A MISSÃO HOJE
Moçambique
Veterano regressa
ao seu posto
texto Manuel Carreira | foto E. Assunção
Com o mês de Outubro, terminaram as férias de alguns missionários
que vieram a Portugal passar uns tempos. Visitaram parentes e amigos,
trataram problemas de saúde, e sobretudo, comunicaram ardor missionário e partilharam connosco as suas experiências
Um dos últimos a partir foi o pa­­dre
Ferraz, natural da freguesia de For­mi­­
gais – Ourém. Discreto em tudo, no
andar, no falar e até alimentar-se, con­
viveu connosco em Fátima algumas
semanas e edificou-nos com a natu­
ralidade com que falava da missão.
Interrogado pela Fátima Missionária
deixou-nos algumas palavras que
transcrevemos:
Começámos com uma pergunta pro­
vocante: Que dizem por aí as pessoas
a respeito da tua nova partida para
as missões?
Tenho 74 anos já feitos e muita
gente me interroga porque regresso
a Moçambique. Respondo-lhes que
a missão não olha à idade, mas ao
que eu ainda posso dar de mim pró­
prio. Ninguém me exigirá que faça
coisas superiores às minhas forças,
mas que dê o que puder, sobretudo o
meu testemunho. O simples facto de
estar num país estrangeiro, em nome
da Igreja e de um instituto missio­
nário, já significa «missão». Mas eu
espero não ser apenas uma presença
passiva, mas sim uma presença viva
que anima e a comunidade local.
Quisemos saber as tarefas que fazia.
Nestes últimos anos tenho estado na
Matola – Maputo –, no seminário filo­
sófico dos missionários da Consolata.
O meu trabalho tem-se dividido por
duas áreas que, à primeira vista, podem
parecer antagónicas: a economia e a
direcção espiritual dos alunos.
E vais continuar no mesmo sítio?
Já há tempos que venho manifestando
aos superiores a vontade de ser substi­
tuído no seminário. Mas isto, só depois
do meu regresso é que vai ser definido
em concreto. Eu simplesmente quero
manifestar a minha disponibilidade
para o que for mais conveniente.
Tens motivos para pedir a substi­tuição?
Não é por estar cansado. Pelo con­
trário, gosto muito do meu trabalho
e considero-o como um contributo
directo para a formação de novos
missionários. Além disso, sendo eu
um veterano não só na idade, mas
também nas missões, sinto que sou
escutado e olhado pelos jovens com
muita consideração. O facto de gostar
de mudar de sector pode resumir-se
Luís Ferraz, missionário da Consolata
em duas palavras. Primeiro porque
me parece que outro colega mais
bem preparado, poderá desempenhar
esse trabalho melhor do que eu. Em
segundo lugar é que eu, indo para o
sector da pastoral, posso ajudar outros
colegas mais novos partilhando com
eles a minha longa experiência de
30 anos no meio do povo. Durante
esses anos eu estudei e aprofundei,
nos seus vários aspectos, a proble­
Gosto muito do meu trabalho e considero-o como
um contributo directo
para a formação de novos
missionários
mática pastoral. Fui-me actualizando
o melhor que pude no sentido de
encontrar respostas para os novos
problemas que iam surgindo.
São estas ideias que me levam a
pôr a hipótese de fazer uma nova
experiência.
Jovens do noviciado dos Missionários da Consolata, no Bairro Laulane, nos arredores de Maputo
FÁTIMA MISSIONÁRIA
11
Edição LII | Novembro de 2006
A MISSÃO HOJE
Entrevista com Dom Roque, bispo de Boa Vista (Roraima - Brasil)
Muitos problemas e mui
Entrevista Norberto Louro | foto E. Assunção
a assistência: sem acesso à saúde, à
educação, ao escoamento da produção. Dependemos do transporte aéreo
para chegarmos a várias missões; do
transporte fluvial para acompanhar as
comunidades ribeirinhas e de transportes todo terreno para atender as
comunidades espalhadas ao longo de
estradas em mau estado.
Os conflitos sociais e políticos são um
aspecto da complexidade.
Jovial e audacioso, Dom Roque
Paloschi foi nomeado bispo de Boa
Vista – Roraima - em 2005. É brasileiro de ascendência polaca e
pertence ao clero diocesano. De
passagem por Portugal, falou à
FÁTIMA MISSIONÁRIA
Roraima anda na crista da onda há
muitos anos. É considerada uma das
dioceses mais complexas do Brasil.
Em que sentido?
Andamos na crista da onda não em
sinal positivo. Andamos debaixo de
mau tempo, segundo uma expressão
brasileira. A diocese é complexa pela
sua extensão e pela falta de recursos
humanos. Enfrentamos o crescimento das cidades de maneira galopante. Assistimos ao fenómeno de uma
migração desordenada, que dificulta
Enfrentamos uma realidade que tem a
marca da perseguição, da difamação
dos missionários, dos agentes de pas­
to­ral. O solo de Roraima foi regado
pe­lo sangue do missionário da Con­so­­
lata, João Caleri, o sequestro de mis­­
sionários, a destruição de co­munidades
indígenas e da missão do Surumu. Sem
contar com a permanente perseguição
aos mis­sionários. É a realidade que nos
de­safia. Ficamos muito apreensivos
quando falta aos nossos missionários
a liberdade, apesar da garantia da
Constituição brasileira. Por vezes é-lhes
proibido ir e vir. Vivem sob ameaça.
Roraima é considerado o estado que
mais indígenas tem e é o estado anti-indígena na sua essência. Manifestam-no através dos nossos representantes no Senado, na Câmara Federal
e na Assembleia Ad­ministrativa do
Roraima. A situação exi­ge da Igreja
uma postura coerente. Ou fica do
lado daqueles que estão a ser agredi-
FÁTIMA MISSIONÁRIA
12
Edição LII | Novembro de 2006
dos e ameaçados ou faz conluio com
os que fazem o banquete da morte.
Sabia tudo isto antes de aceitar ser
bispo de Boa Vista. O que é que o levou a
aceitar um desafio tão grande e ingrato?
O acolhimento festivo dos missionários
e do povo cristão paga o risco?
O acolhimento foi e está a ser muito
carinhoso. Posso construir o meu projecto, posso colocar-me na perspectiva de
servir o projecto da vida, da paz, da fraternidade, da esperança. Jesus não nos
apresentou facilidades, benesses, mas a
cruz. Tinha consciência que, dizendo sim
ao convite de ir para Roraima, precisava
de abraçar a cruz. A cruz do sofrimento, dos marginalizados, dos perseguidos
daquela diocese tão grande do nosso
Brasil. Abraçar a cruz dos missionários
que são difamados, perseguidos, caluniados. É morrendo que se vive. É entregando-se, não para favorecer as nossas
vaidades e ambições, mas para realizar
a vontade de Deus, que nós encontraremos o caminho da nossa felicidade.
Desafios tão exigentes não desgastam
os missionários e não desmotivam os
cristãos de Boa Vista há tantos anos
provados pelo sofrimento?
Pelo contrário! Nós sentimos que esta
situação tem dado fecundidade à Igreja
local. Seja pelo florescimento das
comunidades, onde os leigos assumem
mais de 80 por cento do serviço, seja
naquelas que não têm regularmente a
itas esperanças
celebração da Eucaristia. Encontram-se
e celebram ao redor da Palavra e procuram conjugar a fé com a vida. Outro
elemento positivo é o aumento de vocações. Temos quatro padres diocesanos e
18 seminaristas: 12 no seminário maior
e seis para ingressar na faculdade.
Vamos tendo as nossas ordenações. É
sinal que, nestes tempos conturbados,
a graça de Deus vai actuando e dando
consistência à Igreja local. Ela consolida-se sobretudo na sua identidade.
Falou no número reduzido de missio­
nários. Como reagem os leigos diante
desta realidade?
Imagine se não tivéssemos um laicado
com um pouco de preparação! Temos
o testemunho de catequistas, que são
páginas do Evangelho vivo pelo amor
à Igreja, à Palavra de Deus e pelo testemunho de fidelidade. É sinal de esperança e de alegria diante da es­­cassez de
sacerdotes, de religiosos e religiosas. A
existência de jovens, homens e mulheres que se querem preparar melhor
para assumirem os ministérios são o
sinal da Igreja que não se fecha em si
mesma, mas que está em permanente
diálogo com as outras culturas.
A presença da Igreja entre os índios
yanomami, no Catri­ma­ni, é uma expe­
riência de evangelização onde não se
faz catequese explícita. Os índios já se
interrogam quem são e o que fazem
ali os missionários há tantos anos?
Sem dúvida! A presença dos missionários, missionárias e leigos, desde os anos
60, ao serviço da saúde e da educação,
deixa uma inquietude: “Afinal, estão
aqui para quê? A missão do Catrimani
tem sido um sinal profético. A população tem aumentado, os yanomami e os
chitei têm perseverado nas suas culturas,
nos seus valores e nas suas tradições. O
caminho de promoção da vida exige do
missionário e da Igreja uma profunda
sintonia com um processo que é diferente de outras comunidades. É mais o
estar, a comunhão e a palavra de Deus
pregada com o exemplo de vida, com a
solidariedade e com a defesa e resgate
da dignidade dos povos indígenas.
Roraima
Superfície 250 mil quilómetros qua­
dra­dos
Habitantes 400 mil em 11 etnias
Capital Boa Vista
Chegada dos Missionários da Con­so­
lata em 1948
Primeiro bispo da diocese José Ne­­po­
te, misionário da Consolata
Bispo actual Roque Paloschi
Padres e irmãos missionários 30
Irmãs religiosas 30
Leigos Missionários 4
Guiana
Venezuela
Surumu
Boa Vista
RORAIMA
Há quem não entende a posição da
Igreja na defesa dos direitos dos mais
pobres. Há algum processo de diálo­
go com aqueles que são contra?
O contacto é muito difícil. Hoje vivemos
numa situação quase de acantonamento. A Igreja esteve sempre e vai continuar a estar aberta a todos. Devemos
ter a consciência de que o caminho de
Jesus exige a conversão. O apelo a essas
pessoas, que difamam, é para que acolham o pobre como sacramento onde
Deus está presente. Nunca fechámos as
portas às outras confissões religiosas.
Propomos o diálogo, o entendimento
naquilo que nos ajude a viver a vontade expressa por Jesus: Que todos sejam
um, como Ele e o Pai são um.
Catrimani
Oceano
Atlântico
Manaus
BRASIL
Brasília
Oceano
Pacífico
Missão de Maturuca, em Roraima, Brasil. A segurança do bimotor é assegurada por dois jovens da tribo macuxi
FÁTIMA MISSIONÁRIA
13
Edição LII | Novembro de 2006
Maturuca
Download

Veterano regressa ao seu posto