do Dr. António Agostinho Neto, poeta-maior e primeiro presidente de Angola, a Fundação Agostinho Neto pôs à disposição do público, no dia 14 de Maio, em Luanda, na sede da União dos Escritores Angolanos, o livro "A Noção de Ser" e o DVD "Portugueses Falam de Agostinho Neto". O livro, com mais de 800 páginas, é uma colectânea de 65 textos analíticos sobre a poesia de Neto, assinados por 62 autores, a maioria professores universitários, escritores e jornalistas de vários países e publicados originariamente em livros, jornais e revistas ao longo dos últimos 40 anos. O DVD reúne entrevistas, produzidas pela FAAN, de políticos e intelectuais portugueses, num testemunho audiovisual sobre a trajectória e a dimensão política, cultural e humana de Agostinho Neto. "O livro procura mostrar o mais amplamente possível os vários tipos de recebimento da obra de Agostinho Neto. Será um marco na história da recepção e do estudo da obra de Neto", disse Pires Laranjeira, professor da Universidade de Coimbra, o principal organizador da publicação. Em Setembro foi apresentado em Paris, França, o livro “Poésie Complète de Agostinho Neto”, numa iniciativa da Embaixada de Angola, no âmbito das comemorações do Dia do Herói Nacional. O livro “Ombela – A Estória das Chuvas”, de Ondjaki (texto) e Rachel Caiano (ilustrações), editado em Junho pela Plural Editores, traz uma estória singela, própria para encantar os petizes, e introduzi-los, pelas e com as palavras, no mundo do maravilhoso. A estória, premiada no concurso do Conto Infantil da Associação Chá de Caxinde, 2012, situa-se na corrente daquelas que buscam preencher a curiosidade natural das crianças pelo conhecimento da origem e da razão primordial das coisas. Ombela, que em umbundo significa chuva, é o nome de uma deusa criança, que, lá longe na escuridão dos tempos, entediada com a sua majestosa divindade, estava cheia de tristeza. Decide então chorar. As suas lágrimas salgadas caem em forma de chuva e formam os mares e os oceanos. Mais tarde, já de bom humor, chora de alegria, derramando agora lágrimas/chuvas de água doce, alimentando as plantas e criando sobre a terra inumeráveis rios e lagos. Em Junho o Jardim do Livro Infantil foi o palco escolhido para o lançamento de várias obras literárias para crianças. Em Luanda, num ambiente festivo como só as crianças sabem protagonizar e proporcionar, as escritoras Maria Eugénia Neto e Cremilda de Lima apresentaram-se para auto- 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Manuel Rui Monteiro grafar os respectivos livros: “Os Animais de Duas Gibas” e “A Montanha do Sol”; e “O Kyanda ni Kaulungu ka Fuxi”, este em kimbundo. Rotane Sandjimba, que se estreou em livro em Agosto com “Em Busca da Dignidade” (Editora Mayamba), romance que recupera a memória das peripécias dos que partiam para as Lundas na miragem de enriquecerem com o garimpo de diamantes, é um caso de autor promissor que deve ser devidamente acompanhado. O escritor e político Manuel Pedro Pacavira propôs à leitura, em Agosto, o livro “Angola e o Movimento Revolucionário dos Capitães de Abril em Portugal – Memórias (1974-1976)”, com prefácio de Aldemiro Vaz da Conceição e chancela editorial da Mayamba. A obra “é uma peça preciosa para melhor se compreender o período conturbado entre a queda do fascismo em Portugal e a proclamação da independência de Angola (…)”, refere o prefaciador. “A obra "Surrealismo do Quotidiano", da autoria de Djina, pseudónimo literário de Dina Sebastiana de Sousa e Santos, é para todo e qualquer leitor um estimulante desafio de sobrevivência a um quotidiano como o é o surrealismo”. As palavras são do académico António Quino, quando falava sobre o livro no acto do seu lançamento em Setembro, no Espaço Caxinde. “No primeiro contacto com o livro, perguntei-me: que estratégia de leitura devo adoptar para responder a uma inquietação minha, e que espero seja também vossa: Por que razão julgo que devem ler "Surrealismo do Quotidiano"?”, interroga-se António Quino, para, no final, convidar os leitores a, com a sua própria estratégia de leitura, deslindarem os muitos novelos da obra. O novo livro de Lopito Feijó, “Desejos de Aminata”, publicado este ano em Luanda, é uma incursão poética e exploratória pela topografia e a toponímia do corpo feminino, do desejo carnal, do amor físico. Essa incursão exploratória é tão profunda e ousada que chega a ultrapassar os limites convencionais do erótico. “Esta obra, ‘A Poeira do Tempo’, apresenta-nos um Escritor na sua pulsação íntima de jornalista e poeta. O estilo é preciso, conciso e claro. E há centelhas de poesia a faiscar do comboio da escrita. E um certo filosofar no pensamento simples dos personagens em situações extremas da vida, quando a morte é uma espécie de lenitivo para o sofrimento ou quando a lei da sobrevivência os leva a retirar do âmago um último resquício de força”. Palavras ditas por JL Mendonça na apresentação, em Outubro, da última entrega literária de José Mena Abrantes. Nok Nogueira, igualmente em Outubro, lançou “As Mãos do Tempo”, com chancela da editora Nóssomos. De acordo com Jomo Fortunato, que fez a apresentação do poemário, “se ‘a função faz o órgão’, um processo realizável no tempo, entenda-se que a função aqui é sinónimo de trabalho, então ‘As Mãos do Tempo’, enquanto proposta literária, é também Cultura uma reflexão sobre a origem da espécie humana, mais como evolução do que como criação”. O docente e investigador António Quino autografou para os presentes na União dos Escritores Angolanos no dia 18 de Outubro, o livro “Duas faces da esperança: Agostinho Neto e António Nobre num estudo comparado”, um ensaio prefaciado e apresentado pelo Professor Francisco Soares. Com vista a uma “maior divulgação e internacionalização da literatura angolana”, a União dos Escritores Angolanos (UEA), em parceria com a LEYA-Texto Editores, fez o lançamento na livraria Buchoolz em Lisboa, no dia 7 de Novembro, da colectânea de 42 estórias, nas quais “sobrevivem analogias, relativismos e paradigmas da literatura angolana”, no dizer do secretário-geral da casa dos escritores angolanos, Carmo Neto. Com o título “Estórias Além do Tempo”, a antologia inclui 17 escritores: Arnaldo Santos, Dario de Melo, Carmo Neto, Fragata de Morais, Henrique Abranches, Henrique Guerra, Isaquiel Cori, João Melo, João Tala, José Eduardo Agualusa, José Samuíla Kakweji, Luís Fernando, Marta Santos, Ondjaki, Pepetela, Roderick Nehone e Sónia Gomes. Fragata de Morais voltou à publicação com o livro “A Visita”, um texto do género dramático, editado pela União dos Escritores Angolanos. Com uma trama intensa e inusitada, o seu novo livro traz à cultura literária angolana personagens memoráveis como Carla, uma viúva quarentona, carente de afectos íntimos, e Dany Boy, um ladrão “bem educado”, sensível. O GRECIMA deu continuidade ao projecto 11 Clássicos da Literatura Angolana, com o lançamento da segunda colecção, em Novembro. Desta feita foram escolhidas as obras “Uanga”, de Óscar Ribas, “Poemas”, Viriato da Cruz, “Obra Poética”, Mário António, “Poemas Completos”, Alda Lara, “Meu Amor da Rua 11”, Aires de Almeida Santos, “A Konkhava de Feti”, Henrique Abranches, “Colonos e Colonizadores”, Raul David, “Gente de Meu Bairro”, Jorge Macedo, “Estórias do Musseque”, Jofre Rocha, “A Morte do Velho Kipacaça”, Boaventura Cardoso e “A Casa Velha das Margens”, de Arnaldo Santos. Na ocasião foi também apresentada ao público a Colecção Novos Autores, nesta primeira edição composta pelas obras “Fátussengóla, o Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas”, Gociante Patissa; “Na Pele de Zito Maimba”, Paula Russa; “Proficuidade”, Carlos Bengui; “Sonhos Bordados”, Yola Castro;”…E lá Fora os Cães, Ras Nguimba Ngola; “O Coleccionador de Pirilampos”, Soberano Canhanga; “Verso Vegetal”, David Capelenguela; “Mukandas Angolanas”, Jorge Salvador; “O Homem da Casa Amarela e Outras Histórias”, Gaspar Lourenço; “Incertezas”, Katya Santos; e “Humanus”, de M’Bangula Katúmua. Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 Os 9 passos que retardam o desenvolvimento da Literatura Angolana na contemporaneidade LETRAS | 11 Araújo dos Anjos C resci a ouvir que os antepassados nunca se calam, nunca morrem; apenas adormecem na memória cultural de cada povo. A nossa tradição cultural e literária, em particular, há muito que tem sabido conservar nas paredes do seu âmago as marcas da sublimidade da nossa civilização pintadas por mãos que partiram a taça do insensato para lograr à posteridade um trago do cálice do que do nosso solo já se fez de mais bonito. Por isso, sempre que tomo um pouco da porção da escrita, procuro deixar cair umas gotas da minha caneca, em homenagem àqueles que morreram de seca, na mata do Mayombe, na chana do Leste, onde todos os dias chovia sangue, para que hoje nos pudéssemos gabar do azul das nossas veias. Pois, eu sei que mesmo que cantemos as mais vivas canções da nossa alma, não são nossas as canções; são cantigas que nascem do ventre da terra. Mesmo que levemos lanternas, nunca seremos a luz… Tem luz aquele que de uma faísca forja o farol da sua liberdade e dos seus. Então, concluo: “os antepassados nada nos devem!” Souberam desempenhar o seu papel, escreveram o que tinham de escrever, deixaram os seus escritos como códigos de luta por uma Angola Literária fundada no imaginário cultural do seu povo. Ora, o reconhecimento do peso irrefutável da memória da tradição literária tão bem celebrada durante décadas não me impede de, portanto, aviltar a necessidade de, nos dias que correm, começarmos a limpar a nossa casa dos fantasmas da história. Repare-se que os antepassados são os nossos mestres. E a parábola do Sumo-Mestre sobre os dons é clara. Se considerarmos toda a memorável produção literária já cultivada como as moedas que foram dadas ao mancebo, perceberemos efectivamente que a herança (cultural) nada servirá se a não investirmos nos canteiros da causa dos nossos dias. É preciso multiplicar os dons, investi-los, deitá-los no nosso chão lavado com as nossas salivas maldizentes, para se poder, em fim, colher o fruto mais saboroso Benguela -Ganda a Chicuma da tradição – a perpetuação do legado, a fixação da memória cultural do nosso povo, através da literatura. A Literatura Angolana de gema sempre foi comprometida com os encantos e desencantos dos seus dias, uma literatura assente no imaginário do povo angolense, uma literatura que muitas vezes saiu à rua sem capuz, consciente, portanto, de que a morte na métrica ou num parágrafo qualquer não é morte, antes a ascensão a uma vida sem morte – a eternização das marcas de hoje – sem dúvidas, um passo sublime rumo ao átrio da Pasárgada. Contudo, é importante reconhecer que cada tempo dita a sua própria estética literária. Assim, se é verdade que nem tudo o que hoje se diz literário tem “littera” e “-ura”, é verdade também que há muito aperfeiçoamento subjectivo da alma do nosso povo em linhas que, infelizmente, não cabem nos tecidos finos da crítica literária de conveniência da actualidade. Ouço pesadas críticas à Literatura Angolana feita na actualidade, por gente de hoje, sublinhe-se. Mas, poucos são os pastores que vejo interessados a apascentar as ovelhas; a maioria prefere os púlpitos aos campos, já que o ministério está mais lucrativo do que nunca. Por outro lado, há, por aqui, certos olhos programados para determinadas pinturas, para os quais toda a manifestação artística que não se enquadre na sua matriz estética não é digna de alguma apreciação, porque a literatura é como sal, não presta, se não salga e, como é da praxis, a panela da avó faz o melhor feijão. Então, se a literatura que se vai produzindo um pouco por este vasto mar não salga é porque é incapaz de conter a corrupção das sereias cultas de hoje, ou porque os leitores é que não se deixam salgar, parafraseando, aqui, Pe. António Vieira? Convém chamar os leitores a esta reflexão, pois muitos alegam que um dos principais desincentivos da escrita actual é a falta de leitores (não concordo, mas deixemos este assunto para outro tópico). Não pretendo, aqui, levantar uma querela entre os “Antigos” e os “Modernos”, como nos séculos passados, muito menos questionar o “bom senso” e o “bom gosto” de ninguém. O que acho mesmo é que é oportuno que se faça uma moratória, para, em fim, reflectirmos todos no futuro da literatura Angolana, considerando que as mãos dos jovens escritores de hoje foram corrompidas com a sensibilidade das urbanizações, tornando-se, por consequência, incapazes de sustentar o ímpeto estético da Mensagem das muitas gerações passadas, segundo a leitura dos que sabem ler textos literários. Ora, não sendo eu um crítico, nem poeta, nem escritor, dou-me por feliz por me ter sido dada a oportunidade de levar à praça pública alguns dados que julgo contribuírem para a inflação do nosso mercado literário (como se tivéssemos). Confesso que há muito que não leio versos, nem parágrafos que desafiam os limites da condição dos seus criadores e se recusam a dizer sequer uma palavra à pantomina. Mas, dou o benefício da dúvida, talvez a literatura ande por aí, mas, por eu não saber ler, ou por eu estar tao distante da urbe… Entretanto, para não me assemelhar àqueles que só falam e falam como as enciclopédias o que percebem como o vento, sem, no entanto, proporem soluções, diria mesmo 12| LETRAS “propor velas”, visto que também sou um aventureiro abordo dessa nau, passo a marcar 9 (nove) passos dos muitos que, em minha opinião, retardam o desenvolvimento da Literatura, nos nossos dias. • A obsessão das supostas instâncias de legitimação da literatura por um cânone literário ideal, transversal e paradigmático para todas as épocas é um cancro que se alastra e contamina a flora normal da criação contemporânea. • A falta de um ideal de causa. Dáme a impressão de que muitos companheiros escrevem por escrever, o que leva, progressivamente, à morte do artista hodierno. Logo, é importante que cada companheiro saiba com que a sua arte é comprometida. Um artista que não sabe por que escreve pode ser comparado a um peregrino que desconhece o seu carma. • Todos querem escrever, mas poucos arriscam “O Grande Desafio” de renunciar aos limites da sua condição e começar a viver como artistas. Pois, penso que não se pode ser “homem” e “artista” intensamente, ao mesmo tempo; um tem de viver à sombra de outro. • É necessário que cada escritor tenha a noção “do criar com os olhos secos”, o que, para mim, significa ter noção das vicissitudes que o turbulento mar da escrita implica. 5 a 18 de Janeiro de 2015 | • É importante o posicionamento exacto do autor no seu tempo, para, em fim, quem sabe, poder ultrapassar o horizonte de espectativas. Vejo muitos companheiros a tentarem atrair a simpatia dos Seculos, carcomendo os seus dentes de falsidade. Mas, digo, a prova da experiência não está no cabelo branco, que muitos tentam buscar forçosamente, mas no amadurecimento, na vivência contagiante de cada estação, cada dia, cada minuto; na vivência da sua própria vida no parágrafo ou no verso. • A crescente abertura, no que toca à divulgação da arte literária, corrompeu a castidade dos templos. Ou seja, escreve-se mais, para se aparecer mais, porém, medita-se pouco, o que é fundamental para todo o artista, para a elevação da alma. • Há, por aqui, quem confunda transposição da vida no e para o literário com o culto do vulgo com a linguagem artística. É importante combatermos isso, para não cairmos na vulgarização do dom de certos espíritos. • Há provas de que a literatura, aqui, participa na vida do povo. Mas, tem de ser parte integrante dele, dos seus hábitos e costumes. A verdade e a mentira não importam neste mundo possível, está provado. Mas, o binómio ficção-realidade na arte literária tem que funcionar, para que o povo se reveja nela. kukala kuzonga okididi kiki wambata athu kutangela, sekukala ni kuzakama kwa kutambula owukumbulwilu, kuma okiteku kwebi mwanya ulondekesa owunzungule wa luminiku lwe, wezala mwenyu wavulu kwila, sekwandala, ulayesa mutumane woso woso uximana, mu kitangana kyoso kyoso kya kizuwa, kutumana mu ndundu ku mbandu ya kalunga ka Lwanda, mwazanga mwenyomo, mu kusambuka we hanji kyandalu kimoxi kyolande ni kamuswinyi kambiji kyozuze um kanu ni kafwadinya ke kyolungise we hanji mu kamenya kofele mu dilonga, kima kyohabike kwala mukwa zanga mu kwivila ku mbanji ye kya, okwaba kwa kukala mona ya akwa zanga enya kwila kulenduka kwa kwatungu mu makanga ma kalunga kwenyoko! 4.- Mu kumona mu kifwa kyenyeki pe, odiyala pe, okalunga kaka, ombiji iyi ni kafwadinya mu dilonga kya ni kamenya we hanji kakambe mongwa, abeka mu kilunji yoso yakexile okihanji kya ndumba dya athu kusambuka mu kamukanda kimoxi anga mu mulele woso woso wa muteke, kima kima kyonzo bana kuzediwa kya kusendula, mukonda ngo dya kukala muthu kumutalela, sekukala ni jipata ja kukala ku polo ya mbutu ni jihatu je kumoxi, kwila mu mawukambelu ma okuswina kwa mwenyu utalala. 5.- Ondonda ya ngunga yazozo kwila ukatesa mwenyu mu kuzumbuka kuzola, ukambesa ngunga kwa yo ukwata mu kwambela kuma iyi mwondona okwiba umukatesa, mu kifwa kya hulakaji wa usatelu, owusembelu kwila mbutu umulumbu mu uvwalelu we. 6.- Ndonda ya kwiba kwila ukatesa muxima wa, mu kizuwa kyakakwiza, kuzediwa, owukambelu wa kuzola udyendesa ni makanda me masanzumuka mu kusota mukwanyi walungu mu muxima okutululuka kwanzambi kwila ububala muxima wadisanze kwila usanzukila, ni kuswina kwila muxima wenyo ulembwa kuweha, okuwaba kwila mbutu, awa, ki isu- Cultura • “O fraco investimento linguístico e estético”. – Confesso que não gostei da expressão a primeira vez que a ouvi e, coincidentemente, de alguém a quem chamo Mestre, José Luís Mendonça, em conversas particulares. Hoje, porém, percebo que é um ponto digno de abordagens sérias. – Advém das debilidades a nível do ensino da língua veicular e da iniciação ao estudo do texto literário, desde os níveis de base. A escola deveria ter, neste particular, como um dos objectivos principais a estimulação da capacidade dos alunos para participarem na vida literária, parafraseando Humberto Ivo (Bredella:1989). É, portanto, hora de começarmos a marcar passos significativos, para que não venhamos a dar desculpas farrapadas aos arqueólogos do futuro, quando vierem a estudar o que tiver restado do nosso tempo e perceberem que, definitivamente, esta é uma época em que nada se faz no domínio da literatura, parafraseando o poeta português Alberto Pimentel. Pois, a nossa era corre o risco de ser considerada como uma época vazia, um tempo em que nada se faz, no domínio da representação simbólica do homem e dos seus valores através da escrita. OMUTEKAME NI MULELE WE WA KUTEKA Mário Pereira 1.- Kyoso kinzunzumbya kyandondo ubikisa mwanya kulenga, ditadi dimoxi dya kudyelela uvwalela dingi kwa muthu una wala ngo ni upulungu kwila ukambelu wa menya umubeka anga, um kifwa kyenyeki pe, ondomba ilemba dituta dyaxikelela ixinda mu muxima wa athu ditadi dimoxi dyatekiwa ni kudyelela mu mbamba yeyimana kwila uwanena we hanji ombuthu wa kitande mu mbandu jiyadi! 2.- Oditadi kwila mwanya, mu nzungule ya ufolo we, usanyesa omwanya we kwila uxinjika we hanji owusuku mu kilunga kya kalunga, ubana we hanji owubwiminu wa muthu una wala ni mbande mu tulu we kwala kumuminya, mu kuximana woso wezala mwenyu mu dizwi dye mu kwambela kuma wazediwa woso wala ne ku mbamji ye; anga wakambe kuzediwa woso wakal mu kwivila kuma okuya kwe kavutuke dingi kyoso, kidyelele, uzumbuka woso ukala mu kubanza kuma mwanya ufwa! 3.- kukala ni muxima umoxi mu wama mu izuwa yoso! 7.- Mu kukumbika okulula kwa musanu ubandesa mbimbi ya uxiximinu mu kisuku kya kizongelu ni kizongo kilembwa kubita ku polo ya dikwinyi, muthu umoxi watuluka ufuluka mu kanu mu kukumbulula woso umutandahanyesa, anga umwemwesa we hanji athu akamukwa ala, abutama, ku mbandu yakamukwa ya kisuwamenu ni mahaha mu kanu ku tandu dya ukatelu wa kuxixima kwa, anga ditadi dyenyodyo ubana we hanji owukambelu wa pangu ukatesa woso ukala mubika wa Ngana Nzambi! 8.- Anga, omuxima wenyo pe, mu kukala mu kwivila owukatelu wa makutu kumubokolwesa mu matwi; mu kukema ku tandu dya ukatelu wa kasekelu katunda mu kanu wa athu ana akamba kubanza kuma makutu yoso iyi idisanga, mu dikungu dyenyedi, kwila dizumba odyo dyabolo disanduka woso wakexile we hanji kumuzukama, ulengesa woso ki muthu usambuka ngo odisunga mu mukutu ni mwenyu, mba Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 LETRAS| 13 we hanji ukala mu kwiva mu kiba kye owunemu wa kilunji kyakambe kudilanga. 9.- Okudyelela, kwila okukala kwe kwawisu usanduka odikouwa dyakukuta dya kuma kwabeta kutema, wiza ni kamwanyu ke kwala muthu kamumone kubambuka omukawu wa ukukutilu walungiwa kwala ububilu wa dituta dimoxi kwila mwanya, muvwale wa ndonda ya mwenyu kwila mwene omenya, ubukumuka jinga kuzalesa jimbambe je, mu dixi kwila utundisa, moxi ya ubetelu wa utemenu we kwa menya malenduka ma kixima kwila disenza dyoso dyoso dimuzalesa kwenyoko, kisendulu kya muthu ufika kuma wala ni mbande ya ku kawuka ku ditadi dyenyedi dyakambe kulenduka, okididi kyanzambi kyala ku polo ye! 10.- Owuhanjikilu, wotekame ni mbimbi imoxi isendula muxima wakambe kelenduka, ukalakalesa okyandalu kya kusambela lumbu lwakolo lwa kwila kukamba kudyelela ubika, mu kubandesa omuxima wadibale we kya mu malouwa ma ukambelu wa kuswina! O PINTOR E A SUA TELA 1.- Quando a sombra negra impõe ao Sol a sua fuga, um quadro de esperança renasce em quem não tem senão penúria que a falta de água trás e, aí sim, a penumbra que a nuvem negra oferece desenha na alma um quadro pintado de esperança na haste aprumada que divide um bago de feijão em dois! 2.- O quadro em que o Sol, em plena liberdade, irradia a luz que empurra o anoitecer para as trevas do universo, dá respiro a quem tem peito capaz de o absorver, enaltecendo quem de viva voz afirma que é feliz quem o tem por perto; infeliz quem sente que a sua ida não tem regresso quando, afinal, quem fina é quem pensa que o Sol finda! 3.- A unanimidade na apreciação deste cenário leva a dizer, sem o risco de alguém contradizer, que a pintura em que o Sol mostra a plenitude da sua luz é tão viva que, sem querer, aviva qualquer conviva que estima, a qualquer hora do dia, estar presente à beira-mar de Luanda, na ilha, ostentando um querer alcançado com um mufete na boca e farinha mergulhada na água de um prato, coisa que ilhéu inventou para sentir de perto quão bom é ser filho do mar cuja ternura habita os campos da eternidade! 4.- Assim visto, o homem, o mar, o peixe e a farinha num prato com água sem sal, trazem à mente o que era desejo de muitos estaparem no papel ou numa tela qualquer, aquilo que daria um prazer extasiante no simples facto de alguém estar a olhar para ela, sem dúvidas de estar perante a natureza e os seus elementos, sem os quais a vida robusta arrefece. 5.- A causa de um lasso enlace que enferma a vida ao finar o Albano Neves e Sousa - Rapariga amor, desusa quem diz ser sina o mal que lhe enferma, em mil sacrifícios, o encanto que a natureza à nascença lhe ofertou. 6.- Causa de um mal que faz doer o sentimento de um dia vir a ser feliz, o desamor caminha a passos largos à procura de quem tem guardado na alma a quietude divina que abraça um são coração que expande, com um vigor que a alma não dispensa, a beleza que a natureza, enfim, nem sempre esconde! 7.- Enfrentando o dissabor de uma notícia que faça elevar o tom do desagrado ao extremo de uma escala cujo valor não ultrapasse a dezena, um pacato cidadão espuma a boca ao ripostar quem o alvoroça, fazendo rir aos que se acham, agachados, no outro lado da barricada a gargalhar sobre a dor da sua desventura, dando ao quadro a virtude ausente que enferma quem é servo do Senhor! 8.- E, a alma, ao sentir a dor da mentira invadir-lhe os auditivos; ao gemer sobre a dor da chalaça que sai da boca de quem não pensa ser mentira o que se acha, na tal caverna, cujo odor imundo afasta quem dela se abeira, afugenta não só gente que estampa a prudência no corpo e na alma, mas quem sente na pele o peso da mente incauta. 9.- A esperança, cujo verde afasta o castanho seco da estação mais quente, vem de mansinho para que ninguém a veja atravessar o deserto duma secura vencida pelo cachoar de uma núvem que o sol, progenitor da fonte de vida que é a água, ousa, amiúde, encher os seus limites do vapor que extrai, sob os açoites do seu calor, da água mansa dum lago que um baixio qualquer acama, enlevo de quem se acha capaz de transpôr para a tela impaciente, o cenário divino à sua frente! 10.- A ansiedade, pintada num tom que enleva uma alma carente de emoção, activa o querer de transpôr a forte barreira que um desespero impõe, elevando o sentimento caído na lama do desalento! 14| LETRAS 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura Poemas de Nobre Cawaia Ego, afundei vendo-o rio, encontrei no umbigo. Alter, enalteci no verso, mas contei ingratidão! Outro não sou, Nós cansou... Voz não dou. Faz teu meu. Meu teu desfaz... Abraços a ti-mim, Próprio tu-eu! Ego, eco, foco: - Centro eu. 11.10.2014 INTERACÇÕES Geração, da utopia, de libertação com nostalgia, vive tradição, ontem fez. Geração, da tecnologia, de emoção, com cantoria, vive revolução, amanhã fará. Gerações, cruzam de magia, vivem contradições, numa vã simpatia, gladiam acções, comungam contrastes, hoje fazem. 21/02/2013 SEM SENTIDO Belo invisível, Monocromático mundo, Enegrecido, não há ver, Cego mais, de tanto querer. Não se sente o relevo, Desapareceu o frio e o calor, Já não magoa o cacto, Negaram o tacto. Habito no lar do silêncio, Desconheço o som, Danço em surdo ritmo, Desgraçaram o ouvir. Igual doce e salgado, Tem defeito o paladar, Muito sabor imperfeito, Tiraram qualquer gosto. Perfume inexistente, Lacrimogéneo ineficaz, Desapercebe-se o cheiro, Entregaram o odor ao coveiro. Quando não mais: Ver rostos, Tocar corpos, Ouvir vozes, Provar sabores, Cheirar perfumes. Ainda assim se sentirá: Com o supra sentido, o tal amor. SOBERANA DO CORAÇÃO Jamais saldarei tal dívida, É muita dor a que causei, Tudo porque querias dar vida, Desavergonhado, até teu riso já apaguei... Como fruto do amor me concebeste, Ainda assim mal-estar provoquei, Que só com divina paciência meses aguentaste, Porque propuseste-te em dar luz, comprovei. Sou do teu colo tão dependente, Dele não me posso afastar, Do teu leite tão carente, Sem o qual fome e sede hão-de matar. Professora a tempo inteiro, Mestre, contigo aprendi a caminhar, O abc que é da vida ponteiro, Por eternidades lembrarei as lições de amar. Na tua energia engrandeci, Ah! Sei que essas lágrimas a ti não abalam, Teu suor... foi por ele que venci, Contigo todos os medos vazam, Perdoa aquelas incompreensões, Não existe adjectivo para o que és, És a bandeira dos campeões, Arquitecta de mim da cabeça aos pés. Tantas foram as tuas noites em branco, Que o meu sonho fortificou, Fiz da tua generosidade meu banco, Portanto rico é o que sou. Não sei porquê te mereço, Se és a oferenda dos céus, Só te posso dar o meu apreço, Querida mãe, soberana do meu coração. Luanda, 2.04.2008 Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 “Da alma ao corpo”, de Ngonguita Diogo Espaço poético, tempo e articulação temática * LETRAS | 15 Noberto Costa A ntes de todo o resto, gostaria de saudar o amável convite que me foi endereçado pela autora, para apresentação deste livro. Três traves mestras vão presidir a minha intervenção, designadamente o espaço, o tempo e a articulação de ambas categorias filosóficas com a temática. O espaço poético: a mãe natureza, as exuburantes e luxuriantes paisagens bucólicas, o verde capinzal da sua mocidade, no seu privilegiado torrão natal no Kwanza Norte e cercanias, a vivência no Uíge onde o pai trabalhara, o sol, as aves a disputarem o seu quinhão lá no céu, a culinária baseada nas ervas e nos demais quitutes da terra, são a substância nutritiva, com que se alimenta o seu imaginário criativo e onírico; mundo de sonhos, fantasias e verdades, plasmados tinto de sangue, suor de sacrifícios incontidos, luto e lágrimas derramados no papel preto no branco. Mas, as matrizes discursivas são também o amor, o erotismo, a paz, e a nossa sofrida e bem querida Angola e a nossa tríplice amada África: mãe uterina, continente onde nascemos, e berço da humanidade. Tempo: Ngonguita Diogo condensa o tempo no verso branco ou rimado. Cultiva com criatividade e sagacidade o soneto. Na sua temática dá largas à saudade, nomeadamente a nostalgia da infância, a ansiedade pela chegada do parceiro e pelo futuro que se busca radioso, a angústia, a frustração; a tristeza “versus” alegria, anunciada no sorriso do luar, bem como a (des)esperança, mais do que isso a certeza. De resto, a luz “versus” escuridão, a ignorância “versus” lucidez, são referentes contrastivos de peso da poética em questão. ND encontra na poesia um expdiente de análise para o seu meio circundante. A poeia para si serve para preencher, ou melhor, para responder às suas inquietações existenciais; o meio para preencher o espaço do lúdico e não só. No fundo, no fundo, “radicaliza” a sua posição de observador social, fazendo apelo a um instrumento de luta individual e colectiva, traduzido na poesia: intimista , por um lado, e de intervenção social, por outro. Na verdade, a autora assume uma postura engajada que fez época, paredes meias com um forte lirismo, nomeadamente na geração da Mensagem dos anos 50, onde pontifica a voz femenina da Alda Lara, salvaguaradas as devidas propor- ções, e a dos anos 80, onde se acha ainda que de forma retardada... Atenção: não se queimam etapas em poesia, sem prejuízo do meio envolvente! “O poeta não deve olhar para as nuvens, deve buscar o sentido da sua poesia na realidade que o rodeia”- diz Amilcar Cabral. Na verdade, sentimento estético e realidade se constituem ao mesmo casal dialético. O poeta e artista plástico brasileiro, Fábio Pinheiro de Lira, escreve a propósito, no seu texto introdutório do livro, inspirando-se no célebre poema “No meio do caminho tinha uma pedra”, que do seu famoso conterrâneo já falecido, o poeta mineiro nascido em Itabira, o modernista Carlos Drumond de Andrade, que “Do mais âmago da alma, eclode a poesia de N. Diogo, com a trajectória de um incansável poeta em busca de novas andanças sob o sol e pedra que não está em seu caminho. Ela,a pedra, não lhe impedirá de revelar sua escritura poética tão dura em razão, mas saciável a sede da emoção e da liberdade de pássaro que se busca em si (...)A autencticidade de sua raíz, de sua cultura nobre.” Como é sobejamente sabido, Drumond influenciou poetas angolanos da geração de 80 e subsequentes, ou mesmo precedentes, marcando inclusive o título da primeira antologia de jovens poetas, publicada pela UEA, em 1989, intitulada “No caminho doloroso das coisas”. Portanto, recomenda-se a leitura destes poetas da velha gurada e da nova geração, para enriquecermos a nossa cultura literária!... É destas dores e desventuras de que N.Diogo não anda arredia, nem indiferente. Vale receordar que em meados dos anos 80, o falecido jurista e arguto ensaísta Eugénio Ferreira, insurgiu-se contra o facto dos poetas angolanos estarem a escrever mais sobre o amor, perante uma dura realidade, cruel e dramática, traduzida no facto do conflito militar ter atingido o pico - tema da guerra a que Ngonguita, como se pode ver no poema “filhos da pátria” e “Independência”, não omite, muito menos negligencia. - altura em que os rebeldes assassinavam populares aqui próximo em Catete, arredores de Luanda e cercanias. Foi a partir desses tempos de que vos digo, que surgiu as “makas à quartafeira”, sendo ele o primeiro palestrante, dada a repercussão da sua afirmação no marasmo da cena literária local. Hoje por hoje os tempos são outros, tempos de paz. Voltando a ngonguita diogo, é desses tempos de pomba branca, de animada vivida vivida de que a autora também nos fala, de forma desapaixonada, no seu poemário, sugestivamente intitulado “Da alma ao corpo”. Rigorosamente falando, o sujeito do enunciado reporta-nos aquelas e outras makas, outros dias e outras feiras, que entumecem os estomâgos de vaidades, barriga farta, enquanto não se atenta para as coisas do espírito que a verdadeira poesia potencia. N.Diogo responde a esse chamamento telúrico e criativo e fá-lo com garbo retórico no tratamento da palavra poética, com recursos estilíticos multíplos, nomeadamente, a incidência reiterativa da carga anáfórica e da sugestão metafórica, sem prejuízo da hiperbole provocativa aos mais cépticos da sua aventura, de correr o risco de arrisacar a arte de “poetar”. Eficiência comunicativa e eficácia estética não lhe faltam, verseja com mestria, salvo um ou outro rasgo falho à beira do conseguimento estético no apuramento da palavra. Porém, ninguém ainda foi capaz de produzir uma obra perfeita, por mais hermética seja ou aberta que fosse, à boa moda experimentalista.Aliás, os mestres da teoria da literatura não seriam para aqui chanados, com exigente abstracção da sua erudição. De maneira que nos seja permitido o juízo de valor, com toda a modéstia que o limite do nosso nervo crítico permite: a maior parte dos poemas que compõem este poemário que tendes entre mãos são bons, sendo um livro de estreia, no génro literário por banda da autora, em nada fica a dever quando muitos mais velhos ainda eram neófitos. Falamos isso com todo peso que a responsabilidade acarreta e o sentido do belo, em que se escora a arte implica. O lirismo de “Alma ao corpo” evoca o amor perdido e achado nos desencontros da vida. Este carácter instrumental da poesia, do verbo como fonte de inspiração e de novas imagens artísticas, visuais e-ou sonoras, é transdendental na obra poética de N.Diogo. Vejamos os poemas líricoamorosos que estão inseridos neste livro, que são profundamente expressivos de que o AMOR sempre vinga, em surdina ou não, mesmo quando tomado pela crise momentânea, seja quais forem as contrariedades da vida,da sociedade e da natureza humana. Ademais, sendo certo que o Amor não se esgota no prazer carnal... “O homem é a arte”- dizia Buffon. A mulher é a poetisa, por excelência, nos cantos de ninar para fazer dormitar a criança choramingona. A ternura da mãe ( e já agora do pai também) é um bom motivo poético. Daí à sua evocação constante vai só um salto...de cobra! N.Diogo aderiu primeiro à convocação por via da declamação, e agora por via da escrita poética, cujo primeiro rebento vai entrar seguramente no privilegiado grupo de cultoras do referido género literário entre nós - guardadas as devidas distâncias. Ela retrata de forma intimista os problemas do quotidiano, quer amorosos, quer sociais, quer ainda culturais, como a manipulação do alembamento com fins lucrativos, estes e outros “problemas que estamos com ele”. De resto, a linguagem literária não deve estar alheia à linguagem coloquial dos seus heróis, como seu (Pai)“Pãozinho”, e personagens pícaras de carne e osso, da baixa e sobretudo dos musseques, fazendo apelo a um português- padrão, afora um ou outro empréstimo sócio-linguístico do kimbundu: kitadi(dinheiro) e matadi(pedra). Resumidamente, sem desprimor para outros núcleos temáticos, o amor é pedra de toque, dir-se-ia pedra angular da poesia de N. Diogo. E bem haja por ter respondido ao chamamento e ao desafio da convocação da palavra sugerida, mais do que dita do lugar comum da poesia panfletária que serve uma “boa Causa, mas “não “faz um bom poeta”, perdão uma boa poetisacomo diria Mário Quintana. Em síntese, mais do que a “fala” do escritor no diz - que - diz da coisa dita, remataríamos nós, interessa muito mais a obra ficcional ou ensaística, no caso poética, que poderá ser muito mais interessante que o autor. A poetisa que está por isso de parabéns pela obra que acaba de nos brindar. Enfim, muito haverá ainda a falar sobre este poemário que não se esgota numa simbólica como singela nota de apresentação, para cumprir, meramente, um formalismo da praxe literária. Amén! Texto lido no lançamento do livro de poemas de Ngonguita Diogo, na Mediateca central de Luanda, em cerimónia decorrida a 20 de Dezembro de 2014 16| ARTES 5 a 18 de Janeiro de 2015 | TERRA TERRA Um documentário de Paola Zermar Cultura LUÍSA FRESTA V árias tradições da Ilha de Sal são servidas sob um sol inclemente e desconcertante neste documentário denso e colorido de 38min. Paola Zermar, realizadora italiana, é uma professora de arte radicada em Cabo Verde há mais de uma década, que convence aqui pelo conteúdo e pelo modo de mostrar. Rodou este documentário localmente, quase sem meios técnicos e «orçamento zero», com a coordenação jornalística de Albertina Rodrigues e a colaboração de amigos e conhecidos, para além da sua própria determinação. Não é a primeira vez que a receita funciona, nem é a primeira vez que o método me impressiona. Mas passemos aos factos: para quem não conhece Cabo Verde, vale a pena tentar perceber que tipo de emoções movem esta nação crioula que passa para o exterior uma imagem de alegria e musicalidade latente, sensual, intrínseca. É uma cultura eclética, feita de símbolos e de fusões, de cores, brilho e cheiros penetrantes, e as manifestações actuais são tão importantes como as suas origens nos primórdios da história do arquipélago. O que esperar de um povo que resulta da intersecção genética e cultural ao logo de séculos? O crioulo olha através do mar, destino de ilhéus, pois o mar tem essa influência e esse poder incomparável para este povo de imigrantes; o mar é Mãe, alimenta e embala, está sempre presente no imaginário de Cabo Verde e é fonte de inspiração inesgotável. Ele afasta e aproxima, é separação e saudade, é reencontro, é azul, transparência e profundidade, e confunde-se com o céu imenso que o documentário nos oferece como uma tela de fundo. La mar, como dizem os hispano-falantes, é um desses substantivos de género camaleónico, que se torna feminino na boca dos poetas, porque «mar» é mais intenso e exprime maior afectividade no feminino. (Dizia Eduardo Galeano, no seu El libro de los abrazos, que «[…]Diego no conocía la mar[…]»). Cabo Verde incendeia-se por dentro e oferece generosamente essa fogueira de emoções a quem aporta a estas paragens. (Continuamos a assistir com desassossego e inquietação à erupção vulcânica de Chã das Caldeiras, na ilha do Fogo, que desalojou já milhares de habitantes – mas testemunhamos também a resiliência e a solidariedade deste povo que renasce das suas próprias entranhas). São gentes que integram, inclusivas, que fazem suas as outras culturas; um povo que faz a simbiose entre o local e o longínquo e contamina todos os que irrompem neste espaço. Nesta curta-metragem percebemos a relação dos ilhéus com a natureza, os vários ritmos que por aqui coabitam: a coladeira, a cadência mais festiva e dançante, o funaná e o batuk, estilos muito populares na Ilha de Santiago, e a morna, traço de união e marca identitária do povo cabo-verdiano, que atravessa todas as ilhas num sentimento nostálgico através de notas e letras que cantam sobretudo o amor e a saudade. Nomes imortais do passado e outros sonantes do presente (Cesária Évora, Bana e Luís Morais, Maira Andrade, Lura, Sara Tavares ou Nancy Vieira) ajudam a perceber até que ponto a música do arquipélago é exportável e imprescindível muito para além do espaço lusófono. Nesta curta-metragem passam historiadores como Evel Rocha, que nos detalha a influência da cultura Mandinga no carnaval de São Vicente e todos os adereços indispensáveis às personagens que percorrem as ruas dançando, com o corpo besuntado de carvão e sainhas de sarapilheira. E músicos estrangeiros como o italiano Ettore Ferro ou o mexicano Ricardo Castell, que o país absorveu e reinventou com outras roupagens. Magui Spencer, uma voz de uma suavidade estonteante, canta em português temas festivos e ilustra a multiculturalidade e o plurilinguismo da sociedade local. Morabeza, sodade, crioulidade. Palavras que fazem sentido nas terras que atravessamos com Paola, na interacção com a natureza, nas danças festivas e de carácter mais alegre, onde reina a euforia. Alguns artistas locais sublinham a importância de exaltar o seu próprio carnaval, com uma identidade cada vez mais vincada e autónoma, ancorado fortemente no funaná, na coladeira e no batuk, respeitosamente distante do carnaval brasileiro, conhecido e aclamado mundialmente, que chegou a ter, no país, um enorme ascendente nas coreografias carnavalescas (Quem não se lembra de uma das estrofes do conhecido tema Carnaval de São Vicente, no qual Cesária Évora cantava «São Vicente é um Brasilinho»?). Cabo Verde é um país aberto a outras latitudes mas que se afirma por uma cultura que faz sua a cada passo, com olhos de ver mas também mãos de moldar o futuro e uma palavra a dizer ao mundo. Entre brilho, cor e sofisticação, lantejoulas e plumas, alegria e divertimento, ou «passa sab», como esclarece a esplêndida cantora Silvia Medina. Impossível ficar indiferente ao que estas ilhas têm de sonho próximo, de palpável, de real e de vital. Terão todos os ilhéus esta magia? Nada como visitar o arquipélago e ajuizar por si mesmo, numa terra de perder o juízo, com o coração no mar, e um povo com o coração na boca. _____________________ Agradecimentos: Expresso o meu claro reco. nhecimento à realizadora, pela disponibilidade e prestimosa colaboração, nomeadamente na cedência de material fotográfico e a Ocean Press (www.oceanpress.info), pela comunicação fluida Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 GRAFITOS NA ALMA| 17 ELOGIO DA CIVILIDADE(*) Cartilha da ética Não posso deixar de agradecer a todos os que se interessam pela Ética. É quase um acto heróico, senão mesmo louco, da sua parte, nos tempos que correm. Este interesse pela Ética pode até ser considerado imoral, no nosso Moçambique de hoje. É, pelo menos, anormal. É que... abra-se um jornal, ou uma revista de ocasião; ligue-se uma qualquer estação de rádio ou um canal de televisão; seja notícia, debate ou reunião: desleixo, roubalheira, corrupção. Para onde quer que nos viremos, daremos de caras, olhos e ouvidos, com toda a certeza, com uma multidão de vozes desfraldadas na mais desgarrada acusação: Acusa o cidadão comum a polícia de estar corrompida pelas redes de imigração ilegal, e esta aponta, acto contínuo, a palavra ainda fumegante da acusação, contra os oficiais da migração, que culpam sem sequer pensarem, a companhia de aviação, a qual diz logo, sem hesitar, que a responsabilidade é da embaixada no país de onde vem o avião. Não lhes importa que sejam todos eles elos da mesma cadeia de acção. Queixam-se os cidadãos alcunhados de carenciados, da roubalheira que constituem os excessos que ostentam os funcionários da miríade de organizações que os invadem em nome da ajuda às populações, funcionários que, por sua vez, se escudam apontando acusadoramente a garrafa de água mineral ainda fresca ao sistema local de governação, sem se importarem com o facto de se dizerem entre eles, parceiros de cooperação. Lamenta o professor a demissão dos pais; denunciam os pais a incompetência do professor; e culpam a ambos, e mais aos alunos, e à pobreza, e ao colonialismo e à conjuntura internacional, e à globalização, os funcionários do sector da Educação. É visível e audível em todos os órgãos de informação. Não é minha invenção. Cada um aponta a todos os que o rodeiam, quantos dedos tem em cada mão, disparando em rajada em todas as direcções, fazendo, assim, de si próprio o único cidadão imaculado, pobre vítima de toda esta decrépita situação! A culpa é sempre dos outros. Mesmo quando eles sejam parte de nós. Mesmo que eles sejam produto de nós. É que, a pergunta que não quer calar é esta: serão todos aqueles a quem cada um de nós acusa a cada dia que passa de serem agentes da imoralidade, eremitas? Não terão todos eles pais, irmãos, cônjuges, filhos, vizinhos, colegas e amigos? Claro que têm. Mas, então... serão todas essas pessoas, extraterrestres? Não, não são. São pessoas bem conhecidas. Sabem quem elas são? Somos nós, aqui nesta sala, nós lá fora nas ruas, nós nos prédios e nas repartições, nas escolas e nos hospitais, nos cafés e nas salas de reuniões. Somos todos nós, que passamos a vida a apontar os dedos uns aos outros. Com isso, não andaremos nós, afinal, e aí sim, com toda a razão, a queixarmo-nos mas é de nós mesmos? Afinal, como disse Confúcio (filósofo Chinês, 551 a.C.479 a.C.), “O homem de bem exige tudo de si próprio. O homem medíocre espera tudo dos outros”. Ora, todos os acusados possuem uma justificação que os desculpabiliza perante si mesmos da sua actuação: o professor vende notas aos alunos, alegando que tem que pagar por Arte Makonde fora ao enfermeiro para este lhe facultar acesso ao médico; portanto, a culpa de ele vender notas, não é dele, é do enfermeiro; enfermeiro este que diz que precisa desses trocos para poder pagar ao polícia para o deixar passar sem os faróis que lhe roubaram; portanto a culpa de ele cobrar consultas, não é dele, é do polícia; polícia este que diz que sem essa renda paralela nunca haveria de conseguir pagar o fardamento escolar do seu filho nem comprar notas ao professor, para o filho passar de classe; portanto, a culpa de ele vender multas, não é dele, é do professor, aquele mesmo professor que vende notas aos alunos, alegando que tem de pagar ao enfermeiro, aquele mesmo que diz que tem de pagar ao polícia... Faz até lembrar a história do indivíduo que conta, inconformado, a um amigo: “Este mundo está fora dos eixos. Já não há moral. Vê lá tu que on- Carlos dos Santos tem, em plena igreja, um tipo ao meu lado acendeu o cigarro e pôs-se a fumar no meio da missa. Fiquei tão indignado que quase entornei a minha cerveja…”. Todos nos queixamos, mas… e quem é que age? A RESPONSABILIDADE ÉTICA A responsabilidade ética e a moral da sociedade não são pertença da polícia, nem das instituições de justiça, nem dos outros agentes do Estado de quem nos queixamos ininterruptamente, meros instrumentos que são daquela que é a moral que é vigente na sociedade de onde eles mesmos vêem e a que pertencem. A responsabilidade ética é, sim, de cada cidadão. Se a imoralidade for uma prática admitida, silenciada e executada pelos cidadãos em geral, a polícia, a justiça e as autoridades em geral serão necessariamente imorais, também. De um ovo de galinha só pode sair um pinto de galinha! É que o professor, o enfermeiro, o soldado e o polícia, o deputado e o ministro, o pulha e o ladrão, o canalha e o vilão, o corrupto, enfim, quem são, afinal, senão os nossos filhos, irmãos, familiares, vizinhos, amigos, colegas, filhos dos nossos vizinhos, amigos dos nossos familiares, colegas dos nossos irmãos, ou seja… nós mesmos? Quando vamos ao “Estrela” comprar piscas porque no-los roubaram na noite anterior, estamos a ser tão imorais como aquele co-cidadão que os roubou. Estamos a imitá-lo, contribuindo para que tal acto em vez de ser por todos condenado, porque imoral, acabe por ser por todos praticado, tornando-se assim um valor, em vez de um mal social. Socorro-me uma vez mais de Confúcio quando disse: “Quando vires um homem bom, tenta imitá-lo; quando vires um homem mau, examina-te a ti mesmo”. Não, definitivamente, não é o problema da escassez de pão. É a falta de ética social que faz com que nesta pátria todos ralhemos mas ninguém tenha razão. Desengane-se quem pensa que esta atitude de acusar os outros para desviar a atenção de nós mesmos é nova. Não, ela é bem antiga. Já no chamado livro dos livros, nos é dito em Mateus 7:3-5: “3Porque reparas no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho! 4 Como 18 | GRAFITOS 5 a 18 de Janeiro de 2015 | A TEORIA DA JANELA QUEBRADA par-de-estatuetas-de-parede-em-pau-preto ousas dizer ao teu irmão: “Deixa-me tirar o argueiro do teu olho”, tendo tu uma trave no teu! 5Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e então verás para tirar o argueiro do olho do teu irmão”. A Ética tem a ver, pois, com o comportamento próprio, e não com o dos outros, condição em que adquire a designação desclassificada de “moralismo”. Ela é reflexão sobre o comportamento, mas não o dos outros e sim o próprio. Mas a Ética não é apenas reflexão. Todos somos capazes de reflectir. A Ética tem a ver com o fazer, e não com o dizer. Por mais que falemos contra eles, haverá sempre corruptos enquanto houver quem os corrompa. Seja de forma passiva ou activa. Se nós não lhas comprarmos, os polícias deixarão de vender multas, os professores pararão de vender notas, os enfermeiros deixarão de vender consultas e até os ladrões deixarão de surripiar faróis. É só graças à cumplicidade de cada um de nós, que nos muitos Estrelas deste país que, nosso que é, é o que dele fazemos, espelha o que nós somos, é só com a nossa cumplicidade, dizia, que ali se cruzam e quase convivem, roubado, ladrão e comprador. De quem nos queixamos, então, se, afinal, as três mais não são do que facetas do mesmo cidadão, que de roubado se transforma, assim, em ladrão de si próprio? A existência do corrupto só é possível se houver um agente corruptor. E quem é esse agente? É um de nós. Somos nós. Os dedos que apontamos aos corruptos estão geralmente enlameados de corrupção. O corruptor não é vítima, ele é o agente causador! E se, como diz o ditado, “Uma imagem vale por mil palavras”, pois, um acto vale por mil imagens, já que quem faz não precisa sequer de falar. “Contra actos, não há argumentos”. O exemplo é o mais poderoso de todos os instrumentos da ética. Mas, atenção: “Fazer o que está certo não é o problema. O problema é saber o que está certo” - disse Lyndon Johnson (36º Presidente dos EUA). É que a Ética não é a mera observância da moral! A Ética é questionamento, é reflexão. E é opção. A obediência irreflectida é anti-ética. A obediência cega, sem ponderação das circunstâncias e das consequências, é cúmplice. Ela é o caldeirão onde a moral se transmuta em imoral e o imoral passa a ser coisa normal. Por isso, jamais a obediência a uma ordem poderá ser esgrimida como justificativa para fugir à responsabilidade que cada um de nós adquire sobre as consequências de qualquer acção por si praticada. Ou silenciada. A ditadura, a descriminação, a violência, a corrupção e todas as outras formas de imoralidade só são possíveis por causa daqueles de nós que obedecem cegamente às ordens que lhes dão. Jamais haverá qualquer desses abusos se não houver executores irreflectidos. Ou deverei dizer, mesmo, irracionais? E esses executores, uma vez mais, somos todos nós que nos andamos por aí passivamente a queixar daqueles que (nos) mandam executar. Mas cujas ordens acatamos, em silêncio. E esse é que é o verdadeiro problema. Como disse Martin Luter King: “O que mais preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem ética. O que mais preocupa é o silêncio dos bons”. Obedecemos, dizemos, por medo. O que pressupõe que sabemos que está errado aquilo que fazemos. Mas fazemo-lo, ainda assim. Ora, “Saber o que é certo e não fazê-lo é a pior cobardia”, disse Confúcio. Mas, o medo não é só um acto de cobardia. É também um comportamento imoral. Porque o medo é parceiro, é cúmplice daquilo que se teme, pois essa coisa alimenta-se, sobrevive e agiganta-se apenas graças a esse mesmo medo. O medo é, assim, a causa de tudo aquilo que tememos. Estamos perante uma crise de valores morais, diz-se à boca cheia em cada esquina – em mais uma manobra para atribuir a outrem a responsabilidade por tudo aquilo que anda mal. Estamos, então, manietados, encurralados, sem solução? Não, não estamos. Há solução, sim: “A resposta tanto para a crise pessoal como para a crise colectiva é a mesma. E é simples. Pode ser representada numa única palavra: arbítrio. Ter arbítrio sobre os acontecimentos – a sensação de controlo – é algo drasticamente ausente da condição contemporânea. A sua captura está disponível através de um mecanismo simples: a acção. (…) é a acção – e apenas a acção – que muda as coisas. (…) É a acção dos indivíduos que maior efeito tem naqueles que o rodeiam (…) e, consequentemente, em todo o mundo” – Ross, Carne, “A Revolução sem Líder”. Mas, como é que perdemos o controlo? A Teoria das Janelas Quebradas dá-nos a resposta: “Se uma janela está quebrada e não é consertada, quem passa por ali conclui que ninguém se importa com aquilo e que não há ninguém no controle. Em breve, outras janelas aparecerão quebradas, e a sensação de anarquia se espalhará do prédio para a rua, enviando a mensagem que ali vale tudo.” – Gladwell, Malcolm, “O Ponto da Virada”. Então, que acção é esta de que nos fala Carne Ross, capaz de nos fazer retomar o controlo? Tem de ser uma acção vinda de cima, uma acção de grande vulto, realizada pelas autoridades ou por pessoas especialmente preparadas para isso? Não. A Teoria da Janela Quebrada diz-nos que a situação pode ser revertida “consertando-se detalhes mínimos do ambiente imediato”. (…) Podemos prevenir a ocorrência de delitos apenas limpando as paredes (…)”. – idem. Só quando cada um de nós agir da forma que for mais correcta, cuidando de pensar nas consequências das suas acções, para escolher as opções que, beneficiando-nos, não prejudiquem, porém, a mais ninguém, e o fizermos sem esperarmos premiação, Cultura nem temermos penalização, nem nos desculparmos com o que fazem todos os outros cidadãos, só aí poremos fim às múltiplas formas de conduta e de acção imorais de que a todo o momento nos queixamos. Por isso, não perguntem o que é que outrem deveria estar a fazer ou deveria ter feito. Perguntem-se, em todas as circunstâncias, em primeiro lugar, o que é que vocês próprios deveriam ter feito ou deverão fazer. E façam-no. Sem medo. Escolham, não obedeçam. Estarei eu pr’aqui a fazer a apologia da desobediência civil, o apelo à revolta? Estou, com certeza. Mas não através da violência e sim, antes, através do exemplo bom, positivo, correcto. Próprio. De cada um. É isso que é a ética. Como disse Buda: “O ódio não destrói o ódio. Só o amor destrói o ódio. Sê como o sândalo, que perfuma o machado que o corta.” Inundem, pois, todos aqueles que vos rodeiam com a fragrância intensa da vossa conduta. Eles se inebriarão, e estonteados pela doçura que dela emana, escolherão seguir o exemplo que vocês lhes dão. Assim, cada um de nós tornar-se-á muitos. E muitos de nós tornar-nos-emos ainda mais. E mais de nós, mudaremos o mundo. Sem uma palavra. Sem uma lamentação. Apenas com o poderoso exemplo da nossa própria acção. Porque, como disse Hemingway um dia: “O mundo é um lugar encantador, pelo qual vale a pena lutar”. O nosso país também, digo eu. E só nós podemos fazer essa luta. Cito, por isso, a terminar, Aldino Muianga, em “Nghamula”: “Eu sou Nghamula, o homem do tchova Eu sou o condutor Tu és o combustível Ele é o cobrador Nós somos o motor da nossa Vida!” Maputo, 03 de Novembro de 2012 ________________________________ (*) Adaptado da intervenção de Carlos dos Santos, no lançamento do seu livro “Cartilha da Ética”, a 04 de Abril de 2011. Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 GRAFITOS NA ALMA| 19 Quando Paris arbitra a arte africana Lauren Ekué Q uantos meses se passaram sem vos escrever! Faltoume a tinta da minha esferográfica. No entanto, o vosso postal made in Paris foi escrito à sombra da Torre Eiffel. No programa: cor, apenas cor. A alcatifa espessa, pesada e macia da galeria Piasa oferece um quadro cuidado e sereno que nos permite entusiasmarmo-nos com o belo. As obras e as esculturas dos mestres africanos sucedem-se. As paredes brancas favorecem a explosão das cores. Gostaríamos de fazer nossa tão bela morada. Lamentavelmente, só podemos absorver o luxo à nossa volta de maneira vertiginosa. A arte é altamente espiritual e intelectual. O homem é antes de mais um ser criativo. Embora África represente apenas um grão de areia no mundo das transações e no mercado de arte, os grandes actores deste meio, as grandes leiloeiras, começam a interessar-se de perto pelo assunto. Piasa abre a estação com uma venda histórica. Nesta première, os artistas do mundo africano francófono estão representados. O fond de vente é o do grande coleccionador André Magnin. Na sala a rebentar pelas costuras, a atenção a cada bater do martelo é rigorosa. Os «Vendidos!» ecoam. A decepção surge quando uma tela de Chéri Samba é vendida por apenas 35 000 euros. E saúda-se a subida alucinante do preço do quadro do jovem pintor Victor Arthur Diop. Num leilão, uma parte do espectáculo está na sala. Desde os assistentes da leiloeira ao telefone e ao computador até ao público, entre o qual se encontram algumas figuras conhecidas do meio da arte contemporânea africana, a ocasião é demasiado importante para ser perdida. A arte africana contemporânea não suscita tantas paixões como as estátuas e outros objectos do continente negro. Na Casa Sotheby’s, Jean Fritts trabalha desde 1992, sendo actualmen- te uma perita reconhecida no mundo inteiro pela sua especialização em arte africana e da Oceânia. Anteriormente trabalhou no Museu Nacional de Arte Africana e na Instituição Smithsonian. Jean Fritz é não só uma especialista muito respeitada como também uma figura central no mercado de arte africana e da Oceânia. Esteve directamente envolvida nos mais importantes leilões, os que atingiram preços quase astronómicos, de records, nomeadamente o da estátua Kongo Nkonde, originária da RDC. Para os criadores africanos deste tipo de arte que inspirou artistas como Picasso, o seu valor não é pecuniário, reside no seu carácter sagrado. A função real desses objectos tão valorizados é a de estabelecer uma ligação com os espíritos. Mme. Fritz aborda a arte, o seu significado e o mercado que desenvolveu, assim como o seu lugar na arte contemporânea. Refere-se aos grandes leilões e exposições em Paris. Há algo de repugnante na nossa época. As maiores jóias do espírito angolano encontram-se no Ocidente enquanto os museus africanos possuem muito poucas obras de arte provenientes da Europa e algumas migalhas dos seus tesouros nacionais. Temos que folhear belos livros para nos ligarmos a uma parte essencial da nossa psique. Paralelamente a estas diversas vendas, o espectáculo Exhibit B provoca paixões. Um sul-africano de pele branca instala em Paris o seu espectáculo anti-racismo e desencadeia a ira dos militantes anti-racismo. É uma história que não se percebe. O encenador garante a sua boa-fé mas os seus detractores têm outra visão, outra sensibilidade. Ser progressista é inovar, ignorar as receitas obsoletas. A arte não pode ser uma verdade universal e intangível. O meio, a época e até o lugar influenciam a leitura de qualquer trabalho, seja de que área for. Brett Bailey, enquanto homem Branco, foi incapaz de se colocar no lugar de um Negro. O encenador garante a sua boa-fé mas os seus detractores, militantes negros, têm outra visão, outra sensibilidade, que mais não é do que a pura experiência da condição negra e do seu cortejo de discriminação e micro-agressões. O seu espectáculo foi representado diante dos camiões da CRS. Uma elite de polícias fortemente armados fazia frente aos manifestantes. Isso é uma afronta, uma falta de gosto, para o encenador que queria denunciar as ofensas feitas aos Negros, aos Africanos, reproduzindo numa instalação os mesmos quadros…que alimentam os mesmos clichés. Um dilúvio de imagens choque, uma estética próxima da poverty porn associada ao minstrel show contemporâneo. Se Brett Bailey queria obter um passaporte de boa consciência, um diploma de arrependimento, os Negros mais susceptíveis de Paris deitaram por terra o seu projecto. A peça foi adiada. Em França é de bom-tom cultivar o espírito rebelde. Após este episódio, ninguém poderá perguntar para que serve a arte. O artista é um sentinela de sentidos, a sua arte um catalisador do espaço social. 20 | GRAFITOS NA ALMA Fronteiras 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura Rossana Oliveira E spalham-se nuvens densas e espessas que invadem os contornos da cidade. A brisa meiga e quente de final de tarde faz-se passado e em seu lugar o céu enrola uma massa cinza e escura que devora a fronteira do azul límpido e se apodera dele por completo. Fechou os olhos por um instante, em resposta a invasão feroz de perguntas que lhe arremessavam. Com as mãos emaranhadas em desassossego tentou mais uma vez deslocar-se até ao local onde tudo se passara. Desembrulhava as imagens há tão pouco criadas, cada meticuloso detalhe desdobrado como origami em busca de uma explicação. Alguma maneira teria de haver para resgatar a normalidade, o concreto, o absoluto, o chão certo da sua monótona e ocupada rotina. Tudo esvoaçava na sua mente. O cheiro erosivo e penetrante dos travões do carro misturavam-se com o dia nostálgico e impregnavam-se na roupa que vestia. Só conseguia estar dentro do turbilhão, da tempestade, nada mais lhe visitava a memória. Embora quisesse, a todo custo, permanecer no momento que a antecipava; agarrar-se a essa lembrança da normalidade como bússola à espera que voltasse a apontar o norte e corrigisse esta nova realidade. A neblina obedecia à sua própria dança. Viajava lentamente pelo ar, criando um reboliço sombrio e de inquietação. Numa outra vida, outro homem sentia o desprezo pela futilidade da mera existência fermentar em si como gangrena. Estava preso, refém de um século que não lhe pertencia, de práticas e normas que para seu grande desconsolo se tornariam regras socialmente aceitáveis. Convénios dilatados de insignificância, iguais aos outros que os antecediam, igualmente nulos. Desde sempre ouvira o zumbido dos insectos onde quer que estivesse. Lembrava-se docemente do sitio de pertença desse zumbido, do ar nocturno preenchido até o último átomo por esse burburinho. Enquanto as plantas forjavam fotossíntese os insectos produziam antecipação pelo zumbido. Antecipação que se entranhava em cada ser. Recordava essa consciência constante de co-habitarmos o mesmo espaço com outros seres. Dessa vivência sem muros, grades, paredes, cercas que nos separassem. Nas noites em que o zumbido sucumbia de repente, o silêncio pacificamente constrangedor e solitário invadia o ar como se houvesse uma pausa de nada. Lembrava-se dos cigarros ou cigarrilhas, que queimavam lentamente à noite e do fumo que ondulava e se misturava com os seus cabelos fortemente encaracolados. E de quando a antecipação era feroz de dia e os cigarros quase não lhe davam tempo de os acender e se extinguiam nos seus dedos. Olhava agora à sua volta, ao amontoado de futilidades que se acumulavam em seu redor – chão estranhamente simétrico, estantes e móveis incomodamente preenchidos. Cada vez mais “coisas” o circundavam, o limitavam, o mantinham reduzido. Guardava como névoa a vida que tinha sido entre paredes. Sabia apenas que tinha vivido no meio de aglomerados de papeis com ideias, apontamentos desordenados, nas margens nomes de pessoas e lugares, documentos e livros. O melhor eram as conversas, as discussões acesas que vezes sem conta reacendiam a chama da sua crença e mais uma vez sentia os punhos fecharam-se e ergueremse. Acreditara na mudança que não se via mas que se sentia projectar-se no futuro e o presente era o meio de lá chegar. A tempestade cede e deixa-se cair como lençol que cobre a cidade. Dava por si num sítio húmido e obscuro. O que estava prestes a acontecer, estava ainda turvo, por definir. Só sabia que tinha por ela própria entrado naquele lugar que parecia um armazém, uma arrecadação e trocado a luz do dia pela sombra perversa. Buscava outra vez por algo que não tinha, que obsessiva e desesperadamente sentia que precisava e nessa expectativa seguia o sorriso que a chamava e que pensava conhecer, imaginando que quisesse o seu bem, a quisesse por inteiro. Os sapatos altos procuravam incertos por um sítio para pisar que não estivesse inundado. O corpo balançava em busca de um equilíbrio que certamente a tinha evadido. A prudência gritava-lhe alarmada o perigo eminente, que mais que a humidade, a circundava. Mas ela fingia não ver, não saber, não sentir. Optava sempre em confiar cegamente o que se traduzia em ingenuidade a mais e em limites excedidos. Ela ainda não estava nesse ponto de viragem. Até então continuavam os sorrisos, a conversa leve embora num sítio medonho mas não tardava o que temia. Existia um vazio acompanhado de uma culpa nela. Um vazio que embora não parecesse era o seu deus, a sua razão de existência, e residia numa qualquer desajustada ideia de afecto. Uma culpa que nascera no momento em que se definiu como ser com certo encanto capaz de seduzir. Do outro lado, do olhar seduzido, existia o rasgo de oportunidade de afirmação. O homem que alimenta o ego faminto. Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 HISTÓRIA| 21 BULAMBEMBA e YELALA PATRIMÓNIOS ESQUECIDOS YELALA (CESBC – Centro de estudos estratégicos da bacia do Congo) Durante a sua segunda viagem (1485-1486), em Outubro ou Novembro de 1485, perto das quedas de Yelala, a montante de Matadi, Diogo Cão deixa uma inscrição gravada numa pedra, testemunho da sua passagem e da dos seus homens. Esta inscrição situaria assim o primeiro contacto da expedição com o rio Congo a 23 de Abril de 1482. BULAMBEMBA Para os congoleses este nome evoca o local de detenção dos membros do MLC (Movimento de Libertação do Congo) de Patrice Lumumba e dos opositores ao regime de Mobutu. Esta ilha situada na embocadura do Congo acolheu Gizenza, Tshisekedi, Kamitatu, etc. Mas esta Bulambemba arrasta consigo outra reputação: foi um porto activo no comércio de escravos. Filhos da África central atlântica capturados como escravos foram enviados para Portugal, para a Madeira e Açores para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar por volta da primeira metade do século XV. É o princípio do que viria a tornar-se no tráfico atlântico. Isto passa-se cerca de alguns decénios antes de as Américas se tornarem o novo destino dos escravos e de Goreia se converter na plataforma de correspondência para o continente americano. No Senegal, as autoridades implementaram uma política específica para que a ilha de Goreia, testemunho de "uma experiência humana sem precedentes na história dos povos" seja "uma terra de peregrinação para toda a diáspora africana", e "um espaço de partilha e de diálogo das culturas através do confronto dos ideais de reconciliação e de perdão". "A ilha de Goreia foi classificada como local de interesse histórico em 1944, com medidas de protecção em 1951 (durante a época colonial). Posteriormente foi inscrita na lista do património nacional em 1975 (Decreto N°012771 de 17 de Novembro de 1975) e na do património da humanidade em 1978.” Como Goreia, Bulambemba "traznos um testemunho excepcional sobre uma das maiores tragédias da história das sociedades humanas: o tráfico negreiro." Mas Bulambemba não beneficiou de qualquer atenção. A ilha é vítima da sua situação numa região caracterizada por conflitos armados (Angola Congo) e outras perturbações políticas quase ininterruptas (Congo) A inscrição autêntica numa rocha perto das quedas do Rio Mpozo (Angola) (Aqui chegaram os navios do esclarecido rei D. João II de Portugal – Diogo Cão, Pero Anes, Pero da Costa”) Decalque da inscrição junto às quedas do rio Mpozo desde o final dos anos 1950. Tendo sido alternadamente um lugar militar destinado a controlar a embocadura do Congo e uma ilha-prisão para os opositores políticos do regime de Mobutu, Bulambemba permanece mais do que nunca uma terra de sofrimento. Chegou a altura de proteger Bulambemba e tudo o que testemunha o seu passado histórico. A ilha deve tornar-se num local de memória, um destino de peregrinação à imagem da ilha de Goreia. HISTÓRIA Bulambemba e Yelala, são testemunho de mais de cinco séculos de História da África Central atlântica. Não merecem o destino que lhes está reservado. Serge DIANTANTU tentou "falar desta história tão difícil sem complexos". Como ele diz "no fundo, as pessoas querem saber o que se passou…" Escolheu a banda desenhada para romper o esquecimento e falar desta história publicando Memórias da Escravatura. Ele reflecte sobre as acções a levar à prática para restaurar e salvaguardar estes locais de memória a fim de devolvê-los à consciência universal. Para contactá-lo através do seu site, siga a ligação Internet seguinte: www.serge-diantantu.com Padrão Saint Augustin PADRÃO DE SAINT AUGUSTIN Esta estela foi levantada por Diogo Cão em 1482 no cabo Santa Maria, também chamado Cabo do Padrão (português) ou Cap Padron (francês) em Angola, frente a Banana (Congo). É um monolito que ostenta um brasão de Portugal, com uma cruz situada mais acima para lembrar a sua passagem. Isto é, é uma «pedra de posse»). Vandalizado pelos holandeses em 1642, o Padrão de Saint Augustin foi encontrado por um viajante sueco em 1886. Reabilitado, está conservado no Museu da Sociedade de Geografia de Lisboa (Portugal). O Musée Royal de l'Afrique Centrale (Museu Real da África Central) de Tervuren (Bélgica) tem em sua posse uma cópia. 22 |DIÁLOGO INTERCULTURAL 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura Em Cidade Velha, Cabo Verde ESCAVAÇÕES BRITÂNICAS PÕEM A DESCOBERTO A MAIS ANTIGA IGREJA DA ÁFRICA SUBSAARIANA NUNO REBOCHO, EM CABO VERDE E scavações arqueológicas efectuadas em Novembro de 2014 por uma equipa técnica da britânica Universidade de Cambridge, liderada por Chistopher Evans (a pedido do Presidente de Câmara Municipal da Ribeira Grande de Santiago, Manuel de Pina) puseram a descoberto, em Cidade Velha, os restos da mais antiga igreja católica da África subsaariana – a igreja de Nossa Senhora da Conceição, nascida da antiga capela do Espírito Santo. Data dos fins do séc. XVI e foi construída pelos portugueses na que é hoje o único Património Mundial reconhecido pela UNESCO em Cabo Verde. Eram conhecidos os vestígios desta relíquia, supondo-se que debaixo de terra se escondiam preciosidades. Os canhenhos históricos faziam-lhe referência mas geralmente era apontada a Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Homens Pretos como mais antigo templo católico existente nesta parte do continente africano, coberto de mitos que a rudeza dos do- cumentos relega para as falácias sem qualquer fundamento – é o caso de te ter sido obra da Irmandade dos Homens Pretos, fazendo-se, com isso, tábua-rasa de que a Irmandade foi muito posterior à construção dessa Igreja, como o atesta documentação eclesiástica colectada em Portugal. Túmulos, restos de azulejos e de faianças, além de objectos diversos, foram achados nestas escavações que serão continuadas no próximo ano, provavelmente junto dos baluartes filipinos da linha de defesa da Fortaleza Real de São Filipe. Iniciadas em 2006, já permitiram localizar os restos do almoxarifado de Ribeira Grande (do séc. XVII), que foi arrasado por uma devastadora investida de Francis Drake, e o antigo cais deste importante entreposto de escravos. Ambos situados actualmente em artérias com muito trânsito, só agora é possível criar condições para o desviar, permitindo que sejam colocados em visibilidade pública. Com este espólio agora trazido à luz do dia, surgem condições para os estu- diosos analisarem em pormenor os aspectos fundamentais da azulejaria portuguesa em África nos sécs. XV e XVI e começarem a precisar com maior rigor a história da antiga cidade de Ribeira Grande. Uma das interrogações a que será necessário dar resposta é a questão de se apurar se foi a capela do Espírito Santo (cujos restos foram postos a descoberto) que antecedeu a construção da Igreja de Nossa Senhora da Conceição ou se esta capela é apenas uma dependência do que teria sido o primeiro templo subsaariano. Devido ao árduo trabalho de investigadores, é a antiquíssima cidade que ressurge dos escombros e da qual já estão a descoberto alguns monumentos, designadamente a Igreja de Nossa Senhora do Rosário (séc. XVI), o Pelourinho (séc. XVII), o Convento de S. Francisco, os restos da Igreja da Misericórdia (ambos também do séc. XVII, tal como a Fortaleza Real de São Filipe) e a Sé Catedral (do séc. XVIII). Existiram projectos do arquitecto Si- za Vieira para recuperar este majestoso templo, cuja visibilidade desde o oceano era assinalável. Todavia, a crise económica fez abdicar desses intentos, o mesmo acontecendo dos desejos de preservar os vestígios do antigo Paço Episcopal que criminoso e imperdoável vandalismo de um ambicioso, sem escrúpulos de qualquer espécie, lançou ao mar para construir uma discoteca clandestina: há actos que nem uma pesada pena de cadeia consegue reparar. A antiga Ribeira Grande (actual Cidade Velha, Património da Humanidade e Capital Cabo-verdiana da Cultura 2015 - onde se cruzaram os mais prestigiados navegadores e conquistadores da gesta dos sécs. XVI e XVII (como Vasco da Gama, Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio, Sebastian de El Cano, Francis Drake) – reganha renascido esplendor, graças ao empenho de uns quantos. Cultura | 5 a 18 de de Janeiro de 2015 DIÁLOGO INTERCULTURAL| 23 A evolução da poesia nigeriana ( THE MANTLE - AFRICULTURES) A poesia na Nigéria, o país mais populoso de África, evoluiu consideravelmente ao longo de cinco décadas de independência. O meu avô era um poeta que compunha mentalmente e que partilhava a sua cultura através de poemas épicos, utilizando a sua arte como forma de lembrar a história oral, as histórias, a genealogia e a Lei. Ele, Sua Real Majestade Nze Ihebuzoaju Paul Onwumere, conferiu significado à poesia na aldeia; contudo, em sua vida, a maioria das pessoas, incluindo o autor destas linhas, tinham pouca compreensão acerca do trabalho que estava a desenvolver. A poesia é um género literário que desafia a tentativa de uma definição precisa. Muitos poetas e estudiosos deixam a sua musa determinar o que é a poesia, mas o comum dos mortais poderia utilizar esta definição frequentemente encontrada na Internet: “A poesia é a consciência imaginativa da experiência, expressada através de significado, som e escolhas de linguagem rítmica, por forma a evocar uma resposta emocional. A poesia tem sido associada ao emprego de métrica e rima, mas estas não são, de todo, necessárias. A poesia é uma forma ancestral que tem passado por inúmeras e drásticas reinvenções ao longo do tempo.” Devido ao facto de os Africanos não terem registado sob a forma escrita eventos que ocorreram durante a Antiguidade, o desenvolvimento da poesia é creditado ao grupo linguístico Indo-Europeu que incluí o Irlandês, Gaélico Escocês, Galês e Bretão, bem como os seus subgrupos Britónico e Goidélico. Não obstante os registos históricos, os Africanos ancestrais sabiam o que era poesia e deram-lhe bom uso. Da Índia Antiga veio o Vedas (que era anterior a 2000 a.C.), 1 mas é frequentemente defendido que o poema mais antigo de que há registo é O Épico de Gilgamesh, composto um pouco mais tarde, algures entre 1300-1000 a.C., na Suméria (actual Iraque/Mesopotâmia). Os épicos gregos como A Ilíada e Odisseia, os épicos indianos em sânscrito Ramayana e Mahabharata e o tibetano Épico do Rei Gesar também preenchem a lista das bem conhecidas narrativas antigas. Onde está a representação africana nesta História? Assume-se que a poesia africana fosse inexistente porque não havia registos escritos, mas a tradição oral africana na era contemporânea de Homero prosperava. Poemas africanos de tempos imemoráveis foram transmitidos aos povos através da tradição oral e ainda sobrevivem em casebres, aldeias e cidades africanas de hoje em dia. Odimegwu Onwumere Soyinka, Chinua Achebe, John Pepper-Clark, entre outros, passaram pela educação ocidental. A sua poesia, matizada pelas atitudes ocidentais, contudo, actuou como um cancro na cena poética nigeriana, deixando para trás os Nze Onwumeres deste mundo. A poesia destes homens educados ocidentalmente foi essencialmente orientada para a academia; como a guerra entre Socialismo e Capitalismo estava na altura em voga, estes escreveram poemas desenhados para minar o colonialismo. Representaram uma classe de poemas de protesto e de poetas que se desviaram face à norma nigeriana. Borboleta Velocidade é violência Poder é violência Peso é violência A borboleta procura segurança na leveza Na imponderabilidade e ondulação do vôo Mas numa encruzilhada onde a luz mosqueada Cai das árvores numa nova estrada rude Os nossos territórios convergentes encontram-se Eu chego com poder suficiente para dois E a gentil borboleta oferece-se Num sacrifício amarelo e brilhante Contra o meu duro escudo de silício. As Vozes Nigerianas de outrora A África tem tido incontáveis pensadores que procuram determinar o que faz da poesia uma forma de arte distinta e o que distingue a boa da má poesia. Estas práticas resultaram no desenvolvimento do estudo da estética da poesia, também chamado de Poética, um campo disciplinar necessário para diferenciar um poeta oral de um músico. Os africanos fizeram isso mesmo, tal como os Chineses antigos (no Shi Jing ou Cinco Clássicos), desenvolvendo um cânone de poesia que tanto era ritualístico como dotado de importância estética. Sem analisar aprofundadamente os pormenores da Poética, um dos princípios deste estudo determina que a poesia tem que ter regras. Por exemplo, a Poética de Aristóteles descreve os três géneros de poesia como épico, cómico e trágico. Posteriormente, formas de poesia como o poema épico ou lírico foram identificadas. No estudo da evolução da poesia em África e em outros lugares, a Nigéria não pode ser negligenciada. Nos tempos modernos, existem quatro gerações de poetas nigerianos: Pré-Colonial, Colonial, Pós-Colonial e Contemporânea. Ao longo destas gerações a poesia evoluiu enormemente, e para melhor. As populações multi-étnicas da região (como os Hausa/Fulani, Yoruba, Igbo, Ijaw, Efik, Ibibio, Bini, Nupe e Igala, entre outros) tinham os seus modos tradicionais de apreciar poesia, muito antes da chegada dos colonialistas brancos. Nze Onwumere, o meu avô, por exemplo, era Igbo, um povo que tanto antes como depois do colonialismo recitava poemas orais com vozes noturnas, particularmente em funerais. Tal como os desenvolvimentos na escrita e literacia transformaram a poesia por todo o mundo, os poetas na Nigéria, incluindo Nnamdi Azikiwe, Christopher Okigbo, Dennis Osadebe (de memória abençoada) Gabriel Okara, Wole - Chinua Achebe Enquanto na Poética há géneros e regras que norteiam a poesia, o fim do colonialismo na Nigéria conduziu a novas formas e estilos de poesia, a maior parte dos quais sem um estilo definido. Os poetas nigerianos na era do colonialismo seguiram a cultura de escrever poesia que aprenderam directamente dos colonialistas brancos; os poetas pós-coloniais alteraram estes estilos e temas. Após a independência, poetas como Niyi Osundare, Onwuchekwa Jemie e outros escreveram de forma muito poderosa nesta forma de arte reformada. Em 1986, o Prémio Nobel da Literatura foi entregue ao poeta-dramaturgo pós-colonial Wole Soyinka, consolidando o papel da Nigéria no plano da literatura global. Moldados pelo colonialismo, os poetas da segunda geração, como os auto-intitulados Marxistas Odia Ofeimun e Niyi Osundare, são os líderes da luta pela melhoria da poesia nigeriana e pela eliminação da sua mentalidade colonial. Harry Garuba, Afam Akeh e Sesan Ajayi, um professor universitário, um poeta confessional e um jornalista, respectivamente, estão entre os líderes do grupo da terceira geração (pós-colonial) de poetas. 24 | DIÁLOGO INTERCULTURAL As Vozes Nigerianas do Amanhã Actualmente, a proliferação da poesia na Nigéria é catalisada pelo incremento da consciência social e da pressão emocional causadas pelas questões e crises sociais, políticas e económicas. Poetas nigerianos contemporâneos (a quarta geração) como Remi Raji, Uche Peter Umez, Obi Nwakanma, Ogaga Ifowodo, Chidi Anthony Opara, Maik Nwosu, eu próprio e tantos outros, estão a produzir poemas quase numa base diária, quer sob a forma de livro, quer publicados na Internet. Poetas de todo o mundo invejam e aprendem o poder e a fama de que os poetas nigerianos gozam na cena literária do país. Nadia Marraqueche: os cabelos grisalhos do Atlas, listrados pela luz dos anos, como a verdade escoltada por um guarda-costas. Não é guerra: a queda rápida não é guerra, Nadia. Dois pingentes, cada um de corações, e o anel prateado atrelado ao tempo; Não é guerra: mas a caricatura da distância, E este momento, um seio pleno cintilando na superfície da lua, as ruas anoitecidas e encapuzado, como o fora-da-lei, o estranho ou o viajante: Como o vaso de onde o leite escorre cheirado de tão perto, desvanece-se, como o geco que abandona a sua cauda. - Obi Nwakanma Apesar da falta de publicações impressas disponíveis para poetas e autores, esta nova geração de poetas prospera, especialmente através de muitos concursos locais de poesia como o Prémio de Poesia ANA/NDDC Gabriel Okara, o Prémio de Poesia Cadbury, o Prémio de Poesia Muson, e o Prémio rotativo NLNG/ Nigeriano de Literatura. Com a excepção do Prémio Nigeriano de Literatura, que tem uma bolsa de $50.000, poucos oferecem recompensas financeiras. Mas tal como um crítico mencionou acerca do panorama poético nigeriano de hoje, existe um conjunto díspar de talento e mediocridade, rima, retórica e racionalidade. Mesmo assim, acredito que não haja escassez de intelectuais entre os poetas nigerianos. Os poetas nigerianos são grandes escritores, visionários e reformistas sociais que procuram continuamente levar a sua visão a bom porto (o mesmo não pode ser dito da nossa liderança política). Contra o pano de fundo de algo que pode ser descrito como temível, os poetas nigerianos representam a oposição às maleitas da sociedade. Hoje, os poetas e autores nigerianos estão comprometidos com a causa do humanismo e justiça social. Porque sempre retribuíram à sociedade, os nigerianos devem lutar para manter o seu legado vivo. 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Pobreza Cultura Existirá algo como a pobreza? Existe POBREZA quando se tem saúde mas não riqueza? Existe POBREZA quando se é rico mas não se tem saúde? Existe POBREZA quando se é rico iletrado e pobre de cultura? Existe POBREZA quando se tem muitos filhos mas não há dinheiro para cuidar deles? Existe POBREZA quando se é rico mas sem filhos? O que chamam POBREZA pode ser RIQUEZA para outro homem. Não há por aí mulheres financeiramente ricas mas estéreis que anseiam por filhos? Não há por aí gente financeiramente musculada que não tem paz? Não há por aí gente portadora de deficiência mas que tem trabalho manual? O que para uns é POBREZA pode ser RIQUEZA para outros. O sucesso de alguém é determinado pelo seu sucesso a nível financeiro? Na vida, não se pode ter tudo por mais alta que seja a nossa posição. Por isso, não existe RICO ou POBRE. O que há são pessoas glutonas-insaciáveis ou, assim lhes podemos chamar, cleptomaníacas. - Odimegwu Onwumere _____________________ 1 Existe um debate considerável quanto à data da composição do poema The Vedas. Neste âmbito, cito: Jagadish Chandra Chatterji. The Wisdom of the Vedas (Quest Books, 2006): 3. ______________________________ Odimegwu Onwumere é membro dos Poets for Human Rights (Poetas pelos Direitos Humanos) e poeta residente da Champions for Nigeria (Campeões pela Nigéria), Reino Unido. Odimegwu é um leitor voraz, um escritor profissional e prolífico, investigador, jornalista, poeta, pensador, crítico social, analista político e activista. Tem dois livros publicados: Piquant: Love Poems To Prince Tonye Princewill (2008) e The Many Wrong Doings of Madam Do-Good (2009) e tem muitos manuscritos ainda por publicar, que aguardam uma editora. Obi Nwakanma Cultura | 5 a 18 de de Janeiro de 2015 DIÁLOGO INTERCULTURAL| 25 RECORDAR PARA O FUTURO (A propósito do livro “O Curandeiro do Monte Pirro” de Samuel Gonçalves) Curandeiro O romance “O Curandeiro do Monte Piorro” escrito pelo médico Samuel Gonçalves apresenta um conjunto de valores morais, religiosos e culturais que considero relevantes para a preservação dos bons costumes, particularmente, ao nível das comunidades residentes na ilha do Fogo, como, de forma mais genérica, no âmbito da identidade cultural cabo-verdiana, inserida no contexto do continente africano. Sublinho, pelas seguintes três razões, o sentido de pertença cabo-verdiana: primeiro, porque a ilha do Fogo é parte integrante do Cabo Verde; segundo, porque os costumes, valores e hábitos do Fogo, quando bem analisados são, do ponto de vista identitário, cabo-verdianos, já que, em outras ilhas deste arquipelágico país, encontramos as mesmas práticas; em terceiro lugar, porque “O Curandeiro do Monte Piorro” descreve os bons costumes, valores e hábitos vivenciados na ilha da Brava, evidenciando tanto o que têm de peculiar como o que com- partilha com o Fogo e, complementarmente, com as outras ilhas, no que respeita, por exemplo, ao conceito e fenómeno da “morabeza”. Os nossos hábitos, costumes e valores A palavra “curandeiro”, que surge no título do livro de Samuel Gonçalves, leva-nos a estabelecer a distinção entre maus hábitos e costumes e bons hábitos, costumes e valores. Os primeiros, que aparentam ter apenas valor histórico, independentemente do facto de fazerem parte da nossa identidade cultural e psicológica, deverão ser combatidos e esquecidos para sempre, pelas razões que apresentaremos mais abaixo. Por outras palavras, nós, ao termos consciência dos nossos maus hábitos e costumes, devemos esquecê-los. Enquanto os nossos bons hábitos, costumes e valores, a serem transmitidos às gerações mais jovens, como ponte de ligação entre as gerações mais jovens e as mais idosas, deveremos recordá-los. Assim será garantida a continuidade dos aspectos positivos da nossa história, dos quais a morabeza é parte integrante. Os nossos maus hábitos e costumes, pseudo-valores e reminiscências detestáveis Os nossos maus hábitos e costumes incluem um componente religiosocultural que é uma mistura de religião popular com superstições diferentes, portanto um sincretismo de crenças religiosas com crenças mágicas e superstições como: a feitiçaria, o exorcismo, o espiritismo, o fazer “malfeto”, etc. Assim, o curandeiro de Monte Piorro (Filipe), é o principal protagonista do livro, um grande “djabacoso”, que, na opinião do povo, curava as pessoas que sofressem de várias doenças, orando a S. Cipriano (“Santo Supriano”, o santo preto, no dizer do povo), conjuntamente com ervas medicinais da ilha do Fogo (como babosa, folha do eucalipto e “lorna”). Os nossos pais ainda se lembram da trágica história do colonialismo, impregnada de acções violentas contra o povo, da fome desnecessária que, por exemplo, durante a II Guerra Mundial, devastou grande parte da população de Cabo Verde. Lembramse também da miséria e da fome causadas pelo abandono do povo pelo regime colonial-fascista de Salazar, que obrigou muitos cabo-verdianos a emigrar para Dakar, São Tomé e Príncipe e Angola, onde a maioria deles viveram como escravos, longe dos seus familiares, sem dia e esperança de os tornar a ver. Tudo isto, e mais calamidades e intempéries que sofremos no tempo colonial, não devem ser esquecidos, mas recordados como motivação que nos faz lutar, para que, semelhantes adversidades, jamais venham a acontecer aos nossos filhos e à geração vindoura. Além disso, devemos esquecer certos costumes e as certas crenças narradas no livro do Dr. Samuel Gonçalves, por constituíram a parte obscura e lamentável da nossa cultura, expressão de opressão profundamente interligada com a ignorância e a superstição. Assim podemos esquecer: as crenças da feitiçaria, malfeito, maldição ou praga, “má bóca/boca sujo”, e má-língua e mau-olhado, ou que existem animais de natureza maligna ou, então, amaldiçoados pela natureza, como a mula, o corvo e o “manelôbo”. É também importante recordarmos como as pessoas mais “espertas” en- António Barbosa da Silva|* ganavam e exploravam a ignorância e a necessidade dos mais fracos, pois “em terra de cego quem tem olho é rei”. Por exemplo, o curandeiro do Monte Piorro, Filipe, fez de certas ervas e das suas orações ao São “Supriano” e às Forças Astrais Superiores a panaceia (remédio) para todas as doenças, principalmente as que eram vistas com sendo provocadas pelo diabo, a feitiçaria, a praga, o mau-olhado, etc. Por isso, a casa do Filipe, tornouse, por assim dizer, num hospital de pobres, os quais o consideravam como tendo melhores conhecimentos do que os médicos e enfermeiros di Bila (S. Filipe do Ilha do Fogo), porque, ao contrário destes, ele curava todas as doenças, dizia o povo. Estes mitos e estas crenças populares devem ser lembrados como maus exemplos de costumes que não devem ser transmitidos à nova geração. O seu valor cultural, religioso e moral deve ser esquecido para sempre, porque “outros valores mais altos se levantam” (Camões). Os nossos bons hábitos, costumes e valores, que devem ser recordados Outros aspectos narrados pelo autor, inerentes ao nosso modus vivendi e que, pelo seu valor perdurável, não devem ser esquecidos: - A boa educação que nos foi dada pelos nossos pais, apesar da limitação dos seus conhecimentos escolares; - A educação moral e religiosa que recebemos em casa, na escola e na Igreja; ou seja, uma educação integral a inculcar na nossa alma e consciência moral, que nos conduza ao dever de amar e fazer o bem ao nosso próximo, respeitar as autoridades e as pessoas mais velhas, dizer a verdade, viver honestamente, repudiar o roubo, a “malandrice”, a vadiagem e a bebedeira. Que nos leve a trabalhar arduamente para não sermos uma sobrecarga para os outros, cumprir as promessas feitas com alguém sem necessidade de testemunhas ou contratos em papel selado, mas segundo o dictum: “a minha palavra de honra basta”. Hoje, esse sentido de honestidade e honradez perdeu completamente o seu significado, porquanto todos querem enganar a todos, procurando viver à custa de outros e desprezando o trabalho honesto, principalmente, o trabalho na agricultura sequeira. Santo Agostinho escreveu: «Encon- 26 | DIÁLOGO INTERCULTURAL trei muitos com desejos de enganar outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado». Também a expressão “pouca vergonha” perdeu o seu valor psicológico e moral, e portanto deixou de ser um valor positivo na boa educação e prevenção de actos e omissões condenáveis. A propósito do papel da Igreja na educação, o autor descreve como o curandeiro do Monte Piorro conseguiu matricular-se na escola primária de um padre que, nos Mosteiros, além de desempenhar o seu papel de sacerdote, foi também professor e “enfermeiro” que curava doentes, quer usando remédios que importava, quer orando a São Cipriano. Aprendeu também com esse padre a ter compaixão do povo e, por isso, como curandeiro não cobrava os doentes que lhe pediam ajuda. Outros bons costumes que devem ser lembrados e ensinados aos nossos jovens são, para além da nossa morabeza, também a amizade entre os pais, filhos, netos e os outros parentes, até à terceira e quarta geração (o que parece possuir algo de Bíblico em si). O nosso costume de “djunta mon”, o costume de “dar pratos” aos vizinhos, familiares e amigos, quando se “matava” um porco; a ajuda mútua dos compadres e amigos, mesmo estando no es- trangeiro, etc. Todos estes bons costumes estão directa ou indirectamente narrados pelo autor no seu livro “O curandeiro do Monte Piorro”. A propósito, o curandeiro Filipe, quando não conseguia curar uma doença, recorria ao “djunta mon”. Assim podia pedir a ajuda do curandeiro Mané Preto, que também sabia invocar espíritos para curar ou amaldiçoar as pessoas. Recomendo pois a leitura do livro a todos os cabo-verdianos, principalmente aos do Fogo e da Brava, visto que é a eles que o livro faz mais referências. Recomendo a todos que conheçam o nosso passado e se preocupem com o futuro da cultura e identidade cabo-verdianas. Recomendo-o igualmente aos africanos de língua oficial portuguesa, já que o autor, Dr. Samuel Gonçalves, é um bom narrador, conhecedor do crioulo do Fogo e dos nossos costumes e domina bem a língua portuguesa. Com a sua forte imaginação criadora e capacidade pedagógico-didáctica, faz com que, ao iniciarmos a leitura, nos possamos sentir motivados para não a interrompermos até chegarmos ao desfecho dos muitos e significativos episódios, relevantes para a compreensão do livro no seu todo. Está, portanto, o leitor 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Samuel Gonçalves convidado a confirmar ou não este meu ponto de vista. “Dixi”! * Professor de Teologia, Saúde Mental e Ética dos Cuidados de Saúde em Oslo (Noruega) Pode morrer um cidadão qualquer nunca o poeta que vive nele Ao poeta Eduardo White Eduardo White U m dia, a minha namorada questionou-me: “o que é que achas do antes e depois do Eduardo White?” Lembro-me que não levei segundos a responder-lhe: “Para os poetas não existe o antes e muito menos o depois, para os poetas só existe poesia” – disse eu! Carregou o semblante, arregalou as sobrancelhas e aguçou a voz, mas não disse absolutamente nada. Pois, a mi- nha resposta parecia ter tido um efeito dominó, ela não teve hipóteses de uma outra questão, fui cogitando a respeito do silêncio dela. Pensei como deveria dizer-lhe em outras palavras, que fossem mais simples, o que dissera; cheguei à conclusão de que aquela foi a única forma simples de definir um poeta. Ora vejamos. O individuo, enquanto individuo, só é isso e nada mais, um simples humano, isto é, uma simples Cultura criação. Como criação, vários limitamse a ceder às vontades do corpo, tornam-se escravos de qualquer obediência vinda deles mesmos. Nascem e somente vivem porque sabem que irão morrer; esses tem na morte o seu maior terror, por esse terror levam a vida de forma drástica. Por esse respeito, submetem-se e prematuramente, sem na vida algo se tornarem, realizam-se, extinguindo-se na morte. Que fique claro, todos os que se vão, sem algo criado, se foram prematuramente, por mais anos que tenham vivido. Os poetas não temem a morte, têm consciência dela, e deles enquanto seres criadores. Os poetas criam várias mortes ao longo da caminhada e vivemnas, quando a morte do indivíduo aparece, eles não morrem, o individuo neles é quem se vai, eles ficam a vaguear num mundo criado por eles mesmo. Um dia li que Mayakovski se suicidou, que Hemingway fez mesmo, atrevo-me a contradizer todos que assim pensam. Esses poetas tiraram o que de comum tinham: o indivíduo! Não quero concordar com aquela filosofia que postula que o corpo é apenas a jaula da alma, se assim fosse, os indivíduos, todos eles, libertar-se-iam com a morte, o que provavelmente po- Japone Arijuane de ser. Enquanto os poetas, sem abstracção nenhuma, vivem!, sem antes nem depois, simplesmente vivem e os outros os vivem, os celebram, na medida que com eles conversam, brigam, seja lá o que for. Se preguntasse a qualquer um: o que realmente importa? Teria várias respostas, mas, quanto a mim, só o viver me importa e os poetas o fazem eternamente. Quis dizer à minha namorada que Eduardo White, assim como Mayakovski, Hemingway e outros todos poetas vivem, vivem-nos e a poesia vive deles. Não tenho dúvidas e nem pretensões supersticiosas em afirmar que o poeta Eduardo White está nesta hora no país por ele mesmo criado, sentado para a janela do Oriente, quando lhe apetece beber uma cerveja no Pulmão ou nas barracas do Museu, ao despedir-se do seu amor, dizendo: até já coração. Pode mesmo estar agastado com as mortes dos Homoines que existem pelo mudo que ele consegue ver a partir da sua janela. O poeta que escreve e vive na mesma intensidade que ama a vida e as coisas da vida, dirá sempre que o sol raiar: bom dia, Dia. Para que seja o Dia em si bom para todos os que o vivem. Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 DIÁLOGO INTERCULTURAL| 27 Tchanaze, a Donzela de Sena C onheci o Paradona quando escreveu “A gestação do luar”, nesses memoráveis tempos em que se tentava criar a geografia literária moçambicana, e cada um de nós se sustentava nas ferramentas da sua utopia e da sua criatividade. O que significava o título da primeira obra do Paradona? Apenas isto: a gesta. O começo de tudo. O início do sonho. Paradona, ao enveredar por essas lucubrações emotivas do seu livro, também esboçava os primeiros traços da nova poesia moçambicana após a conquista da independência nacional. Estávamos no começo de uma outra literatura, depois de consumados os objectivos da poesia de combate que sustentou a nossa aventura libertária. Com o livro de poemas “A gestação do luar” se iniciava um outro percurso literário em Moçambique, uma outra forma de buscarmos a nossa identidade, porque não existe nenhuma pátria capaz de se suportar sem fazer o exercício da sua cultura. Aquilo que afirma uma escrita, qualquer que seja, é a singularidade com que ela se veste, a forma como explora os conteúdos da sua realidade. Só desse modo é que ela pode ser universal, isto é, quando parte da sua singularidade. É nesse contexto que a escrita de Carlos Paradona Rufino Roque, neste caso, “Tchanaze, a donzela de Sena” se afirma, nessa sua tentativa de vincar alguns traços da nossa moçambicanidade através desse mergulho a esse mundo desconhecido, mágico e incompreensível para nós, simples mortais. Fá-lo sem entrar nesse exercício folclórico a que alguma escrita desonesta se socorre com vista a alcançar uma visibilidade que acaba sendo grotesca, anedótica e efémera. Carlos Paradona não vai por esse caminho, apenas recria as histórias inspiradas na realidade sugerida pelo Sena, onde o realismo fantástico predomina, escrevendo, como o disse a escritora moçambicana Paulina Chiziane, de modo a levar o leitor a uma viagem por mundos desconhecidos, para trazer novas visões e colocar à luz, saberes ocultos ou adormecidos. A estória do livro tem como epicentro Sena, onde Tchanaze, eleita a mulher mais desejada de entre todas as mulheres, aquela que foi fogo e lume dos corações dos homens de Sena, e também de Mutarara, passando por Murraça, Chipanga, Caia e mesmo até Cheringoma, vivia com os seus. Mas Tchanaze não só conquistou o coração dos vivos como também dos espíritos que jaziam no chão de Sena, seduzidos pela beleza do seu corpo, pelo brilho das suas missangas e pela apetência da sua virgindade. O cenário do livro decorre entre Inhangoma, Gorongoza, como também em Kumalolo, zona situada abaixo e a nascente de Sena, mesmo junto de Zambeze, próximo de Caia, santuário dos maiores feiticeiros e bruxos, os quais se encarnavam nas vidas de pessoas já falecidas e que di- Marcelo Panguana tavam a sorte das pessoas que habitavam aquele lugar. Uma maldição engendrada por gente maldosa fez com que Tchanaze contraísse n’fucua, doença mortal que se contrai pela maldição dos espíritos que habitam o vale de Zambeze. O quadro que este livro narra é denso, assustador, angustiante, quase macabro, e que talvez por isso prende o leitor da primeira até à última página. É a estória do inconformismo perante a morte de Tchanaze e o retratar de todos ritos e exorcismos que culminarão, mais tarde, com a ressurreição da donzela mais bonita das terras de Sena. Como disse a escritora Paulina Chiziane, este livro, referindo-se a «Tchanaze a Donzela de Sena», mostra que a beleza moçambicana é cultura, que deve estar acima da beleza monótona das telenovelas. Paulina Chiziane afirma que através da leitura de «Tchanaze», experimentou mergulhar nos saberes escondidos na gruta dos tempos. Diz ainda a escritora: «Ganhei nova visão da existência, que sempre nos ocultam sob a capa de superstição. Debati novos conceitos de vida, porque entre nós, bantu, os vivos, os mortos, o visíCarlos Paradona vel, se entrelaçam na macabra dança do quotidiano». abriu e, por entre os seus aros, apareO cheiro da oralidade ceu ela inteira, a transbordar para fora A escrita de Carlos Paradona, aque- os seus encantos de divindade. Parela que encontramos nestas quase ducia mulher que fora fogo e lume e brazentas páginas, traz o cheiro da nossa sa de corações apaixonados, em Sena. oralidade e a inesgotabilidade das As suas missangas e tatuagens não se nossas tradições, maquiavélicas ou podiam parecer com outras senão não, reais algumas, sobrenaturais ou- com aquelas de cujo íntimo saíram tras, e que nos faz imaginarmos almensagens que regozijaram toda a raguém que sentado a roda de uma fopaziada da região, e também as almas gueira, algures, nas terras de Sofala, agrilhoadas no desconhecido. Ali estaconta estórias que enriquecem o ima- va ela, aquela que podia ser a que fora ginário de quem as escuta. É uma esvenerada pelos espíritos passados, crita sem nenhuns pretensiosismos. presentes e futuros de Sena, Caia e de Sem excessivas metáforas. Límpida. toda a terra». Transparente. Sedutora. De um verdaOs romances que vêm sendo publideiro contador de estórias. Como se cados nos últimos tempos em Moçamdisse, a escrita de Paradona é simples. bique, particularmente “Tchanaze, a Nada o move para a complexidade dis- Donzela de Sena”, desmentem de forcursiva, mesmo que a complexidade ma categórica alguma corrente de da história que nos conta o sugira. A pensamento segundo a qual o romanhistória, refiro-me a história que Para- ce é uma arte narrativa com que os dona nos conta, deve correr límpida moçambicanos lidam com dificuldacomo os rios. Como o vento. Como o de, e com menos competência, talvez sussurro das florestas. Repare-se, por até inabilidade. Para a estudiosa Ana exemplo, na beleza e simplicidade dis- Mafalda Leite, o romance é um género cursiva do seguinte parágrafo: de hibridação de formas, e, provavel«Muito devagarinho, a porta se mente, os moçambicanos escolhem e optam por “modelos” próprios, em via de formação, diferentes, por conseguinte, acabando por escapar a outros modelos considerados canónicos. Por isso, a leitura do romance moçambicano provoca uma certa perplexidade ou estranheza, uma vez que não se rotula ou encaixa em formas previamente conhecidas, inaugurando outras, experimentais, e menos convencionados. É nesse contexto experimental que se deve inserir o romance “Tchanaze a Donzela de Sena”, um romance surpreendente, não apenas pela sua temática, mas por esse seu carácter experimental, onde podemos encontrar novas formas que em ultima estancia, não apenas testemunham a vitalidade do romance moçambicano, como também asseguram que este livro de Carlos Paradona Rufino Roque vai ser nos próximos tempos uma das grandes referências sempre que estiver em causa a análise do novo romance moçambicano. Março/2014 Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 Circo made in África DIÁLOGO INTERCULTURAL| 28 O Circo e a moda celebram um cheirinho de África C IRKAFRIKA 2 apresenta uma imagem de África em total ruptura com os clichés. O grande público vai partir ao encontro de uma África autêntica, viva e muitíssimo poderosa. Tudo estará reunido para fazer descobrir ao espectador o ambiente de terras longínquas, onde tudo é emoção, generosidade, alegria de viver e encantamento. No programa: acrobacias, malabarismos, números aéreos, entreactos cómicos, sapateado, ballet, música gospel. É um espectáculo ligeiro, criativo e físico, o que nos propõe a trupe de Cirkafrika. Esta superprodução musical confere claramente uma imensa notoriedade ao circo africano. O conteúdo é rico, festivo e colorido. Os quadros humanos são verdadeiras proezas atléticas e cénicas. Podemos ver aí uma nova forma de circo, incarnado, onde o tema da identidade exprime uma parte real da sua africanidade passando em revista o gospel e o sapateado da tap dance ao ritmo das marimbas da África ocidental. Aqui nada se faz pela metade, uma vez que há cinco marimbas a partilharem o palco. Os artistas são todos muito hábeis e generosos. Um novo grupo de 48 artistas guia o espectador num universo onde se vão suceder números estonteantes, mas também danças e cantos diversificados conduzidos pela orquestra ao vivo e pela companhia de dançarinos do Circo Phénix. A música é o segundo personagem deste espectáculo muito exótico. A orquestração é audaciosa. As marimbas a isso obrigam. Este instrumento originário da África ocidental é composto por uma estrutura leve de madeira ligada por correias de couro, sobre a qual estão alinhadas lâminas de madeira dura por ordem crescente de tamanho e altura. Uma marimba é geralmente capaz de pro- duzir de 18 a 25 notas. O executante toca-a de pé, com resistentes correias de suporte, ou sentado. Toca-se com varetas revestidas de borracha. Da música à dança vai apenas um passo. Sendo um forte símbolo da história dos povos africanos e verdadeiro factor de identidade, a dança, frequentemente acrobática, está presente em todo o continente. Ela une os homens de uma mesma região, tribo ou linhagem. O Zaouli, a Pansula e a Tap Dance contam cada uma a sua história. O Zaouli é uma dança espectacular pela rapidez de execução. Esta dança de máscaras homenageia a beleza da mulher da Côte d’Ivoire. De acordo com as crenças locais, ela aumenta a produtividade da aldeia que a pratica e reforça os laços familiares e clânicos no seio da comunidade. No sul do continente, a Pantsula é mais do que uma dança: é um movimento de protesto. Com origem nos anos 1960-1970, sob o regime do apartheid, nas townships, foi nesses guetos marcados pelo desemprego e pela criminalidade que nasceu a cultura Pantsula, uma perfeita alquimia entre moda, música, dança, códigos gestuais e linguagem. Tal como o Hip Hop, a Pantsula encontra o seu terreno de expressão. O sapateado lembra a dança dos gumboots, dança de percussão dos mineiros sul-africanos durante o apartheid. «O circo é para mim a forma artística ideal, a que reúne todas as possibilidades. Estimula a minha imaginação, leva-me a questionar os seus códigos sem no entanto atraiçoar a exigência de uma técnica acrobática poderosa» lembra Alain Pacherie, o fundador do circo Phénix. A trupe do Phénix que concebeu este espectáculo voa de sucesso em sucesso e percorre o mundo. A versão precedente, Cirka- frika I, teve a honra de ser o espectáculo oficial das celebrações do primeiro Dia Mundial da Cultura Africana (JMCA). Depois de Paris, esta tournée passará pelo Togo a 23 de Janeiro de 2015. Fashion Mix. Moda de cá, criadores de lá. De 9 de Dezembro de 2014 a 31 de Maio de 2015, o Museu da Imigração propõe uma exposição concebida e realizada com o Palácio Galliera, museu da Moda da cidade de Paris. A moda não conhece fronteiras, abarca todos os horizontes. Os talentos do mundo inteiro deslocam-se a Paris para se aperfeiçoarem acalentando a esperança de se tornarem mais do que um nome, uma marca, cujo alcance tenha a dimensão de um passaporte universal. Para um criador do fim do mundo, um provinciano, conquistar a cidade-luz traz consigo uma consagração pouco usual que começa nos murmúrios discretos de lábios pintados, se alastra, como um rasto de pólvora, para o branco opaco das batas, até ao frenesim das semanas da moda, para terminar no vestuário sofisticado. Vestir o mundo inteiro é a ambição de todos os designers que chegam a Paris, Meca da moda criativa. Um destino assim é também aceitar ser apenas um elo na transmissão de um saber fazer único. Reinar com garra sobre uma indústria. Arbitrar as elegâncias e dinamizar tradições seculares. Passar o testemunho. A magnificência da alta-costura e do pronto-a-vestir de luxo que se renova em cada estação alimenta-se do fascínio que exerce sobre os génios criativos, por vezes sacrificiais, em detrimento da própria saúde, à qual provocam enormes danos. Olivier Saillard é o curador da exposi- Lauren Ekué ção; a sua erudição excepcional deixa transparecer um espírito de uma rara fineza e uma paixão sincera. A cenografia homenageia os criadores através de peças de vestuário emblemáticas como um conjunto de vestido e capa de Cristobal Balenciaga e as últimas criações de alta-costura da casa Alaïa. E esta história de moda e de imigração funde-se na perfeição num casaco Céline por Phoebe Philo (Outono-Inverno 2013/14). Este retoma a carta gráfica da tela em plástico dos grandes sacos vendidos em Barbés. Gerações de imigrantes do Norte de África e da África negra popularizaram esses sacos de regresso “à terra”, cujo famoso estampado aos quadrados “Barbés” se tornou no Santo Graal da fashionista celiniana mundializada. O símbolo é de tal modo forte que encontramos esses sacos numa sala contígua à exposição. De repente pensamos em Lamine Kouyaté, fundador da marca Xuly Bët, e nas suas icónicas afectadas talhadas na preciosa tela quadriculada. É com alguma tristeza que constatamos que não existe ainda qualquer ligação entre a capital da Moda e o continente africano. No entanto, o contributo do continente é inegável, mas, até hoje, ainda nenhum criador africano a residir na sua terra natal impôs o seu nome no calendário oficial da semana de moda parisiense. Sakina M'sa, Oswald Boateng, Lamine Kouyaté, Imane Ayissi, estamos à vossa espera. Fashion Mix, moda de cá, criadores de lá. Museu da Imigração, Palais de la Porte Dorée. Avenida Daumesnil, 293, 75012 Paris. Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 Haiti no Grand Palais, o efeito de estufa DIÁLOGO INTERCULTURAL| 29 Lauren Ekué D e 19 de Novembro de 2014 a 15 de Fevereiro de 2015, o Grand Palais acolhe a exposição Haiti, dois séculos de criação artística. Foi preciso empreender um trabalho colossal a montante para reunir estas obras. Dois longos anos. Paris, capital das artes, presta uma nova homenagem à Pérola das Antilhas. Em Dezembro de 1975, André Malraux efectuava a sua última viagem, uma dezena de anos após se ter deixado deslumbrar pela arte haitiana. As cores de Dakar no Festival de Artes Negras de 1966 revigoraram os sentidos do homem de cultura francesa. Foi ao Haiti com a sua última companheira, Sophie de Vilmorin, membro de uma célebre família de botânicos e comerciantes de cereais. O sinal foi claro. O homem político, que tinha devoção pela arte haitiana, foi o piscar de olhos do destino que gravita por cima da vidraça deste local privilegiado de Paris, cujas vastas alamedas ele teria adorado percorrer. Este segundo dia de inverno é singular, desde há uns dias que as temperaturas sobem, o clima está mais clemente. Um calor suave parece escapar-se não sei donde para aquecer a atmosfera acrescentando-lhe alguns graus benfazejos. Talvez o Grand Palais se tenha convertido durante a exposição sobre o Haití numa maravilhosa estufa. No plano simbólico, imaginamos que a galeria do prestigioso edifício permite hoje ver sob uma luz viva o crescimento de uma cultura, criando as condições climáticas favoráveis para uma exposição “fora de estação”. O interior do museu abriga a energia, o brilho e os cultos de Ayiti Chéri. Se a arte permite entrar em contacto com um povo, uma nação, a rica proliferação da haitianidade poderia desconcertar muitas pessoas. Aqui, não se dá muita atenção à Arte Naïf. Diga-se em abono da verdade que a escrita escultural e pictural desta ilha não se resume a este tipo de arte; a ilha tem uma grande tradição plástica, particularmente fecunda. Aqui celebra-se mais o patriotismo artístico direccionado para a construção da primeira República negra. Este país, eterno e absoluto farol do mundo negro livre, demonstra que o poder da criação artística reside na sua densidade intelectual. A arte é emancipadora e estádio último da emancipação. Os espaços imaginários ou reais dos artistas apresentados contam, cada um à sua maneira, a história intelectual da sua terra natal. A insularidade é um adubo propício à eclosão de talentos. Da arte combate à arte resiliente, o Haiti continua a inventar a sua tradição plástica. Entre folclore haitiano plenamente reivindicado em numerosas obras e arte contemporânea assumida com Jean-Michel Basquiat, génio artístico da diáspora haitiana, a visita explora esta famosa haitianidade de geometrias variáveis. O discurso estético surpreende pela sua radicalidade e diversidade. A expressão haitiana vive, goza e abraça a sua singularidade. A especificidade da linguagem plástica haitiana continua a ser esta liberdade, esta independência indómita, face aos espaços ocidentais e africanos. A polinização dessas duas eras de influências germina nos labirintos criativos da psique dos artistas haitianos. Essas duas águas configuram o leito de um diálogo intercultural onde o desenvolvimento das culturas taïnos, daomeanas, francesas e ibéricas, deu lugar a uma mescla sem igual. O culto Vodu de Daomé encontra-se nos soberbos crânios de Dubréus Lhérisson ou nos frescos têxteis de David Boyer, rebordados de lantejoulas. Nada existe aí de macabro, apenas uma explosão de cores vivas. A arte haitiana é penetrante porque não se desprende da sua dimensão religiosa, maravilhosa, africana. A França, a Europa, encontram-se na arte do retrato. Os quadros de Gervais Emmanuel Ducasse e Edouard Goldman. Figuras negras, nobres, orgulhosas. A herança desta ilha é universal, os povos que aspiram à liberdade, esta modernidade patriótica, irrigam o trabalho de prometedores artistas, alguns dos quais jovens talentos nascidos nos anos 70. O Grand Palais, monumento mítico, que acolhe as maiores exposições de arte da capital, presta homenagem aos artistas haitianos, à história do seu país e à sua cultura de origem. Cerca de sessenta artistas e de cento e setenta obras, apresentadas pela primeira vez em França e especialmente concebidas para a exposição, muitas vezes realizadas in situ, restituem de maneira fidedigna a extraordinária vitalidade e a permanente criatividade dos artistas durante um período que se estende do século XIX aos nossos dias. Quatro grandes capítulos que percorrem a exposição ostentam um título em crioulo e declinam-se em várias temáticas. Santit yo/ Sem títulos representa as figuras populares e as cenas do quotidiano. Lespri yo/ Espíritos confronta as obras de carácter profano ou sagrado das religiões vudu e católica e os símbolos franco-maçons, Peyizaj yo/ Paisagens privilegia o trabalho de artistas ostracizados nos anos 1950-1960 por serem conside- rados demasiado «contemporâneos», Chéf yo/Chefes reflecte, enfim, sobre a construção política e intelectual haitiana. Estes capítulos estão em destaque na exposição através de três Tètatèt/ tête-à-tête que fazem dialogar dois artistas por intermédio das suas obras. Essa fragmentação em quatro espaços harmoniosos mal consegue explicar o fenómeno haitiano. A arte talvez ajude a resolver conflitos internos. O imaginário desta ilha permaneceu vivo, intacto. A dissidência compensa. Aplaudimos a nova vaga de artistas como Sébastien Jean nascido em 1980, David Boyer nascido em 1977. A passagem do testemunho está a acontecer. Pneus, osso, plástico, madeira, metal reciclado, borracha, pérolas, chifre, materiais brutos, nada de muito precioso; mas que sofisticação emana destes espíritos habitados pela restituição estética da alma haitiana, fermento das lutas passadas. O exercício resume-se essencialmente a sublimar o país natal. A ilha é frequentemente pintada como um jardim edénico. Deste cantinho de terra crioula nasceram todas as dissidências negras. No entanto, a doçura apaziguadora dos quadros da colecção Claude e Farah Douyon levanta o véu sobre a intimidade familiar. Como os escritores e poetas haitianos, os artistas são médiuns que servem de intermediários entre Deus e os humanos. A magia opera, o magnetismo vence. Nesse dia, vieram alguns jovens haitianos ver um pouco da sua ilha. Um deles ficou extasiado diante de um quadro de Jean-Michel Basquiat. Vibrando com o seu herói. Depois tirou algumas fotos. Uma jovem abraçou a sua mãe adoptiva vendo até que ponto esta estava submersa pela emoção. Sim, esta potência estética é obra dos seus. Malraux tinha, segundo consta, uma necessidade imperiosa de observar a pintura haitiana; calha bem, nós também. No Haití, moun pa jam désespéré. Cenografia Sylvain Roca e Nicolas Groult © Didier Plowy / Rmn-Grand Palais, Paris 2014 Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 DIÁLOGO INTERCULTURAL| 30 Porque poesia não vende Porque poesia não vende. É um círculo vicioso: o Brasil produz leitores “de menos”, em relação à sua produção editorial. Logo, o problema aqui é de leitura em geral, mas piorado em relação a textos mais complexos. Temos mais editoras que livrarias, logo, mais livros do que lugar para vendê-los; As poucas livrarias escondem a secção de poesia (conforme foto abaixo), justamente por vender pouco, mantendo o círculo vicioso. Veja abaixo a foto que tirei na FNAC do Barra Shopping ontem, após ter que perguntar a um atendente onde ficava a parte de poesia, por não conseguir achá-la sozinho. Note a altura da prateleira (a mais perto do chão era a de poesia): Poesia? Perto do chão e sem plaquinha. Rastejando, daria pra ler os títulos. É mesmo uma guerra… Isso, a meu ver, agrava o de fato de os sites mais visitados sobre poesia serem um lixo. O Google dominou a internet e simplesmente não consegue seleccionar direito sites com conteúdo relevante e sem erros para as primeiras posições das keywords mais procuradas desse universo: poesia, poesias, poemas, versos etc. Assim, quem busca por poesia recebe na internet um tratamento ainda pior do que nas livrarias: textos alterados e falsas autorias. Isso me estimula a seguir trabalhando na Magia da Poesia com cuidado crescente. OBS.: Se você é escritor, principal- mente se for poeta, recomendo acabar com alguns dos intermediários entre você e seus leitores fazendo um blog ou site. O blogger, acho o menos complicado pra se começar. OBS. 2: Postado originalmente em 18 de Junho de 2012. Em 2013, o livro com a obra completa do Leminski ultrapassou até o “50 tons de cinza” nas listas de “mais vendidos”, mostrando que poesia boa vende, sim! Basta sair das prateleiras escondidas, com uma editora com boa distribuição que invista em uma boa campanha de Marketing. OBS. 3: Em 2014 lancei outro livro com meus melhores poemas dos últimos 10 anos. Para saber mais, clique aqui. Ajude poesia a vender comprando um exemplar. (in A Magia da Poesia) Fábio Rocha “Nenhuma raça é antónima de outra, por isso não existe preto e branco no mundo” Defende o escritor moçambicano Dom Andira (in BATEMOZ.COM) “Nenhuma raça humana é antónima de outra neste mundo, cada raça é uma excepcionalidade. Ela goza de uma identidade e orgulho do seu ser/pessoa neste mundo. Nisto, a denominação de seres humanos pretos e brancos, no planeta terra, é algo inexistente, inconcebível, inadmissível e banal, deve ser algo somente para imperadores, colonizadores e pilhadores.” Foi com estas palavras que o escritor moçambicano Dom Aurênio Andira, iniciou, no ano de 2010, a sua primeira obra intitulada Voz Da África Ao Global Da Globalização, com o objectivo de repudiar o uso abusivo de termos depreciativos na vida social. Andira explicou, numa entrevista exclusiva ao semanário Debate, a mensagem expressa em cada poema da sua obra, com vista a facilitar a compreensão dos ensinamentos patentes na mesma. De acordo com o autor, as expressões actualmente usadas em diversas ocasiões da vida sócio-po- lítica, económica, cultural e educacional para identificar a raça humana (preto, branco, mulato, caneco, monhé, entre outros) são simplesmente um instrumento de trabalho ao nosso dispor, implementadas com a finalidade de conquistar o bem-estar de algumas pessoas em detrimento de outras. “É com esses dizeres que começo a escrever a obra. Uma vez que todos nós desejamos um mundo mais unido e próspero, expressões desta natureza não têm mais espaço no mundo, pois servem para humilhar, limitar, intimidar, inferiorizar, oprimir e explorar pessoas” disse Andira. A leitura do livro prossegue e o escritor fomenta, cada vez mais, filosofias baseadas nas ideologias afrocentristas. No segundo poema intitulado Visão e voz do povo africano, Dom Andira exalta a inteligência africana, isto é, demonstra que os africanos foram colonizados e humilhados no passado, o que jamais irá voltar a acontecer porque o africano está actualmente atento a qualquer invasão. “Esta África faz entender ao Ocidente que não existem animais ou selvagens neste continente, mas sim pessoas sábias e humanas”, explicou, acrescentando a necessidade de se repudiar alguns atributos que julga pertencerem a imperadores e colonizadores, tais como, homem de cabelo longo, loiro, patrão, magia negra, entre outros. “A África é dos africanos, sempre foi e sempre será, não é uma garrafa de vinho, uma arma de fogo, mas sim um continente de gente com cérebro valente que supera toneladas de ouro, diamante e marfim… E que sempre, em voz de trovão, lamenta humildemente a desgraça, a pólvora, a descriminação tribal e racial”, esclareceu Andira. Don Andira Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 MILANDO1 BARRA DO KWANZA| 31 CONTO de Japone Arijuane Era Domingo, um dia morto em sua utilidade: enquanto uns dormem a ressaca do fim-de-semana, outros a igrejas e cemitérios fazem-se. Nessa última nenhuma-coisa esteve o Essoma a fazer visitas à suposta morada da sua mãe. Depois de construída em pedra e cimento, a sepultura da dona Masua, como vinha escrito na lápide, aparentava tantos apetrechos, de tal forma que parecia algo feito no estrangeiro. Essoma, ainda dentro do gozo do luto anual, digno de homenagear a memória da sua mãe, ouviu rumores naquela funesta manhã de domingo, alegando que aquela não era a morada real da sua ante querida, mãe. Neto do Membo, sentiu um tremor nos pés e a carapinha a correr-lhe o orifício, seu corpo, como se voltasse dum banho à moda do rio, sem toalha, todo ensopado. Mal ouviu essa conversa fiada, dirigiu-se logo ao único lugar onde poderia ter origem a tal desavença. Já imaginava quem lhe podia prestar contas. Enquanto ia a dez passos por segundo, na casa dos Bathua, ter com o neto, o inimigo da sua geração, imaginava as últimas palavras do seu avô, “Ninguém, mas ninguém desta família, deve misturar-se com essa desgraça aí ao lado”. Esta sentença, proferida pelo velho Membo no seu último suspiro, sempre desfilava na mente deste, quando problemas com esses faziam-se sentir. Lá foi Essoma, a tal desgraça à desgraça ao lado, à qual se referiu seu avô naquela fatídica manhã de Dezembro. Esta localizava-se bem ao lado esquerdo do quintal da casa que herdara dos avós. A casa dos Bathua ficava mesmo ali. Eram, como o bom português nos ensinou: vizinhos. O Madala Membo e o Bathua, já falecidos, eram bons amigos até ao dia em que estes foram à pesca e, por ironia do ofício, o Membo não apanhou quase nada, mas auxiliou o seu companheiro a trazer à superfície um peixe que quase o pescava a ele mesmo, o Bathua. Segundo testemunho de um popular, aquilo foi-lhe confiado pelo seu, já também falecido, avô. Os dois amigos sempre andaram juntos, que até para construírem as suas casas naquele lugarejo foi uma rebeldia e tanto, aquela que só cabe aos jovens embuchados de colectividade”, disse este. O isolamento era de tal maneira que só podiam sobreviver dois amigos, suponho eu. Nas falas do mesmo: “Como me disse meu querido avô, que Deus o tenha, a inimizade começou quando estes, um dia desses, foram à pesca e Bathua atraíu ao seu anzol um Mucadje. Um peixe tão grande, tão grande e preto, que engoliu a isca toda” - sentencioume o popular. Mucadje é uma espécie de peixe que muito cresce e vive em águas doces, o qual, dada a dimensão, um só homem não conseguiria tirá-lo para a margem, como é óbvio. “Nesse mesmo momento, o Membo, vendo o seu amigo em tamanha aflição, foi ajudá-lo. Nesse dia, frisou o meu avô que o velho Membo não havia apanhado nada, além do mesmo nada. Chegados a casa, Membo, na expectativa de ver o seu esforço recompensado, o outro nem sequer, parte alguma que fosse, do graúdo peixe partilhou com o seu companheiro. A partir deste dia, o peixe pescou o que estava de tão escondido dos dois: a inimizade. Esta começara de forma brusca.” O popular fala com tanta veemência que parecia encarna-se a alma do tal do seu avô. “No dia seguinte, Membo encarregou-se de cobrar tudo o que outro lhe devia, e este não tendo como devol- Quadro de Malangatana ver, o outro levou a sua filha benjamim como penhoro, e a usou durante dois anos como empregada doméstica. Isso meu avô sempre me contava à volta da fogueira e nós, os da nova geração, só vivemos as brigas das filhas, a Dona Masua, mãe do Essoma, e Dona Dlanda, mãe do Todinho e dos seus netos, amigos meus, que eram o motivo principal da briga das mães”. Quando Essoma chegou a casa do inimigo da sua geração, o Todinho, este encontrava-se ainda a dormir, tudo por conta da ressaca do fim-de-semana. Era esse o culto que os jovens cumpriam aos domingos. Todinho era forte e baixo, uma estatura que lhe dava o privilégio de, pelo menos, pessoas com a estatura do Essoma o temerem. Mas porém, este foi direito aos aposentos do seu inimigo. Pontapeando panelas, galinhas, copos, bacias, tudo o que ali encontrou, e enquanto esmurrava a porta, o Todinho saiu, corpo nu, calção curtíssimo de caqui, mal que abriu a porta, a surpresa amorteceuse no seu rosto, um murro directo aos seus maxilares, este não precisou se certificar do que estava a acontecer, ao ver o Essoma na sua casa, respondeu na mesma intensidade, e ali ficaram. A vizinhança fez-se plateia, este filme só parou, aquando da chegada da polícia comunitária. No dia do julgamento, apurou-se que, por ali, as trocas de chapas que serviam de lápides eram frequentes, e quem fazia as tais trocas, desse documento de identificação final, que vem pendurado nas sepulturas, era o guarda do cemitério. Que, por vezes, trocava por ajuste de conta as famílias que não lhe davam gorjeta, ou por excesso de álcool durante as horas laborais, ou por mera zombaria, ou então só para trazer briga na zona. “Há vezes que este rouba e vende as famílias enlutadas”, isto confirmou o último freguês dessa etiqueta, presente no Milando, e único que garantiu aos populares que ficou muito tempo de papo ao ar com o guarda, até aperceber-se disso, porque este não se encontrava enlutado, mas sim comprara e guardara para que lhe pudesse ser útil em qualquer ocasião, porque, por aquelas bandas, a morte era o que não faltava, e sentenciou que no mesmo dia que adquirira a metade de chapa, virá o guarda com várias farfalhadas da mesma inutilidade, só que não identificará de quem seriam porque este já havia apagado as letras. A multidão ficou perplexa, tão perplexa que não se resolveu o problema. 32 | NAVEGAÇÕES DE VOLTA A ANGOLA 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura NAS PALAVRAS QUE ELA ME ENSINOU A ESCREVER Sérgio O. Sá O tempo passou. Dois anos e pouco de comissão forçadamente cumprida. Erachegada a hora de regressar à metrópole. E na manhãzinha de 14 de Janeiro de 1968, o Vera Cruz, que dois anos antes me tinha levado até Angola, levantou ferro, feito favela flutuante, deixando o porto de Luanda, serenamente, como que para me deixar matar as saudades que já sentia da Gente e da Terra que me tiveram, e da sua capital que, sob amena neblina, estava mais bonita do que nunca. Mas que poderia eu fazer, senão aceitar a realidade que eu próprio não me atrevera a alterar?! No convvés, onde já quase ninguém permanecia – sinal de que quase todo o contingente a bordo, de cerca de 2500 almas, estava ansioso por virar definitivamente as costas à vida a que se sujeitara durante tanto tempo – me deixei ficar, envolto numa inesperada nostalgia, e comecei a pensar. A pensar no que me fora dado apreender durante o tempo em que Angola me tivera, no que eu mesmo sofrera e no que sofreram outros, no que vira e ouvira e no que aprendera com tudo o que à minha volta acontecera. E lembrei-me das Gentes negras recrutadas nas regiões de onde eram AFRICANA Foste a madrugada inocente, A espera verde Onde o fogo do teu Sol descera Para beijar-te. nativas para trabalharem fora delas, inclusive nas zonas de guerrilha, sujeitando-se a ser por ela consideradas inimigas. E lembrei-me dessas Gentes que se sentiam desintegradas, onde o único meio de comunicação com as tropas e fazendeiros eraa língua portuguesa, mal falada, como convinha ao próprio regime e a quem as explorava, devolvendo-as às suas terras, no final dos contratos, com uns sacos de fuba, uns trapos estampados para as mulheres e “dez reis de mel coado” para os homens. E lembrei-me dos aproveitamentos obtidos pelas tropas do exército português, relativamente a elementos negros, ao convocá-los para fazerem de guias, tornando-os traidores em relação aos seus concidadãos guerrilheiros. E lembrei-me das condições em que viviam as populações afastadas das cidades e vilas. Totalmente abandonadas à sua sorte, sem assistência na doença, sem escolas, sem comunicações, sem nada que se relacionasse com a civilização, apesar de Portugal, o país colonizador, se dizer uma nação civilizada. E lembrei-me dos operários negros, qualificados ou não, que auferiam salários muito inferiores aos dos seus colegas europeus que, a seu Foste a pureza da selva, A seiva que regou a terra dos embondeiros, Onde a luz irradiou, feliz, do teu bronze, Ao encontro das coisas que te amavam Com seu olhar. E dançavas, livre como teus seios, Ao som do batuque. lado, não faziam mais do que eles. E lembrei-me de ter visto gente branca a comerciar latas de produtos de conserva, vazias e recuperadas para o efeito, como se de faiança se tratasse, para Gente negra utilizar como loiça de cozinha. E lembrei-me das contribuições em espécie que a Gente da sanzala de Malele – certamente como todas as que arrancavam da sua própria Terra, em qualquer fim-do-mundo angolano, o magro sustento com que sobrevivias – era obrigada a pagar ao Estado. E lembrei-me das lavras que alimentavam a Gente da guerrilha e que a tropa destruía, como forma de a obrigar a uma espécie de nomadismo forçado. E lembrei-me das palavras do camionista durante uma longa e solitária viagem pela estrada do Caxito – Uíge, ao fazer-me sentir que seguia com mais segurança a seu lado do que integrado numa coluna militar, recordando também a posterior dica, captada em Luanda, relativamente a uma ou outra saca de sal ou de cereal deixadas cair dos camiões na lonjura das estradas do Norte. E lembrei-me dos que tinham sido mortos, em Luanda, no Natal de E sonhavas sem ser preciso sonhar! Mas, um dia, eles chegaram… E te fizeram escrava. Violaram-te E venderam o teu corpo, amarrado, Como coisa de mercado. Mataram os teus amores, E os teus beijos secaram. Depois engravidaste Com a dor da tua raça, E o sémen que recebeste Deu-te a alma que geraste. 1966, pelas forças do regime. Centenas, segundo as informações que me chegaram, na altura, por correspondência epistolar. E supus que se permanecesse nessa Terra poderia vir a ter muitos mais motivos de que me lembrar para sobre eles meditar. E supus ainda que se em Angola ficasse poderia não resistir à tentação, à necessidade e ao dever de me manifestar contra tal estado de coisas, e acabar por sofrer as presumíveis consequências. E senti receio, um receio que parecia justificar a minha decisão de regressar a Portugal. E julguei-me, nesse momento, um cobarde por sentir esse receio e por me acomodar perante a consciência que ia tendo sobre o que me fora dado observar. Mas, que poderia eu fazer?! Via Luanda já de longe quando decidi descer ao cubículo que me tinham reservado. Deitei-me e tentei adormecer, mas mergulhei numa espécie de angústia existencial de que haveriam de ficar resquícios para sempre. __________ Adaptado do livro DE QUIBALA A MALELE (Norte de Angola) NO DECORRER DE UMA GUERRA, de Sérgio O. Sá, Porto, 2009. Nunca mais esqueci os Povos de Angola, com os quais me identifico. E três anos depois do meu regresso a Portugal, elaborei o poema que a seguir transcrevo. Ninguém a pode comprar! Ninguém a pode vender! Mas é preciso sonhar… Tens de aprender, outra vez, Porque agora é preciso! Mesmo que seja a lutar De flecha, fuzil ou canhão. E um dia amanhecerás, De novo, Com teu povo, Com teu povo pela mão! In: VERSOS NA GUERRA – VERSOS DE PAZ, de Sérgio O. Sá, Porto, 2008.