1 PERCURSOS DA ETNOGRAFIA: LOUCURA E IMAGINÁRIO DOGON 1 Denise Dias Barros* Resumo: Com base em pesquisa de campo realizada entre 1994 e 1996 nas terras dogon, sociedade negro-africana da República do Mali (África do Oeste), observa-se que a sociedade dogon possui um léxico significativo vinculado à designação e à compreensão da loucura. Possui, por outro lado, um conjunto de saberes organizados, exercido sobretudo por homens, que se transmite de uma geração a outra dentro da linhagem paterna ou que se adquire, principalmente, por revelação. Estes saberes referem-se ao uso de plantas, de minerais, de processos rituais e de encantações que se articulam segundo as proposições e práticas históricas dogon num processo constante de formação da pessoa-dogon e da sociedade. A pessoa considerada louca poderá conhecer destinos diferenciados: será acolhida, tratada e reinserida nas esferas das relações sociais, ou será tratada sem conseguir uma reinserção total, permanecendo aos cuidados de um parente ou amigo. Ela poderá, ainda, ser aprisionada em sua casa ou ser deixada errante, sendo nestes casos encontrada nos mercados, nos povoados e nas estradas. Palavras-chave: etnopsiquiatria, dogon, loucura, etnografia, África Negra. Que Amba nos dê a noite boa Aos ancestrais, masculinos e femininos Que Amba nos permite levantar em paz Aos quatro cantos da terra Que Amba permita que o levantar do dia nos encontra em paz Que Amba nos mostre o caminho Amba sagu u Sagu !!! Ant&melu Dara O que significa wede-wede na sociedade dogon2? Loucura? Como se organiza e que elementos participam de sua formulação? Como circula na sociedade o conhecimento a respeito do que seja wede-wede? O que ocorre com a pessoa que, rompendo a barreira do mal-estar em sua civilização, passa a não ter suas atitudes, gestos, palavras toleradas pelos seus? Quais as possibilidades que se abrem quando uma pessoa faz uma crise? Foram estas algumas das 1 Artigo publicado na Imaginário n. 6, pg. 57-81, 2000 - ISSN 1413-666x Doutora em sociologia pela FFLCH-USP. Professora do Centro de Docência e Pesquisa em Terapia Ocupacional do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina - USP. Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e da Memória (NIME) e do Laboratório de Estudos do Imaginário (LABI), Instituto de Psicologia - USP. 2 Nome pelo qual ficou conhecido o complexo cultural negro-africano que ocupa a região noroeste da República do Mali, oeste da África. * 2 questões e inquietações que conduziram nossa busca da palavra dos diferentes atores que contracenam, na vida cotidiana na sociedade dogon da República do Mali. A loucura é vista, neste estudo, como uma manifestação das formas e das possibilidades do humano que é sapiens e demens, envolvendo esferas complexas e inseparáveis da pessoa e da sociedade. Revela-se ao mesmo tempo singular enquanto momento/acontecimento particular na vida de uma pessoa e coletiva pois exige sentidos compartilhados. Não se trata de discutir o que ela é, mas como é compreendida e vivida. O adoecer é uma das dimensões da manifestação do enlouquecer e a medicina encara e aceita em si parte da problemática da doença e do adoecer. Estivemos no Mali, pela primeira vez, em 1993. Naquele ano, foram quatro semanas de permanência no país, uma em Bamaco junto à Unidade Psiquiátrica do Hospital Point G e três semanas no planalto dogon. Ali, realizou-se um Seminário sobre Medicina Tradicional que reuniu notáveis da medicina originária de várias regiões do país. O trabalho de campo que viríamos a desenvolver – entre setembro de 1994 a agosto de 1996 – pode então ser acordado com a Divisão Nacional de Medicina Tradicional. Nas trilhas da pesquisa Pela estrada que corta o planalto e une Bandiagara a Mopti, formas caprichosas dos paredões rochosos erguem-se aqui e lá como se tivessem desistido de continuar sua marcha. Entre formas insinuantes de árvores enormes mergulhadas em horizonte aberto, surgem sorrisos em rostos negros. Chegar era, então, poder participar de uma história milenar onde nada reivindica virgindade ou inocência mas experiência e força. No final das águas de 1994, iniciamos nossas atividades a partir da vila de Bandiagara, período da colheita de uma estação relativamente boa onde as chuvas não haviam decepcionado. Para nós eram dias de adaptação delicada. Um sentimento de estranhamento profundo, estar no-mundo não-mundo recobria-nos. As paisagens cotidianas haviam sofrido uma enorme mudança de cores, sabores e odores. Entre estranhamento e atração, entre ser outro e ser o mesmo fomos construindo um lugar, uma existência, uma experiência. Para aprender é preciso esvaziar-se, ensina Tierno Bokar através de Hampate Bâ (1980). Este é o primeiro desafio e primeiro postulado do método almejado mas insistentemente fugidio. O terapeuta precisa sair da sua proteção e condição de normal absoluto, o pesquisador necessita, do mesmo modo, ativar esse esvaziar-se para se colocar em condição de ouvir. Mas assumir uma postura similar significa transformação pessoal, júbilo e dor, que não se conquista em horas ou dias e, quando alcançada, permanece fugaz, sem garantias, exigindo cuidados permanentes. Daí a importância do tempo, importância de adquirir tempo interno e dar tempo ao outro para ampliar os sentidos, aguçar e transformar percepções. A casa que nos havia emprestado Piero Coppo ficava a uns quinhentos metros da vila de Bandiagara entre dois baobás – na mata segundo nossos amigos dogon. Avarandada e cheia do verde das árvores que criam um oásis na 3 paisagem seca da maior parte do ano. Um poço garantia a água e um painel solar com duas lâmpadas fornecia a luz e energia para o computador. Este foi durante vinte e quatro meses a base dos trabalhos que se seguiriam. Nós fomos cada vez mais longe (cobrindo grande parte da região de Bandiagara) e por períodos sempre maiores. Após um mês de estudo com um jovem dogon, as dificuldades fizeram fracassar a idéia de aprender a língua de Bandiagara imediatamente. Compreendemos que os dois projetos (pesquisa com área abrangente e aprendizado da língua de Bandiagara, donno s<) eram naquele momento concorrentes no emprego do tempo disponível. A decisão de realizar o estudo na sub-região de Bandiagara onde convivem diferentes falas dogon (trabalhamos com cinco delas) sacrificava a iniciativa. Assim a dependência de um bom intérprete acentuou-se. Somine Guindo ficou conosco após tentativas diversas; mostrou-nos muito. Ele próprio um terapeuta. Filho de Ankonj< K&n&, um reputado especialista em tratar fraturas e luxações. Depois de algumas visitas (que duravam, às vezes, dias) e com base na leitura principalmente dos trabalhos de Piero Coppo, pudemos elaborar roteiros de entrevistas no intuito de apreender as idéias e maneiras de conceber a loucura. Um roteiro para os adivinhos e binu-kedu-n&, outro para os terapeutas dogon de wede-wede (loucura). Sem a possibilidade de compreender a língua, a proposta de uma observação, a compreensão e participação nas conversas do dia-a-dia ficavam prejudicadas ainda que fosse essa a postura que nos orientasse. Os limites faziam-se impiedosamente presentes a cada momento. Aprendemos a aguçar os sentidos, gestos, olhares, tom de voz, tudo era preciso para garantir alguma comunicação. Com o tempo as saudações diárias, palavras chaves foram sendo incorporadas mas a barreira lingüística permaneceu uma importante limitação deste estudo. Optamos, então, por integrar entrevistas abertas como estratégia complementar que permitiria maior rigor ao registrar algumas conversações, transcrevê-las e traduzi-las. As entrevistas registradas foram transcritas inicialmente em dogon (na expressão lingüística do entrevistado), seguia-se a tradução literal de cada palavra para o francês e uma terceira tradução que obedecia a estrutura de frase exigida pela língua francesa. O mesmo procedimento foi utilizado para a transcrição dos contos. O registro das informações foi negociado com cada uma das pessoas que reagiam diversamente à proposição; todas estas entrevistas, porém, só aconteceram após um período onde nos observávamos mutuamente. Algumas pessoas demoraram vários encontros até sua permissão para gravar conversações, fotografar ou filmar. A qualidade do vínculo que se estabelecia foi um dos critérios de definição das áreas de estudo para a segunda fase da pesquisa. Durante a pesquisa a necessidade de uma reflexão sobre o que deveria ser registrado e a melhor maneira de fazê-lo foi mostrando a complexidade do projeto e suas múltiplas implicações. Intenções conscientes e não conscientes combinamse nisto que alia percepção pessoal e necessidade de rigor, transitando entre ciência e experiência do belo e da emoção na busca de compreensão. 4 A variedade nas formas de coleta não garante a apreensão complexa do fenômeno que se quer compreender. A convivência mais prolongada insiste em denunciar as ignorâncias da pesquisadora e insinua a complexidade do que se quer tocar, ilumina e constrói sombras e nos transforma. Os dois anos as atividades foram permitindo criar espaços de convivência. Os objetivos traçados quando do projeto de pesquisa nortearam os primeiros passos mas foram sendo redesenhados enquanto se descortinavam os espaços de vida em meio dogon. No primeiro ano, o eixo fundamental girou em torno à compreensão dos sentidos da loucura e dos destinos individualizados de quem entra por estes (des)caminhos. Desta forma procedimentos diferenciados foram utilizados: 1. Estudo bibliográfico e das pesquisas realizadas pelo Centro Regional de Medicina Tradicional de Bandiagara. 2. Estudo sobre a terminologia utilizada para definir e descrever a doença mental, loucura e fenômenos existenciais vinculados. Para isto, além da consulta aos dados levantados pelos pesquisadores italianos (Coppo, Fiore, Pisani, Lionetti), realizamos entrevistas abertas onde o roteiro definitivo foi sendo elaborado no processo, após compreender as categorias básicas para aprofundá-las. Fizemos, sempre em três pessoas (junto com o intérprete e o responsável pela coleta das imagens que foram captadas sempre que permitidas) visitas periódicas, que precederam e se seguiram a pelo menos um período de observação quando buscamos nos introduzir e conhecer as atividades do especialista em questão. 3. Coleta de contos sobre a loucura e temas correlacionados. As narrativas populares significam um acesso à percepção do senso comum sobre loucura e outras problemáticas psíquicas. Acreditamos que é no conjunto dos fundamentos e de manifestação da cultura que deveremos interpretar o sistema de sentido e as práticas vinculadas aos problemas psíquicos. 4. Entrevistas com doentes, familiares e terapeutas a fim de conhecer os processos desencadeados a partir do aparecimento da problemática do sofrimento psíquico. 5. Entrevistas com adivinhos e binu-kedu-n& (chefe totêmico), buscando conhecer a terminologia e as problemáticas de natureza psíquica mas que não são incluídas na classificação local de wede-wede (loucura), ligadas ao momento de crise e mal-estar que motivam a busca de ajuda fora do âmbito familiar. 6. Documentação visual: fotográfica e videográfica. Fotografia e vídeo são aqui instrumentos e suportes para apreensão do fenômeno e para sua compreensão e transmissão. Sendo, desta forma, linguagens que dialogam e complementam o texto escrito e a palavra apreendida pelo registro magnético, restituem a vivacidade da experiência e reavivam a memória. No segundo ano, os procedimentos visavam um aprofundamento de nossa visão da sociedade dogon e, assim, definimos núcleos habitacionais para a continuidade das atividades. O ano de 1996 caracterizou-se pelo estudo em situações localizadas, notadamente, em Songô, Wendegelê, Kundu-Kikini. Entretanto, fizemos entrevistas esporádicas e visitas aos pacientes, familiares, terapeutas e adivinhos com os quais havíamos trabalhado no ano anterior e, também, continuamos a coleta de contos. 5 Seguindo a orientação de Hampâté Bâ, que enfatiza a necessidade de que a cultura seja apreendida pela experiência, precisávamos ir além da busca de informações (enquanto dados objetivados); era fundamental aprender as regras de comportamento que guiam as relações e o dia-a-dia das pessoas. As diversas fases dos trabalhos compõem um conjunto complexo de dados que não se separam das impressões da vida cotidiana, das emoções e das relações construídas num esforço de seguir os limites expressos nas máximas dogon: “todos os dias a orelha vai à escola”, “a palavra não termina em um só dia” ou “o saber é muito grande para uma só pessoa”. Segundo Hampâté Bâ, no mundo africano, o intermediário, isto é, a mediação é indispensável. Entre o criador e a humanidade existem intermediários, da mesma forma, em suas relações o africano passa sempre por um intermediário, o irmão mais novo para se dirigir a seu pai, solicitará a mediação de seu irmão mais velho, de sua mãe ou, ainda, de sua tia. Se uma pessoa for a uma reunião, deverá encontrar alguém para que este exponha, em seu nome, o motivo de sua presença. A palavra é o melhor dos intermediários mas a palavra não aceita três coisas: ela não aceita ser pronunciada antes do tempo, ela não aceita não ser pronunciada quando chega o momento e ela não aceita ser pronunciada após o momento. Assim, diz-se que o tempo está dentro do segredo de três. Esse pensamento triádico, avesso às binariedades e às linearidades, constitui, em nossa visão, a base do pensamento dogon (e talvez negro-africano); suas conseqüências são apreendidas com grande dificuldade, permanecendo fugazes e escorregadias para a racionalidade ocidental. Trabalhar em equipe foi fundamental pois nos constringiu ao confrontação da observação e a explicitação de objetivos e métodos, facilitando, ainda, uma percepção mais abrangente. Um grande desafio foi afinar nossa comunicação de forma que pudéssemos conseguir uma linguagem comum sobre a qual, entretanto, era preciso discutir continuamente. Assim, as informações e as interpretações são frutos de redes de interações multiformes. A pesquisa que fornece a sustentação deste trabalho foi uma destas situações onde a pesquisadora (se é que ela poderia existir) dissolveu-se parcialmente no jogo de relações mediadas (entre informante, intérprete e pesquisador). Terapeutas dogon As entrevistas tiveram como objetivo central a apreensão das noções fundamentais que compõem o universo de significação da problemática psíquica. Ou seja, a terminologia empregada, as expressões, definições e classificação, noção de pessoa, percepção da doença. Procuramos, sempre que possível, gravar as entrevistas de forma a poder transcrevê-las e traduzi-las, produzindo um documento a partir de cada encontro. Trabalhamos a partir de um roteiro de entrevista, propondo temas e questões iniciais e deixando falar livremente o entrevistado. Em encontros sucessivos procuramos cobrir os temas previstos. 6 Coleta de informações sobre pessoas com problemas psíquicos Tivemos a oportunidade de conhecer diversos pacientes (vinte casos compõem nosso universo) com histórias de sucessos e insucessos de tratamentos. Famílias que se ocuparam de seu doente conseguindo reinseri-lo completamente, outras que gastaram o que tinham para buscar ajuda pelo seu doente; outras ainda que nunca procuraram qualquer ajuda especializada, tendo permanecido dentro da própria família os tímidos movimentos no sentido de tratar a pessoa doente. Outros desistiram após algumas ou diversas tentativas, nesses casos incorporando a diferença e buscando inserir a pessoa nas possibilidades de que dispunham. Conhecemos pessoas abandonadas a si mesmas sem qualquer amparo da família, permanecendo nos mercados de Bandiagara, onde encontramos trinta pessoas com problemas psíquicos (levantamento realizado entre maio e junho de 1995). Além destas vimos casos de pessoas presas em suas casas, às vezes amarradas ou acorrentadas e, às vezes, aprisionadas por amarras invisíveis que os impediam de sair. As histórias dos doentes nos permitiram, ainda que lentamente, reencontrar através dos traços deixados pelo sofrimento, os conflitos, as dificuldades criadas pelas tensões que surgem no interior e que afetam a família e a sociedade. Permitiram, também, reconstruir (ainda que parcialmente) as visões a elas subjacentes e os mecanismos de negociação de conflitos e de solidariedade que possibilitam soluções particulares. Esse processo foi indicando a importância da realização de um estudo mais aprofundado sobre Songô, onde acompanhamos, por quase dois anos, a vida de três doentes e vários outros de maneira pontual. Coleta de narrativas (contos) sobre a loucura e fenômenos relacionados O procedimento para a coleta de contos populares foi se desenhando na medida em que nossa presença se fazia constante, permitindo uma aproximação maior com algumas pessoas de cada localidade que visitamos. Pudemos verificar que a prática de reunir-se e contar estórias mantém-se de forma desigual no planalto dogon. Em alguns lugares, dedicar-se às narrativas perdeu sua dimensão de atividade cotidiana, sendo considerada como algo que se fazia em tempos idos. Por outro lado, tivemos a oportunidade de conhecer lugares onde se mantém viva como atividade de lazer, momento de vivência coletiva, entre mulheres, reunião dos camaradas de um mesmo grupo de idade, entre membros de uma família. Na magia e sugestão de uma reunião noturna os contadores criam e ao mesmo tempo recriam contos aprendidos desde a infância, contos que percorrem temáticas diferenciadas da existência. Propomos que nos dessem contos onde houvesse personagens considerados loucos, wede-wede gin& e, também, sobre o início do transe do binu (manifestação de ancestral clânico) pois trata-se de um momento onde torna-se necessário fazer a diferença entre o transe provocado pelo binu e manifestações consideradas, por eles, como sinais ou sintoma de doença. Selecionamos 90 (noventa) narrativas. Procedemos de duas maneiras, através de roda de contos onde a palavra é livre e distribuída pelos próprios participantes, e individualmente. 7 Com base neste extenso material e na bibliografia, procuramos sintetizar a seguir os elementos mais relevantes que integram, ao nosso ver, os itinerários da loucura na vida cotidiana e no imaginário dogon. Universo terapêutico dogon Foram muitas horas percorrendo trilhas que, às vezes, desapareciam transformando-se em espaços entre arbustos, areia e colinas onde as pedras insistiam em caminhar enquanto passávamos. Parecia-nos inventar caminhos na procura de retalhos de conhecimento de um velho sábio cuja palavra, sabíamos já, não “termina em um único dia”. Permanecemos, assim, imersos numa indeterminação de muitas faces. Tudo no universo dogon é força, existindo zonas privilegiadas de concentração das forças (lugares sagrados, residências de seres sobrenaturais e lugares clânicos onde se faz os sacrifícios) e, ainda, pessoas que concentram em si potências superiores que, desse modo, não são apenas sacras, mas também, sacralizadoras. Não apenas modelos de unificação dinâmica, mas também unidades dinamizadoras de coesão ou de ordem. A pessoa deverá crescer, adquirir força e saber num processo que não concebe rupturas mas confirmação entre os percursos pessoais e os da sociedade. Nesse movimento, eventos específicos podem interferir colocando em risco a integridade, portanto a saúde, da pessoa em seu equilíbrio dinâmico: acidentes, doenças, enganos, intervenção de outros, transgressões. Por outro lado, um ser pode aumentar ou diminuir sua força inclusive pela absorção das forças vitais de outros seres. Essa idéia de interferências ou influências entre os seres consiste em uma característica do pensamento negro-africano, não estando presente apenas em meio dogon. Ela reconduz a noção de forças vitais que, segundo Fábio Leite (1982), é um dos elementos estruturadores de processos sociais, ligando-se, num primeiro momento, à noção de energia fundamental que se estrutura e organiza o universo cuja fonte é o preexistente. A noção de forças vitais está nas práticas sociais, não permanece apenas no domínio da natureza, pode ser de ordem histórica e é central para a compreensão dos conceitos de saúde e de adoecimento. Pode-se dizer, sem temer o paradoxo, que a personalidade do negro é composta de um corpo, uma alma, um totem e uma pluralidade de nomes. Seria difícil saber qual entre os quatro elementos possui um papel preponderante. Na realidade, cada um representa à sua maneira um aspecto do indivíduo: o corpo é a forma somática, a alma o dado metafísico; o totem, o elemento cosmológico; o nome – que os une a todos com força e coesão – o aspecto social (Thomas, 1973: 397). O homem negro-africano (Leite, 1981: 1) constitui a síntese de elementos vitais-naturais e sociais em processo permanente. Os elementos vitais naturais compõem-se do corpo, princípio vital de animalidade e espiritualidade, princípio vital de imortalidade. Este último está ligado à noção de destino ou de realização. 8 É possível aperfeiçoá-lo pela ação da sociedade, sendo fortemente individualizado e indestrutível. Os elementos vitais sociais são: nome (dar nome significa colocar a palavra dentro da pessoa), socialização, iniciação e ritos funerários (permitem a transformação da pessoa em ancestral). O princípio vital de animalidade e espiritualidade é o que organiza a animação do corpo; pode manifestar-se sob forma de duplo ou sombra, é considerado imperecível. Uma característica desse princípio é sua capacidade de individualizar-se, elemento dinâmico, podendo ter sua vitalidade aumentada ou diminuída por fatores de autodomínio e de socialização, com capacidade de transformação. Quando fragilizado, torna-se atingível pelos agentes especializados na manipulação de duplos, os chamados comedores de almas. Percebe-se, assim, que a noção de forças vitais constitui pedra basilar para entender a noção de pessoa e as idéias sobre a doença, tratamento e processos de cura em sociedades negro-africanas. Desde sua concepção, a criança permanece alvo de inúmeros perigos, sua sobrevivência é incerta. A morte de uma criança é preferencialmente lida como um problema que recai de maneira imediata sobre a mulher mas atinge, de maneira mais ampla, a família. Uma série de recursos destinada à proteção da criança será utilizada. Desta forma, diferentes rituais destinados à sua proteção e inserção ótima devem ser, segundo o sistema dogon, realizados. Atualmente essas medidas de proteção são utilizadas de forma desigual com diferenças locais relevantes. Elas foram em parte abandonadas, outras, transformadas ou substituídas por ritos de origem muçulmana ou cristã. Ouve-se com freqüência dizer que o mundo “estragou-se com a religião”, deixando as pessoas mais expostas aos malefícios e aos infortúnios. Saúde é percebida pelos dogon como “um estado de equilíbrio entre o indivíduo e seu meio (visível e invisível, animado e inanimado), buscando a participação plena e satisfatória do indivíduo na comunidade presente, passada e futura do qual ele é membro... ela (saúde) deriva do equilíbrio entre imagem de Eu e papel social efetivamente assumido” (Coppo, 1993: 67). A noção de saúde confunde-se com o processo permanente de formação e socialização da pessoa que se realiza na intercecção de três eixos. Um vertical que liga a pessoa aos seus ancestrais, um horizontal que a vincula à comunidade e outro existencial constituído através de percursos e elaborações particulares do Eu (Sow, 1977). A doença é percebida como perturbação do equilíbrio que é preciso reconstituir. As pessoas são múltiplas na pessoa e a terapia deve reencontrar uma unidade nesta multiplicidade pois o adoecer é uma dispersão do todo. Deve-se agir sobre diversos níveis para recompor a ordem: a purificação do corpo do doente e a reparação da falta são condições necessárias para que um tratamento possa ser eficaz. Um sonho ou um acontecimento inesperado são portadores de mensagens a serem decifradas e a adivinhação permite desvelar as marcas deixadas pelo medo e a angústia, tecendo interpretações que apaziguam a dor e possibilitam a cura. Não um, mas diversos adivinhos são procurados a cada inquietação, desentendimento ou diante de um desejo ou ambição. Em sua busca de sentido a 9 pessoa permanece envolvida pela incerteza. Adivinhos, terapeutas e marabus3 acolhem todo tipo de ansiedade e vão contribuindo para sua elaboração. São os códigos de conduta que darão os parâmetros entre normalidade e anormalidade, isto é, os sinais que permitem entrever um possível sintoma de crise e de infortúnio. A desordem pode ser o desrespeito aos códigos de conduta interpessoais (gritar com mais velho ou interromper sua palavra, vestir-se inadequadamente ou ficar nu em lugar público, roubar, agredir sem razão, fazer medo nas crianças, fugir para a mata), violação de um pacto ancestral (penetrar em lugar sagrado, transgressões alimentares), violação dos preceitos que regem a conduta dos homens com a natureza visível (cortar árvore em lugar sagrado, falta no cumprimento dos ritos de purificação da mata) e com os seres não visíveis que representam um pacto de paz no compartilhar o espaço terrestre (penetrar em locais onde vivem seres não visíveis como os y&b&n, jinnu sem pronunciar as palavras de proteção). Podem ser, por outro lado definidos por sinais que sugerem a presença de sintomas psicopatológicos (do ponto de vista da psiquiatria) como incoerência verbal, mutismo e inapetência acentuada, negativismo, estereotipias, agitação, insônia, alucinações visuais e auditivas (Coppo, 1988: 63). É preciso ressaltar, entretanto, que estes sinais deverão ser confrontados por um lado com a capacidade ou incapacidade da pessoa em manter suas atividades cotidianas e, por outro, com explicações possíveis, coerentes com a visão de mundo dogon. Assim o fato isolado de uma pessoa ver coisas ou seres que os outros não vêm ou não ouvem significa apenas que ela está em contato com os seres existentes mas não visíveis à maioria dos homens. Deste contato, ela poderá tirar uma experiência negativa ou positiva. Se a pessoa tem medo (n&) repentino poderá perder-se (seu kinde kindu escapa), deixando o caminho aberto para que a doença entre; ela poderá conhecer, então, o diagnóstico de wedewede (loucura). Outro destino é, entretanto, previsto caso a pessoa consiga fazer de sua experiência um fator positivo ao interpretar esse encontro ou episódio dentro dos contornos que o universo cultural permite. Esta é a situação de Maraetu, reputada adivinha que, após perder nove filhos, começou a se comunicar com os seres não visíveis e isto permitiu a ela reencontrar seu lugar na sociedade. No início pensou ser wede-wede, fez diversos tratamentos, rituais de purificação, mas os próprios seres que a protegem disseram que seu caso não tinha tratamento pois não se tratava de doença. A loucura pode ser atribuída a diferentes eventos que não se excluem: ao destino ou a um encontro com diferentes tipos de seres de sociedades não visíveis ao homem mas com quem dividem o espaço terrestre. Muitas vezes, ainda, a adesão à religião (islâmica ou cristã), a migração, a pobreza e eventos graves de vida podem, para os dogon, desencadear crises ou desequilíbrio na pessoa. A manifestação da loucura pode ocorrer de diversas formas, desarticulando a vida cotidiana e as relações sociais. Diante de uma experiência de crise, as primeiras reações ocorrem, mais freqüentemente, no seio da grande família – gin’na. É a partir da gin’na que nascem a solidariedade e a ajuda, mas também, a rejeição e o abandono da pessoa que adoece pois quando uma crise individual 3 Aquele que, entre os muçulmanos, dedica-se à prática e ao ensino da vida religiosa e à leitura do Alcorão. 10 emerge, ela evoca a presença de conflitos nas relações entre os mais próximos. Os recursos que são postos em ação pela família, amigos, adivinhos, marabus e terapeutas tornam possível reconduzir a pessoa a si mesma e à sua coletividade. Se uma pessoa é rejeitada pelo grupo doméstico, ela pode ser acolhida por membros da família extensa, por amigos ou pelo próprio terapeuta. Em nossa passagem pelas terras dogon, encontramos, também, pessoas deixadas entregues à errância e à miséria. Os adivinhos afirmam que devem sugerir um especialista – um j<nj<#-n& – quando identificam um problema que escapa ao seu conhecimento como nos casos de loucura (wede-wede). O terapeuta dogon é um especialista por possuir um saber reconhecido que permite o tratamento de determinadas doenças ou episódios. Ele conhece a farmacopéia pertinente, as palavras que dinamizam sua ação terapêutica, ibi s<, recorre a sua sensibilidade e pode manejar de alguma técnica de adivinhação ou de comunicação com os seres não visíveis (através de sonhos ou vidência). Desta maneira deverá definir os contornos do mal, atribuindo (ou confirmando) um nome e desvendando sua origem e caminhos para o tratamento a ser seguido. Em casos em que a doença (ou mal) seja considerada associada à transgressão de proibições (taa), um primeiro nível de ajuda terapêutica forma-se através do concurso de parentes. Trata-se, neste momento, de buscar apoio nos conhecimentos do patriarca responsável pelos receptáculos de forças vitais familiares. Muitas vezes, entretanto, faz-se necessário buscar ajuda fora do mundo familiar. Terapeutas Pode-se dizer que a medicina originária dogon, inserida no processo sóciocultural que lhe deu origem, compreende um sistema onde diversos agentes sociais concorrem, começando pelos conhecimentos familiares em geral e, em particular, pelo patriarca chefe de gin’na. Cada terapeuta concebe seu saber como um patrimônio a ser cuidadosamente protegido dentro da linhagem ou do segmento de linhagem. O filho mais velho deverá substituir de maneira plena as responsabilidades do pai seja no tratamento de doentes, seja nos rituais e cuidados necessários à manutenção das forças vitais de seu gelu (conjunto de elementos e materiais sagrados e sacralizadores). Nas situações que tivemos a possibilidade de conhecer, o saber é transmitido aos diversos filhos (às vezes mesmo as filhas e netas) que se interessam e se aproximam do pai ou do avô, mas que poderão exercer seu conhecimento apenas em caso da ausência do mais velho. A aprendizagem poderá ser desigual entre os filhos e acontece por fases. A observação é a base do aprendizado, seguida da realização de pequenas tarefas pela criança ou jovem, o que o introduzirá lentamente numa esfera de saber que assume os contornos da experiência. São gestos, seqüências dos rituais terapêuticos e regras de comportamentos. O reconhecimento e coleta das plantas, o conhecimento da palavra da cura (ibi s<), das encantações (que forneceram parte das forças vitais para que o medicamento seja eficaz) cumprirão uma nova etapa do aprendizado. O exercício do saber exige ser amadurecido e certas 11 práticas dependem da idade e dos ritos iniciáticos, não podendo ser executadas antes que o aprendiz tenha se tornado uma pessoa completa, madura (ind& pai). Frente ao sofrimento, um primeiro nível de reações ocorre no seio da família de onde se iniciam, sejam mecanismos de solidariedade e de ajuda, sejam de rejeição da doença e/ou abandono da pessoa. Pode-se dizer que em toda gin’na encontramos pessoas reconhecidas como capazes de fornecer interpretações sobre a situação e providenciar as medidas consideradas fundamentais, desde a coleta de plantas, fabricação e modo de administração de medicamentos. Na sociedade dogon convivem diferentes maneiras de ser terapeuta e as formas das terapias são diversas com interfaces importantes com valores e práticas islâmicas principalmente. Podemos distinguir como agentes da saúde os adivinhos (almaga4, kundu-n&), os terapeutas (j<n-j<#u-n&), os vendedores de plantas medicinais e objetos destinados aos tratamentos e rituais terapêuticos, os encarregados de cultos e os guardiões de objetos ou lugares-receptáculos de forças (altares) individuais ou de caráter ancestral (pertencendo, neste caso, a uma linhagem ou a um segmento de linhagem, ou mesmo, a uma localidade). Dependendo da natureza do mal ou da doença a tratar (se está ligada a transgressões) podem intervir, além desses, uma pessoa de casta (artesão de couro ou ferreiro), os aliados políticos e rituais mangu ou dama-ga5, sobretudo para rituais de purificação do corpo6 e, também, o feiticeiro7 (dugu-n&). Outro personagem que participa do universo terapêutico é o binu-kedu-n& que por sua sensibilidade e participação simultânea no mundo dos homens e das sociedades dos seres não visíveis pode adquirir conhecimentos específicos: vidência, adivinhação e tratamento de doenças. O binu (enquanto expressão totêmica) não é único e suas qualidades e força vital variam de maneira importante. Não podemos deixar de mencionar o marabu que trata, utilizando o Corão, oferecendo à população um recurso terapêutico e de proteção importantes. O itinerário de busca da compreensão do mal e de sua reorientação não é linear, mas, um processo dinâmico que envolve dor e o imponderável dos caminhos humanos. É neste contexto que a busca de sentido integra o processo terapêutico e o diagnóstico a terapia. A ordem e os papéis de terapeutas (familiares e não) e adivinhos não devem ser lidos de forma estática, mas, como um conjunto de possibilidades que podem ser utilizadas de múltiplas maneiras e em seqüências diversas. O que caracteriza a ação do terapeuta dogon está no conjunto de sua intervenção: ritos, encantamentos, uso de vegetais, minerais e animais, a autoridade e a qualidade da própria presença. Tudo isso sem cindir as dimensões 4 A etimologia da palavra proposta por Calame-Griaule é que almaga derivaria de álu mánga, literalmente “petri l'indecision”, ou seja, acabar com a indecisão (1965: 430(3)). Outra explicação nos foi dada: alu significaria aliança e manga, guardar nas mãos, ou seja, dar forma, criar. 5 Aliança de troça. 6 Caso de doenças de <mb<l< após romper com proibições ou negligência para com os ancestrais, wagun. O ferreiro ou os parentes do doente devem pegar um pouco de sorgo e algodão e depositar tudo na mata (Ankonj< K&n&). 7 A diferenciação entre feitiçaria e bruxaria proposta por Evans Pritchard não é evidente em meio dogon, o feiticeiro pode ele mesmo atuar negativa ou positivamente. 12 existenciais da pessoa, os vínculos que estabelecem seu pertencimento a uma família, aos ancestrais e, portanto, à sociedade e à história dogon. Especialista por possuir um saber que permite o tratamento de doenças determinadas, o terapeuta conhece, também, a farmacopéia pertinente e a palavra que dinamiza sua ação terapêutica. Ele é reconhecido como aquele que tem o poder de curar e recorre à sua sensibilidade, podendo manejar alguma técnica de adivinhação ou de comunicação com os seres não visíveis. O terapeuta dogon é um conhecedor dos mistérios da mata. Ele transita entre os espaços incultos e os espaços socializados. A ele cabe reorganizar os fluxos das forças postas em jogo no adoecer, na manifestação do mal e na desordem social e ancestral. Sendo assim, é procurado sempre que algum fenômeno ameaça o desenrolar esperado ou desejado dos acontecimentos. Noções ligadas à loucura Pudemos constatar, como já haviam descrito Coppo, Tinta e Mounkoro, que a sociedade dogon possui uma terminologia vinculada à designação e compreensão da doença mental (enquanto reconhecimento de um estado patológico) e loucura (enquanto fenômeno humano). Adotar categorias nosológicas significa, em meio dogon, “dispor de uma rede feita de laços associativos móveis, que não se desenvolve verticalmente e hierarquicamente. Entretanto, estruturando-se por analogia e por implicação mútua, atribui formas e recobre de sentido, horizontal e transversalmente toda existência e, portanto, a experiência. Atribui continuidade antes que descontinuidade, um sentido de conjunto antes que uma organização hierárquica” (Coppo, 1994: 52). Wede-wede, loucura, é classificada pelos dogon como uma das três grandes doenças – junto com a epilepsia e a hanseníase (lepra) – segundo pesquisa realizada em 16 localidades por Bamia (1991). Uma vez que uma pessoa é assim diagnosticada, significa que se considera estar diante de uma situação grave onde as possibilidades de recuperação podem diminuir consideravelmente. Decorre daí o cuidado mesmo na utilização da palavra que designa a doença que vem denominada, muitas vezes, de maneira metafórica. Para definir uma situação considerada patológica (lul<), encontra-se terminologia própria em diferentes linguagens dogon, trata-se de wede-wede, w&ze (donno s<); keke (te#u kã); wezi& ou wezenin (t<r< s<); nokigu jonno (dogulu s<). Além de wede-wede (donno s<), usa-se uma linguagem figurada, seja para indicar a loucura (compreendida como uma doença grave) seja para indicar a presença de uma problemática psíquica menos grave ou definitiva. Em outras palavras, pode-se reconhecer uma situação de crise como nos exemplos a seguir: a) ku kibeli ou ku k&w w< l< (cabeça incompleta); b) ky bilia d& (cabeça que se inverte/ revirada); c) ku ginna w< (cabeça que se espalha, que se dispersa e se divide). Como noutras culturas negro-africanas, a doença é uma entidade que se movimenta, isto é, sobe, desce, passeia, viaja, enfim, que age. Sendo assim, para dizer que a pessoa ficou doente diz-se: lul< ku w< m<ra dambe, a doença montou sobre sua cabeça; lul< won agi, a doença o prendeu; lul< ku m<n& da#a, a doença sentou em sua cabeça. Em suas pesquisas sobre representação de doenças 13 contagiosas entre os dogon, Roberto Lionetti afirma que esta se constrói como “imagem espacial da doença (contagiosa ou não) que faz dela uma realidade, móvel e autônoma fortemente inscrita na geografia do espaço vivido” (1984: 4). A doença má, ainda segundo o mesmo autor, move-se sem repouso até encontrar uma pessoa vagando inadvertidamente à sua volta para, então, montá-la. Assim a expressão correntemente utilizada de lul< yalà (doença que vaga/passeia) revela um campo vasto de representações culturais, pois estar continuamente em movimento é próprio da doença, do vento, dos seres não visíveis que dividem com os homens o espaço terrestre, do kindi-kindu (ou kikinu), dos cães, dos ladrões e malfeitores (bruxos). Além disso a expressão ind& yalà (pessoa que vaga/passeia) é figura de linguagem utilizada para designar loucos, mendigos, prostitutas ou homens que correm excessivamente (assim considerados) atrás das mulheres (Lionetti, 1994: 4). Mas, wede-wede (a loucura) não ‘monta’ em qualquer pessoa. Os dogon consideram que as pessoas de cabeça leve ind& ku wey (donno s<) kunogoro #&ru (te#u kã) dana wei (tommo s<), que expressam de forma marcante suas emoções e têm medo facilmente, estão mais expostas aos perigos da doença enquanto aquelas consideradas de cabeça pesada ku dogozo (donno s<), dana dogodu (tommo s<) estão mais protegidas, menos expostas ao medo, n&, fator desencadeador da crise. Sendo assim, raramente sofrerão de wede-wede. Essas informações confirmam os dados colhidos por Lionetti a respeito das condições propícias para a transmissão de doenças contagiosas. A doença contamina mais facilmente a pessoa frágil. A resistência ou o contágio explica-se com base em características pessoais ligadas à qualidade do sangue, leveza/dureza da cabeça e medo. Em outras palavras, a doença pode pegar (ind& lul< aga) mais facilmente a pessoa que possui sangue doce (ni &llu) que é leve (ni wei) e cabeça leve (ku wei). O contrário ocorre se a pessoa possui sangue amargo (ni gallu) que é pesado (ni dogod<) como descreveu Lionetti (1994: 7-8). Estas condições individuais são consideradas hereditárias, transmitidas de uma geração à outra, mas existem circunstâncias ou eventos de vida que podem fragilizar (diminuição da força vital), deixando as pessoas mais expostas às doenças. Na loucura, momento de rompimento e de perda dos fatores de proteção, a pessoa vê enfraquecida a relação entre seu kinde-kindu e seu corpo, perde $ama, vê seu n<l< (caráter) comprometido, e suas relações (pessoal e social) dissolvemse, despedaçam-se. Às vezes, a designação do problema psíquico respeita preferencialmente o agente causal suposto ou o mediador da ação deste agente. É o caso dos termos g&z& (vento); g&z& paz& (vento ruim); ogulum b&l&n (seres da mata); y&b&n g&ze (y&b&n que viaja através do vento); y&b&n t&bili8 ou y&b&n lagi (apanhar de y&b&n), y&b&n nindimi (que o y&ben assustou). O vento, g&z& (wewe em tommo s<), foi alvo de investigações dos pesquisadores italianos, revelando-se como categoria complexa com sentidos múltiplos; trata-se de uma mediação (um vetor 8 Além dos y&b&n, outros seres não visíveis podem agir, isto é, assustar, bater. Trata-se dos ginaji, jinu, andumbunlun entre outros, sobre os quais apresentamos, neste relatório, uma discussão no item “ogulun b&l&m lul<”. 14 segundo a linguagem médica) através da qual se movimentam doenças diversas e os seres não visíveis que podem transmitir numerosas doenças (incluindo alguns tipos de loucura) mas constitui, ela mesma, uma categoria independente. Ainda que convivam, na linguagem corrente, as formas metafóricas de wede-wede necessitam ser distinguidas de uma série que designações de problemas que poderíamos chamar de psíquicos ou psicológicos que não são considerados como wede-wede (por não possuírem a mesma gravidade) mas que possuem um estatuto de doença. Servindo-nos das palavras de Piero Coppo, “não encontramos classificações hierárquicas reciprocamente excludentes.... Existe um modo de designar os fenômenos que se baseia na acumulação progressiva de elementos qualificantes, cada um referindo-se a um repertório heterogêneo" (1992: 105). Trata-se aqui, principalmente, da nomeação do agente em questão, fazendo alusão à pessoa e não a uma doença enquanto entidade abstrata. Encontramos quanto ao comportamento durante a crise, wede-wede ya (mulher considerada como forma fria, kellu), wede-wede ana (wede-wede homem considerado como forma quente, numo). Coppo afirma que esta tipologia está ligada a idéia de gravidade do evento, sendo a forma ya menos efusiva porém de tratamento mais difícil e a forma ana menos grave quanto ao prognóstico (Coppo, 1994: 53-4). O sistema de classificação da doença mental à disposição dos especialistas dogon, segundo a bibliografia disponível9 e nossa verificação de campo, permite distinguir quatro principais categorias causais que revelam, em parte, sua compreensão do problema da loucura. É importante assinalar que a classificação que utilizamos é uma inferência dos dados recolhidos, não se trata de sistematização fornecida diretamente pelos terapeutas. Esses, espontaneamente, ao mencionar a tipologia dos problemas psíquicos preferem fazer alusão à gravidade e ao comportamento do doente que à causa da doença, preferem enumerar as causas que conhecem sem preocupar-se em agrupá-las ou hierarquizá-las. Terapias Parece-nos difícil precisar os limites de um processo terapêutico uma vez que a intenção que anima esta pesquisa tem sido a de apreendê-lo na complexidade e dinâmica que caracterizam o humano e a vida. Onde começa a terapia? No instante mesmo em que ações de ajuda têm lugar, quando inicia uma ação especializada ou desde os primeiros sinais de manifestação da doença, signo inteligível que deve principiar reações de solidariedade? Não seria possível desconsiderar os caminhos que levam à busca de sentido, o diagnóstico global da situação que pode ser dado por um familiar ou, como ocorre freqüentemente, pela adivinhação. Além de fazer reentrar o mal em um universo de sentidos conhecido, ele abre as portas para que a eventual busca de um especialista seja bem sucedida. Dessa forma, acreditamos que todos os processos interpretativos pertencem ao mundo do tratamento propriamente dito. 9 Ver a respeito da classificação das doenças em geral Roberto Lionetti, Barbara Fiore e, especificamente sobre o campo psiquiátrico, ver obras de Piero Coppo nas referências bibliográficas. 15 O ação terapêutica parece ser, ela mesma, viva e em movimento permanente. Trata-se de um projeto de reabilitação psico-social-natural-ancestral que é desenhado a partir de diferentes ritos através dos quais as relações familiares e comunitárias com a pessoa que sofre e a relação dos elementos que a compõe serão redefinidas. A pessoa precisa reencontrar seu lugar na sincronia e diacronia de sua existência. A palavra é dotada de força intrínseca, sendo alvo de conhecimento e manipulação, através dela os elementos constitutivos do objeto ou lugar sagrado adquirem um momento dinâmico propício para a expressão/solução da necessidade de quem a pronuncia, podem provocar o aumento ou diminuição das forças do ser, transformando, por exemplo, um conjunto de plantas em medicamentos. Sendo assim, ibu s< – a palavra que dá a vida – carregada de qualidade de proteção pode atuar em várias situações da vida cotidiana (contra inimigos, mal olhado, para atrair a aceitação quando da chegada numa localidade estrangeira), contra a ação dos seres não visíveis (se são pronunciadas as palavras corretas eles deixam a pessoa passar sem problemas caso se cruzem pelo caminho). O uso de plantas e elementos minerais e animais compõe também os recursos terapêuticos. Os diferentes elementos são, ao mesmo tempo, recursos (enquanto dotados de valor ou propriedades terapêuticas específicas) e mediação (enquanto veiculadores de comunicação e fornecedores de significados inteligíveis) da ação do especialista que age, por sua vez, no interior de parâmetros compartilhados pela sociedade. O uso dos vegetais e animais evidencia a qualidade da relação homem-natureza; da coleta à ingestão devem ser obedecidos cuidados e regras que viabilizam e dinamizam a absorção das forças dos elementos – vegetais, animais ou minerais – necessários à pessoa debilitada. Um conjunto de rituais integram a terapia. De um lado, os rituais propiciatórios e de purificação e de outro, aqueles ligados à aplicação dos medicamentos (fumigação, aspiração, ingestão). Após a cura do mal manifesto uma série de medidas serão tomadas para que a doença não volte e para agradecer o restabelecimento almejado: rituais de fixação da doença, rituais de agradecimento e/ou de proteção. O setting terapêutico envolve também os espaços da vida quotidiana da pessoa em tratamento que pode estar aos cuidados do terapeuta e sua família ou em seu próprio ambiente, alvos de ações de purificação e conselhos. A palavra que se encerra A dimensão social da doença é um problema fundamental para a sociedade humana, envolvendo um desafio prático, pois é preciso encontrar soluções, e teórico pois necessitamos explicar o que aconteceu, como se originou e qual é sua história. Provoca, desta forma, uma busca de sentido que deve ser interpretada. Interpretar não significa inventar um explicação, nem reduzir os fenômenos às classificações, mas encontrar uma mediação entre a exigência do corpo que sofre e as regras, institucionais e sociais, que presidem o processo da interpretação (Augé, 1986). Significa cumprir um itinerário múltiplo pois a busca da saúde e de 16 alívio da dor e da angústia não é homogênea, mas, caracterizada por alternativas diferenciadas. As interpretações locais da doença necessitam conferir um significado a tais episódios, correspondendo a um modo específico de pensar a realidade, satisfazendo, ao mesmo tempo, as exigências do indivíduo. A interpretação deve permanecer atenta ao adentrando no contexto local e o particular sem esquecer a universalidade que é sua ânima, movendo-se igualmente entre o individual e o social (Augé, 1986). Dessa forma, os conceitos à disposição para a interpretação constituem um mapa através do qual é possível se orientar. Os percursos trilhados durante a pesquisa de campo e, posteriormente, na trajetória da reflexão e da escrita, não nos conduzem a conclusões. Eles abrem caminhos e levantam questões, riscam pegadas na densa civilização e visão de mundo dogon. As concepções vinculadas à loucura e a seu tratamento revelam sua riqueza e complexidade quando apreendidas no contexto e nas dinâmicas das práticas históricas das quais se originam. A análise dos dados permite confirmar a existência de uma concepção dogon da loucura, com: 1. um léxico significativo e relativamente rico em expressões que necessitam ser ainda melhor estudadas; 2. um saber organizado, exercido pelos homens, que se transmite de uma geração a outra dentro da linhagem paterna ou que se adquire por revelação, cujos processos rituais necessitam ser melhor conhecidos; 3. ainda que se conheçam transformações importantes, valores ancestrais permanecem na base da busca de equilíbrio pessoal-social, sendo vital compreender a maneira pela qual os homens continuam seu diálogo com as sociedades dos seres invisíveis. A compreensão do adoecimento deriva do conjunto das relações e de características do momento de sua manifestação e reconhecimento social. As interpretações do mal aparecem através de duas formulações divergentes mas igualmente presentes. A doença como manifestação da vontade de Amba, que é uma teoria de acobertamento e de pacificação, e a hipótese que liga a doença à ação nefasta de agentes sociais fazem surgir uma noção baseada num conflito que deve ser superado mas cujo caminho a sociedade atual não conhece. O que tem sido posto em causa são, sobretudo, as alianças matrimoniais e o papel dos homens jovens na estrutura de poder e de decisão dos destinos pessoais. Outros fatores ou processos podem redefinir os limites e o sentido do bemestar e da saúde. O medo (n&) repentino pode levar a pessoa a perder-se a si mesma (seu kinde kindu escapa) ou poderá tornar-se impura (contato com a morte), deixando o caminho aberto para que a doença entre. É possível, neste caso, que a pessoa consiga fazer de sua experiência um fator positivo ao interpretar esse encontro ou episódio dentro de contornos sociais pertinentes. As transgressões e a quebra dos códigos de conduta configuram-se, também, como desordem. Trata-se, principalmente, do desrespeito aos códigos de conduta interpessoais, da violação de um pacto ancestral, da violação das regras de conduta dos homens nas suas relações com a natureza visível e, também, com os seres não visíveis com os quais deve-se compartilhar o espaço terrestre. A noção de saúde confunde-se com o processo permanente de formação e socialização da pessoa. 17 Se, por um lado, a constituição da pessoa é trabalhada pela sociedade, por outro, ela pode a qualquer momento (mesmo sem intenção) constituir-se em expressão de contradições, antagonismos e transformações. A loucura não é apreendida como mal de um corpo inerte a ser extirpado. As proposições enunciadas pelos terapeutas, adivinhos, doentes e narradores que conhecemos informam um sistema complexo de compreensão da problemática. Nelas os nexos entre manifestação da loucura e sociedade, entre processos terapêuticos e práticas ancestrais, entre real e imaginário, entre religiosidade e organização social não podem ser separados para serem conhecidos. Do mesmo modo, passado e futuro interpenetram-se no presente, pessoa e grupo permanecem indissociáveis ainda que em relações ao mesmo tempo complementares, concorrentes e antagônicas. Foi, sobretudo, esta maneira dialógica de aceitar os desafios e os riscos e de tecer uma trama de interpretações da loucura que procuramos reconstituir. Abstract: A research that took place between 1994-96 among Dogon in Mali Republic Showed the existence of significant lexicon to express madness and its understanding. Keywords: etnopsiquiatry, Dogon, madness, etnography, Black Africa. Referências Bibliográficas AMSELLE, J. L & M'BOKOLO, E. (org.). Au coeur de l'ethnies; ethnies, tribalisme et état en Afrique. Paris: Ed. La Decouverte, 1985. AUGÉ, M. (org.). 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Instalados nas montanhas, ficaram conhecidos na época colonial, principalmente na Europa, como habê, nome utilizado pelos peul para referir-se aos negros em geral, ou seja, aos povos por eles encontrados quando de sua chegada. Sua origem é exógena e composta de ondas migratórias distintas. A primeira migração, de acordo com a tradição oral, origina-se no Mandê (região situada no curso inferior do Níger), teria sido entre 1230 e 1255, sob Sundjata, ou sob Congo Moussa (1307 e 1332), motivada possivelmente por brigas familiares, fuga de caçadores de escravos, busca de novos territórios para o plantio, entre outras. Os dogon, em seus relatos oficiais, afirmam que ao saírem do Mandê (como outras populações ribeirinhas do Niger médio) constituíam uma única togu (raça, família). A ocupação de novos territórios ocorreu através de processos diferenciados, sendo a repartição dos clãs, segundo alguns autores, inicialmente de quatro (jon, aru, ono e dommo). Os diferentes autores parecem concordar que uma consciência de nação dogon constitui-se entre os séculos XVI e XVIII, período em que seus habitantes sofreram com guerras e pilhagens provocadas pelos Estados centralizados que se sobrepunham naquele espaço. A presença francesa inicia-se com um longo período de exploração a partir de 1796. Entretanto, a presença militar estabeleceu-se a partir da criação do posto militar em Bandiagara em 1893. A resistência dogon é persistente e enfrenta os colonizadores até 1920. Trata-se de uma região agro-pastoril com predominância da agricultura. Dessa forma as atividades econômicas definem-se a partir das duas estações climáticas: uma de chuva, que cobre os meses de junho a setembro, e outra de seca, de outubro a maio. A sociedade dogon é patrilinear, viri-patrilocal e organiza-se com base em um sistema de linhagens exogâmicas que se decompõem em segmentos e grupos domésticos. A família extensa é a primeira unidade social que encontramos, a gin’na (casa-mãe) é constituída pelo ancestral masculino, seus filhos, filhas e os filhos de seus filhos. A linhagem organiza-se de forma piramidal pela autoridade do mais velho da geração mais antiga.