CENTRO EVANGÉLICO DE MISSÕES
ESCOLA DE MISSÕES TRANSCULTURAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MISSIOLOGIA
MINAS INDÍGENA
Levantamento Sociocultural e Possibilidades de Abordagens
Missionárias nos Grupos Indígenas de Minas Gerais
Por
CÁCIO EVANGELISTA DA SILVA
VIÇOSA – MG
Outubro de 2002
Minas Indígena
ii
MINAS INDÍGENA
Levantamento Sociocultural e Possibilidades de Abordagens
Missionárias nos Grupos Indígenas de Minas Gerais
Por
CÁCIO EVANGELISTA DA SILVA
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Missiologia da Escola de Missões
Transculturais do Centro Evangélico de Missões,
como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Missiologia.
Orientador: Ronaldo Almeida Lidório (Ph.D)
VIÇOSA – MG
Outubro de 2002
Minas Indígena iii
PÁGINA DE APROVAÇÃO
A Dissertação
MINAS INDÍGENA – Levantamento Sociocultural e
Possibilidades de Abordagens Missionárias nos
Grupos Indígenas de Minas Gerais
De Autoria de
CÁCIO EVANGELISTA DA SILVA
Aprovada por todos os membros da Banca Examinadora, foi aceita pelo
Curso de Mestrado em Missiologia como requisito parcial à obtenção do
título de
MESTRE EM MISSIOLOGIA
Viçosa, 28 de Outubro de 2002.
Banca Examinadora
Dr. Ronaldo Almeida Lidório (Ph.D) - RLU
Dr. Sebastião Lúcio Guimarães (Th.D) – CEM
Profa. Antônia Leonora van der Meer (MT) – CEM
Minas Indígena
iv
DEDICATÓRIA
À Elisângela, minha amada esposa, fiel e doce companheira, minha principal
incentivadora e parceira ministerial.
Aos missionários Harold e Frances Popovich, Ronaldo e Kátia Lima, Adair e Zilene
Gomes, Marlene Martins, João Maria Silva, Agustinho e Nelice Cipriano, e todos os
demais fieis servos do Senhor que no anonimato ministerial dedicaram ou dedicam suas
vidas para que o reino de Deus seja expandido na Minas Indígena.
Minas Indígena
v
AGRADECIMENTOS
Ao Deus trino, Senhor da seara e dos obreiros, criador e redentor das nações.
À Elisângela, minha fiel e amada esposa, por sua constante presença, incansável apoio,
encorajamento, participação nas pesquisas de campo e imensa compreensão ao privar-se às
vezes da minha companhia.
Ao Rev. Ronaldo Lidório, pela atenciosa orientação, incentivo, e principalmente pelo
exemplo de vida, desafiando-me a um ministério onde o caráter transpõe a habilidade, e a
piedade precede a erudição.
Ao Rev. Carlos Ribeiro Caldas Filho, por ter me desafiado a escrever sobre indígenas.
Ao Pr. Alcir Almeida, pela revisão e valiosas sugestões.
Ao Pr. Sebastião Lúcio Guimarães, pelas críticas e sugestões.
A Francisco e Rose, pela amizade, prestatividade e “auxílios mecanográficos”.
À Oitava Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte, pelo sustento, apoio, encorajamento e
incansável desejo de alcançar os povos com o evangelho.
À Comunidade Presbiteriana de Viçosa, por ter se tornado nossa família, encorajando, em
tudo apoiando e nos dando o privilégio de servir.
Ao Centro Evangélico de Missões, por ser um exemplo de paixão pelos povos.
A todos os missionários e líderes indígenas, que me receberam nas várias viagens de
pesquisa, fornecendo informações preciosas nas entrevistas, sem as quais este texto não
estaria completo.
A José e Maria Silva, meus queridos pais, pelo exemplo de vida, formação de caráter e
constantes orações.
A Elviro e Maria das Dores de Oliveira, meus queridos sogros, pelo incentivo e também
constantes orações.
A todos os nossos intercessores, que tem nos apoiado em oração.
Minas Indígena
vi
SILVA, Cácio Evangelista da. Minas Indígena – Levantamento Sociocultural e
Possibilidades de Abordagens Missionárias nos Grupos Indígenas de Minas Gerais.
Viçosa: Centro Evangélico de Missões, 2002.
RESUMO
Dentro das perspectivas histórica, sociocultural e missiológica, os oito grupos indígenas de
Minas Gerais são aqui apresentados, numa tentativa de apontar a sua real e atual situação
enquanto grupos sociais etnicamente distintos, as causas que os levaram a esta situação, o
que já foi feito em termos missionários, e o que pode ser feito a partir desta mesma
realidade. Durante séculos estes grupos sofreram uma forte ação exterminadora por parte
dos conquistadores do território mineiro, iniciada com os primeiros bandeirantes paulistas
que vieram para estas regiões à procura de tesouros minerais, sucedidos pelos militares que
a partir dos quartéis praticavam o genocídio exterminando ou militarizando indígenas, e
pelos religiosos católicos que nos aldeamentos cometiam o etnocídio ao proibirem a língua
materna e tradições religiosas de cada tribo, bem como, ao fomentarem o casamento de
indígenas com negros. O resultado foi a redução dos mais de cem grupos indígenas aqui
presentes no século XVI a apenas oito grupos que hoje lutam pela reafirmação étnica. Com
uma população aproximada de nove mil pessoas, que preservaram três línguas indígenas,
estes grupos vivem uma realidade cultural de grande descaracterização; uma realidade
religiosa de forte sincretismo animista-católico romano; apresentam um quadro étnico de
acentuada miscigenação; e um quadro social de marginalização. Três principais
abordagens missionárias com diferentes frentes de atuação foram constatadas em quatro
dos oito grupos – lingüística, kerygmática e sócio-assistencial – restando assim, ainda
quatro grupos sem qualquer presença evangélica. Entretanto, pelo menos sete destes
grupos carecem com urgência de um trabalho missionário relevante.
Minas Indígena vii
SILVA, Cácio Evangelista da. Minas Indígena – Levantamiento Sociocultural y
Possibilidades de Aproximaciónes Misioneras en los Grupos Indígenas de Minas Gerais.
Centro Evangélico de Missões, 2002.
RESUMEN
Dentro de las perspectivas histórica, socio-cultural y misiológicas, los ocho grupos
indígenas de Minas Gerais son presentados aquí, en una tentativa de apuntar a su real
situación en cuanto grupos sociales etnicamente diferentes, las causas que los llevaran a
esta situación, lo que ya fue echo en términos misioneros, y lo que se puede hacer a partir
de esta misma realidad. Durante siglos estos grupos sufrieron una fuerte acción
exterminadora por parte de los conquistadores del territorio minero, iniciado con los
primeros conquistadores paulistas que vinieron para estas regiones en busca de tesoros
minerales, seguidos por los militares que de los cuarteles praticaban el genocidio
exterminando o militarizando los indígenas, y también por los religiosos católicos que en
los aldeamentos cometían el etnocidio al prohibirles su lengua materna y tradiciones
religiosas de cada tribu, como también, al fomentar el casamiento de indígenas con negros.
El resultado fue la reducción de los mas de cien grupos indígenas aquí presentes en lo siglo
XVI, a solamente ocho grupos que hoy luchan por la reafirmación étnica. Con una
populación aproximadamente de nueve mil personas, que preservaron tres lenguas
indígenas, estos grupos viven una realidad cultural de grande pedida de características; una
realidad religiosa de fuerte sincretismo animista-católico romano; presentan un cuadro
étnico de acentuada miscegenación; y un cuadro social de marginalización. Tres
principales aproximaciones misioneras con diferentes frentes de actuaciones fueron
constatadas en cuatro de los ocho grupos – lingüística, kerigmática y socio-asistencial –
quedando así, todavía cuatro grupos sin presencia evangélica. Sin embargo, por lo menos
siete de estos grupos necesitan con urgencia de un trabajo misionero relevante.
Minas Indígena viii
SILVA, Cácio Evangelista da. Indian Minas – Socio-cultural Survey and the Possibilities
of Missionary Approximation with the Indigenous Groups of Minas Gerais. Viçosa:
Centro Evangélico de Missões, 2002.
ABSTRACT
Within historical, social, cultural and missiological perspectives the eight indigenous
groups of the State of Minas Gerais are presented here in an attempt to point out their
actual situation as distinct social groups, the reasons which led them to be in this situation,
what has been done in missionary outreach and what can be done in the face of this reality.
For many centuries these groups have been almost exterminated by those who conquered
these regions, starting with the first explorers from the State of São Paulo who came to this
region in search of precious minerals, followed by the military who from their bases
committed genocide exterminating or militarizing Indians and also by the Catholic priests
who in the villages committed ethnocide by prohibiting the use of their mother tongue and
the religious traditions of each tribe, as for example forcing the marriage of Indians with
the Negroes. The result was a reduction of more than a hundred indigenous groups present
here in the sixteenth century to only eight groups, whose today are struggling for their
ethnic identity. With a population of about nine thousand persons, who preserved three
indigenous languages, these groups live a cultural reality of losing their identity; a religious
reality of a strong Roman Catholic and animist syncretism; they present an ethnic picture
of accentuated miscegenation and a social situation of being marginalized. Three principal
missionary approaches with different fronts of action were discovered in four of the eight
groups – linguistic, kerygmatic and social assistance, leaving the other remaining groups
without any evangelical presence. However at least seven of these groups need urgently to
receive a relevant missionary thrust.
Minas Indígena
ix
SIGLAS E ABREVIATURAS
ABA – Associação Brasileira de Antropólogos
AD – Assembléias de Deus
AIS – Agente Indígena de Saúde
AMTB – Associação de Missões Transculturais Brasileiras
APOINME – Associação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo
CEDEFES – Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva
CESE – Coordenação Ecumênica de Serviços
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
CPT – Comissão Pastoral de Terras
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
GRIN – Guarda Rural Indígena
GTME – Grupo de Trabalho Missionário Evangélico
IEF – Instituto Estadual de Florestas
IEPHA – Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico
ISA – Instituto Socioambiental
MEC – Ministério de Educação e Cultura
MNTB – Missão Novas Tribos do Brasil
ONG – Organização Não-Governamental
PDIA – Projeto de Desenvolvimento, Integração e Assimilação
SEE/MG – Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais
SIL – Sociedade Internacional de Lingüística
SPI – Serviço de Proteção ao Índio
UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora
UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais
UHITUP – Curso de Formação de Professores Indígenas de Minas Gerais
Minas Indígena
x
CONTEÚDO
PÁGINA DE APROVAÇÃO............................................................................................. ii
DEDICATÓRIA.................................................................................................................
iii
AGRADECIMENTOS....................................................................................................... iv
RESUMO..............................................................................................................................
v
RESUMEN.......................................................................................................................... vi
ABSTRACT....................................................................................................................... vii
SIGLAS
viii
E
ABREVIATURAS.........................................................................................
CONTEÚDO....................................................................................................................... ix
INTRODUÇÃO................................................................................................................... 1
PRIMEIRA PARTE
Minas Indígena: Uma Perspectiva Histórica
1. ORIGEM DOS AMERÍNDIOS................................................................................... 4
1.1. O Povoamento das Américas
1.2. O Povoamento do Brasil
2. MINAS INDÍGENA NO PERÍODO PRE-COLONIAL........................................... 7
2.1. Civilizações dos Abrigos (Cavernas)
2.2. Civilizações das Aldeias
2.3. Civilizações da Época do Contato
3. MINAS INDÍGENA NO PERÍODO COLONIAL................................................... 11
3.1. O Contato Com os Grupos do Norte
3.2. O Contato Com os Grupos do Leste
4.
MINAS INDÍGENA NO PERÍODO IMPERIAL.................................................. 17
Minas Indígena
xi
4.1. Declarada a “Guerra Justa”
4.2. A Política da “Boa Vizinhança”
4.3. As Frentes de Expansão Territorial
4.3. O Aldeamento de Itambacuri
5. MINAS INDÍGENA NA REPÚBLICA................................................................... 23
5.1. SPI – Serviço de Proteção ao Índio
5.2. GRIN – Guarda Rural Indígena
5.1. FUNAI – Fundação Nacional do Índio
5.2. Desfecho Histórico dos Grupos Mineiros
5.3. O Processo de Migração
5.4. O Processo de Emergência
SEGUNDA PARTE
Minas Indígena: Uma Perspectiva Sociocultural
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES...................................................................... 37
1.1. Troncos Lingüísticos
1.2. Classificação da Origem Étno-Geográfica
1.3. O Mito do “Índio Puro”
1.4. Programas Assistenciais
2. OS XACRIABÁ............................................................................................................. 45
2.1. Situação Sociocultural
2.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias
3. OS MAXAKALI............................................................................................................ 61
3.1. Situação Sociocultural
3.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias
4. OS KRENAK................................................................................................................. 77
4.1. Situação Sociocultural
4.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias
5. OS PATAXÓ.................................................................................................................. 93
5.1. Situação Sociocultural
5.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias
6. OS PANKARARU....................................................................................................... 108
6.1. Situação Sociocultural
6.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias
7. OS XUKURU-KARIRI............................................................................................... 120
7.1. Situação Sociocultural
7.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias
8. OS KAXIXÓ................................................................................................................ 132
8.1. Situação Sociocultural
8.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias
Minas Indígena xii
9. OS ARANÃ.................................................................................................................. 147
9.1. Situação Sociocultural
9.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias
TERCEIRA PARTE
Uma Análise Missiológica das Abordagens
Missionárias na Minas Indígena
1. ABORDAGENS MISSIONÁRIAS.......................................................................... 161
2. ABORDAGEM LINGÜÍSTICA.............................................................................. 162
2.1. Áreas de Atuação
2.2. Efeitos Positivos
2.3. Efeitos Negativos
2.4. Algumas Sugestões
3. ABORDAGEM KERYGMÁTICA............................................................................ 169
3.1. Áreas de Atuação
3.3. Efeitos Positivos
3.4. Efeitos Negativos
3.5. Algumas Sugestões
4. ABORDAGEM SOCIO-ASSISTENCIAL................................................................
179
4.1. Efeitos Positivos
5.5. Pontos Negativos
5.6. Algumas Sugestões
5. AS TRADIÇÕES MISSIONÁRIAS.......................................................................... 183
5.1.Tradição Católica
5.2.Tradição Ecumênica
5.3.Tradição Evangelical
5.4.Tradição Pentecostal
CONCLUSÃO................................................................................................................. 185
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................... 192
ANEXO 01: Mitos e Lendas da Minas Indígena.......................................................... 201
ANEXO 02: Mapa da Minas Indígena.......................................................................... 209
ANEXO 03: Quadro de Visualização da Minas Indígena........................................... 210
ANEXO 04: Carta Régia de 13/05/1808 – Declaração de “Guerra Justa”................ 212
ANEXO 05: Álbum da Minas Indígena........................................................................ 215
Minas Indígena
1
INTRODUÇÃO
Apenas um dos oito grupos indígenas de Minas tem sido alvo de projetos
missionários. Três deles têm sido abordados por igrejas locais de cidades próximas, porém
sem um direcionamento missiológico, com objetivos e métodos pouco definidos. Quatro
permanecem no esquecimento sem qualquer trabalho de evangelização ou plantio de
igrejas. Qual a real situação destes grupos? Quais abordagens missionárias já foram
adotadas entre eles? Quais abordagens seriam mais relevantes? Este trabalho é uma
tentativa de dar respostas a estas perguntas, objetivando disponibilizar material de pesquisa
e informações suficientes para a elaboração de futuras abordagens missionárias
direcionadas a estes grupos.
Para tanto, foi realizada uma criteriosa e extensa pesquisa bibliográfica1 em
literatura específica sobre os grupos indígenas de Minas Gerais, em literatura especializada
de antropologia cultural, social e etnologia, bem como, em literatura missiológica
relacionada ao tema, valendo ressaltar que esta última é bastante escassa. Foi também
realizada pesquisa de campo – in locu – em todos os oito grupos em foco, envolvendo
observação e entrevistas com líderes indígenas, missionários que trabalham e já
trabalharam com eles, comunidades vizinhas e entidades relacionadas. Foi ainda realizado
um curso sobre a história indígena de Minas, oferecido pelo CEDEFES – Centro de
Documentação Eloy Ferreira da Silva.
Esta é a primeira pesquisa de cunho missiológico e caráter multi-étnico realizada
junto aos indígenas de Minas Gerais, e por isto se reveste de certa relevância,
principalmente para a crescente pesquisa missiológica de povos não-alcançados, mas
também para a igreja mineira e brasileira na sua prática missionária, por duas razões
principais: primeiro, devido a inexistência de dados precisos sobre estes grupos indígenas,
o que contribui para a omissão dos mesmos no movimento de expansão da igreja; e
segundo, por analisar e sugerir abordagens missionárias para grupos indígenas, pois ainda é
ínfimo o material missiológico disponível sobre esta questão.
1
A lista bibliográfica do final deste relatório, trata apenas das fontes efetivamente citadas no mesmo.
Minas Indígena
2
No primeiro capítulo procura-se apresentar uma perspectiva histórica da Minas
Indígena, começando com algumas considerações sobre o surgimento dos ameríndios e
prosseguindo com os já convencionados períodos da história geral do Brasil – pré-colonial,
colonial, imperial e república – cobrindo cerca de quinhentos anos de história, até a
presente data. Assim sendo, fica claro se tratar apenas de um ensaio histórico, visando
apontar as principais causas da situação atual, como base para a pauta do próximo capítulo.
Uma perspectiva sociocultural da Minas Indígena é apresentada no segundo
capítulo, onde são registrados os principais resultados das pesquisas de campo e
bibliográfica. Após algumas breves considerações sobre assuntos bem genéricos, mas
importantes, cada grupo é descrito com dados precisos como localização, população,
etnicidade, religiosidade e problemas sociais, seguidos de algumas sugestões de
abordagens missionárias com base nos dados anteriores.
O terceiro capítulo apresenta uma perspectiva missiológica das diversas abordagens
missionárias que já foram e estão sendo adotadas na Minas Indígena. Após uma breve
descrição de cada uma com suas respectivas ênfases e frentes de atuação, é feita uma
análise da relevância das mesmas, procurando apontar os principais efeitos positivos e
negativos. Por fim, é tecido um rápido comentário destas abordagens sob a ótica das
“tradições” missionárias, apontando as evidências das principais tendências teológicas aqui
presentes.
Minas Indígena
PRIMEIRA PARTE
Minas Indígena: Uma Perspectiva Histórica
3
Minas Indígena
4
1. ORIGEM DOS AMERÍNDIOS
1.1.
O POVOAMENTO DAS AMÉRICAS
Teorias arqueológicas afirmam que o povoamento das Américas teria ocorrido há
cerca de 12 mil anos AP2, no final da chamada Era Glacial, através de povos oriundos da
Ásia – mongolóides – que seguindo a caça de grande porte teriam atravessado o Estreito de
Bering, que nessa época estaria congelado, formando uma passagem terrestre que existiu
entre a Sibéria Oriental e o Alasca – a Beríngia – chegando assim ao atual Estado do
Alasca (E.U.A.). Assentaram-se primeiramente nos planaltos norte-americanos, em torno
de 11.500 anos AP, e continuaram em direção ao sul, através da América Central até
chegar aos Andes por volta de 10.500 anos AP. A colonização completa até o extremo da
América do Sul teria se dado por volta de 10 mil anos AP. Devido a questões climáticas e à
caça excessiva, os animais de grande porte foram diminuindo e forçando a migração destes
povos caçadores. Esta é a chamada Teoria da Migração Clovis (Roosevelt, 1999.35).
Tal teoria foi, entretanto, questionada por antropólogos que criam na possibilidade
de “caçadores-coletores generalizados com instrumentos menos sofisticados e um modo de
subsistência baseado na coleta de plantas, na caça de animais menores e na pesca”
(Roosevelt, 1999.37) terem chegado e se espalhado pelas Américas antes dos caçadores
especializados em animais de grande porte. Esta teoria pré-Clovis foi comprovada por
várias descobertas arqueológicas, sendo hoje hipótese altamente aceitável no meio
arqueológico a povoação das Américas em pelo menos 40 mil anos AP. Tal conclusão se
reveste de maiores evidências se considerarmos que é geologicamente comprovado um
grande resfriamento no planeta por volta de 50 mil anos AP, no chamado Período Glacial,
forçando a migração dos animais e caçadores do Velho para o Novo Mundo.
2
AP significa Antes do Presente (ou em inglês BP – Before Present) e é uma expressão usada para a datação
de períodos arqueológicos, tendo convencionado como data inicial para o início do Presente o ano de 1950. A
indicação a.C. (Antes de Cristo) continua a ser utilizada, porém em datações de cunho histórico-documental.
Minas Indígena
5
Foi questionado também o Estreito de Bering como único canal de migração destes
povos pré-coloniais, pois evidências apontam a migração de grupos menores através das
ilhas do Pacífico. Apesar desta hipótese não ser tão bem comprovada como a teoria préClovis, hoje é também aceitável, pois a mesma não lança por terra a teoria de migração
pelo Estreito de Bering, ou seja, é possível que o povoamento das Américas tenha se dado
por mais de um canal.
A teoria das primeiras levas migratórias terem sido de mongolóides – raças da Ásia
– também foi questionada. Abundantes descobertas arqueológicas evidenciaram a presença
de negróides – raças da África e Pacífico Sul – em períodos bem remotos aqui nas
Américas. Uma das principais descobertas foi nas escavações de Lagoa Santa, nas
proximidades de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Nas décadas de 1950 e 70, mais de
cinqüenta esqueletos foram escavados nesta região, revelando a existência da “raça de
Lagoa Santa”, sobre a qual, o pesquisador André Prous3 (1999.102), da UFMG, que
inclusive participou de algumas destas escavações, dá as seguintes informações:
Trata-se de uma população muito homogênea, com feições bastantes peculiares, e
que se parecia muito menos com os asiáticos do que com os índios americanos
atuais ou com os grupos pré-históricos documentados arqueologicamente nos
últimos oito milênios. Segundo a teoria recente de alguns antropólogos, seriam
aparentados aos ancestrais das populações australianas, que teriam habitado a Ásia
continental e migrado tanto para o norte (Beríngia e América) quanto para o sul
(Austrália), antes de serem substituídos na Ásia pelas atuais raças amarelas.
Tal descoberta se reveste de maior importância, quando considerado o fato desta
“raça de Lagoa Santa” ser tipicamente de pintores, deixando uma quantidade enorme de
pinturas rupestres espalhadas pela região, e os aborígenes da Austrália são até hoje
conhecidos como “pintores das paredes”. A pesquisadora Roosevelt (1999.42), comenta:
As importantes coleções de esqueletos da Lagoa Santa, em Minas Gerais, foram
datadas pelo carbono 14 e também analisadas por antropólogos físicos. Os
resultados revelam que há 10 mil anos AP teria existido na região uma população
de asiáticos não mongolóides generalizados (...) diferentes dos ameríndios
mongolóides posteriores.
A esta “raça” pertence o crânio encontrado em Lagoa Santa em 1998, pelo
antropólogo Walter Neves. Datado de pelo menos 12 mil anos AP, se tornou famoso em
todo o mundo e recebeu o nome de Luzia, pois se trata do crânio de uma mulher. Nele foi
3
O cientista André Prous, participou, em 1971, da Emperaire - Missão Arqueológica chefiada por A.
Lamaing – encarregada de reconstruir o paleoambiente de Lagoa Santa, obtendo datações muito antigas e
descobrindo grandes animais extintos. Em 1976, foi convidado para montar a primeira equipe profissional do
Estado e logo iniciou pesquisas na Serra do Cipó e no norte de Minas. Foi responsável pelo Setor de
Arqueologia da UFMG e pela Mission Archéologique de Minas Gerais. Certamente é uma das maiores
autoridades na arqueologia mineira.
Minas Indígena
6
realizado um sério trabalho de reconstituição fisionômica na Alemanha, concluindo
terminantemente que o mesmo pertencia à família dos negróides (Prezia4, 2000.24).
1.2.
O POVOAMENTO DO BRASIL
As pesquisas interdisciplinares realizadas em várias regiões do Brasil,
especialmente no campo da arqueologia, paleontologia, antropologia e espeleologia, têm
revelado a existência de variadas civilizações, bem como diversificadas culturas, em
períodos bastante remotos no território do nosso país. Interessante é que as civilizações que
habitaram o solo brasileiro, assim como de basicamente toda América do Sul, deixaram
evidentes indícios de não serem descendentes das civilizações norte-americanas. Na
floresta amazônica, por exemplo, isto é claro, pois “as pinturas, as pontas de lança bifaciais
triangulares e as ferramentas unifaciais, encontradas nos sítios, indicam uma cultura
distinta das culturas norte-americanas” (Roosevelt, 1999.47). Enquanto os paleoíndios
norte-americanos eram tipicamente caçadores de grande porte, os do Brasil eram caçadores
de pequenos animais, pescadores e coletores. Na Amazônia, nozes, frutas e pequenos
peixes eram os alimentos mais comuns, de acordo com o estudo dos restos alimentícios
encontrados.
No Brasil estão os sítios que oferecem os dados mais abundantes sobre os
paleoíndios sul-americanos, e segundo Roosevelt (1999.41), “vários destes, com arte
rupestre e a céu aberto, apresentando pedras lascadas, paredões de pintura rupestre fogões,
têm numerosas e consistentes datações radiocarbônicas pré-Clovis que remontam a 50 mil
anos AP”. Como estas informações são da paleontologia5, a presença humana em datas tão
recuadas assim tem sido questionada, mas é fato praticamente indiscutível a presença
humana no Brasil há pelo menos 20 mil anos AP.
4
Mineiro de Poços de Caldas, Benedito Prezia trabalhou como enfermeiro junto a populações pobres de São
Paulo e em 1983 tornou-se funcionário do CIMI em Brasília, no setor de publicações. Foi editor do
Suplemento Cultural do jornal indigenista Porantim, para o qual escreve até hoje. Em 1977 terminou seu
mestrado em semiótica e linguística geral na USP, com dissertação sobre as populações indígenas do planalto
paulista nos séculos XVI e XVII. Publicou vários livros paradidáticos, sendo o mais recente, e certamente
mais importante, “Brasil Indígena – 500 Anos de Resistencia”.
5
A Paleontologia concentra seus estudos em fósseis de animais, espécies desaparecidas, lidando assim com
milhões de anos, enquanto a Arqueologia, trabalha com fósseis humanos, antigas civilizações, lidando assim
com milhares de anos.
Minas Indígena
2.
7
MINAS INDÍGENA NO PERÍODO PRÉ-COLONIAL6
2.1.
CIVILIZAÇÕES DOS ABRIGOS (CAVERNAS)
Os estudos arqueológicos em Minas Gerais se concentram em duas regiões
principais, onde foram encontrados sítios com grande quantidade de informações das
civilizações que habitavam as cavernas: Lagoa Santa e Serra do Cipó, nas proximidades de
Belo Horizonte, e os vales dos rios Peruaçu e Cochá, afluentes do médio curso do Rio São
Francisco, ao norte do Estado, na região da cidade de Januária. Na primeira, há importantes
informações sobre as características biológicas e ritualísticas das populações que aqui
habitaram, já na segunda, predominam informações sobre a tecnologia das mesmas.
Os mais de cinqüenta esqueletos da “raça de Lagoa Santa” foram encontrados na
região de Lagoa Santa, e sobre eles o pesquisador Prous (1991.214), acrescenta:
(...) uma população muito homogênea fisicamente – era endogâmica, ou seja, os
membros do grupo local casavam-se essencialmente entre si – (...) eram pessoas
relativamente pouco robustas, que sofriam de cáries dentárias – fato raro entre os
homens pré-históricos – e de inflamações ósseas. Sepultavam os mortos em covas,
embrulhando-os numa rede revestida de entrecasca, por vezes adornados com
colares de sementes; despejavam pó vermelho de óxido de ferro na cova, que era
fechada com pequenos blocos de pedra amontoadas;
Há indícios de populações habitando o território mineiro de até 20 mil anos AP,
mas “a presença humana em Minas Gerais (e no Brasil) só é claramente atestada a partir de
um período datado entre 11 mil e 12 mil anos atrás” (Prous, 1999.102). Apesar da grande
quantidade de informações existentes sobre esta “raça”, é difícil sugerir de onde a mesma
teria migrado para Minas Gerais. Há indícios da presença humana no Piauí em datas
anteriores a 30 mil anos AP. Assim, a população de Minas pode ter migrado do Nordeste,
mas de qualquer forma, isto é difícil de ser comprovado.
6
A maioria dos livros de história e afins se referem a este período como “pré-histórico”. Neste relatório,
entretanto, será usado “pré-colonial” por entender que a expressão “pré-histórico” é carregada de “préconceito”, pois sugere que a história teve início com a chegada dos colonizadores, o que é um grande engano.
Minas Indígena
8
A menina dos olhos da arqueologia mineira é a pintura rupestre, que é por demais
abundante. Na região do centro mineiro – Lagoa Santa e Serra do Cipó – predomina a
chamada Tradição Planalto, caracterizada por grandes representações de animais e
peixes. Esta tradição se estendeu desde o Paraná até parte da Bahia.
Na região norte do Estado, da mesma forma, há indícios de ocupação entre 11 e 12
mil anos AP, embora não tenham sido encontrados sepultamentos tão antigos. As
informações mais precisas vêem das regiões de Montalvânia e Januária/Itacarambi. A
despeito dos poucos fósseis humanos, uma enorme quantidade de objetos, principalmente
de caça, foi encontrada nesta região. Pontas de flechas, instrumentos de pedra lascada, na
sua maioria robustos e espessos, e lascas compridas e delgadas. Espátulas de osso de veado
e várias bolas de pigmento vermelho foram encontrados, além de grandes fogueiras cheias
de coquinhos queimados e de valvas de moluscos de água doce. Encontraram ainda, blocos
de calcário usados como bigornas para quebrar os coquinhos (Prous, 1999.110). Tudo isto
nos dá algumas dicas da tecnologia, principalmente de caça, destas antigas civilizações.
Neste período mais remoto há algumas evidências da presença do “homem de
Lagoa Santa” no sul da Bahia – região de Jacobina – nas proximidades do norte de Minas.
Entretanto, por volta de 7 mil anos AP, há evidências de uma população bem diferente
daquela de Lagoa Santa, com feições bem mais semelhantes aos indígenas modernos, o
que indica uma circulação de civilizações nesta região. Quanto às pinturas rupestres,
predomina a chamada Tradição São Francisco, caracterizada por representações
geométricas e de instrumentos, que se estendeu até o Piauí, Goiás e Mato Grosso.
2.2.
CIVILIZAÇÕES DAS ALDEIAS
Por volta de 3 a 2 mil anos AP, os abrigos (cavernas) começam lentamente a serem
substituídos por acampamentos a céu aberto. Ao contrário do que se pensa, as informações
tornam-se menos abundantes, pois os fósseis de sítios a céu aberto são mais vulneráveis.
No último milênio, duas tradições de aldeias se tornam bem evidentes e distintas uma da
outra. A primeira é chamada de Tradição Sapucaí, sobre a qual Prous (1991.216) tece o
seguinte comentário:
(..) multiplicam-se, em todo o Estado, as aldeias de uma cultura que raramente
utiliza os abrigos (...) as aldeias eram formadas por grandes habitações coletivas
dispostas em círculo ao redor de uma praça central (...) a cerâmica não era
decorada, mas os vasos menores recebiam, às vezes, um banho (“engobo”) de tinta
vermelha (...) o lascamento da pedra, em compensação, era praticado e sem maiores
Minas Indígena
9
requintes: estes grupos deviam utilizar muito mais a madeira como matéria para
instrumentos.
Algumas destas aldeias contavam até com dezoito casas, agregando possivelmente,
centenas de pessoas. A partir de vestígios como estes, pode-se atribuir este grupo aos
ancestrais dos indígenas Jê, que até hoje mantêm padrões de aldeamento parecidos.
Os grupos da outra tradição, chamada de Tupi-Guarani, não tiveram tempo de se
tornarem numerosos no Estado de Minas, e por isto deixaram pouquíssimos sítios
arqueológicos. Estes vieram da região litorânea, através dos principais rios navegáveis –
Rio Doce e Rio Jequitinhonha – subiram seus principais afluentes e adentraram assim o
território mineiro. Ao menos em parte são ancestrais dos Tupi históricos e sobre eles, é
novamente Prous (1991.217) quem comenta:
Grupos canoeiros e cultivadores de mandioca ocupavam essencialmente ambientes
de mata ciliar onde podiam praticar a agricultura de coivara e a pesca, suas
principais atividade de subsistência. As aldeias tupi-guarani eram também a céu
aberto e compostas por várias grandes malocas (habitações coletivas de forma oval)
cuja ocupação poderia ser por vários anos. À diferença dos Sapucaís, decoravam
suas cerâmicas com relevos feitos na pasta fresca (corrugações feitas pinçando o
barro, impressão de unhas) ou com desenhos geométricos muito delicados pintados
em preto e vermelho sobre um fundo branco.
2.3. CIVILIZAÇÕES DA ÉPOCA DO CONTATO
Quando os colonizadores europeus aqui chegaram no início do século XVI, o
território que hoje forma o Estado de Minas Gerais era habitado por um número superior a
cem grupos indígenas. Oiliam José (1965), conseguiu listar setenta e uma tribos que aqui
viviam na segunda metade do século XVI:
1. Abaeté
25. Guanhã
49. Monoxó
2. Abaíbas
26. Guarachués
50. Moxotós
3. Abatinguara
27. Imburú
51. Mutuns
4. Abatira
28. Inás
52. Nachenuques
5. Aimorés
29. Kaeté
53. Nacknenuck
6. Aiurãs
30. Kamakã
54. Naminiquins
7. Akroá
31. Kapoxó
55. Panane
8. Aranã
32. Kaxinês
56. Parutuns
9. Arari
33. Koropó
57. Pojichás
Minas Indígena 10
10. Araxá
34. Korotó
58. Ponhames
11. Borôros
35. Kotoxó
59. Poté
12. Caiapós
36. Krakatã
60. Puriassú
13. Caramonas
37. Krakmun
61. Purimirins
14. Cariris
38. Krenaques
62. Puris
15. Cataguás
39. Kumanoxó
63. Purupi
16. Catiguçus
40. Maconis
64. Samixumãs
17. Coroados
41. Malalis
65. Temininó
18. Coroxopós
42. Mandimboias
66. Tocoiós
19. Cropós
43. Mapoxó
67. Tongará
20. Cururus
44. Mariquitás
68. Tupinikin
21. Formigas
45. Maxakalis
69. Xonin
22. Giropoques
46. Menin
70. Xopotó
23. Goianás
47. Miritis
71. Zamplans
24. Guanaãs
48. Mongoyó
Sendo todos ágrafos, não é possível fazer um levantamento preciso, mas é óbvio
que os acima listados são apenas alguns dos muitos povos que aqui viviam. Em textos
sobre a presença indígena na época da colonização, outros nomes vão surgindo, como no
trabalho de Ribeiro (s.d.180-197), do indígena Domingos Pacó (s.d.198-211) e outros:
72. Bacuên
78. Cutaxó
84. Nerinhin
73. Baenã
79. Hén
85. Nhãnhãn
74. Cânmri
80. Jeruñhim
86. Pataxó
75. Comoxó
81. Jukjût
87. Pmácjiru
76. Cumanoxó
82. Kroato
88. Remré
77. Cujãn
83. Mocuriñ
Ao contrário do que se pensa, estes povos não viviam aqui em perfeita paz e
harmonia, como que num paraíso. Além das dificuldades naturais como a ameaça de
doenças e animais ferozes, eles viviam em clima de tensão e conflitos intertribais, inclusive
formando confederações de guerra, como o caso dos famosos e temidos Botocudos.
Minas Indígena 11
3. PERÍODO COLONIAL
Não é possível generalizar o contato dos vários grupos indígenas de Minas com os
colonizadores europeus, pois enquanto alguns foram contactados já no século XVI, para
outros o contato só veio a acontecer no século XIX. Podemos porém estabelecer a partir de
quando eles começaram a ser contactados.
Já nos dias da chegada ao Brasil, os europeus ouviam histórias dos indígenas do
litoral sobre os grandes tesouros minerais que haviam no interior. Uma destas histórias era
sobre Sabarabussu7 (Serra Resplandecente) que seria riquíssima em prata e ouro. A partir
de 1553, expedições são enviadas em busca dos tesouros do interior – incluindo
Sabarabussu – formando assim as famosas bandeiras, compostas por grupos de até mil
pessoas (CEDEFES, 1987.22). Entretanto, a colonização de Minas começou efetivamente
só no final do século XVII, com os paulistas que penetraram o sertão dos Cataguases
(Moreno, 2001.19), dentre os quais o mais conhecido é Fernão Dias Paes Leme, que foi
nomeado pelo Rei de Portugal para apossar-se do famoso tesouro de Sabarabussu, sendo
atribuído à sua bandeira o povoamento de Minas Gerais em 1674.
Ciente da forte presença indígena nesta região, Fernão Dias leva consigo os
melhores matadores de indígenas, como seu filho Matias Cardoso e o seu genro Manuel
Borba Gato que guerrearam com os Xacriabá. Inicia-se assim efetivamente o sanguinolento
contato dos indígenas de Minas com homens que nos livros de história do Brasil são
chamados de heróis, desbravadores do sertão, fundadores de cidades, hoje homenageados,
dando a ruas, bairros e cidades8 os seus nomes, mas que para os indígenas do século XVII
foram, na verdade, cruéis assassinos e invasores das suas terras.
À medida que iam adentrando o interior, algumas tribos fugiam do contato, outras
resistiam aos exploradores. As que fugiam, se uniam a outras tribos ou acabavam se
envolvendo em conflitos intertribais devido a questão de território, principalmente com os
7
Expressão indígena que viria posteriormente dar nome a atual cidade de Sabará, da grande Belo Horizonte.
Inclusive, uma pequena cidade do norte de Minas, nas proximidades da reserva Xacriabá, até hoje se chama
Matias Cardoso, em homenagem àquele que lutou com os Xacriabá.
8
Minas Indígena 12
Botocudos do leste que já vinham recuando do litoral também devido ao contato. As tribos
que resistiam eram, muitas vezes, massacradas ou escravizadas. Um grande contingente de
indígenas foi empregado como mão-de-obra escrava pelos conquistadores.
Faltam-nos informações históricas sobre a maioria dos grupos que foram extintos,
principalmente dos que habitavam o oeste do Estado. Infelizmente, podemos dizer que
neste caso, a história não é necessariamente dos indígenas de Minas, mas sim dos
sobreviventes indígenas de Minas.
3.1. O CONTATO COM OS GRUPOS DO NORTE
O principal interesse dos bandeirantes em Minas era exatamente a sua riqueza
mineral e assim a exploração seguiu a rota sul-norte, com algumas ramificações para o
oeste. Já em 1554, sai uma expedição de Porto Seguro, que após percorrer os rios
Jequitinhonha e Pardo em busca da Sabarabussu, seguem por terra até alcançarem o Rio
São Francisco, quando também optam pela rota norte, subindo este rio até a região dos
índios Xacriabá. Não foram bem sucedidos, mas abriram caminho para uma sucessão de
exploradores, tanto caçadores de ouro e prata, como caçadores de indígenas e criadores de
gado (Paraíso9, 1987.16).
O norte do atual Estado de Minas, bem como o norte de Tocantins e sul da Bahia,
era habitado por vários grupos indígenas além do Xacriabá. Dado aos constantes
enfrentamentos com os bandeirantes, os mais referidos são os Kayapó, mas, segundo
Paraíso (1987.16), “outras referências falam dos Xerente, Xavante, Akwên, Bororo, Pareci,
Karajá, Akroa, Kiriri, Kururu, Guariba, Amoipira, Rodela e Javaé”. A presença dos
exploradores intensificou os conflitos intertribais, e assim começaram a surgir alianças
entre os grupos indígenas, bem como, alianças com os bandeirantes como mecanismo de
sobrevivência, que foi o caso dos Xacriabá.
A figura que mais se destacou nesta região foi Matias Cardoso, filho de Fernão
Dias, que concentra seus esforços na criação de gado nas margens do São Francisco. Em
1690, cada um dos dezenove companheiros de Matias Cardoso recebem 80 léguas10 de
sesmaria na região, e a ocupação destas sesmarias é marcada por violentos combates entre
9
A Drª Maria Hilda Baqueiro Paraíso é uma profunda conhecedora da história indígena da Bahia, Espírito
Santo e leste de Minas, pois sua pesquisa de mestrado foi sobre os grupos que habitavam esta região. É
Professora da Universidade Federal da Bahia, mestra em ciências sociais, doutora em história social e
etnohistória indígena, com dezessete trabalhos publicados e responsável pela elaboração de cinco laudos
periciais antropológicos.
10
Uma légua eqüivale a 6 km.
Minas Indígena 13
indígenas e exploradores. O primeiro grande embate aconteceu no mesmo ano, ou um ano
depois, quando uma aldeia inteira foi destruída e apesar de não haver referência à etnia,
pela localização é provável que se tratava ou dos Xacriabá ou dos Kayapó. Paraíso
(1987.19) informa que Matias Cardoso atacou e escravizou os Anayó, Kiriri, Pimenteira,
Piacú, Jandui e Icó.
Os Kayapó eram resistentes e arredios, atacando tanto as fazendas de gado como as
aldeias Xacriabá, sua tribo rival. Como mecanismo de sobrevivência, os Xacriabá fizeram
aliança com Januário Cardoso de Almeida Brandão11, filho e sucessor de Matias Cardoso,
na campanha deste último contra os Kayapó. Como resultado desta aliança, Januário
Cardoso concedeu, em 1728, liberdade e terras aos Xacriabá:
Dei terra com sobra para não andarem nas fasenda alheia do Riaxo do Itacaramby
acima até as cabiceiras e vertentes e descanso extremado na Cerra Geral para a
parte do peruaçú extremado na Boa Vista onde desagua para lá e para cá e por isso
deilhe Terra com Ordi da nossa Magestade (...) já assim não podem andarem pelas
fasendas alheias incomodando os a fazendeiros – missões para morada o brejo para
trabalharem Fora os gerais para a suas cassadas e meladas. Arraial de Morrinhos 10
de fevereiro de 1728. Adiministrador Januario Cardoso de Almeida Brandão
(Schettino, 1999.27).
Há notícias de outros grupos Xacriabá em Goiás nesta época, mas o destino destes é
desconhecido. O grupo que recebeu terras de Januário Cardoso passou a viver em clima
mais pacífico em suas terras, mas sofreu um forte processo de miscigenação étnica com
escravos fugitivos e campesinos vindos da Bahia a procura de terras para cultivar. Desta
forma, a atenção dos historiadores passou a ser concentrada na região leste, onde
habitavam os grupos mais resistentes, os famosos Botocudos.
3.2. O CONTATO COM OS GRUPOS DO LESTE
3.2.1. OS BOTOCUDOS
Por volta de 1760, a mineração começou a entrar em decadência, levando a
metrópole a voltar sua atenção para a lavoura, propondo para isto a colonização dos sertões
do leste mineiro, que tinham como limites a Mata Atlântica habitada pelos Botocudos.
Os Botocudos não eram um povo, mas sim uma confederação de povos que
habitavam a Mata Atlântica concentrados principalmente na Zona da Mata e Vale do Rio
Doce em Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia. Cada povo tinha seu nome próprio, mas
todos falavam a mesma língua – do Tronco Macro-Jê – com pequenas variações,
11
Uma das mais influentes cidades do norte de Minas, recebeu o nome de Januária, em sua homenagem.
Minas Indígena 14
compartilhando a mesma cultura. Ao que parece, a maioria destes grupos eram distintos
etnicamente, mas se uniram para somar forças na defesa e expansão do seu território.
As primeiras notícias dos Botocudos datam de 1505, quando uma grande expedição
chefiada por Francisco Espinoza, tendo como companheiro o padre Azpilcueta Navarro,
subiu os rios Buranhém, Jequitinhonha e São Mateus, encontrando “um povo numeroso
entre os rios Pardo e Jequitinhonha, (...) que se enfeita com grandes rodelas de madeira nas
orelhas e no lábio inferior” (Soares12, 1992.23), e os primeiros contatos belicosos se deram
ainda no século XVI, quando da instalação das capitanias de Ilhéus e Porto Seguro, onde
por fim, grupos Botocudos acabaram sendo aldeados, em 1602, com o trabalho do Padre
Domingues Rodrigues (Paraíso, 1998.414).
Nos registros históricos, vários nomes são dados aos Botocudos. Durante boa parte
do período colonial, eles são chamados de Aimoré – nome dado pelos Tupi aos povos que
não viviam no litoral e não eram do seu grupo. Parece que inicialmente eram chamados de
Tapuias – os povos que moravam no interior. Aparecem ainda outros nomes menos
freqüentes, como Aim-Pore – habitante das brenhas; Aim-Boré – malfeitor; Aim-Buré –
os que usam botoques de embaré; Aim-Biré – nome do chefe indígena que se aliou aos
franceses e que é citado por Padre Anchieta no poema Confederação dos Tamoios; e GuaiMuré – gente de nação diferente. Em documentos do século XVII, aparecem os nomes
Guerém e Gren-Kren. No século XVIII, passam a ser chamados de Botocudos, sendo
esta a forma mais usada para se referir a eles até hoje. Entretanto, Botocudos é um termo
pejorativo, inventado pelos portugueses, dado ao fato deles usarem botoques como enfeites
labiais e auriculares. Botoque para os portugueses é a rolha com que se fecha o barril de
cachaça. No século XIX, os grupos do Vale do Rio Doce, se autodenominavam
Engrekum, que significa andarilho (Soares, 1992.40-41). Parece que esta confederação
não dava um nome a si própria, ou se dava, este não foi registrado. Cada grupo tinha a sua
autodenominação “que em geral seguia o nome do líder que o fundara, através de cisão
com o originário, ou de uma característica geográfica que identificava o território de caça
exclusivo dos agrupamentos” (Mattos13, 1996.65). Os únicos remanescentes Botocudos,
12
Desde 1979 diretamente envolvida com a questão indígena de Minas Gerais, Geralda Chaves Soares se
tornou uma das principais indigenistas do Estado. Profunda conhecedora da história indígena de Minas, e em
particular dos Botocudos, bem como da história e cultura Maxakali, pois morou com eles durante oito anos.
Fez parte ativa da comissão organizadora da Campanha Internacional pela Regularização do Território
Maxakali. Liderou o processo de obtenção de terras para os Pankararu e agora lidera a luta pelo
reconhecimento étnico dos Aranã. Autora de vários trabalhos na área, entre eles, “Os Boruns do Watu – Os
Índios do Rio Doce”.
13
Izabel Missagia Mattos é uma grande conhecedora da história indígena de Minas, em particular dos
Botocudos, pois sobre eles fez sua pesquisa de mestrado. Atualmente está pesquisando novamente sobre a
história indígena de Minas para a sua tese de doutorado em antropologia social na UNICAMP. Já escreveu
Minas Indígena 15
por exemplo, se autodenominam Krenak, que é o nome do antigo líder deste grupo, e se
identificam como Borun – os índios, em contraste com Kraí – homem branco.
Paraíso (1998.419) lista nomes de alguns subgrupos Botocudos, como os
Naknenuk, Krakmun, Pejaerum, Jiporok, Pojixá, Nakrehé, Etwet, Takruk-Krak, Nep-Nep,
Gutkrak, Nak-Nhapmã e Miñajirum.
Os Botocudos foram os povos mais bem documentados de todos os períodos da
história indígena de Minas, dada a sua forte resistência aos exploradores. Enquanto muitos
grupos desapareceram rapidamente, frente a invasão colonial, os Botocudos se mantiveram
firmes no seu território até tempos bem mais recentes. Eram temidos não apenas pelos
colonizadores, mas também pelos grupos menores que pleiteavam um território nesta
região da Mata Atlântica. Os colonizadores aproveitaram com muita astúcia este clima de
tensão intertribal que já existia, incentivando os conflitos entre os demais grupos com os
Botocudos, para não se exporem na guerra.
3.2.2. OS MAXAKALI
Já os Maxakali, refugiados nas florestas dos vales do Jequitinhonha e Mucuri
foram contactados bem posteriormente. Em 1719, eles se encontravam aldeados em Lorena
dos Tocoiós – atualmente município de Coronel Murta – no Vale do Jequitinhonha
(Soares, 1995.38). O primeiro contato com os colonizadores ocorreu em 1734
(Nimuendajú14, 1958.54), quando o mestre de campo João da Silva Guimarães, ao
organizar uma bandeira para conquistar as cabeceiras do São Mateus, lutou com esse povo
na região dos afluentes do Mucuri, na margem norte – provavelmente nas proximidades do
rio Todos os Santos – perdendo seu irmão e muitos membros da bandeira (Paraíso,
1992.5). Ao notar a resistência desses indígenas desistiu de seu intento e foi para as
cabeceiras do Rio Doce (Rubinger15, 1963.243).
Na segunda metade deste século os Botocudos que habitavam o Vale do Rio Doce,
tradicionalmente inimigos dos Maxakali, ao sofrerem a ação dos colonizadores na região
começaram a se deslocar rumo ao nordeste de Minas Gerais. Fugindo da guerra com esses
mais de cinco textos relacionados ao assunto.
14
Conhecido etnólogo alemão, por vários anos atuando aqui no Brasil entre grupos indígenas, falecido em
1945, Nimuendajú esteve entre muitas tribos brasileiras, dentre as quais os Maxakali e Krenak, coletando
dados que foram encaminhados ao Serviço de Proteção ao Índio. Suas observações se tornaram o primeiro
documento de cunho antropológico escrito sobre os Maxakali.
15
Professor da UFMG, Marcos Rubinger visitou os Maxakali em julho de 1962 e janeiro de 1963, envolvido
com o Projeto de Pesquisa Maxakali. Desta forma, foi o segundo a pôr em papel um texto antropológico
sobre os mesmos. Na segunda visita, se fez acompanhar de uma estagiária do Museu Nacional, professora
Maria Stella Alves de Faria, que veio também a escrever um documento sobre os Maxakali.
Minas Indígena 16
povos, parte dos Maxakali recuou para a beira-mar e foz do Mucuri. Outros grupos
menores se dispersaram por outras regiões e alguns se uniram novamente. Algum tempo
depois, retornaram da costa para o interior, reaparecendo em Lorena dos Tocoiós em
1801, onde permaneceram até 1804. Ali a situação de miséria era tanta que praticavam a
geofagia e a taxa de mortalidade era altíssima. A câmara de Minas Novas decidiu distribuilos entre os colonos e lavradores para servirem de mão-de-obra gratuita.
Em 1804, o alferes Julião Fernandes Taborna Leão criou a 7ª Divisão Militar,
sediando suas tropas em São Miguel – atual Jequitinhonha – e transferiu os Maxakali de
Lorena dos Tocoiós para aquele quartel, para que compusessem suas tropas na guerra
contra os Botocudos. Ali foram também aproveitados como canoeiros, transportadores de
sal entre Calhau – Araçuaí – e o Quartel do Salto – Salto da Divisa – e fornecedores de
objetos utilitários de cerâmica para os colonos. Em todo período imperial os Maxakali
peregrinaram, geralmente em grupos pequenos, na tradicional região do Jequitinhonha e
Mucuri, do leste de Minas ao litoral, numa tentativa desesperada de sobrevivência.
Minas Indígena 17
4.
MINAS INDÍGENA NO PERÍODO IMPERIAL
4.1. DECLARADA A “GUERRA JUSTA”
Com a chegada de D. João VI ao Brasil em 1808, fugindo dos franceses, houve
necessidade de mais terras para a Corte Imperial e a expansão se intensificou nas regiões
dos rios Mucuri, Doce, Jequitinhonha e São Mateus, onde se concentravam os grupos
Botocudos. Chegam a D. João VI informações da impossibilidade de conquistar estas áreas
dada a resistência dos belicosos Botocudos. Documentos da época se referem a eles
dizendo que “são bárbaros, traiçoeiros, vingativos, antropófagos, sem alma, sanguinários,
preguiçosos, bestiais, quase animais, não falam o português, não são nem cristãos! E não se
submetem aos brancos!” (Soares, 1987.26). Em resposta, D. João VI declara oficialmente
“guerra justa” aos “antropófagos” Botocudos, autorizando a formação de milícias armadas
para atacar os índios, a divisão entre os oficias das terras indígenas conquistadas, o
aprisionamento e escravização de índios subjugados, maior salário para quem matasse mais
indígenas, isenção de tributos para quem invadisse mais terras, e várias outras regalias 16.
Esta “guerra” não se limitou aos grupos Botocudos, mas se estendeu a todos os grupos
indígenas do país, mesmo porque, na prática ela já existia, sendo aqui apenas oficializada.
4.2. A POLÍTICA DA “BOA VIZINHANÇA”
Quase paralelo a esta sangrenta e bárbara guerra, começa surgir um novo método de
pacificação dos indígenas e posse de suas terras. Um militar francês chamado Guido
Marlière, percebe que o massacre não seria o caminho ideal para conquistar estas terras,
pois mesmo frente a tamanha opressão e terríveis ataques, os indígenas resistiam, ainda
que o preço desta resistência fosse suas próprias vidas. Marlière começa então a usar a
política da “boa vizinhança”, ganhando a amizade dos indígenas com presentes.
16
Ver Anexo 04: Carta Régia de 13/05/1808 – Declaração de “Guerra Justa”.
Minas Indígena 18
Em 1813, ele é enviado pelo Governo aos Vales dos Rios Pomba e Peixe, onde a
violência contra indígenas estava tomando proporções gigantescas. Bem sucedido nesta
região com seu novo método de pacificação, Marlière é enviado aos Vales dos Rios Doce e
São Mateus, em 1819, com a missão de obter a rendição dos Botocudos. Novamente é bem
sucedido, e assim, em 1824 é nomeado Diretor dos Índios de Minas. Sua estratégia era
oferecer amizade e proteção aos indígenas, com a sua poderosa organização militar,
espalhada por toda parte. Intensifica assim o surgimento de quartéis e aldeamentos.
4.2.1. OS QUARTÉIS
Os quartéis eram bases militares que ofereciam proteção aos colonos e indígenas
subjugados. Os caciques passaram a ser chamados de capitães. “Marlière dizia que o modo
mais fácil de pacificar uma tribo era entregar um uniforme a seu cacique, nomeando-o
Capitão” (Ribeiro, s.d.187). Geralmente ficavam na borda da mata e assim recebiam as
tribos que perdiam a guerra para outras, sendo expulsas pela fome e pelos inimigos.
O treinamento dos soldados indígenas era mínimo. Durante as guerras ofensivas,
que se davam geralmente no período das secas, eles serviam como soldados contra seus
próprios irmãos. Nas outras épocas, sua missão era plantar lavouras.
4.2.2. OS ALDEAMENTOS
Já os aldeamentos, eram locais construídos pelos padres ou por funcionários do
Governo, para onde eram levados os indígenas atraídos pelos presentes, promessas ou pela
falta de condições de permanecer na mata (CEDEFES, 1998.36). Nestes aldeamentos, os
padres e freiras levavam os indígenas a se “converterem” ao catolicismo, inclusive
batizando-os, ensinavam o português e promoviam casamentos com negros, visando
deliberadamente destruir suas culturas “pagãs”. Somente no período compreendido “entre
1800 e 1850, na área entre os rios Pardo e Doce, estabeleceram-se 73 aldeamentos e 87
quartéis” (Paraíso, 1998.418), em torno dos quais iam juntando-se famílias de soldados,
indígenas “mansos” e artesãos, surgindo assim vilas e povoados, que na sua maioria se
tornaram cidades hoje conhecidas e algumas até prósperas. Às margens dos rios Doce,
Suassuí e Jequitinhonha, somente Marlière organizou aos menos treze aldeamentos.
A política da “boa vizinhança”, entretanto, perdurou apenas durante o trabalho de
Marlière, pois depois da sua aposentadoria e reforma, a violência contra os indígenas
voltou a mesma barbárie de antes. Inclusive, o Vale do Rio Doce se tornou novamente
palco de invasões e massacres.
Minas Indígena 19
4.3. AS FRENTES DE EXPANSÃO TERRITORIAL
A dominação do Estado de Minas se deu a partir de três principais frentes de
expansão, que seguiam respectivamente o curso dos rios Doce, Jequitinhonha e Mucuri, os
quais ligavam o território mineiro ao litoral. Às margens e proximidades destes rios e seus
afluentes se deram os principais massacres de indígenas.
4.3.1. VALE DO RIO DOCE
Ainda no ano de 1808, foi criada a Junta Militar de Civilização dos Índios,
Conquista e Comércio do Rio Doce, estabelecendo seis quartéis ao longo deste rio com
fins de servir como ponto de apoio à guerra de extermínio dos indígenas. Os Botocudos,
profundos conhecedores da selva, resistiram e venceram os soldados desta Companhia,
mas ainda assim, aldeias inteiras foram contaminadas com vírus de varíola e sarampo
(CEDEFES, 1987.32). Apesar desta tamanha resistência inicial, a região do Rio Doce e
seus afluentes mineiros, foi a segunda a ser considerada sob controle, através do trabalho
de Guido Marlière (Paraíso, 1998.418). Desta região, os únicos sobreviventes de guerra
hoje são os Krenak, descendentes dos Botocudos, que mesmo perdendo sua língua e
grande parte dos seus costumes culturais, não perderam a consciência da sua indianidade.
4.3.2. VALE DO RIO JEQUITINHONHA
Esta frente de expansão foi comandada por Julião Taborda Fernandes Leão, chefe
da 7ª Divisão Militar, que fundou quatro quartéis militares os quais acabaram se tornando
cidades ainda hoje existentes – Jequitinhonha, Almenara, Joaíma e Salto da Divisa.
Aventureiros, assassinos, traficantes e bêbados são alistados nos destacamentos
militares, e desta forma, os aliados na captura dos indígenas foram os piores elementos da
região. O território diminuía e por isto os temidos Botocudos se voltavam contra os grupos
indígenas menores, levando grupos como os Malali, Maxakali e Makuni a buscarem
proteção nos brancos. Julião Taborda usa-os na guerra contra os Botocudos, como já fazia
com os demais índios aprisionados (CEDEFES, 1987.33). O Vale do Jequitinhonha foi a
primeira área a ser considerada pelo Governo como “pacificada”, apesar de alguns grupos
desta região continuarem arredios, evitando o contato, e para isto, se deslocando
constantemente pelas matas (Paraíso, 1998.418). Desta região, os únicos sobreviventes de
guerra hoje são os Maxakali, que quase extintos, se reestruturaram novamente conseguindo
preservar sua língua e cultura, através de um esforço quase sobre-humano.
Minas Indígena 20
4.3.3.
VALE DO MUCURI
O Vale do Mucuri é o último a ser dominado pelos exploradores e isto se dá
somente a partir da segunda metade do século XIX. A partir de 1847, chega no Vale a
Companhia do Mucuri, chefiada por Teófilo Otoni que pretende ligar Minas Gerais ao
litoral, pois este território ainda era isolado do mar por uma enorme cadeia de montanhas.
Seu sonho é conseguir exportar produtos mineiros para o exterior.
Teófilo Otoni possuía uma filosofia de conquista semelhante a de Guido Marlière.
Seu método não incluía massacres aos indígenas, mas posse de suas terras pela amizade.
Sua primeira tentativa de ligar Minas ao mar, foi através da navegação no Rio Mucuri e
para isto construiu dois navios, mas descobriu por fim que o rio não era navegável. Decidiu
então construir uma estrada, o que fez através de braços de mestiços, indígenas e negros,
mas a mesma se tornou inviável devido a doenças, como a malária, que eram muito
comuns na região, bem como, ataques indígenas. Não alcançando seus objetivos, Teófilo
Otoni se retirou do Vale no final da década de 1950, mas deixou para trás colonos,
catadores de poaia, e uma guerra brutal contra os indígenas marcada por invasões de terras,
matança indiscriminada, epidemias de sarampo, varíola e gripe, provocadas de propósito
através de roupas contaminadas e comidas envenenadas (CEDEFES, 1987.42).
4.4. O ALDEAMENTO DE ITAMBACURI
Em 1841, os padres Capuchinhos são contratados pelo Imperador do Brasil para
civilizarem os indígenas (Soares, 1992.73), que tanto resistiam aos colonizadores. Em
1873, Frei Serafim de Gorízia e Frei Ângelo de Sassoferrado chegam ao Vale do Mucuri e
fundam o aldeamento de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, onde hoje é a cidade de
Itambacuri. Eles são chamados de Ink-Jak de Tupan – irmãos de Deus. Este aldeamento
visava catequizar principalmente os índios “Botocudos” – na verdade, o grupo Pojixá do
Vale do São Mateus – que eram os mais belicosos e resistentes. De todos os aldeamentos
de Minas, este foi o mais influente e consequentemente o mais bem documentado.
O mais detalhado e fiel relato sobre este aldeamento foi deixado pelo indígena
Domingos Ramos Pacó, filho do “língua” (tradutor) Félix Ramos da Cruz, que foi
catequizado por estes padres, se tornou professor neste aldeamento e em 1918 escreveu um
dos mais raros documentos escrito por um indígena brasileiro do século XIX17.
17
Hámbric Anhamprán ti Maltâ Nhiñchopón? 1918. In: RIBEIRO, Eduardo Magalhães (org). Lembranças da
Terra – Histórias do Mucuri e Jequitinhonha. Contagem: CEDEFES, s.d.
Minas Indígena 21
Segundo Pacó (s.d.198), as tribos Nocuriñ e Nhãnhãn, que somavam oitocentos
homens, sem contar mulheres e crianças, chefiadas pelo Capitão (cacique) Pohóc, seu avô
materno, habitavam o local quando da chegada dos Freis Serafim e Ângelo, que realizam
ali a primeira missa no dia 13 de abril de 1873. Auxiliados principalmente pelo “língua”
Félix Ramos, Frei Serafim e Ângelo, contactaram várias tribos do Vale e foram
conduzindo-as ao aldeamento, como os Kraccatã, Cujãn, Jeruñhim, Nerinhin, Hén, Jukjût,
Remré, Krermum, Nhãn-Nhãn, Cânmri, Pmácjirum, e outras (Pacó, s.d.201).
Os capuchinhos não pararam por aí. Continuaram atraindo mais tribos para o
aldeamento. Trouxeram tribos como os Aranã e até os temidos Pojixás, mencionados como
“o terror e assombro destas zonas” (Pacó, s.d.202), e que na verdade eram os principais
alvos. Assim, chegaram a ter três mil indígenas, de aproximadamente quinze tribos
diferentes, aldeados em Itambacuri.
Este aldeamento já foi criado sob a regência do Regimento das Missões, elaborado
em 1845 para estabelecer como deveria ser o trabalho dos missionários entre os índios.
Segundo este, as responsabilidades dos capuchinhos era “atrair, aldear, pacificar e
catequizar os índios” (Soares, 1992.74). Assim, o dia-a-dia deste aldeamento foi se
tornando enfadonho para os indígenas aldeados, pois não era nem um pouco semelhante ao
dia-a-dia nas aldeias. O fato de vários povos estarem ali misturados já não agradava aos
indígenas. Havia leis que os obrigavam a casar-se com negros e brancos, para se
misturarem e se tornarem um só povo. Deveriam tornar-se cristãos, abandonando seus
rituais, pois a única religião do aldeamento era a dos padres. Aos meninos era ensinado a
língua portuguesa, e com a chegada das Irmãs Clarissas em 1907, foi criada uma grande
escola, incluindo as meninas que ali eram internadas, junto com brancas, negras e mestiças.
Este ambiente alienígena e opressor rapidamente gerou revolta por parte dos
indígenas que sempre fugiam embrenhando-se nas matas ou retornando para suas aldeias.
Estes eram caçados e alguns retornavam para o aldeamento. Alguns retornavam, devido a
saudade da família ou filhos que haviam deixado para trás. Outros desapareciam e nunca
mais eram vistos. Brigas e protestos se tornaram comuns principalmente provocados pelos
Pojixás que eram os mais arredios e tinham uma liderança muito forte. Quando uma
epidemia de sarampo provocou grande mortandade entre os aldeados, os Pojixás acusaram
os padres de feitiçaria e se revoltaram, queimando o aldeamento e matando alguns padres
(Paraíso, 1998.420). Pacó (s.d.208) lista cinco principais revoltas que aconteceram ali, das
quais a mais grave foi quando em 24 de maio de 1893, Querino Grande, cacique dos Potón,
Minas Indígena 22
liderou setecentos indígenas numa revolta, na qual, os padres Manuel Pequeno e Valentim,
foram flechados, sobrevivendo por pouco.
Com os bandeirantes, os indígenas mineiros foram vítimas de um terrível
genocídio, através da guerra aberta, armas ou doenças intencionalmente provocadas,
levando tribos inteiras à extinção. Com os militares e políticos da “boa vizinhança”, bem
como com os religiosos, eles foram vítimas de um terrível etnocídio, destruindo também
intencionalmente suas culturas e línguas.
Na tentativa de fazer aqui uma abordagem não apenas factual, mas também
ideológica da história indígena de Minas, é preciso dizer que na sua maioria, estes padres
foram homens que se gastaram e se doaram, a uma causa que criam ardentemente se tratar
da obra de Deus. Entretanto, foram também manipulados pelo Estado e poderosos, na
ganância de adquirirem uma terra que não lhes pertencia.
4.4.1. DOMINGOS RAMOS PACÓ
Na história dos indígenas de Minas, e principalmente do Vale do Mucuri,
Domingos Ramos Pacó é digno de menção especial, pois muitas informações que
chegaram até nós vêm do documento que ele mesmo redigiu em 1918. Como o mesmo
relata (Pacó, s.d.201,203), Pacó nasceu no aldeamento de Itambacuri em 1869, filho da
índia Umbelina, com o “língua” Félix Ramos da Cruz, neto materno de Pohóc, cacique das
tribos Mucuriñ e Nhãnhãn. Educado pelos padres capuchinhos, se tornou sacristão e aos
quatorze anos de idade professor “das primeiras letras”, cargo este que exerceu por dezoito
anos. Trabalhou também como secretário econômico no aldeamento.
No fim do século XIX, desentendendo-se com os padres, deixou o aldeamento e
passou a viver peregrinando na mata por alguns anos em busca de “sinais de Nossa
Senhora”, que indicavam muita riqueza em pedras preciosas. Não achou nenhuma fortuna
e ainda perdeu um dos olhos. Retornou às cidades se tornando professor em Igreja Nova,
atual Campanário. Encorajado pelo historiador Reinaldo Porto, escreveu sua história em
1918 e por volta de 1930 morreu nesta última cidade. Seu texto é um dos mais importantes
para a história indígena de Minas Gerais, pois vem das mãos de um indígena do século
XIX, sendo o testemunho mais gritante do massacre cultural feito aos indígenas do Vale do
Mucuri, inclusive à sua própria tribo, que desapareceu sem deixar nenhum sobrevivente.
Minas Indígena 23
5. MINAS INDÍGENA NA REPÚBLICA
Com a constituição de 1891, a questão indígena deixa de ser uma responsabilidade
da União, ficando os Estados incumbidos de lidar com esta problemática, mas as lutas e
massacres continuam em Minas Gerais, principalmente no Vale do Mucuri onde estavam o
mais resistentes.
Logo surge no palco nacional um novo personagem que acabaria se envolvendo
diretamente com a questão indígena: é a pessoa do Coronel Cândido Mariano da Silva
Rondon. Em 1892, Rondon assumiu a chefia da Comissão de Linhas Telegráficas,
passando assim a trabalhar nos interiores mais remotos do país. Nestes trabalhos de
instalação de linhas fez contatos com várias tribos indígenas, ainda não contactadas, como
os Nambikuara, sempre num clima de paz e diálogo (Gomes, 1991.85). Na sua formação
militar, foi fortemente influenciado pela filosofia positivista de Augusto Comte,
apresentando assim uma nova maneira de lidar com o problema indígena. Seu lema era:
“morrer, se preciso for; matar, nunca” (Prezia, 2000.197).
5.1.
SPI – SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO
Quando em 1910, sob pressões de intelectuais e personalidades estrangeiras, o
governo criou o SPI – Serviço de Proteção ao Índio, Rondon foi indicado Diretor do
mesmo. Imbuído de um sentimento paternalista, o SPI assume a proteção e tutela dos
indígenas, considerando estes como menores de idade.
Devido à construção das estradas de ferro Bahia-Minas e Vitória-Minas, o sul da
Bahia, o norte do Espírito Santo e a região do Rio Doce em Minas Gerais, tornaram-se as
principais áreas de atuação do recém criado SPI. Os Xacriabá do Norte, por serem
considerados “índios aculturados do Nordeste”, foram totalmente ignorados.
Minas Indígena 24
5.1.1. OS POSTOS DE ATRAÇÃO
Os postos de atração eram uma nova versão dos aldeamentos. Neles, eram
concentrados um determinado número de indígenas, para a utilização do restante de suas
terras. As estradas de ferro penetraram no território dos últimos Botocudos, em Minas, e
para evitar conflitos entre estes, já famosos pela sua belicosidade, e os operários, o SPI
criou cinco postos de atração: (1) Posto da Ermida, no trecho baiano do Jequitinhonha;
(2) Posto do Rio Pepinuque, para o grupo dos índios Jiporok; (3) Posto do Rio Pancas,
no Espírito Santo, para os Miñajirum; (4) Outro no Rio Pancas, para os Gutkrak; e o (5)
Posto do Rio Eme, em Minas, para os Krenak (Paraíso, 1998.420). Em decorrência do
contato, uma grande quantidade de doenças infecto-contagiosas dizimaram a população
indígena destes postos, e aos poucos o SPI foi desativando os mesmos, sob a alegação da
drástica redução populacional, restando apenas o Posto do Rio Eme, destinado aos Krenak,
para onde foram transferidos os sobreviventes dos demais postos (Soares, 1992.131).
5.1.2. ARRENDAMENTO DE TERRAS INDÍGENAS
Em 1920, o governador de Minas Gerais, Arthur Bernardes, decide doar terras aos
indígenas do Estado. A esta altura, os mais de cem grupos que aqui viviam no século XVI,
estavam reduzidos a três apenas – Xacriabá, Maxakali e Krenak. A maioria foi totalmente
extinta e alguns fugiram para outros estados. Os Xacriabá permaneciam com suas terras no
norte, sendo crescentemente invadidas por campesinos e fazendeiros. Assim, Arthur
Bernardes entrega aos Maxakali 4 mil ha. e aos Krenak 2 mil ha., ampliando
posteriormente para 4 mil ha. também. Entretanto, alegando que os indígenas eram
nômades e sua incipiente agricultura insuficiente para sustentá-los, funcionários do SPI
começaram em 1921 a arrendar terras indígenas – Maxakali e Krenak – para trabalhadores
nacionais, que deveriam pagar com alimento para os indígenas (Paraíso, 1998.421).
Desta forma, tem início efetivo a intrusão de agricultores e fazendeiros nestas
terras, que com o passar do tempo foram se tornando “donos” das terras cultivadas. Para a
criação de bovinos, estas terras, principalmente a dos Maxakali, são desmatadas
transformando-se em pasto, o que acaba com a caça e coleta. Com o desmatamento, os rios
diminuem, desaparecendo também a pesca. Sem suas principais fontes de subsistência, os
índios começam a arrebatar animais dos intrusos de suas terras, bem como, da população
vizinha. O sentimento de ódio e repulsa por parte da população dominante em relação aos
indígenas aumenta ascendentemente. Este conflito entre os inicialmente arrendatários, mas
posteriormente declarados intrusos, perdura até o final do século XX.
Minas Indígena 25
Quando em 1940 decide-se demarcar as terras Maxakali várias aldeias ficam fora.
Um grande corredor de fazendas separa as duas aldeias e os fazendeiros intrusos não são
removidos, permanecendo nas terras mais de cinqüenta anos ainda. Nesta mesma data é
aumentado o arrendamento das terras Krenak e o pagamento passa a ser feito ao SPI.
Como se percebe, o SPI se transforma “numa máquina oficial, invadida pela
corrupção e violência” (Prezia, 2000.198). O sonho de um órgão oficial de “proteção” aos
índios, torna-se num pesadelo real de um órgão oficial de “opressão” aos indígenas. O
idealismo de Rondon é frustrado pela ambição de uma sociedade exploradora, governada
por políticos obcecados pela posse de mais e mais terras.
5.2.
GRIN – GUARDA RURAL INDÍGENA
Com o golpe de 1964, quando se instalou o regime militar no país, o SPI foi
extinto, com a destituição de toda sua diretoria. Dois anos depois, em 1966, foi criada a
GRIN – Guarda Rural Indígena, com o objetivo de transformar os indígenas em militares,
sob o comando do Capitão Pinheiro.
Indígenas de toda parte do país foram transportados para Belo Horizonte, onde
receberam treinamento militar, para reprimir seus próprios irmãos. “Xerente, Pankararu,
Urubu Kaapor, Gavião, Pataxó, Maxakali” (Soares, 1992.138) são apenas alguns dos
muitos povos representados na GRIN. Como já era de se esperar, este treinamento não
levou em consideração questões étnicas e culturais. Acontece então um grande etnocídio e
acelera o processo de destruição cultural. Muitos índios revoltados fogem, ou tentam fugir,
e são duramente reprimidos.
5.2.1. COLÔNIA PENAL INDÍGENA
No mesmo ano que é criada a GRIN, cria-se também uma Colônia Penal Indígena,
e o local escolhido para sediá-la é o território Krenak, do Vale do Rio Doce. Para lá são
levados em regime de detenção indígenas acusados de crimes, tachados como rebeldes e
infratores. O Centro de Reeducação Indígena funciona no velho esquema militar: trabalho
forçado, solitária, violência e assassinatos (Soares, 1992.140-141).
Segundo Paraíso (1998.422), “o presídio chegou a abrigar entre sessenta e oitenta
indivíduos, em média”, com representantes das tribos Karajá, Kampa, Mawé, Xerente,
Kayapó, Baenã, Kadiwéu, Bororo, Kaiwá, Kanela e Pankararu. Os principais motivos de
Minas Indígena 26
detenção ali registrados, foram roubo, homicídio, embriaguez e vadiagem. Em 1971, este
presídio foi transferido para a Fazenda Guarani, no município de Carmésia, e com ele os
seus detentos, juntamente com os anfitriões compulsórios – Krenak, e lá se juntou a eles
um grupo dos Pataxó da Bahia. Esta colônia penal funcionou apenas até 1972, mas foi
tempo suficiente para provocar a morte, sofrimento, exílio e fuga de vários indígenas,
principalmente Krenak.
5.3. FUNAI – FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO
Em dezembro de 1967 foi criada a FUNAI – Fundação Nacional do Índio,
substituindo assim o extinto SPI. Enquanto o SPI tinha como principal objetivo “civilizar”
os indígenas e torná-los úteis à sociedade dominante, a FUNAI tem o objetivo de
“integrar” os indígenas à sociedade dominante. Desenvolvendo trabalho em parceria com
entidades religiosas e ONG’s, tem em Minas como principais parceiros o CIMI – Conselho
Indigenista Missionário, com forte atuação principalmente entre os Maxakali a partir da
década de 1980, e o CEDEFES – Centro e Documentação Eloy Ferreira da Silva, que até
hoje lidera a luta pelos direitos indígenas no Estado. Surge assim um movimento de
articulação, sendo um marco deste a Primeira Assembléia Indígena do Leste, realizada em
Itambacuri, em 1979 (Ribeiro, s.d.7). Na década de 1980, os indígenas de Minas obtêm
apoio de sindicatos de trabalhadores e em 1989 acontece em Governador Valadares, o 1 º
Encontro de Lideranças Indígenas de Minas Gerais e Espírito Santo (Soares, 1992.15).
5.4. DESFECHO HISTÓRICO DOS GRUPOS MINEIROS
O século XX foi marcado por uma intensa resistência e luta dos grupos Xacriabá,
Maxakali e Krenak pela sobrevivência e posse de suas terras. Mesmo neste século, muito
sangue indígena foi derramado e o leste e norte do Estado foram palco de ações brutais por
parte do governo, fazendeiros e poderosos contra os indígenas.
5.4.1. A LUTA DOS XACRIABÁ
Devido a sua forte miscigenação étnica e elevado grau de descaracterização
cultural, os Xacriabá permaneceram basicamente sem nenhuma assistência até bem
recente. “No início do século XIX, os Xacriabá de São João das Missões estavam
abandonados pelo poder da província (...) sem missionário ou diretor” (Paraíso, 1987.22), e
Minas Indígena 27
esta situação se estendeu até a segunda metade do século XX. Apesar de não serem mais
vítimas das elites pioneiras, portugueses e paulistas, foram vitimados por outro tipo de
invasão. Levas de baianos pobres, sertanejos, retirantes do sertão baiano em função das
secas, migraram para Minas em busca de terras para cultivo (Schettino, 1999.28).
A primeira geração de retirantes acolhidos pelos Xacriabá em suas terras,
entenderam o princípio de uso da terra não como propriedade privada mas comunitária,
entretanto, os filhos destes retirantes, que na sua maioria nasceram ali, passaram a se sentir
donos das terras. Muitos desses retirantes se casaram com indígenas tornando o
relacionamento interétnico tolerável, mas com o passar do tempo, a situação foi se
tornando conflitiva. Esses casamentos interétnicos provocaram também uma forte
miscigenação que hoje é bem visível. A população Xacriabá é bem morena e de cabelos
crespos, dada à grande quantidade de casamentos com negros forros, ou baianos. Vale
lembrar, que isto se deu principalmente entre a segunda metade do século XIX e primeira
do século XX, período de transição do Império à República e promulgação da Lei Áurea,
quando “a tendência dos índios foi de acolher dentro dos seus limites (...) contingentes
marginalizados da sociedade nacional, retirantes baianos pauperizados e negros forros ou
fugidos que encontraram no território indígena condições mínimas de sobrevivência e
sociabilidade” (Schettino, 1999.31).
Mas a invasão se deu não apenas por retirantes. Fazendeiros da região,
ambicionando aumentar suas propriedades, exerceram também forte pressão sobre os
Xacriabá, expandindo seus limites para dentro da reserva indígena.
Quando o SPI foi criado em 1910, se dedicou apenas aos índios isolados, ignorando
os “aculturados do Nordeste”. Somente em dezembro de 1973 foi criado o Posto Indígena
Xacriabá e em 1979 seu território foi homologado, com 46.414,92 ha. sendo na verdade
uma redução da área doada por Januário Cardoso, que por sua vez constituía-se numa
pequena parcela do território original. Um lugarejo chamado Rancharia, considerado por
eles parte do seu território ficou fora desta homologação, o que gerou certa insatisfação.
Suas terras, entretanto, permaneceram infestadas de posseiros que os oprimiam e
limitavam seu território. A partir da homologação a tensão com estes posseiros se
intensificou, tomando uma dimensão de agressividade. No dia 14 de maio de 1986, o
indígena José Pereira Lopes, conhecido como Zé de Benvinda, foi assassinado, pela ação
de pistoleiros, ficando feridos os indígenas Manuel Fiuza Filho e o homônimo do morto,
José Pereira Lopes, na aldeia de Sumaré (Paraíso, 1987.25).
Minas Indígena 28
Conseqüentemente, instaurou-se um clima de revolta e medo na reserva,
aumentando drasticamente a tensão. Por volta das duas horas da madrugada, do dia 12 de
fevereiro de 1987, na aldeia Sapé, a casa do vice-cacique Rosalino Gomes de Oliveira foi
cercada por dezesseis pistoleiros que dispararam tiros impiedosamente contra todos que
estavam na residência. Naquele dia foram mortos os indígenas Rosalino, José Teixeira e
Manuel Fiuza da Silva, que ainda se recuperava dos ferimentos do ultimo ataque. Anísia
Nunes, esposa de Rosalino, grávida de dois meses, abraçando a filha Rosalina, de apenas
dois anos, também foi ferida no braço. Seu filho José Nunes, hoje um dos professores
Xacriabá, naquela época apenas com dez anos de idade, foi obrigado a arrastar o corpo
ensangüentado do pai até o terreiro, para os pistoleiros verificarem se realmente estava
morto. Seu irmão, Domingos Nunes, conseguiu fugir sob tiros em sua direção, e é o
próprio que relata esta drástica e revoltante chacina (Oliveira, 1997.35,36).
Com esta chacina o processo foi levado a sério e assim, ainda em 1987, finalmente
foi processada a expulsão dos posseiros da reserva Xacriabá. No entanto, dois fatos ainda
os incomodavam. Seu território permaneceu ligado ao município de Itacarambi, onde o
prefeito não era nem um pouco simpatizante dos indígenas, aliás, foi um dos mandantes
desta última chacina. Desta forma, continuam lutando até que em 1996 São João das
Missões foi emancipado município, se desligando assim de Itacarambi, e o cacique
Rodrigão foi eleito e reeleito vice-prefeito (Dutra, 1998.36-38). Outro fato, era o vilarejo
de Rancharia, que com aproximadamente setenta famílias, somando cerca de seiscentas
pessoas, permanecia não homologado como território indígena. Em 1996, entraram com
uma reivindicação oficial junto à FUNAI solicitando a regularização de Rancharia com
6.600 ha., o que aconteceu no início de 2001, ampliando assim o território total dos
Xacriabá para 53.014,92 ha. Assim, finalmente reina paz na reserva Xacriabá.
5.4.2. A LUTA DOS KRENAK
Apesar de receberem terras do governo em 1920, os Krenak não tomaram posse
efetiva das mesmas tão cedo. Com a prática do arrendamento de terras indígenas, os reais
proprietários foram sendo compulsoriamente expulsos. Já em 1923 acontece um terrível
massacre em Cuparaque, município de Resplendor, quando vários homens, mulheres e
crianças Krenak foram assassinados. Em 1930, o SPI transfere outros povos indígenas para
o Posto Indígena Krenak o que resulta numa óbvia miscigenação étnica.
Em 1942 seu território foi demarcado com uma área de 3.983.09 ha., mas em 1956
são exilados para as terras dos seus antigos inimigos Maxakali e o Posto Indígena
Minas Indígena 29
declarado extinto. Como já era de se esperar, o contato com os Maxakali resultou em
conflitos, ocasionando o retorno do grupo, à pé, dois anos depois, para suas antigas terras,
que nesta altura estavam invadidas (Faria, 1992.12). Caminharam noventa e cinco dias.
Os Krenak passam a conviver de forma forçada com os fazendeiros que haviam se
apoderado das suas terras, convivência esta que é agravada com a criação da Colônia Penal
em 1966 ao introduzir indígenas de várias outras etnias no mesmo ambiente.
Em 1972, são novamente exilados, só que desta vez na Fazenda Guarani, município
de Carmésia, para onde foi transferida a Colônia Penal. Os que se recusaram a sair da terra
foram algemados e levados pela polícia. Alguns foram para o Posto Indígena de Vanuíre,
em São Paulo, viver com os Kaygang, enquanto outros se dispersaram e foram viver
clandestinamente em Colatina, no Espírito Santo. Mas ainda na década de 1970, começam
a se organizar na luta pela terra, fazendo contatos com autoridades em Belo Horizonte e
Brasília. Recebem apoio do CIMI, antropólogos e outras entidades.
Em 1979, o Rio Doce enche e transborda, devastando as plantações dos fazendeiros
que ocupavam as terras. Nesta altura, a articulação dos Krenak pela posse das terras já
estava bem avançada e eles entendem esta enchente como um sinal de que estava na hora
do retorno. Os fazendeiros se mobilizam, mas eles recebem apoio de trabalhadores rurais,
sindicatos, imprensa e várias outras entidades e retornam novamente às suas terras.
Seguem-se então duas décadas de demanda judicial. Mesmo sendo despejados por
várias vezes, os Krenak persistem sempre retornando novamente. Em 1989 um grupo dos
Krenak que estava vivendo em Vanuíre retornou, aumentando assim a força indígena.
Vários encontros são realizados, não apenas entre os indígenas de Minas, mas também com
os do Espírito Santo e Bahia. Destaca-se neste período o apoio da Igreja Metodista de
Colatina e Belo Horizonte, através do trabalho do GTME - Grupo de Trabalho Missionário
Evangélico (Soares, 1992.191-193). Houve uma grande mobilização, até que finalmente
obtiveram a reintegração do seu território, com 3.983,09 ha., sendo os posseiros retirados
pela ação da Polícia Federal, em abril de 1997 (Dutra, 1998.18).
5.4.3. A LUTA DOS MAXAKALI
Somente depois da visita de Curt Nimuendaju aos Maxakali em 1939, quando
registrou a existência de duas aldeias apenas, Mikael e Mikax-kakax, no Umburanas, com
cento e vinte a cento e quarenta indígenas (Nimuendajú, 1958.56), é que saiu a decisão
oficial de demarcar as terras, sendo criado no ano de 1941 o Posto Indígena Maxakali na
aldeia de Água Boa. Na demarcação algumas aldeias ficaram de fora o que gerou
Minas Indígena 30
insatisfação dos indígenas e deu liberdade para a entrada de posseiros. O Pradinho que se
encontrava invadido por fazendeiros não foi demarcado. Até a fundação do posto as terras
eram exploradas pelo comércio de poaia, peles e madeira que durou até quase o
desaparecimento total das matas.
Segundo dados do arquivo do SPI, no ano de 1942 a população Maxakali estava
reduzida a cinqüenta e nove pessoas (Rubinger, 1963.252). Entretanto, parece que estes
dados não são precisos, pois como citado acima, Nimuendajú, apenas três anos antes,
registra cento e vinte a cento e quarenta indígenas, e o próprio arquivo do SPI registra
cento e dezoito pessoas em 1943, um ano depois (Rubinger, 1963.253). O certo é que neste
período os Maxakali estavam reduzidos a um pequeno grupo de pessoas. Aliás, não foi a
primeira vez, pois Amorim (1966.5) afirma que em datas anteriores um surto “de sarampo
reduziu ainda mais a população, restando apenas cerca de 15 indivíduos, sendo o número
de homens duas vezes maior que o de mulheres”.
Antônio Cascorado Maxakali liderou, na aldeia do Pradinho, a luta pela terra. Os
conflitos envolvendo índios e fazendeiros continuaram e são expulsos cinqüenta agregados
trazidos de Felizburgo. Em 24 de dezembro de 1955 é assassinado o líder Cascorado
Maxakali. O governo então decide demarcar a aldeia do Pradinho com 1.028,39 ha.
separada de Água Boa, com 2.412,19 ha., por uma área de 1.852,55 ha. A demarcação é
feita em 1956 mas com a extinção do SPI e surgimento da GRIN e FUNAI, segue um
período de grande instabilidade. Em 1972 o Governador do Estado de Minas Gerais,
Rondon Pacheco, através da Rural Minas titula os onze fazendeiros que ocupavam a área
intermediária entre Água Boa e Pradinho.
No ano de 1979 é liberada para a pastoral indigenista a presença de uma equipe de
missionários do CIMI Leste na área. No ano seguinte a FUNAI responde às pressões dos
fazendeiros implantando o PDIA – Projeto de Desenvolvimento, Integração e Assimilação
– em convênios com a UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora. Neste projeto, houve
uma integração de professores, antropólogos, psicólogos e médicos para conseguirem a
assimilação dos indígenas. Desrespeitaram sua identidade étnica e cultural ao tentarem
impor um outro modo de vida e organização. O conflito entre índios e posseiros toma
dimensões gigantescas, culminando em brutescos assassinatos.
Dia 09 de julho de 1983, dois grupos de Maxakali retornam do sul da Bahia, onde
havia vendido uma boa quantidade de feijão. Haviam também ingerido bastante bebida
alcoólica, estando assim embriagados. O grupo de Alcides era o último e juntamente com
ele vinha sua esposa Jovita e seu filho, ainda criança. Alcides era filho do cacique
Minas Indígena 31
Capitaozinho e estava sendo preparado para assumir o lugar do pai. Cansados da longa
caminhada, pararam à noite, na beira do caminho, numa fazenda, para descansar um pouco
e ali acenderam uma fogueira. Três pistoleiros do fazendeiro se aproximam, comem pão
oferecido a eles por Alcides e depois covardemente o assassinam a golpes de facão. Sua
esposa, filho e demais do grupo são perseguidos, mas conseguem fugir.
Toda a tribo se revolta, querem a punição dos culpados, a unificação das áreas e a
retirada dos fazendeiros intrusos. As autoridades fazem vista grossa, inclusive a FUNAI, e
a imprensa se contradiz, mas o fato tem uma grande repercussão e de todo o Brasil chegam
abaixo-assinados e cartas de apoio à luta dos Maxakali. As duas aldeias se organizam
passando a realizar reuniões semanais e muitos rituais religiosos para unir o povo.
No silêncio da FUNAI, apelam para deputados e outras autoridades, mas a
violência não para aí. Em fevereiro de 1987, Osmiro Maxakali é encontrado morto numa
fazenda. Osmiro é um jovem de 29 anos, filho de Otácio e Licinha Maxakali.
Recentemente havia brigado com o filho do dono da fazenda onde foi encontrado seu
corpo. Novas manifestações são feitas e a luta se intensifica (CEDEFES, 1987.70-98).
Segue-se uma década de morosa luta pela desocupação da gleba de 1.852,55 ha.
entre as duas aldeias. É elaborado um mapa da área. Contatos são feitos com Brasília e
com a imprensa, sob apoio de vários órgãos, igrejas e entidades internacionais, bem como,
da sociedade civil através de abaixo-assinados e cartas aos Governos Estadual e Federal.
Os Maxakali tem contato com os demais povos nas Assembléias Indígenas.
Em agosto de 1993, o Governo Federal reconhece como terra indígena a área
intermediária. A faixa é demarcada, mas o processo de regularização não é concluído e
assim os posseiros continuam nas terras. Em 1995, é lançada a Campanha Internacional
pela Regularização do Território Maxakali, com apoio do CIMI, CEDEFES, da
Dreitkõnigsaktion da Áustria, da CESE – Coordenação Ecumênica de Serviços e de outras
entidades nacionais e internacionais ligadas à defesa dos direitos humanos e dos povos
indígenas. Após quatro prorrogações do prazo, foi finalmente estipulada a data de 20 de
junho de 1999 como prazo máximo para a retirada dos posseiros. Com a participação de
policiais militares e federais, os quatorze fazendeiros finalmente desocuparam as terras,
após mais de cinqüenta anos de invasão.
Minas Indígena 32
5.5. O PROCESSO DE MIGRAÇÃO
A partir da década de 1970, os conflitos envolvendo grupos indígenas se
intensificaram no leste do país, principalmente no Nordeste, levando vários grupos a
migrarem para outras regiões. Desta, forma, Minas que tinha apenas os Xacriabá, Maxakali
e Krenak em seu território, começa a receber outros grupos em busca de terras.
5.5.1. OS PATAXÓ
Com a criação do Parque Nacional de Monte Pascoal nos anos sessenta, os Pataxó
da Bahia se tornaram vítimas de diversas atrocidades, como mortes, estupros e destruição
de casas, diminuindo consideravelmente o seu território tradicional, o que resultou na
degradação de sua condição de vida naquela região (Vilarino, 2001.17). Assim, um grupo
dos mesmos migrou para a Fazenda Guarani em Carmésia, se juntando aos exilados
Krenak que nesta época lá estavam. Entretanto, segundo a indigenista Vanessa Caldeiras18,
há evidências de que grupos Pataxó habitaram esta região em tempos anteriores. Com o
fim da Colônia Penal e regresso dos Krenak para seu antigo território, os Pataxó
permaneceram, obtendo posse oficial daquela terra.
5.5.2. OS PANKARARU
Com a construção da Hidrelétrica de Itaparica, somando os conflitos com
fazendeiros e o grave problema da seca, um grupo dos Pankararu da aldeia de Brejo dos
Padres, em Pernambuco, migraram em sentido sul, ainda na década de 1950. Após
morarem com os Krahô, Xerente e Karajá, uniram-se aos Pataxó da Fazenda Guarani em
1983, onde permaneceram por onze anos, até conseguirem, em 1994, sua própria terra no
Vale do Jequitinhonha (Caldeiras, 2001c.36).
5.5.3. OS XUKURU-KARIRI
Em função de inúmeros conflitos e mortes na região de Palmeira dos Índios em
Alagoas, sob a forte liderança do cacique Warkanã D’Aruanâ, um grupo migrou para a
região de Paulo Afonso na Bahia. Novamente se envolveram em conflitos e assim, em
18
Durante uma palestra no CEDEFES, em 12/04/2002. Antropóloga e Socióloga, Vanessa Caldeira é
indigenista do CEDEFES, atuando na área de direitos/políticas indígenas. Tem acompanhado de perto a
questão indígena de Minas e recentemente foi uma das principais responsável pelo reconhecimento étnico
oficial dos Kaxixó.
Minas Indígena 33
1998, migraram finalmente para Minas Gerais, permanecendo por algum tempo em São
Gotardo até conseguirem terras no município de Caldas, em 2001 (Caldeira, 2001d.20).
Vale lembrar que, em 1969, um grupo de vinte índios Guarani do Rio de Janeiro
vieram também para Minas Gerais, se instalando na Fazenda Guarani, mas não
permaneceram (Paraíso, 1998.422). Outros grupos como os Atikum e Tembé, também
migraram para Minas, porém retornaram para suas terras ou seguiram para outros estados.
5.6. O PROCESSO DE EMERGÊNCIA
Nas duas últimas décadas do século XX um novo fenômeno marca a história dos
indígenas de Minas Gerais. Grupos originariamente mineiros, mas dispersos por várias
partes do Estado e do país durante o processo da colonização e expansão territorial,
desaparecendo assim historiograficamente, começam a se reorganizar em tribos e
reivindicar seus direitos como grupos indígenas. É bem verdade, que neste processo,
algumas famílias envolvidas na articulação estão interessadas apenas na posse de terras, o
que de qualquer forma é direito que lhes assiste, mas a maioria dos envolvidos são
movidos por um sentimento e consciência da sua indianidade. São grupos que perderam
em grande parte sua cultura tradicional, língua e estilo de vida tribal, mas que preservaram
sua identidade étnica na convicção de jamais terem deixado de ser indígenas.
5.6.1. OS KAXIXÓ
As primeiras expedições de bandeirantes paulistas nas imediações dos rios Pará,
São Francisco e Rio das Velhas, região dos Kaxixó, tiveram início ainda no século XVII,
na esperança de localizarem a famosa Sabarabussu (Caldeiras, 1999.51). Como nas demais
regiões do Estado, os quartéis e aldeamentos dizimaram os indígenas da região e neste
processo os Kaxixó foram dispersos pelas várias fazendas e povoados que surgiram.
Foram envolvidos pelo processo de agregação (Ribeiro, s.d.24-29) se tornando
trabalhadores braçais nas fazendas da região. Apesar de conscientes da sua indianidade,
permaneceram em silêncio durante anos, sendo esta consciência passada de pais para
filhos, mas não revelada em temor da discriminação por parte da população dominante.
Em 1986, envolvidos num conflito de terras com fazendeiros, pediram ajuda ao
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pompéu, revelando a estes a sua identidade. Na
impossibilidade de oferecer ajuda efetiva, o Sindicato passou a situação para o CEDEFES,
Minas Indígena 34
entidade que têm atuado eficazmente na questão indígena do Estado. Desta forma, têm-se
início a luta dos Kaxixó pelo seu reconhecimento étnico oficial, sendo realizado neste
mesmo ano um levantamento histórico sobre o grupo pela indigenista Geralda Soares.
Em 1992, a liderança Kaxixó participou da II Assembléia Geral da APOINME –
Associação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, recebendo
apoio dos vinte e quatro povos indígenas ali representados. Enfrentando oposição de
fazendeiros vizinhos desde o início, em 1993 surge a primeira resistência oficial por parte
de governantes. O prefeito do município de Martinho Campos emite nota à imprensa
repudiando a luta dos Kaxixó.
No ano seguinte, um laudo antropológico é realizado a pedido da FUNAI o qual dá
parecer contrário ao reconhecimento étnico do grupo. Superam a frustração inicial e
retornam à luta em 1995, quando participam da IV Assembléia Geral da APOINME, onde
são fortemente encorajados a continuar e logo recebem apoio da ABA – Associação
Brasileira de Antropólogos. Assim, em 1996 se fazem presentes na abertura do Programa
de Formação de Professores Indígenas de Minas Gerais, no Parque do Rio Doce e em 1998
iniciam sua participação na programação da Semana dos Povos Indígenas de Minas Gerais,
organizada pelo CIMI e CEDEFES (Caldeiras, 1999.9-14).
Em 1997 solicitaram ao CEDEFES a realização de um estudo sobre a história do
grupo. Através de denúncias sobre a destruição de sítios arqueológicos na área por eles
ocupada, tiveram acesso também à Procuradoria Geral da República, a qual instaurou um
processo de investigação implicando em conseqüente estudo sobre a identidade étnica do
grupo, estudo este que teve parecer favorável.
Frente a tal parecer, a FUNAI solicitou, em 2000, uma nova análise antropológica,
desta vez por um antropólogo indicado pela ABA. Em julho do mesmo ano saiu o
resultado com parecer favorável (Caldeiras, 2001b.40) e em dezembro o órgão indigenista
nacional concluiu o caso, os reconhecendo oficialmente. Resta agora a restituição e
regularização do seu território tradicional.
5.6.2. OS ARANÃ19
Com “sua origem na história dos Botocudos (...) os Aranã foram aldeados pelos
missionários capuchinhos em 1973, no Aldeamento Central Nossa Senhora da Conceição
19
A maior parte das informações aqui contidas foram obtidas em entrevista com o Sr. Pedro Índio de Souza
(em 20/03/02), mais conhecido como Gilmar, um dos filhos de Pedro Sangê, hoje morador de Belo
Horizonte, e com a indigenista Geralda Soares (em 08/02/02), moradora da cidade de Araçuaí de onde dá
suporte à articulação do grupo Aranã na luta pelo reconhecimento étnico oficial.
Minas Indígena 35
do Rio Doce, onde epidemias dizimaram a população. Alguns sobreviventes migraram
para o Aldeamento de Itambacuri, de onde saíram os ancestrais dos Aranã de hoje (...)”
(Matos, 2000b.16). Os poucos sobreviventes Aranã deste aldeamento, foram dispersos por
várias regiões sendo envolvidos pelo processo de agregação (Ribeiro, s.d.24-29) e
perdendo quase na totalidade a consciência étnica. Entretanto, um certo Manoel, levado
ainda quando criança para a região do Vale do Jequitinhonha, fez algo até então inédito,
inserindo a expressão “índio” em seu nome, passando a se identificar como Manoel Índio e
teve três filhos que também eram identificados com este sobrenome (Caldeira, 2001a.6)
Um dos seus três filhos, Pedro Inácio Figueiredo, mais conhecido como Pedro
Sangê, tonou-se o patriarca do atual grupo Aranã, e foi além do seu pai no ineditismo, pois
registrou em cartório os dez filhos do seu segundo casamento com o sobrenome “índio”.
Segundo relato do seu próprio filho Gilmar, Sangê possuía o domínio da leitura e escrita,
sendo não apenas alfabetizado, mas também um alfabetizador.
Na fazenda Alagadiço, no município de Coronel Murta, Vale do Jequitinhonha, a
família Índio teve contato com a família Caboclo. Enquanto a primeira era identificada
como indígenas dado ao seu sobrenome e aparência física, a segunda era assim chamada
pejorativamente, o que no entanto, não deixa de remeter-lhes a uma origem indígena.
Assim, unem-se através de casamento e compartilhamento do mesmo território.
Seu território está exatamente ao lado dos Pankararu e foi o contato com estes
últimos que despertou os Aranã para os direitos que lhes assistem enquanto povo indígena.
Assim, a partir de 1994 começaram a se organizar e iniciaram efetivamente uma luta pelo
reconhecimento étnico, estando presentes no movimento indígena estadual e nacional. Em
2001 houve um grande avanço, quando a Procuradoria Geral da República esteve no
município fazendo um levantamento da real situação e a FUNAI solicitou à ABA que
fizesse um laudo antropológico para averiguar a sua indianidade.
Percebemos assim que ao longo dos séculos foram desenvolvidas diferentes
categorias étnicas no Brasil como resultado da adaptação ao seu meio ambiente e
posteriormente do sangrento processo de dominação e miscigenação étnica. Os
agrupamentos indígenas no Estado de Minas Gerais foram quase todos dizimados ou
forçados a migrarem para outras regiões, restando apenas alguns remanescentes, que
juntamente com outros que para aqui migraram, e ainda alguns que ressurgiram, lutam por
seu espaço. Na parte seguinte, estes grupos serão estudados separadamente.
Minas Indígena 36
SEGUNDA PARTE
Minas Indígena: Uma Perspectiva Sociocultural
Minas Indígena 37
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Antes de apresentarmos a situação sociocultural de cada grupo indígena de Minas,
fazem necessárias algumas considerações que, embora bastante genéricas, nos ajudarão a
posicionar o agrupamento étnico indígena do Estado dentro de uma análise geral, bem
como justificarão algumas abordagens que faremos nos comentários específicos.
1.1.
TRONCOS LINGÜÍSTICOS
As línguas indígenas estão agrupadas em “famílias lingüísticas” que por sua vez se
agrupam em “troncos lingüísticos”, facilitando assim o estudo das mesmas, pois cada
agrupamento tem uma origem comum. Os mais de duzentos e cinqüenta povos indígenas
do Brasil estão agrupados em dois troncos lingüísticos principais e em algumas famílias
isoladas não pertencentes a nenhum tronco. Como língua e cultura são intimamente
ligadas, conhecer a origem lingüística de um grupo implica em compreender no mínimo
alguns traços gerais da sua cultura, o que facilita a sua análise como um todo, mesmo
quando já se perdeu a língua tradicional, pois muitos dos traços culturais permanecem.
A classificação em troncos e famílias lingüísticas indígenas mais aceita pelos
estudiosos foi realizada pelo professor Aryon Dall'Igna Rodrigues, que publicou os
resultados em 1986. Os dois troncos lingüísticos principais são: o TUPI, formado por sete
famílias lingüísticas e duas línguas não classificadas em família, e o MACRO-JÊ, formado
por seis famílias e quatro línguas não classificadas em família. Além destas, há ainda cerca
de cem línguas agrupadas apenas em famílias e outras dez consideradas isoladas pois não
pertencem a nenhum agrupamento (Prezia, 2000.46).
1.1.1. TRONCO LINGÜÍSTICO TUPI
O maior e mais conhecido, agrupa povos que se encontram dispersos por
praticamente todo o território brasileiro. Uma das suas principais características é que
Minas Indígena 38
vivem em florestas tropicais à beira dos rios ou no litoral, devido ao que os povos deste
tronco foram os primeiros a serem contactados – especificamente os Tupinambá – pois
habitavam o litoral leste e por isto as línguas Tupi foram as mais documentadas.
Por estarem espalhados pelo território brasileiro, os povos do tronco Tupi
apresentam grandes diferenças quanto à sua organização social e uma grande diversidade
cultural, entretanto, suas línguas são muito parecidas. Os Tupi desenvolvem uma relação
de interdependência entre a sua terra e seu modo de viver, levando o seu "mundo dentro de
si", ou seja, um povo do tronco lingüístico Tupi pode desenvolver o seu modo de ser e
viver em qualquer lugar, independente da terra em que se localizarem ser ou não
tradicional20. Para eles, a vida é passageira, sendo o "outro mundo" o verdadeiro, o real.
Suas aldeias, geralmente são pequenas e construídas em círculo, com um pátio no
centro, onde se realizam as grandes reuniões, os rituais e os eventos importantes da
comunidade. Cada casa costuma abrigar uma família extensa, com pais, filhos e genros.
Sem dúvida foram os povos indígenas que mais influenciaram a cultura brasileira.
Além da rede de dormir, dos muitos objetos de cerâmica e da farinha da mandioca, os
povos de cultura Tupi também deixaram no sul, através da convivência com os Guarani, o
uso do chimarrão. Não se pode esquecer o hábito do banho diário que herdamos desses
povos. Muitas palavras Tupi fazem parte do nosso vocabulário, como taquara, tapera,
mirim, maloca, mandioca, saci, jacaré, tucano, caatinga, mutirão, mingau, capim, sapé,
pitar, caipira, peteca, catapora, pereba e outras. Uma infinidade de nomes Tupi também
compõe a lista de cidades, rios e montanhas de nosso país como: Paraná, Guanabara,
Ibirapuera, Jacareí, Itajaí, Pernambuco, Uruaçu, Itapemirim, Pindamonhangaba,
Morumbi, Pacaembu, Itatiaia, Piracicaba entre outras. Usamos algumas interjeições e
advérbios Tupi, como oi, que veio substituir o olá português, e a negação Tupi an-an, que
no português popular significa sim ou não (CIMI, 2002.4). Hoje são cerca de quarenta e
quatro povos Tupi ainda existentes no Brasil, com aproximadamente setenta mil pessoas.
1.1.2. TRONCO LINGÜÍSTICO MACRO-JÊ
Os povos de origem Macro-Jê se fixaram nas regiões do cerrado e caatinga e por
isto, os primeiros contatos com eles foram feitos pelos bandeirantes que iam ao interior em
busca da mão-de-obra escrava e de riquezas naturais.
20
É o caso dos Guarani que migraram desde o Paraguai pelo litoral brasileiro, seguindo as revelações de seu
Deus, Nhanderú, em busca da "terra sem males" – um paraíso onde não se envelhece, nem trabalha, pois o
alimento já aparece pronto, localizado além do mar, onde nasce o sol.
Minas Indígena 39
As aldeias dos povos Jê geralmente são em forma de meia-lua com a casa de
religião ou de reuniões na outra extremidade, e dão um enorme valor ao centro da aldeia.
Não usam rede, geralmente dormindo sobre peles de animais, esteiras de palha ou em
camas de varas – jiraus. O sol tem grande significado, e ao contrário dos Tupi, o indígena
Jê dá muito valor ao seu território tradicional, não sabendo sobreviver sem o seu povo, a
sua aldeia e o seu lugar dentro dela. Sem a referência territorial não conseguem se situar no
mundo. Por isso suas aldeias são sempre bem organizadas e estruturadas.
As sociedades Jê são mais hierarquizadas, havendo, quase sempre, um cacique
geral. Para enfrentar essa tendência centralizadora, criaram conselhos, que também são
chamados de “sistema de metades”. O grupo se divide em duas partes, que se alternam no
comando da aldeia e geralmente se casam entre si, quando o homem é levado pela sua
mulher para a casa de seu pai, onde permanecem pelo menos até o nascimento do primeiro
filho. Em alguns casos, as mulheres dotadas de qualificações especiais podem
desempenhar papéis importantes, como o de pajé ou até mesmo cacique. A pessoa começa
a participar muito cedo da vida adulta. A mulher se torna mãe por volta dos treze ou
quatorze anos, e o rapaz, pai por volta dos quinze ou dezesseis.
Também ao contrário dos povos Tupi, para os quais o mundo dos mortos é muito
presente, os povos Jê são orientados pela idéia da vida. A vida é boa, é o paraíso, algo
definitivo. Os mortos são inimigos formando a anti-sociedade dos vivos. Possuem uma
visão dualista do universo e da sociedade – o todo é a união dos opostos: vida X morte; sol
X lua; terra X água; vermelho X preto; homens X natureza; centro X periferia.
As cerâmicas Jê são mais simples que as Tupi, mas são peritos em artesanato de
taquara, embira, palha e penas. A influência dos povos de língua do tronco Macro-Jê em
nossa sociedade não foi tão acentuada quanto a dos povos de língua Tupi, mas teve
importância sobretudo em áreas como o Nordeste, o centro oeste do Brasil e Minas Gerais.
Na alimentação ficou o uso do feijão, do milho, do amendoim e o gosto pelo churrasco.
Deixaram traços na música, não só no ritmo do forró, como também no famoso canto do
vaqueiro do sertão. Vários nomes de rios ou cidades vieram das línguas Jê: Poté, Nanuque,
Chapecó, Corumbá, Cuiabá e outros. Hoje são aproximadamente quarenta e cinco povos,
com uma população aproximada de cinqüenta e duas mil pessoas (Prezia, 2000.62-66).
Todos os oito grupos indígenas de Minas Gerais pertencem ao tronco Macro-Jê, e
muitas das características aqui citadas ainda são evidentes neste grupos mineiros.
Minas Indígena 40
Tronco
MACRO-JÊ
Família
Maxakali
Jê
Botocudo
Kariri
?
Minas Indígena 41
Língua
Maxakali
Pataxó
Akwén
Krenak
Aranã
Kariri
Pankararu
Kaxixó
Dialeto
Xacriabá
1.2.
CLASSIFICAÇÃO DA ORIGEM ÉTNO-GEOGRÁFICA
Quando neste relatório nos referimos aos “grupos indígenas de Minas” ou mesmo
aos “grupos indígenas mineiros”, deve ficar subentendido que não estamos atribuindo aos
mesmos, Minas Gerais como origem étno-geográfica, mas indicando sua atual localização.
1.2.1. REMANESCENTES
São os grupos originários de Minas Gerais, que durante estes quinhentos anos de
dominação e opressão, resistiram etnoculturalmente, não sucumbindo frente à ação
etnocida dos dominadores. São os remanescentes étnicos dos mais de cem grupos
indígenas que aqui habitavam na época do contato, e que mesmo passando por período de
acentuada redução, nunca desapareceram historiograficamente. São eles:
Xacriabá – É o único grupo do Estado que permaneceu no seu território
tradicional, de forma ininterrupta, desde o período colonial.
Maxakali – Seu território tradicional se estendia até a Bahia, mas foram
contactados aqui em Minas, onde também realizaram a maioria das suas peregrinações.
Krenak – Originários do Vale do Rio Doce, mesmo por várias vezes exilados do
seu território tradicional, sempre retornaram para lá, até que conquistaram posse definitiva.
1.2.2. MIGRATÓRIOS
Como já mencionado, a partir da década de 1970 os conflitos envolvendo grupos
indígenas se intensificaram no leste do país, principalmente no Nordeste, levando vários
grupos a migrarem para outras regiões. Como Minas Gerais apresentava um quadro
relativamente pacífico nesta época, alguns migraram para cá, sendo que nem todos
permaneceram. Já no final dos anos noventa, outras migrações aconteceram, completando
o quadro de três grupos migratórios que se fixaram aqui definitivamente:
Pataxó – Originários da Bahia, de onde vieram na década de 1970.
Pankararu – Originários de Pernambuco, de onde saíram na década de 1950.
Xukuru-Kariri – Originários de Alagoas, de onde saíram na década de 1990.
Minas Indígena 42
1.2.3. EMERGENTES
Desde o início da colonização, o governo sempre incentivou a política da
miscigenação com o objetivo de acabar com a cultura indígena. Nos aldeamentos das
missões católicas isto aconteceu com muito vigor. Quando em 1850 foi promulgada a Lei
de Terras, muitas aldeias foram declaradas extintas sob a alegação de sua população ser
mestiça. As terras ficaram para o Estado como devolutas e depois cedidas ou invadidas por
fazendeiros. As famílias indígenas remanescentes tornaram-se, na sua maioria, agregadas
destas fazendas, quando não expulsas. Como forma de resistência, algumas fomentavam
casamentos entre si, firmando laços de parentesco e preservando alguns traços culturais.
No início da década de 1970, atenção maior foi dada à questão indígena, e com o
surgimento do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, da Igreja Católica, estes grupos
começaram a ser acompanhados, ocorrendo assim um verdadeiro ressurgimento étnico. Em
1971, em Minas Gerais e no Espírito Santo reconhecia-se apenas um grupo indígena – os
Maxakali – enquanto hoje são onze. No Nordeste eram onze grupos, com pouco mais de
doze mil pessoas, hoje são trinta e sete com mais de oitenta mil pessoas (Prezia, 2000.91).
Classificamos aqui como grupos emergentes, portanto, os remanescentes de povos
originários de Minas Gerais, que por um período de tempo desapareceram
historiograficamente, mas reapareceram novamente como grupos étnicos. São eles:
Kaxixó – Nunca deixaram o Estado nem seu território tradicional, mas só foram
reconhecidos oficialmente como grupo étnico em 2001.
Aranã – Originários do Alto Vale do Jequitinhonha, foram dispersos e agora se
reorganizaram em grupo lutando pelo reconhecimento étnico.
1.3. O MITO DO “ÍNDIO PURO”
Assim como os povos indígenas do Nordeste, os de Minas são freqüentemente
diminuídos e rebaixados a “índios de segunda categoria” devido a visão fantasiosa e
utópica que durante centenas de anos foi alimentada e difundida pelos dominadores,
através de livros didáticos, comerciais de televisão, e até materiais de cunho antropológico,
segundo a qual, “índio” é aquele sujeito de pele vermelha, cabelos negros e lisos, que anda
descalço e totalmente nu, com um grande cocar na cabeça, o corpo todo pintado, muitos
enfeites de pena e um arco e flecha na mão. Que fala o tupi-guarani, mora numa pequena
palhoça coberta de capim chamada oca, usa um instrumento musical chamado maracá,
Minas Indígena 43
adora um deus chamado Tupã, a lua chamada de Jacy, ao sol chamado de Coaracy e tem
um filho chamado curumim. Este é um “índio de sangue puro”, um “índio de verdade”.
Se o indígena tem pele quase negra e cabelos crespos, ou cor clara, olhos claros e
cabelos acastanhados, fala português, usa as mesmas roupas da sociedade externa, mora
em uma casa de alvenaria, com energia elétrica e água encanada, ouve rádio e possui um
aparelho de televisão, o máximo que lhe é atribuído é o título de “caboclo”, “bugre”, “índio
misturado”, ou numa linguagem mais refinada, “índio aculturado”.
Oliveira (1999.34), sugere quatro ênfases etnológicas que são espúrias e por demais
danosas ao estudo dos grupos indígenas atuais. A Etnologia das perdas culturais coloca
toda a sua ênfase no que o grupo indígena perdeu no decorrer do seu contato com a
civilização externa, como a língua, aspectos da sua religiosidade, moradia, indumentária e
organização social. Vale lembrar aqui, que em qualquer momento da sua história um povo
sempre possui cem por cento de cultura, ainda que esta não seja mais nem um pouco
semelhante à cultura de cem anos atrás. A cultura é dinâmica e à medida que novos
conceitos e valores lhes são acrescentados ela vai sofrendo transformações e adaptações,
mas nunca se torna uma “meia-cultura”. A etnologia da idealização do passado enfatiza
apenas as vantagens do antigo momento cultural, dos antigos costumes tradicionais, como
os únicos ideais para determinado povo. Há todo um saudosismo cultural que leva para
uma análise utópica do povo, num momento histórico que não mais existe. A etnologia da
pureza original talvez seja a principal responsável pelo mito do “índio puro”, pois elucida
a figura de um indígena isolado, vivendo num mundo culturalmente introspectivo, sem
interação com outras culturas e sem qualquer índice de miscigenação étnica. Este índio era
puro porque não tinha contado com a cultura não-indígena, pois esta é a causadora dos
desequilíbrios morais e sociais. Na verdade este índio nunca existiu, pois mesmo antes da
chegada dos colonizadores europeus, no nosso continente havia a prática de casamentos
interétnicos, possivelmente em alta escala, e por isto, sempre houve miscigenação. O
argumento da pureza moral também é enganoso, pois desde os primórdios do ser humano,
os pecados sociais e morais estiveram presentes (Souza, 2001). Por fim, a etnologia da
naturalização da situação colonial, cuja ênfase é voltada para a realidade indígena da
época do contato com os colonizadores, como sendo a originária e ideal para cada grupo, e
utopicamente possível de ser resgatada.
Uma vez que abordamos os grupos indígenas de Minas Gerais, a consciência de que
este “índio puro” nunca existiu é importante, pois os grupos mineiros são povos que
passaram por um forçado processo de miscigenação étnica, em contato constante com a
Minas Indígena 44
civilização externa, através do qual muito da sua antiga cultura tradicional foi substituído
por costumes e valores da cultura nacional. Sete dos oito grupos de Minas passaram por
aldeamentos das missões católicas – capuchinhos – onde era fomentado o casamento com
negros e brancos, proibida a língua tradicional e forçosamente imposta a religiosidade
católica. Agora é muito cômodo para a própria sociedade que em gerações passadas forçou
este contato, em tom pejorativo e com forte grau de discriminação classificá-los como
“aculturados”21. O “índio puro” ou “primitivo” não passa de uma fantasia do homem
moderno, que viabilizou sua imagem para possibilitar a idéia de uma sociedade complexa e
moderna (1999.49). A abordagem que aqui faremos, parte do pressuposto que o ser
indígena tem mais a ver com a questão etnocultural, do que com a questão biológica.
O que é ser indígena? Diante dos recentes avanços da antropologia, ser indígena
não é uma questão biológica, de raça, como se dizia antigamente, mas uma questão
étnica, cultural. Ser indígena, a partir dos novos conceitos da antropologia, é
considerar-se diferente da sociedade nacional, por apresentar uma ligação
histórica com as sociedades pré-colombianas, sendo descendente dos primeiros
ocupantes deste continente (Prezia, 2000.89).
1.4. PROGRAMAS ASSISTENCIAIS
Os indígenas de Minas são beneficiados por dois principais programas
governamentais de assistencialismo que visam prover melhores condições de vida a este
seguimento diferenciado da sociedade nacional.
1.4.1. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO INDÍGENA DIFERENCIADA
Até 1994 a FUNAI, em parceria com o MEC – Ministério de Educação e Cultura,
provia para alguns grupos indígenas ensino fundamental nos moldes de escolas rurais,
com currículo convencional e professores não-indígenas, o que contribuía ainda mais para
a interferência cultural externa nas culturas de cada povo. Em 1995 entrou em
funcionamento um programa de ensino diferenciado, promovido pela SEE/MG –
Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais, em convênio com a UFMG –
Universidade Federal de Minas Gerais, FUNAI – Fundação Nacional do Índio e IEF –
Instituto Estadual de Florestas (Dutra, 1998.54-59).
Neste programa é oferecido o curso de formação de professores indígenas,
realizado no Parque Estadual do Rio Doce - UHITUP22. Este local foi escolhido por se
21
Este termo tem sido fortemente criticado pela antropologia moderna e principalmente pelo movimento
indigenista, porque significa literalmente “sem cultura” – a-culturado – enquanto sabemos que não existe
povo sem cultura.
22
Palavra Maxakali que significa “alegria” (Dutra, 1998.58)
Minas Indígena 45
tratar de um ambiente bastante natural, com árvores em abundância, distante de centros
urbanos, deixando assim os indígenas bastante à vontade. O curso é realizado em oito
módulos, sendo dois por ano, com professores especializados na área. Durante estes
módulos é fomentado a produção de materiais didáticos pelos próprios alunos, os quais são
publicados e utilizados nas respectivas aldeias. Estes professores são habilitados a nível de
segundo grau e, retornando para suas respectivas aldeias, organizam escolas de ensino
fundamental, sendo devidamente remunerados. O currículo é composto pelos conteúdos
curriculares universais (CIMI-LE, 1999.4), acrescidos da língua e cultura tradicional:
Língua – materna (no caso dos Maxakali e Krenak) e português; Matemática; História;
Geografia; e Ciências. Atualmente são assistidos por este programa, apenas os Xacriabá,
Maxakali, Krenak e Pataxó. Os demais, entretanto, possuem professores em formação
visando a organização de escolas num futuro próximo.
1.4.2. DISTRITO SANITÁRIO ESPECIAL INDÍGENA
A partir de 1999 foi implementado também o programa de assistência na área de
saúde com objetivo de evitar a locomoção do indígena que necessita de atendimentos
médicos para um hospital, onde o ambiente é totalmente alienígena ao seu contexto, o que
ocasiona sempre maiores transtornos. Para isto, a FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
fornece uma equipe de saúde formada geralmente por médicos, dentistas, enfermeiros e
auxiliares de enfermagem, de acordo com a realidade populacional de cada povo. Fornece
também treinamento para Agentes Indígenas de Saúde, para trabalhar em seus respectivos
povos com saúde preventiva e atendimentos básicos, sendo contratados pelo Estado e
remunerados. Cada equipe e povo conta com um veículo para locomoção, geralmente uma
caminhonete Toyota, que além de ser usada pela equipe de saúde atende a população
indígena na medida do possível. Atualmente há equipe de saúde junto aos Xacriabá e
Maxakali; os Pataxó são atendidos pelo médico da cidade de Carmésia; e os demais, com
exceção dos Aranã, contam apenas com o veículo para transporte de doentes.
Minas Indígena 46
2. OS XACRIABÁ
Se não existisse história, não existia índio.
Então, se existe a história, é porque nós somos índios.
José dos Reis Xacriabá23.
2.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL
Classificados como “índios aculturados do Nordeste”, sua identidade étnica foi, e
ainda é, ignorada por muitos, inclusive por órgãos governamentais, como o SPI que
durante suas atividades nunca deu assistência a este povo. Trazem o estigma de
“caboclos”, “aculturados”, “miscigenados” e já foram considerados por alguns como
extintos. Realmente com um alto índice de miscigenação, eles não se enquadram nas
qualidades do “índio puro” fantasiadas pela sociedade envolvente e por alguns estudiosos.
Confundidos com retirantes baianos, seu contexto social muito se assemelha às
comunidades rurais dos sertões da Bahia e nordeste do país, quando visto de fora.
Entretanto, não é necessária uma análise cultural muito profunda para perceber que os
Xacriabá possuem identidade própria e consciência da sua indianidade, a qual é
evidenciada principalmente pela religiosidade e pela posse comunitária da terra.
2.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA
Os Xacriabá de hoje são o resultado de um forte processo de miscigenação étnica
inicialmente provocado de forma intencional pelos colonizadores, mas depois continuado
pelo relacionamento pacífico destes indígenas com a população sofredora da região.
2.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA
No seu Mapa Etnohistórico, Nimuendajú (1981) indica que no século XVIII os
Xacriabá viviam entre os rios Paracatu, afluente do São Francisco, Palma, afluente do
Tocantins, Gurgeia, afluente do Parnaíba, limite entre Bahia e Piauí, e nas nascentes do
Palma em Goiás. Como já visto, a chegada dos colonizadores resultou na luta dos Xacriabá
contra os invasores e também contra outros grupos indígenas da região, o que os levou
paulatinamente a se concentrarem na região que hoje habitam. Encurralados ali, os antigos
indígenas entraram num ascendente processo de miscigenação com dois principais
seguimentos da sociedade externa: negros e retirantes baianos.
23
Em Oliveira (1997.79).
Minas Indígena 47
O casamento com negros foi inicialmente promovido pelos padres, com o objetivo
deliberado de miscigenar a raça indígena, integrando-os assim à civilização externa.
Posteriormente, negros fugitivos das senzalas começaram a procurar abrigo junto aos
Xacriabá que os recebiam prontamente, pois muitos já viviam com eles.
Com as secas do Nordeste, baianos retirantes também começaram a procurar os
Xacriabá em busca de terras para cultivo. Sendo a terra uma propriedade comunitária e não
privada, os retirantes também foram recebidos como parceiros no cultivo e passaram a se
unir em matrimônio. Desta forma, os atuais Xacriabá são o resultado da mistura dos
antigos indígenas, com negros africanos e retirantes baianos. Schettino (1999.18) sugere
haver também uma “mistura dos cariris e cayapó”, mas isto parece pouco provável.
2.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA
A faixa de terra situada entre as bacias dos rios Tocantins, Araguaia e São Francisco,
indo de Goiás a Maranhão, historicamente é o território tradicional de três grupos que
compõem a família étnica Akwén. Os que ficaram às margens do Tocantins se identificam
como Xerente; os dos Rios Tocantins, Araguaia e das Mortes se identificam como
Xavante; e o grupo do Rio São Francisco como Xacriabá (Paraíso, 1987.14).
2.1.1.3. SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA
Segundo o professor Aryon Rodrigues (1994.56), os Xacriabá pertencem ao tronco
lingüístico Macro-Jê, família Jê, língua Akwén e dialeto Xacriabá. Entretanto, a única
coisa que restou desta língua foram algumas palavras dispersas usadas no dia-a-dia e nos
rituais. Por volta dos anos cinqüenta, eles foram proibidos de usarem até as poucas
palavras no momento das suas cerimonias24, sendo hoje falantes apenas do português com
uma elevada carga de regionalismo, bem como, com algumas palavras do seu antigo
idioma. Mas sua descendência Jê é claramente evidenciada na distribuição espacial da
reserva, que é altamente dispersa pelo território, além do constante fracionamento das
aldeias num processo quase contínuo de divisões, também característico dos grupos Jê.
2.1.1.4. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA
O Território Indígena Xacriabá, somando um total de 53.014,92 ha., está localizado
no extremo norte de Minas, no município de São João das Missões, na margem esquerda
do Rio Itacarambi, afluente do São Francisco, entre os municípios de Manga e Miravânia
ao norte, e Itacarambi ao sul, distando 736 km de Belo Horizonte. A entrada principal da
24
Em entrevista com o cacique Rodrigão, no dia 09/04/02. Pelo menos dois outros pesquisadores já
registraram este mesmo depoimento (Chettino, 1999.126).
Minas Indígena 48
reserva dista 16 km da cidade de São João das Missões e a partir desta entrada, a última
aldeia à esquerda, Riacho do Buriti, está a 36 km, e à direita, Peruaçú, a 39 km, ficando as
demais espalhadas neste percurso. Só há rodovia até a cidade de Itacarambi, que está a 20
km antes de São João das Missões, sendo a partir desta, estrada, mas bem preservada.
2.1.2. DISTRIBUIÇÃO DEMOGRÁFICA
Devida uma constante rotatividade da população Xacriabá, é difícil precisar sua
população, mas não resta dúvidas de que superam a sete mil indivíduos, com um
considerável percentual de crianças e adolescentes.
Esta população está distribuída em vinte e três aldeias ou vilarejos, espalhadas por
todo o território, sendo as mais influentes o Brejo do Mata Fome, onde vive o cacique e
está a base da FUNAI, e Sumaré. As aldeias são formadas por residências
consideravelmente afastadas uma das outras, ligadas entre si, na sua maioria, apenas por
trilhas que penetram os bosques e possibilitam o tráfego apenas de pedestres ou de cavalos.
As residências, na sua maioria absoluta, são casebres de adobe 25 ou enchimento26, cobertas
com telhas de barro fabricadas por eles próprios. Geralmente são pequenas, sem piso, com
poucos móveis e nelas reside não mais que uma família. Não há energia elétrica na
maioria, nem água encanada. Em abril de 2002, a FUNAI estava construindo banheiros
para estas famílias, pois até então também não havia. Dada à presença do cacique e a base
da FUNAI, o Brejo do Mata Fome é o vilarejo mais bem estruturado, contando com
energia elétrica, água encanada, antena parabólica, estabelecimentos comerciais, um
hospital e um templo católico. Sumaré, o segundo mais influente vilarejo, também conta
com energia elétrica e um posto médico.
ALDEIAS XACRIABÁ EM ABRIL DE 2002
1. Barra do Sumaré
9. Morro Falhado
17. Riacho Cumprido
2. Barreiro Preto
10. Olhos D’Água
18. Riacho do Brejo
3. Forges
11. Peruaçú
19. Riacho do Iburití
4. Brejo do Mata Fome
12. Pindaíba
20. Santa Cruz
25
Muito comuns naquela região, adobe é uma espécie de tijolo, feito de barro, porém não levado ao forno. As
vezes chamado de “tijolo cru”.
26
Igualmente comuns naquela região, as casas de enchimento tem suas paredes feitas de varas cruzadas com
os espaços preenchidos com barro.
Minas Indígena 49
5. Catinguinha
13. Prata
21. São Domingos
6. Imbaúba
14. Rancharia
22. Sapé
7. Itacarambizinho
15. Riachão
23. Sumaré
8. Itapicurú
16. Riachinho
Apesar de várias tentativas de expulsão e invasão territorial por parte da sociedade
envolvente, temos no caso dos Xacriabá uma ocupação ininterrupta da área desde a
chegada dos colonizadores. Desta forma, o índice de migração não é tão elevado, a não ser
nos casos de retirada em busca de trabalho em outras regiões, que ocorrem até hoje. Neste
sentido, os dois principais centros migratórios são Mato Grosso, para onde ainda há uma
considerável movimentação de famílias Xacriabá em determinados períodos do ano em
busca do cultivo da cana-de-açúcar, e São Paulo, para onde muitas famílias migraram
definitivamente em busca de emprego se integrando totalmente à civilização externa.
2.1.3. RELIGIOSIDADE
A religiosidade Xacriabá é um dos aspectos culturais mais relevantes e ao mesmo
tempo mais invisíveis (Schettino 1999.125), influenciando o seu comportamento e reações
às mais variadas situações a que são expostos. Com o processo de catequese imposto pelos
padres capuchinhos27 da Missão de São João, os Xacriabá adotaram o catolicismo como
religião. Entretanto, é evidente um alto grau de sincretismo, mesclando elementos católicos
com práticas e valores da sua antiga religiosidade, principalmente por parte dos membros
efetivos, não incorporados por casamento. Sendo sua religiosidade de caráter sigiloso,
registramos aqui apenas os aspectos mais evidentes, carecendo um estudo mais profundo.
Vale citar as palavras de Paraíso (1987.47) sobre este sincretismo, ressaltando que
o mesmo não acontece com os poucos convertidos ao protestantismo:
Devido ao processo de aculturação a que foram submetidos, os Xacriabá adotaram
a crença católica, como dominante, além de algumas conversões recentes ao
protestantismo. Porém, há perfeita conciliação entre a primeira crença religiosa e o
culto e fé a Yayá. O mesmo não ocorre com o protestantismo, o que inclusive
motivou a perda de chefia por parte do antigo capitão, Laurindo Gomes de Oliveira.
Ao se tornar “crente”, renegou a fé em Yayá e, por coincidir este fato com o
incremento da presença de posseiros na área, o capitão foi afastado do seu cargo,
tendo sido substituído por um devoto de Yayá.
2.1.3.1. DANÇAS CERIMONIAIS
27
Schettino (1999.14) inclui também os jesuítas, mas Paraíso (1987.51) não crê nesta possibilidade,
sugerindo que foram apenas os capuchinhos. Tudo indica que ela tem razão.
Minas Indígena 50
Como a maioria dos indígenas do Nordeste, sua dança cerimonial é chamada de
Toré28 e envolve cantorias que propiciam o ambiente de contato com o sobrenatural. Não
foi possível coletar detalhes, pois além da reserva dos mesmos em descrever, segundo eles,
o ritual não pode ser realizado em sua plenitude com a presença de estranhos, pois sua
principal entidade não se manifesta neste caso. O Toré é realizado com freqüência, sempre
à noite (Schettino, 1999.129), mas tudo indica não haver datas predeterminadas para o
mesmo, sendo por isto necessárias convocações.
Parece que Paraíso (1987.49) obteve a melhor descrição do ritual, ainda que
incompleta. Segundo seus informantes, ao chegar ao local do Toré os participantes são
orientados quanto à posição que devem ocupar, já devendo todos estarem vestidos de
branco e descalços. Antes de iniciar as danças, é preparada uma bebida chamada jurema,
que possui efeito alucinógeno. Ao começar, o pajé retira das pedras o bastão sagrado e o
coloca num canto do terreiro, que num determinado momento começa também a se
movimentar sozinho, emitindo fumaça pelas extremidades, e por fim pára sobre a grande
tigela, fazendo também uma cruz de fumaça que nem todos conseguem ver. A jurema é
distribuída entre os participantes em pequenas tigelas, e logo após dá-se a manifestação da
principal entidade em caráter de oráculo, trazendo respostas aos participantes, avisos,
orientação e repreensões, não apenas pessoais mas também comunitárias. É evidente a
presença de sinais do catolicismo, como a cruz de fumaça, bem como do candomblé
baiano, vindo da África, como as roupas brancas e pés descalços. Interessante é que “a
participação do Toré é exclusiva dos membros aceitos como efetivos e não incorporados
por casamento. Também são excluídos os que se casam com membros da sociedade
nacional” (Paraíso, 1987.40), pois Yayá gosta apenas daqueles que têm “o seu sangue”. É
curioso o fato de não haver rituais especiais no nascimento, casamento, nem na morte.
2.1.3.2. ENTIDADE ESPIRITUAIS
2.1.3.2.1. YAYÁ
Apesar de crerem na existência de outras entidades no seu mundo espiritual, toda a
cosmologia Xacriabá gira em torno de uma entidade principal, chamada Yayá. Este é um
nome carinhoso atribuído à “onça-cabocla”, bem como aos ancestrais quando o povo já
28
Este nome “é bastante conhecido pelos índios da caatinga baseados historicamente na bacia do São
Francisco e outras regiões do nordeste brasileiro” (Schettino, 1999.130).
Minas Indígena 51
não têm memória dos seus nomes. Duas versões mitológicas29 explicam o surgimento de
Yayá, mas ambas se referem a um encantamento de certa índia chamada Yndaiá que se
transformou numa onça em defesa da sua família e não conseguindo reverter e
encantamento permanece até hoje como onça encantada (Paraíso, 1987.41).
Tal entidade é tão central na cosmologia30 Xacriabá que a história do povo é
ordenada em torno da sua presença, ausência e retorno, com a respectiva ausência,
presença e expulsão dos não-índios. Antes da intrusão dos posseiros, Yayá vivia no
território convivendo com o seu povo em harmonia, mas com a chegada dos invasores, ela
teria se refugiado no Rio de Janeiro vindo esporadicamente visitar o seu povo, anunciando
sua presença através de fortes assobios. Ventanias, ataques a animais dos intrusos, ruídos
estranhos e batidas nas portas das residências eram atribuídos ao descontentamento de
Yayá. Até hoje ela continua se manifestando através de “rastros, marcas deixadas no meio
do mato, galhos quebrados, etc, ou ainda, através de seu característico assobio” (Schettino,
1999.138). Pode se mostrar como onça ou como mulher, de acordo com sua livre decisão,
por isto, Marcato (1978.411) se referiu a ela como “um ser mítico, imortal, mutável”.
Nenhuma decisão pode ser tomada sem que ela seja ouvida, que inclusive pode fazer
previsões. Os líderes não viajam sem antes ouvi-la sobre sua segurança e possibilidade de
sucesso, e durante a viagem os familiares podem acompanhar sua trajetória conversando
com ela. Desta forma, apesar dos Xacriabá terem consciência do Deus dos cristãos, na
prática, se relacionam com Yayá. Sobre isto, Paraíso (1987.44) comenta com muita
propriedade e razão, excetuando a afirmativa de serem eles “profundamente cristãos”:
A ação de ataque aos fazendeiros é tão dificultosa que é necessária a interferência
de forças superiores e divinas que garantam a proteção e a impunidade dos índios.
É interessante que, apesar dos Xacriabá serem profundamente cristãos, não é no
Deus ocidental que eles vão procurar essa força, mas no espírito não denominado, o
que indica, claramente, uma tentativa de resgate dos deuses ancestrais.
2.1.3.2.2. SÃO JOÃO DOS ÍNDIOS
Segundo Filho (2002.1), em julho de 1695 religiosos liderados pelo padre Miguel
de Carvalho fundaram o povoado e criaram a Missão de São João com a finalidade de
catequizar a nação indígena Xacriabá, promovendo assistência social e a conversão dos
índios ao credo católico. Ao construir a igreja, os padres contrataram os serviços de um
artesão indígena que, sob a orientação dos religiosos, esculpiu a imagem de São João. Em
29
Ver anexo 01: 1.1. Yayá, A Onça Cabocla.
Foi lançado um livro de histórias Xacriabá que em muito pode auxiliar na compreensão da cosmologia
deste povo, pois são contadas pelos próprios indígenas: “Índios Xacriabá: O Tempo Passa e a História Fica”,
dos irmãos José e Domingos Nunes de Oliveira (ver Referências Bibliográficas).
30
Minas Indígena 52
visita à Missão, Januário Cardoso levou a imagem para a igreja construída na Freguesia de
Morrinhos, mas misteriosamente a imagem foi reencontrada no tronco de uma árvore
próximo à igreja de São João dos Índios. Buscaram a imagem de volta, mas a história se
repetiu. Assim, a comunidade indígena passou a venerar o santo como realmente
milagreiro, o adotando também como entidade protetora dos índios. Vale observar que o
pano de fundo desta veneração é o relacionamento deles com Yayá e assim, como já
tinham uma entidade na sua religiosidade indígena, passaram a ter uma dentro do
catolicismo. Esta imagem se encontra até hoje na capela de São João das Missões, para
onde há um considerável fluxo de romeiros, principalmente nos dias 21 a 25 de julho,
período quando se realiza a grande festa do padroeiro da cidade.
2.1.3.2.3. OUTRAS ENTIDADES
Há entidades de menor importância que também compõem o universo cosmológico
Xacriabá, como a Dona, que se encarrega da preservação dos olhos d’água. Segundo os
informantes de Paraíso (1987.47), esta entidade “possui uma enorme mão, com a qual
agarra e afoga todos aqueles que sujam, desmatam, lavam roupa ou levam animais para
beber na sua morada”. Crêem ainda na existência do Bicho-homem, que vive nas matas e
tem o corpo coberto de pelos, bem como, no Homem-pé-de-garrafa, que deixa seu rastro
de um único pé, em forma de garrafa, nos caminhos da aldeia.
2.1.3.3. LUGARES E OBJETOS SAGRADOS
2.1.3.3.1. OS TERREIROS
Os terreiros são os locais onde acontece o Toré. Como já comentado, no dia do
ritual os participantes devem entrar ali descalços, pois o local é sagrado. É ali que os laços
de solidariedade são fortalecidos e onde Yayá se manifesta para falar com o povo tanto
sobre assuntos pessoais como comunitários. O chão dos terreiros é batido e limpo de toda
vegetação, ficando geralmente próximo às grutas. Antes haviam três terreiros,
respectivamente nos vilarejos de Rancharia, Prata e Brejo do Mata Fome, sendo este
último o principal. Ao que parece, hoje apenas o último está em plena atividade. O acesso
é difícil, não havendo trilhas abertas nem indicativos da direção (Schettino, 1999.127).
2.1.3.3.2. AS GRUTAS31
31
Schettino (1999), fez uma boa documentação fotográfica destas grutas.
Minas Indígena 53
As grutas são cavernas ou pedreiras onde, segundo eles, Yayá habita. Nelas ficam
guardadas as “tralhas” usadas no Toré, como tigelas e outros vasilhames também sagrados.
Estas grutas são bem preservadas por eles, não apenas pelo seu valor religioso, mas
também pela consciência do valor natural das mesmas.
2.1.3.3.3. OS OLHOS D’ÁGUA
Estes são fontes perenes de água e portanto, importantíssimos para a comunidade,
principalmente durante as longas estiagens. Como crêem que a “Dona” protege os olhos
d’água, todos evitam o trânsito nestes locais.
2.1.3.3.4. OS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS
Apesar de considerarem de menor importância religiosa, os sítios são também
respeitados por conter uma grande quantidade de pinturas rupestres que eles atribuem aos
seus ancestrais. Em 2001, foi realizada uma série de pesquisas arqueológicas na reserva,
culminando no tombamento histórico, em fevereiro de 2002, de cinco grutas principais,
riquíssimas em pinturas rupestres da chamada “Tradição São Francisco”, caracterizada por
representações geométricas e de instrumentos diversos. Foram tombadas a Gruta Olhos
D’Água, Gruta das Pinturas, Gruta Lapa Grande, Gruta dos Ventos e a Gruta do Cipó32.
Alguns locais também considerados sagrados ficaram fora do território demarcado, como a
Lagoa de Jaíba, a Mata de Jurema e a própria Igreja de São João das Missões.
2.1.3.3.5. OBJETOS SAGRADOS
Do conjunto de objetos sagrados, chamados de “tralhas” (Schettino, 1999.129), o
principal é o Bastão, descrito como um instrumento de madeira, de tamanho médio e que
pode ser tocado apenas pelo pajé, pois se outra pessoa tocá-lo, morrerá imediatamente
(Paraíso, 1987.49). Fica guardado numa pedreira e só é retirado dali no momento do Toré,
quando, segundo eles, o bastão dança sozinho e emite fumaça pelas extremidades.
Um segundo objeto seria a Tigela Grande, feita de barro, onde é preparada a
bebida chamada jurema, ingerida durante o Toré. E uma terceira classe de objetos são as
Tigelas Pequenas, que são os vasilhames usados para distribuir a jurema.
Segundo o cacique Rodrigão33, seu povo parou de praticar o Toré em 1944, quando
ele tinha apenas cinco anos de idade, devido as muitas perseguições, principalmente de
32
33
Exposição virtual no site: www.grupostone.cjb.net
Em entrevista do dia 09/04/02.
Minas Indígena 54
fazendeiros que entendiam os rituais como macumba contra eles. Policiais passaram a
vigiar o povo para que não praticasse o ritual e aqueles que desobedeciam eram
brutalmente espancados. Os antigos líderes então, esconderam os objetos sagrados numa
determinada gruta que ficava na mata e o Toré deixou de ser praticado. Vinte e dois anos
depois, Rodrigão encontrou os objetos sagrados, mas o povo temia voltar àquela prática.
Em 1969, antropólogos da FUNAI estudando o caso Xacriabá incentivaram-lhes a voltar à
prática do ritual, sugerindo que do contrário eles não conseguiriam posse definitiva de suas
terras. Assim, o próprio Rodrigão articulou com os mais antigos e voltaram a praticá-lo.
2.1.4. CATEGORIAS DE PODER SOCIAL
Inicialmente é preciso considerar pelo menos dois principais aspectos. Primeiro que
a chefia era hereditária, e hoje, mesmo adotando uma postura democrática, a maioria dos
ocupantes das várias categorias de liderança pertencem à família Gomes de Oliveira. O
segundo aspecto é que liderança política e religiosa estão intimamente relacionadas, pois
como somente os “do sangue de Yayá” podem participar dos rituais, os demais,
introduzidos na comunidade por casamento interétnico e mesmo os Xacriabá que se casam
com não-índios, são consequentemente excluídos da possibilidade de liderança, já que a
liderança deve seguir os conselhos de Yayá. Observemos o comentário de Paraíso
(1987.40,41,47) sobre a destituição de Laurindo Gomes, cacique antecessor de Rodrigão:
A destituição de Laurindo Gomes de Oliveira deveu-se a sérias discordâncias
quanto à sua atuação. Ao tornar-se protestante, Laurindo abandonou o culto a Yayá
e recusou-se a revitalizá-lo (...) e por coincidir este fato com o incremento da
presença de posseiros na área, o capitão foi afastado do seu cargo, tendo sido
substituído por um devoto de Yayá. (...) é nas lições dos “antigos” e nas
informações emanadas de Yayá que os Xacriabá se baseiam para viver a sua prática
política.
2.1.4.1. CACIQUE
O cacique é o representante geral do povo, responsável pela sua representação
externa, pela solução de questões interétnicas e o principal articulador de soluções internas
que evitem o conflito. Além da representação geral do povo, representa também a sua
aldeia ou um grupo de aldeias próximas. Já há algumas décadas, Manoel Gomes de
Oliveira, mais conhecido como Rodrigão, tem exercido a função de cacique Xacriabá. É
Minas Indígena 55
um homem com grande liderança, muito querido e respeitado por todo o povo. Com a
emancipação do município de São João das Missões, foi eleito vice-prefeito (Dutra,
1998.38) e reeleito em 2000 para o segundo mandato.
2.1.4.2. REPRESENTANTES
Cada aldeia, ou um grupo de aldeias próximas, elegem um representante que forma
com os demais o Conselho Geral, presidido pelo cacique. Eles possuem as mesmas funções
internas do cacique, só que limitadas à comunidade local. Cada aldeia tem também o seu
conselho que é formado pelos chefes das famílias e presidido por seu representante. As
condições para se candidatar a representante é a crença em Yayá e a participação do Toré.
Em maio de 2002 haviam quatorze representantes indicados pelas vinte e três aldeias.
2.1.4.3. PAJÉ
O pajé é o principal líder religioso devendo ser conhecedor “da ciência” e da língua
de Yayá – língua ritual que apresenta resquícios do antigo idioma. É quem mantêm um
relacionamento mais próximo com Yayá possuindo a capacidade de acalmá-la quando está
irada, e este poder de comunicação com ela que lhe dá autoridade perante o povo. Ele é
responsável pela convocação das reuniões e pelos trabalhos durante o ritual, sendo o único
autorizado a tocar no bastão sagrado. Em maio de 2002 haviam dois pajés em atividade.
Ele também é conhecedor de plantas medicinais devendo preparar remédios
naturais quando procurado. Vale citar que além do pajé, há também os rezadores, raizeiros
e curandeiros, que apesar de não ocuparem uma categoria de poder social, são pessoas as
vezes procuradas para a realização de trabalhos afins.
2.1.4.4. MADRINHA E MESTRA DE TERREIRO
A madrinha sempre acompanha o pajé durante os trabalhos, sendo responsável pelo
posicionamento dos participantes no terreiro, bem como pela apresentação dos novos
membros da comunidade, aceitos na reunião. Parece haver rituais de iniciação para os
meninos, sendo a idade mínima sete anos, mas não conseguimos maiores informações.
Já a mestra de terreiro é responsável pela guarda do material usado durante o Toré,
bem como pela limpeza do terreiro.
2.1.5. PROBLEMAS SOCIAIS
2.1.5.1. SAÚDE
Minas Indígena 56
A assistência na área de saúde é feita pela FUNASA que mantêm duas equipes de
atuando na reserva, cada uma com um médico, um dentista, um enfermeiro e alguns
auxiliares, que contam com a ajuda de agentes de saúde indígenas. Estas equipes atendem
apenas nos dois postos de saúde das aldeias Brejo do Mato Fome e Sumaré.
Considerando que se trata de uma população em torno de sete mil indivíduos,
distribuídos em vinte e três aldeias, que distam umas das outras até 39 km, é fácil concluir
que o atendimento ainda é deficiente. Há uma grande necessidade de trabalho preventivo e
de conscientização da população em questões básicas de saúde. Com exceção de algumas
poucas aldeias, não há qualquer saneamento básico nestes vilarejos onde se concentram
uma média de trezentas pessoas. Somente neste ano de 2002 a FUNAI iniciou a construção
de banheiros para cada residência, pois até então nem isto existia. Desta forma, é muito
fácil contrair e transmitir doenças, principalmente na população infantil.
2.1.5.2. TRANSPORTE
O meio de transporte mais comumente usado pela população são cavalos, mas em
casos de doença pode se tornar inviável. A FUNAI e FUNASA não dispõem de veículos
suficientes para atender todas as aldeias e por isto, muitas pessoas deixam de ser assistidas
pelas equipes de saúde. A estrada que leva à aldeia Brejo do Mata Fome, que é a porta de
entrada para as demais é bem conservada, mas o mesmo não acontece com a maioria.
Existem aldeias de difícil acesso e por isto, acabam ficando sem assistência. Um melhor
cuidado das estradas e ao menos duas linhas de ônibus ligando São João das Missões às
duas aldeias mais distantes já ajudaria em muito.
2.1.5.3. ANALFABETISMO
Há vinte e duas escolas instaladas e em pleno funcionamento, com mais de cem
professores formados pelo UHITUP – Projeto de Formação de Professores Indígenas, no
Parque Estadual do Rio Doce. Toda uma geração está crescendo alfabetizada e recebendo
formação escolar. Entretanto, este projeto não contemplou os adultos analfabetos, que no
caso dos Xacriabá deve superar 90% da população adulta. Como mantêm um constante
contato com a civilização externa, o analfabetismo se torna um fator depreciativo.
2.1.5.4. A SECA
Com um clima tropical de savana, a longa estação seca que geralmente se estende
de abril a setembro, é um fator complicador na produção não apenas indígena mas de toda
Minas Indígena 57
a população regional. Há poucos rios perenes dentro do território, o que está intimamente
vinculado a esta característica climática. Esta carência de rios, juntamente com a baixa taxa
de umidade, limita o seu solo, que apesar de tudo é fértil. Apesar de serem originalmente
caçadores e coletores, hoje esta prática foi quase totalmente abandonada. Seus meios de
subsistência estão na agricultura e pecuária, com a criação de bovinos. Segundo o cacique
Rodrigão, há cerca de cinco mil bovinos dentro da reserva. Com a seca, ambos
seguimentos ficam prejudicados, obrigando muitos dos jovens Xacriabá a saírem, ainda
que temporariamente, para regiões como Mato Grosso e São Paulo em busca de trabalho.
2.1.6. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA
Em todas as listas de agências missionárias34 os Xacriabá estão classificados entre
os grupos indígenas não-alcançados, sem presença de missionários e igrejas. Entretanto,
constatamos a presença de três denominações evangélicas entre os Xacriabá, em pelo
menos treze aldeias, somando cerca de cento e oitenta evangélicos. Nenhuma delas foi
fundada por missionários formais, mas por cristãos “leigos” de cidadelas vizinhas, como
Manga, Itacarambi e a própria São João das Missões.
2.1.6.1. CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL
A partir de um trabalho em São João das Missões, irmãos voluntários da
Congregação Cristã no Brasil começaram a evangelizar os indígenas resultando em várias
conversões. O trabalho teve continuidade e hoje somam cerca de noventa pessoas em oito
aldeias diferentes, sendo assistidas por um obreiro voluntário, indígena, chamado Hélio, do
vilarejo de Rancharia. Extremamente fechados, se recusam a dar informações sobre o
trabalho. O Hélio é um jovem senhor muito simples, reservado, semi-analfabeto, radical
nas suas convicções cristãs, mas sem sombra de dúvida homem consagrado a Deus, que
paga um alto preço para atender ao trabalho nestas oito aldeias sob sua responsabilidade.
Não possuindo automóvel, percorre as aldeias de bicicleta, subindo e descendo morros, em
estradas com péssimo estado, sob uma temperatura geralmente elevada.
Com alguns convertidos na aldeia Brejo do Mata Fome, os Cristãos no Brasil têm a
simpatia do cacique Rodrigão, que não coloca obstáculos para a evangelização, proibindo
apenas a construção de templos dentro do território, proibição esta que na verdade não
parte do cacique e sim da FUNAI35. Desta forma, os convertidos desta igreja decidiram
34
35
Inclusive da AMTB – Associação de Missões Transculturais Brasileiras, que é atualizada a cada dois anos.
Interessante é que na referida aldeia existe um grande templo católico.
Minas Indígena 58
construir um salão anexado à residência de um dos seus membros, sem placa de
identificação, para ser ali seu local de reuniões. Enquanto isto não acontece, continuam se
reunindo de casa em casa.
2.1.6.2. IGREJA PENTECOSTAL DEUS É AMOR
Inicialmente sob a responsabilidade da sua sede na cidade de Manga, a Igreja Deus
é Amor iniciou um trabalho em algumas aldeias contando hoje com cerca de sessenta
convertidos, sendo agora atendidos pelo obreiro da cidade de Itacarambi. Uma igreja
pentecostal da cidade de São João das Missões chamada Alfa e Ômega também iniciou um
pequeno trabalho na reserva, mas não puderam dar continuidade e seus membros se
transferiram para a Deus é Amor. Muito fechados, se recusam a dar maiores informações.
2.1.6.3. IGREJA ASSEMBLÉIA DE DEUS
Sob a responsabilidade da sede em Manga, obreiros da Assembléia de Deus
iniciaram um trabalho em duas aldeias, há cerca de quatro anos, contando hoje com trinta e
dois membros. Em cada aldeia ordenaram um diácono para liderar o trabalho, ambos
pessoas simples e semi-analfabetas, mas de liderança, sendo supervisionados por um
presbítero de Manga que dá assistência ao trabalho todas quintas-feiras36.
Proibidos pela FUNAI de construir templo dentro da reserva, construíram um
pequeno salão na outra margem do rio, fora do território indígena, mas perto das duas
aldeias. Desta forma, os membros precisam apenas atravessar o rio para participar das
reuniões que acontecem sempre aos domingos, terças, quartas e quintas-feiras.
2.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS
Apesar dos cento e oitenta crentes Xacriabá representarem 2,5% da população total,
as três igrejas ali plantadas estão longe de apresentarem sinais de autoctonia 37, e portanto,
continua sendo necessário e urgente trabalhos missionários entre este povo. Aquelas igrejas
não possuem liderança própria, baixíssimo nível de conhecimento bíblico e sua prática
evangelística é ainda deficiente, sendo o trabalho voltado mais para curas e libertação. Um
36
37
Em entrevista com o Pr. Édson Campos, no dia 10/04/02.
Segundo o princípio dos três autos: auto-governante, auto-sustentável e auto-propagável.
Minas Indígena 59
trabalho de ensino e discipulado, com incentivo à evangelização, seria o ideal nestas
igrejas já plantadas, mas dificilmente alguma delas aceitaria a cooperação de um obreiro de
outra denominação. Como pelo menos dez aldeias ainda não têm qualquer trabalho
evangélico, parece estratégico direcionar esforços inicialmente a estas.
Vale considerar que as portas para a evangelização dos Xacriabá estão abertas,
devido a alguns fatos. Primeiro, antropólogos não têm tanto interesse neste povo devido a
sua forte descaracterização cultural, o que é um fator facilitador pois são eles quem mais se
opõem ao trabalho missionário. Segundo, por se tratar de um povo numericamente
expressivo, tendo uma liderança forte e autônoma, a voz da FUNAI não é tão decisiva
como em outros grupos, apesar de exercer influência. Logo, adquirindo a confiança e
amizade da liderança, o obreiro teria passe livre para atuar. Terceiro, como todos são
falantes do português e naturalmente receptivos, as barreiras são minimizadas.
2.2.1. CENTROS ESTRATÉGICOS
Sendo a permanência dentro da reserva proibida, três pequenas cidades se tornam
estratégicas para uma abordagem missionária. São João das Missões é a mais estratégica,
por se tratar do próprio município e ser a mais próxima da entrada principal. Entretanto,
para atender as aldeias do norte ou sul da reserva, as cidades de Manga e Itacarambi seriam
respectivamente estratégicas. Vale ressaltar que se trata de cidades pequenas e com poucos
recursos.
2.2.2. A QUESTÃO SINCRETISTA
Faz-se necessário uma séria análise fenomenológica da religiosidade Xacriabá, bem
como um profundo estudo da sua cosmologia para uma abordagem missionária relevante.
É evidente que o catolicismo que professam foi assimilado a partir de uma base animista
que até hoje é profundamente arraigada na sua cosmovisão. É preciso descer ao nível dos
significados para uma correta leitura das diversas formas da sua religiosidade. A figura de
Yayá parece estar intimamente relacionada com sua história de sofrimento, causada pela
intrusão da sociedade externa com a chegada dos colonizadores. Tudo gira em torno do
sofrimento do povo e da sua resistência. Logo, uma teologia de sofrimento é de
necessidade primária no processo de plantio de igrejas neste povo. Casos de possessão são
muito comuns em toda a tribo, dado a este íntimo relacionamento dos mesmos com o
mundo dos espíritos o que, consequentemente, torna necessária uma sólida teologia do
Espírito Santo. É preciso considerar também, que o fato deles não terem preservado o
Minas Indígena 60
nome de um ser criador não significa necessariamente que tenham assimilado corretamente
o conceito da pessoa de Deus, pregado pelos cristãos. É provável que a figura de Deus
tenha também sido assimilada a partir desta base animista e daí não conceberem a idéia de
um relacionamento direto com Ele, optando por Yayá. Um estudo do que eles entendem da
pessoa de Deus pode ser muito importante para o processo de evangelização.
2.2.3. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS
Apesar da existência de três denominações entre eles, apenas a Assembléia de Deus
pode estar aberta a um trabalho em parceria. Uma possibilidade viável de integração seria
com a Igreja Congregacional presente tanto em São João das Missões como em Itacarambi,
mas esta possui poucos recursos financeiros e humanos. Em Manga, o ideal seria com a
Assembléia de Deus, filiada à Convenção Mineira, com sua sede em Belo Horizonte, que
certamente tem interesse em um trabalho mais arrojado entre indígenas.
O principal centro urbano da região é a cidade de Januária, onde existem igrejas
bem mais estruturadas, mas fica um pouco distante. Outros centros urbanos seriam as
cidades de Janaúba e Montes Claros, mas ficam ainda mais longe.
2.2.4. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS
Apesar das sugestões aqui apresentadas pressuporem o trabalho de bi-ocupacionais,
o trabalho exclusivo de plantio de igrejas não está em hipótese alguma excluído. Estas
sugestões se justificam principalmente pelas constantes restrições que missionários de
carreira têm enfrentado em campos diversos, mas pode não ser o caso dos Xacriabá.
2.2.4.1. SAÚDE
Mesmo com duas equipes da FUNASA já atuando na reserva, há lugar para
profissionais na área de saúde, principalmente preventiva. De médicos a enfermeiros, todos
seriam bem vindos pelo povo e a FUNAI certamente não faria oposição, principalmente se
atuassem nas aldeias mais distantes. Atualmente há um enfermeiro da Igreja Batista de
Montes Claros que, compondo uma das equipes de saúde, tem pregado o evangelho com
vigor para muitos indígenas, sem enfrentar qualquer resistência. Ele não tem interesse,
entretanto, de plantar uma igreja, ou mesmo de se envolver formalmente com um projeto
Minas Indígena 61
missionário, mas sua atuação tem sido uma benção para aquele povo, para as igrejas já
existentes e uma prova de que um trabalho nesta área seria muito estratégico e viável.
2.2.4.2. ALFABETIZAÇÃO
Mesmo necessitando de professores de ensino médio, somente educadores índios são
aceitos na escola indígena (Dutra, 1998.38). Entretanto, um projeto de alfabetização de
adultos certamente seria visto com bons olhos pela liderança indígena, pois em muito
contribuiria ao desenvolvimento do povo.
2.2.4.3. AGROPECUÁRIA
Como já visto, os Xacriabá produzem a maioria dos produtos alimentícios que
necessitam para sua subsistência, bem como possuem um considerável rebanho bovino.
Como o mercado regional não é tão forte e eles não têm prática de comércio, preferem
circular seus produtos entre si na base da troca, sem relações monetárias. Isto é muito
positivo pois preserva elementos básicos da sua organização social38. Entretanto, tanto eles
como o seu território tem capacidade de produzir muito mais e até de adquirir total
independência da sociedade externa nos seus produtos alimentícios básicos. O que lhes
falta são técnicas mais modernas das quais mesmo a maioria dos produtores regionais são
privados, por se tratar de uma região bastante isolada e sofrida.
38
Paraíso (1987.33) aponta três principais fatos que distinguem o seu sistema de produção dos demais
agricultores regionais: “a posse comunal da terra, a ausência de relações monetárias entre os membros da
comunidade ou mesmo com o órgão assistencial, e um sistema de convivência que não se baseia na
competição, mas na solidariedade”.
Minas Indígena 62
3. OS MAXAKALI
Meu pai contou pra mim. Eu vou contar pro meu filho.
Ele conta pro filho dele. É assim: ninguém esquece.”
Kelé Maxakali39
3.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL
De todos os grupos indígenas de Minas, os Maxakali são os que mais preservaram a
cultura, dado a sua forte resistência à civilização externa. Eles estão entre os mais
resistentes do leste brasileiro, pois com o processo de colonização, “apenas quatro povos
desta região conseguiram conservar suas línguas e suas culturas: os Fulni-ô em
Pernambuco, os Maxakali em Minas Gerais, os Xokleng em Santa Catarina e os Guarani
que migram pelas regiões litorâneas do sul e sudeste” (Casas, 2002.Internet).
Mesmo estando em contato direto com a civilização externa há mais de duzentos e
cinqüenta anos, sua estrutura social, cultura e língua permanecem vivas e
caracteristicamente tribais. Obviamente, muito da cultura externa foi introduzido no seu
contexto sociocultural, mas não o suficiente para comprometer sua identidade étnica.
3.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA
Sua história cultural registra muitos reveses, envolvendo guerras inter-tribais,
perseguições, massacres, epidemias, fugas. Para resistir a estas ameaças, tiveram que se
unir a outros grupos, acontecendo assim uma miscigenação étnica. Mas hoje os Maxakali
formam uma etnia forte, resistente e muito consciente da sua indianidade.
3.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA
Os remanescentes Maxakali parecem não ser etnicamente um único grupo definido,
mas sim o resultado da união de vários grupos minoritários que se articularam
politicamente como aliados, se aldeando em conjunto com fins de formarem uma maior
39
Em CEDEFES (1987.5).
Minas Indígena 63
resistência aos invasores das suas terras, principalmente a partir de 1808 quando ocorreu a
invasão sistemática de seus territórios e se ampliaram os conflitos com outros grupos
étnicos, particularmente com os Botocudos.
O termo Maxakali é uma palavra de língua desconhecida mas que aparentemente
indica exatamente esta união de vários grupos. Por esta razão há divergência quanto a
autodenominação do grupo: Monacó bm – Nimuendajú40 (1958.54); Kumanaxú – Joaquim
Souza, antigo chefe de posto (Paraíso41, 1999.Internet); Tikmã-ãn – Alvares42 (1995.91);
mas tudo indica que Frances Popovich43 (1994.15) tem razão quando registra Tikmü’ün
como o termo que adotam para si mesmos.
3.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA
Parece que os Maxakali faziam parte da confederação étnica chamada Naknenuk
composta pelos Pataxó, Manoxó ou Amixakori, Kumanaxó, Kutatói, Malali, Makoni,
Kopoxó, Kutaxó e Pañâme, que se opunha principalmente aos Botocudos (Paraíso,
1999.Internet). Como a maioria destes grupos foram extintos, hoje a família Maxakali é
formada apenas pelos próprios Maxakali, Pataxó e Pataxó Hã-hã-hãe (Rodrigues, 1994.56).
3.1.1.3. TRONCO LINGÜÍSTICO
Segundo Popovich (1994.15) e Aryon Rodrigues (1994.56), pertencem ao tronco
Macro-Jê, família Maxakali e língua Maxakali.
3.1.1.4. CLASSIFICAÇÕES ETNOLÓGICAS
3.1.1.4.1. QUANTO A HABITAÇÃO
Nimuendajú (1954.59) se referiu às famílias Maxakali como sendo “pelo menos
predominantemente patrilocais” e tem razão quando diz “predominante”, pois segundo
Popovich (1994.25) quando do casamento o casal vai morar “com os pais da noiva até o
primeiro bebê deles poder sentar-se sozinho, ocasião quando deveriam construir sua
própria casa”, geralmente perto da casa dos pais do noivo. A índia Maria Diva explica que
40
Nimuendajú esteve entre os Maxakali em 1939, colhendo dados que foram encaminhados ao SPI. Suas
observações se tornaram o primeiro documento antropológico escrito sobre eles.
41
A Dra. Paraíso é uma profunda conhecedora da história Maxakali, visto ter desenvolvido sua dissertação de
mestrado sobre grupos indígenas incluindo os Maxakali.
42
A Dra. Alvares esteve por dois períodos morando nas aldeias Maxakali e apresentou dissertação de
mestrado sobre a referida tribo na UNICAMP.
43
Sem dúvida alguma, a Dra. Frances é a maior conhecedora da língua e cultura Maxakali, pois com eles
morou de 1959 a 1981, estudando sua cultura e traduzindo o Novo Testamento para sua língua.
Minas Indígena 64
isto se dá “porque até nascer o primeiro filho, a mulher ainda não tem juízo para cuidar
sozinha de filhos44”.
Lançando mão das clássicas definições de Peter Mudock (Guiart, 1973.32), quanto
às classificações residenciais, pode-se dizer que os Maxakali estão se movendo de
matripatrilocais intermediários transitórios45, para neolocais46.
3.1.1.4.2. QUANTO À DESCENDÊNCIA
Nimuendajú (1954.59), corretamente classificou suas famílias como “patrilineares”,
sendo assim os filhos pertencentes à família do pai e a transmissão de toda categoria de
bens é feita através dos homens.
3.1.1.4.3. QUANTO AO CASAMENTO
“O casamento entre primos cruzados matrilaterais47 é o ideal” (Popovich, 1994.38),
embora, em épocas de crise tem acontecido casamentos com primos cruzados patrilaterais
e outros. É considerado por eles como um processo e não um ato realizado num momento
certo, não havendo assim ritual nem comemoração48. Neste processo há um namoro
discreto e uma negociação também discreta. Ao que parece, o casamento se efetiva ao
nascer o primeiro filho. As meninas geralmente se casam aos doze ou treze anos e os
rapazes, quando são cinco ou sete anos mais velhos que elas (Popovich, 1994.29,53).
3.1.1.5. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA
Os remanescentes Maxakali vivem hoje em duas aldeias – Água Boa e Pradinho –
unificadas na Terra Indígena Maxakali, com uma área de 5.293,13 ha. no Vale do Mucuri,
nos municípios mineiros de Bertópolis e Santa Helena de Minas, limítrofe com Bahia,
cercados pelos municípios de Umburatiba, Machacalis e Batinga, este último já no Estado
da Bahia. As duas aldeias distam 13 km uma da outra.
3.1.1.5.1. KÕNÃG MAI - ÁGUA BOA
44
Em entrevista do dia 07/02/02.
Residência na casa dos pais da mulher até que nasça o primeiro filho, depois na casa dos pais do marido.
46
Residência diferente e, às vezes, muito afastada da dos pais do marido e da mulher.
47
Ou seja, “entre a filha do irmão da mãe e o filho da irmã do pai” (Popovich, 1994.47), de acordo com o
Método Genealógico do inglês W. H. R. Rivers (Guiart, 1973.54).
48
Vale ressaltar aqui, que acontecem algumas exceções. Recentemente, a filha da índia Noêmia, líder de um
dos grupos residenciais de Água Boa, casou-se com vestido de noiva, aos moldes da civilização externa. Isto,
entretanto, não é comum.
45
Minas Indígena 65
A aldeia de Água Boa (Kõnãg Mai) está localizada há 12 km da cidadela de Santa
Helena de Minas, que por sua vez dista 24 km de Machacalis, e 240 km de Teófilo Otoni,
maior centro urbano da região. A estrada de acesso é razoavelmente boa.
As aldeias Maxakali são distribuídas em vários pequenos grupos residenciais,
variando o número de palhoças (miptut) onde vivem várias famílias, constantemente
passando por cisões que formam outros grupos. Em fevereiro de 2002 haviam na aldeia de
Água Boa dez grupos residenciais, espalhados numa extensão aproximada de 6 km, cada
um variando entre duas a dez palhoças, sendo identificados pelo nome da pessoa mais
influente do grupo - Totó (ao extremo oeste), Manoel Kelé, Joviel, Zezinho (ou Zé Pirão),
Edvaldo, Diva, Noêmia, Dimas (ao nordeste), Pinheiro e Bororó (ao extremo leste).
3.1.1.5.2. PANANIY - PRADINHO
A aldeia do Pradinho (Pananiy) está localizada há 13 km da pequena cidade de
Batinga e assim como Água Boa, está distribuída em grupos residenciais, pouco definidos
e constantemente em modificações, identificados pelo nome da pessoa mais influente do
grupo, com exceção de uma. Em fevereiro de 2002 haviam dez grupos – Milton, Guigui,
Amélio, Vicente, Dotor, Maroto, Marcelino, Israel, Marinho e Aldeia Nova.
3.1.2. DISTRIBUIÇÃO DEMOGRÁFICA
No último censo da FUNAI, realizado em 2001, os Maxakali somavam 970
indivíduos, sendo 514 na aldeia de Água Boa e 456 no Pradinho. Não há um percentual
exato, mas cerca de 60% da população é de jovens e crianças.
3.1.3. ÍNDICE DE COMUNICAÇÃO BILÍNGÜE
A língua Maxakali é falada por todos, sendo sua preservação algo notável. Apesar
do prolongado contato com a civilização externa, fazem questão de, entre eles, não usarem
o português, o que é uma exceção entre os povos do leste (Alves, 2000.49).
O português é compreendido pela maioria, mas falado por poucos, basicamente
pelos líderes, como professores e anciãos, principalmente no Pradinho onde o contato é
menor. Os que se arriscam na pronúncia, falam unicamente palavras esparsas e as mulheres
basicamente não falam o português, devido ao mesmo ser usado apenas para contatos com
a civilização externa, o que cabe quase que exclusivamente aos homens (Alvares,
1992.15).
Em “agosto de 1980, o governo iniciou um programa de educação bilíngüe com o
objetivo de diminuir as barreiras lingüísticas existentes entre a sociedade Maxakali e a
Minas Indígena 66
dominante” (Popovich, 1993.5), mas o interesse foi pequeno. Somente agora alguns jovens
têm se interessado e para atender a esta demanda, foi contratado um professor da referida
cidade que tem ido semanalmente até a aldeia para dar aulas de português. Desta forma, a
única possibilidade de comunicação efetiva é na própria língua.
3.1.4. SINAIS DE ANIMISMO
A religiosidade Maxakali é mais fortemente expressa pelo relacionamento
constante com as várias entidades espirituais que formam todo um panteão. Estes vários
seres sobrenaturais têm personalidade e exigências, inclusive alimentares, bastante
diferenciadas, o que exige não só sua identificação durante os rituais mas também o
conhecimento de como agradá-los para evitar que venham fazer mal à comunidade. Crêem
que os espíritos amigos ajudam a identificar os espíritos inimigos com quem estão lidando
(Paraíso, 1999.Internet). Para que haja um equilíbrio no relacionamento entre homens e
espíritos é que se faz necessário os vários rituais praticados por eles.
3.1.4.1. DANÇAS CERIMONIAIS
3.1.4.1.1. CURA
Os rituais de cura destinam-se às crianças, aos jovens e adultos, excetuando os
recém-nascidos – por não terem nomes ainda, e logo, não existirem socialmente
(Popovich, 1994.12) – e os velhos, que avançados em idade necessitam descansar (Paraíso,
1999.Internet). A doença é motivo de grandes traumas, pois é interpretada como uma
intervenção dos espíritos que capturam as almas das pessoas fazendo-as ficar doentes.
Consequentemente os rituais de cura visam restaurar o equilíbrio, agradando aos espíritos,
dos quais as mulheres são as presas mais fáceis (Alvares, 1995.21)
O ritual é comandado pelo líder do grupo que, acompanhado dos parentes, canta,
dança e pergunta em voz baixa ao doente qual o espírito que o atormenta e a este quais os
seus desejos que precisam ser satisfeitos. Cumprida essa etapa, os homens retiram-se para
a kuxex (casa da religião) para adotarem as medidas necessárias à continuidade dos
trabalhos. Tendo obtido todo o necessário, retornam junto ao jirau do doente, promovendo
nova sessão de cânticos e rezas e lançando grandes baforadas de fumo sobre o paciente. Os
espíritos são instados a se retirarem. Quando o cão da casa gane, é considerado que foi
estabelecido o contato com o espírito iniciando-se uma nova etapa do processo de cura: a
Minas Indígena 67
casa é deixada no escuro e usam-se os zunidores até novos ganidos do animal. Este é o
sinal indicativo da saída do espírito. Os responsáveis pelos rituais se retiram da casa, onde
as lamparinas voltam a ser acesas e a comida ofertada aos espíritos desaparece, sendo o
consumo atribuído aos homenageados (Paraíso, 1999.Internet). Enquanto os vivos estão
reunidos para recuperar a alma do doente, os mortos se reúnem para impedir que a alma
volte para o mundo dos vivos. Desta forma, “a doença é a relação indevida entre vivos e
mortos (...) O ritual de cura estabelece a ordem e reinstaura a separação entre os mundos,
só assim o doente se recupera” (Alvares, 1995.21).
3.1.4.1.2. APAZIGUAMENTO
Os rituais de apaziguamento acontecem em datas imprevisíveis e geralmente visam
solucionar eventuais crises sociais ou políticas. Quando os espíritos são por alguma coisa
ou por alguém ofendidos, faz-se necessário apaziguar a sua ira para que não venham
provocar males à comunidade como pestilências, calamidades ou mesmo catástrofes
dependendo do espírito ofendido. Neste caso a entidade ofendida exige as oferendas ou
caso isto não aconteça é preciso descobrir quais são os seus gostos para assim satisfazê-la.
De certa forma, todo ritual é de apaziguamento.
3.1.4.1.3. INICIAÇÃO
Os rituais de iniciação acontecem sempre que chega a época dos kutok (meninos)
serem recebidos na tribo como homens. Isto ocorre apenas com as crianças do sexo
masculino quando estes atingem a idade aproximada de sete anos49, que desde pequenos
têm acesso à kuxex onde além de aprenderem as atividades próprias do seu sexo, inclusive
os rituais, mantêm relações mais próximas com os homens.
Quando do ritual, o menino é conduzido para a kuxex e lá permanece por cerca de
trinta dias. O seu alimento é preparado pela mãe que passa para o seu introdutor na religião
– geralmente o pai ou tio – e este o leva para o menino. Durante este período o introdutor
transmite ao menino toda a história e os segredos da sua cultura, bem como cânticos, que
são ensinados pelos yãmiy. “Possuir Yãmiy é a condição para se atingir a maioridade
Maxakali. Os velhos dão aos seus filhos seus cantos e Yãmiy porque ‘não necessitam mais
deles’, ou seja, já se transformaram em pessoas completas” (Alvares, 1992.93). Findo o
período de trinta dias o menino é enfeitado com pinturas, colares e todos os ornamentos
49
Segundo Paraíso (1999.Internet) e Alvares (1992.97). Popovich (1994.29) fala de doze anos.
Minas Indígena 68
próprios dos homens, sai da Casa de Religião, toda a tribo festeja e a partir daí o menino é
considerado homem adulto, podendo participar de todos os rituais (Paraíso, 1999.Internet).
3.1.4.1.4. FUNERAIS
Os rituais fúnebres são marcados por muito choro e o corpo não é enterrado pelos
parentes, que permanecem na aldeia, mas sim pelos amigos, e isto o mais rápido possível,
pois deve acontecer antes do pôr-do-sol. Neste ínterim, “todo o grupo residencial deve
abandonar as casas e queimar completamente a casa do morto” (Popovich, 1993.21) e após
o sepultamento, “a família enlutada muda-se para a casa dos parentes mais próximos”
(Alvares, 1992.164). Caso a morte ocorra durante a noite, todo o grupo deverá ficar em
vigília, pois um espírito poderá se esconder no interior do corpo, transformando-o
posteriormente numa onça, atacando o grupo (Alvares, 1992.158), ou pode simplesmente
provocar doenças em outros.
3.1.4.1.5. COLHEITA
Sempre que os Maxakali colhem algum produto que demandou cultivo da terra, um
ritual é realizado em agradecimento aos espíritos, pois são eles quem “não permitem que a
safra se perca50”. Há danças, cânticos e oferendas ao espírito protetor da safra.
Todos estes rituais são praticados de forma coletiva e nos lugares sagrados. A
prática isolada de rituais por apenas um dos membros da comunidade, além de ser
considerada perigosa à sociedade é interpretada como prática de feitiçaria, o que
normalmente resulta na morte do acusado (Popovich, 1994.28). Para a realização de alguns
rituais eles pintam o corpo, põem mascaras e as mulheres devem acreditar que aqueles não
são os homens mas os espíritos. A maior parte do tempo não pronunciam palavras
inteligíveis, mas apenas gritos, e cantam chamando os espíritos.
3.1.4.2. ENTIDADES ESPIRITUAIS
Os Maxakali crêem que o mundo foi criado por Topa (Deus) o qual há muito tempo
atrás vivia entre os homens, mas, tendo se aborrecido retirou-se e enviou-lhes um grande
dilúvio, havendo variantes quanto ao número de sobreviventes – um homem ou um casal –
que deram origem ao povo Maxakali, e desde então Topa deixou de relacionar-se
50
Entrevista com Zezinho Maxakali, no dia 08/02/02.
Minas Indígena 69
diretamente com o homem51. Abaixo de Topa, existe um grande número de entidades com
as quais eles se relacionam no dia-a-dia.
3.1.4.2.1. YÃMIY
Os yãmiy são os “espíritos dos mortos” e detêm todo o conhecimento, seja do
sagrado ou não. São eles que trazem o conhecimento aos vivos, e idealmente, somente eles
sabem fazer os instrumentos musicais, os paus de religião (mimãnãm) as máscaras,
pinturas e até mesmo o arco e flecha de caça – nãptut (Alvares, 1992.96). Sempre que um
maxakali morre, seu espírito torna-se um yãmiy e passa a viver numa dimensão diferente,
porém, podendo a qualquer momento estabelecer contato com os vivos.
3.1.4.2.2. YÃMIYXOP
Os yãmiy estão ordenados em vários grupos – provavelmente doze ou quatorze –
chamados yãmiyxop52, que se subdividem em muitos subgrupos (Alvares, 1992.89). Os
vários yãmiy que compõem um yãmiyxop se personificam manifestando-se como uma
entidade e não como um grupo53. Desta forma, há o yãmiyxop do morcego, do gavião e
assim por diante. Nos rituais, são exatamente os yãmixop que se manifestam, e inclusive,
há objetos como varapaus e estacas destinadas especificamente a determinados yãmiyxop.
3.1.4.2.3. HÃMGÃYÃGÑAG
No topo dessa hierarquia encontra-se Hãmgãyãgñag, a alma finada individual,
soberana das forças do bem e do mal (Paraíso, 1999.Internet). Os Maxakali têm pavor
desta entidade e com ela não se relacionam diretamente. Segundo eles, Hãmgãyãgñag se
manifesta como uma onça feroz que vive na mata e devora as suas vítimas. A senhora Ana
Ribeiro, que com eles viveu muitos anos, chamada por eles de Xukux’An (avó Ana) relata54
que seu esposo, Milguezinho – “o amansador” – conversava diretamente com esta onça,
não podendo vê-la mas ouvindo-a em bom tom.
3.1.4.3. LUGARES E OBJETOS SAGRADOS
51
O principal mito acerca do surgimento dos Maxakali, relata o rompimento de “um pacto com Topa” e do
conseqüente castigo, em forma de um grande dilúvio (Soares, 1995), bem como o repovoamento da terra,
através de relações com uma corça (Alves, 1999.91). Ver anexo 01: 2.1. O dilúvio.
52
Yãmiy – “espírito do canto” – e xop – “grupo, bando”. Portanto, a idéia é de um grupo de espíritos.
Yãmiyxop é usado também para designar as cerimônias aos yãmiyxop.
53
Conversando com Zezinho Maxakali (08/02/02) sobre a Trindade Divina, ele usou a figura dos yãmiyxop
para exemplificar sua compreensão, dizendo que a Trindade é três em um só, assim como os yãmixop são
vários também em um só.
54
Em entrevista do dia 06/02/02.
Minas Indígena 70
3.1.4.3.1. KUXEX
A kuxex (casa de religião) é o local mais sagrado de toda aldeia ou grupo
residencial. Consiste em um simples rancho de forquilhas e coberto de capim, sem paredes
ou qualquer outro objeto no seu interior. Somente na kuxex os rituais podem ser realizados,
de forma coletiva e somente pessoas do sexo masculino têm acesso a ela, sendo
terminantemente proibido às mulheres entrarem neste recinto sagrado. Apesar de não haver
notícias de precedente histórico, todos são unânimes em afirmar, que se uma mulher entrar
na kuxex será sacrificada pelos homens que a espancarão até morrer, ou “adoecerá e
morrerá por castigo dos yãmiy”55. É nela que as oferendas aos yãmiy são depositadas.
São construídas pelos grupos residenciais, sendo que mais de um grupo pode se
reunir para os rituais na mesma kuxex. Depois disto, ficam abandonadas, sem qualquer
manutenção, e geralmente acabam desfeitas por ventos ou chuvas. Quando dos rituais, eles
então reformam ou constróem outra, enquanto também cantam e dançam.
3.1.4.3.2. MIMÃNÃM
Os mimãnãm (paus de religião) são varapaus ou troncos de madeira através dos
quais os yãmiyxop “descem” nos momentos dos rituais. Os maiores são pintados em uma
lateral com riscos e pontos, os quais indicam os cânticos e movimentos cerimoniais. São
fincados em frente a kuxex e, geralmente, existem três mimãnãm de tamanhos diferentes.
Um varapau de aproximadamente 8 metros de altura destinado ao Xunimkup – yãmiyxop
do morcego; dois troncos pequenos, com cerca de 1,5 metro de altura, sendo um destinado
ao Yãmigkup – yãmiyxop de mulher; e o outro destinado ao Mõgmokakup – yãmiyxop de
gavião. Quando mais de um grupo residencial se reúne numa mesma kuxex, são fincados
mimãnãm para cada grupo. Durante certos rituais eles penduram colares e outros objetos na
ponta dos mimãnãm, consagrando-os assim aos yãmiyxop. As vezes, galinhas vivas são
penduradas e os celebrantes lhes atiram flechas até ficarem completamente cravadas.
3.1.4.4. ESTUDO DE PODER SOCIAL
Culturalmente, os Maxakali não possuem caciques. Popovich (1993.27) comenta,
que “durante os vinte anos que tivemos contato com esse povo, não conseguimos descobrir
a palavra para ‘chefe’”. Assim, a liderança é exercida pela pessoa mais influente de cada
55
Como relata o missionário Adair Gomes, em correspondência pessoal de 23/04/02.
Minas Indígena 71
grupo residencial, podendo ser tanto homem como mulher. Na aldeia de Água Boa os dois
maiores grupos residenciais têm como líder mulheres – Maria Diva e Noêmia.
Entretanto, com as modificações que a sociedade vai enfrentando, novas categorias
começam a surgir. Dado à necessidade de representantes junto às autoridades externas, eles
têm elegido “caciques” que os representam. Com o advento da escola, os professores
também começam a exercer influência nos grupos residenciais e em toda a aldeia.
Um fato interessante é que os Maxakali se distinguem da maioria das tribos
indígenas quanto ao papel do pajé. Na verdade pode-se dizer que os Maxakali não possuem
pajés, pois crêem que cada homem nasce com poderes religiosos. O que eles têm são
anciãos que se destacam na tribo pela sua experiência nos rituais – de cura principalmente
– e, ademais, o cacique acumula deveres políticos e religiosos (Paraíso, 1999.Internet).
3.1.5. PROBLEMAS SOCIAIS
3.1.5.1. SOBREVIVÊNCIA
A sobrevivência étnica dos Maxakali esteve seriamente ameaçada chegando a
correrem risco de extinção. Eles são típica e culturalmente caçadores, pescadores e
coletores, tendo a terra como algo sagrado. O principal alvo dos colonizadores era
exatamente suas terras, e quando estas lhes foram tomadas, ficaram durante décadas sem a
sua fonte de subsistência. As duas aldeias onde por muitos anos foram confinados não
eram suficientes para a sobrevivência de quase mil índios, além do que os fazendeiros
invasores desmataram toda a região, fazendo dos bosques pastos para bovinos. Isto acabou
com a caça, coleta e minguou os rios quase totalmente. Foram impedidos pelos fazendeiros
de até mesmo banharem-se nos seus rios. O principal rio da reserva é o Umburaninha, e
durante o período de invasão esteve sob o domínio dos fazendeiros. Sem onde caçar,
coletar e pescar, os Maxakali se tornaram muito sedentários enfrentando por muitos anos
uma difícil luta pela sobrevivência. Suas alternativas eram portanto arrebatar animais dos
vizinhos “brancos” ou sair às cidades da região pedindo ajuda. Às margens das rodovias
em direção às cidades de Governador Valadares, Teófilo Otoni e outras, muitos índios
morreram assassinados, atropelados e mesmo por excesso de álcool. Hoje, de posse
novamente das suas terras este problema pode deixar de existir, mas será necessário um
longo processo de reeducação étnica e reflorestamento da reserva.
Atualmente, sobrevivem dos poucos produtos que cultivam, da comercialização –
desvalorizada – de alguns destes produtos e artesanatos, doações da FUNAI e do salário
Minas Indígena 72
dos professores e aposentados que serve para alimentar não apenas a família dos
beneficiados, mas também parte do grupo residencial.
3.1.5.2. ALCOOLISMO
O alcoolismo, entretanto, parece ser o maior problema enfrentado pelos Maxakali.
Os colonizadores e exploradores regionais introduziram a cachaça ao dia-a-dia Maxakali,
usando-a como produto de troca pelo seu trabalho, terra, bens e até mulheres (Amorim,
1966.23). O resultado disto é que a população indígena quase toda se tornou alcoólatra, e
isto há mais de cinqüenta anos, sendo portanto toda a atual geração fortemente influenciada
por este distúrbio social (Torretta, 1997.3).
Como já dito, os Maxakali são fortemente resistentes à influência cultural externa.
Entretanto, apesar de toda resistência cultural, eles acabaram se curvando ao alcoolismo.
Dos mais velhos às crianças, quase todos se embriagam. É comum encontrá-los pelas ruas
das cidades vizinhas ou mesmo estradas, cambaleando por excesso de álcool. Vários já
morreram de coma alcóolico ou por insolação, e até crianças já foram atendidas com
problemas de alcoolismo. Quando bebem se tornam agressivos e por isto é comum ver
brigas principalmente entre casais. A missionária-enfermeira Marlene Martins, relata
vários casos de ferimentos conseqüentes de brigas quando alcoolizados56. A dependência
chegou a um estágio tão sério que, por não terem dinheiro para comprar cachaça, a
substituem por álcool puro, acetona, éter ou desodorante. O pouco dinheiro que às vezes
adquirem é gasto quase todo com bebida (Abdala, 1998.53).
3.1.6. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA
Os Maxakali estão em contato com o evangelho e missionários evangélicos há
quarenta e três anos, mas ainda não há uma igreja plantada em seu meio. Alguns
missionários já trabalharam entre eles, outros trabalham até hoje.
3.1.6.1. HAROLD E FRANCES POPOVICH - SIL
Americanos, vieram para o Brasil através da SIL – Sociedade Internacional de
Lingüística, e “em fevereiro de 1959” começaram “a morar e trabalhar entre os índios
Maxakali” (Popovich, 1993.5), onde permaneceram bravamente até 1981, e depois
continuaram ainda por vários anos visitando as aldeias esporadicamente. Neste período de
vinte e dois anos, analisaram a língua foneticamente, grafaram, criaram quatro cartilhas de
56
Em entrevista do dia 06/02/02.
Minas Indígena 73
alfabetização e iniciaram o processo de alfabetização, apesar de, segundo o próprio Harold
(Antunes, 1999.ii) “somente uma meia dúzia deles aprendeu a ler e escrever”. Entretanto,
o maior legado dos Popovich foi o Novo Testamento traduzido para a língua Maxakali,
dedicado em 1981. Não deixaram igreja plantada.
3.1.6.2. RONALDO E KÁTIA LIMA - MNTB
Após alguns anos trabalhando com os Zoé no Pará e depois com os Pankararu em
Pernambuco, Ronaldo casa-se com a Kátia, vindo trabalhar como casal com os Maxakali,
em março de 1992, e um mês depois, formou equipe com o casal Adair e Zilene Gomes da
mesma Missão. Ele é o responsável pela tradução e ela pela elaboração de um dicionário57.
3.1.6.3. ADAIR E ZILENE GOMES - MNTB
Após concluírem instituto bíblico e lingüístico da MNTB – Missão Novas Tribos
do Brasil, formou equipe com o casal Ronaldo e Kátia Lima, em abril 1992, apenas um
mês após a chegada destes. Ele é responsável pela coleta de dados culturais e ela pela
análise e descrição da cultura58.
Com visão específica de plantar igrejas, os dois casais foram introduzidos e
apresentados à tribo pelo próprio Harold e iniciaram o aprendizado da língua e cultura.
Usando como método de evangelismo as lições sugeridas pelo livro “Alicerces Firmes” da
própria MNTB, iniciaram a tradução das mesmas e até fevereiro de 2002 haviam traduzido
35 das 68 lições. Iniciaram efetivamente o processo de evangelismo através do estudo
destas lições em meados de 2000. Residindo em Batinga, na Bahia, concentraram seus
esforços primeiramente na aldeia do Pradinho, mas, recentemente, voltaram seus esforços
para a aldeia de Água Boa, dista 27 km de Batinga.
3.1.6.4. MARLENE MARTINS – Missão Emanuel
Enfermeira técnica, começou a trabalhar com os Maxakali em dezembro de 1999,
através da Missão Emanuel de Governador Valadares e da Terceira Igreja Presbiteriana de
Belo Horizonte. Aceita como enfermeira voluntária pela FUNASA, iniciou seu trabalho
como profissional da saúde numa época quando ainda não havia uma equipe de saúde junto
aos Maxakali, trabalhando assim sozinha, na aldeia de Água Boa, a partir da cidade de
Santa Helena de Minas, onde reside. Mesmo sendo jovem e solteira, logo adquiriu respeito
e amizade da parte dos indígenas, tornando-se muito querida por todos eles. Sua visão é
57
58
Conforme entrevista do dia 09/02/02.
Conforme entrevista do dia 09/02/02.
Minas Indígena 74
discipular alguns dos líderes, para que estes evangelizem aos demais, mas dado aos muitos
afazeres, seu trabalho tem se limitado quase que somente à área de saúde, testemunhando
do evangelho nas oportunidades que surgem. Por não falar a língua, sua comunicação se
limita aos que entendem o português.
3.1.6.5. JOÃO MARIA SILVA - AD
Foi enviado pela Igreja Assembléia de Deus de Belo Horizonte para trabalhar com
os Maxakali de Água Boa, em agosto de 1999. Fixando residência também em Santa
Helena de Minas e posteriormente em Machacalis, lá permaneceu até julho de 2001.
Visitando a aldeia diariamente e depois semanalmente, seu trabalho consistiu em visitas às
várias famílias testificando do evangelho em português, pois não aprendeu a língua.
Também não presenciou conversões59.
3.1.6.6. AGUSTINHO E NELICE CIPRIANO – Missão Horizontes
Tendo se preparado no Instituto Bíblico Cades-Barneia, dos Terena, o casal
Agustinho (Aguigu) e Nelice Cipriano foi enviado em maio de 2002, numa parceria de
igrejas Presbiterianas e Assembléias de Deus, mediada pela Missão Horizontes. É o mais
recente esforço missionário junto aos Maxakali. Ele é índio Makuxi, o que tem causado
impacto na tribo. Residindo em Santa Helena de Minas, seu trabalho tem sido evangelizar
os Maxakali na cidade, pois não obteve permissão para atuar na aldeia, mas ainda assim
tem obtido bons resultados60.
3.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS
Existem várias possibilidades de abordagem missionária junto aos Maxakali, sendo
prudente, entretanto, trabalhar em parceria com os missionários que já atuam entre eles.
3.2.1. LÍNGUA A SER UTILIZADA
Como eles preservaram e falam entre eles somente sua própria língua, numa
abordagem missionária faz-se necessário o uso da língua Maxakali. Primeiro, somente
falando Maxakali é possível comunicar-se com todos e, segundo, somente na sua língua
eles conseguirão compreender as verdades mais profundas do evangelho.
59
60
Conforme entrevista do dia 20/01/02.
Em correspondência pessoal (18/10/02) do missionário José Vicente, da Missão Horizontes.
Minas Indígena 75
3.2.2. CENTROS ESTRATÉGICOS
Como tem sido já usado pelos missionários lá presentes, os dois centros mais
estratégicos para o trabalho entre eles, já que a FUNAI não permite que missionários fixem
residência nas aldeias, são Santa Helena de Minas, a 12 km da aldeia de Água Boa, e
Batinga (BA) a 13 km da aldeia do Pradinho. Há estradas razoavelmente boas.
3.2.3. A QUESTÃO ANIMISTA
Como os Maxakali preservam com vivacidade seus valores animistas, numa
abordagem missionária faz-se necessário muita atenção à questão dos significados de
conceitos e fenômenos, bem como da função cultural dos mesmos. Haverá sempre um
risco deles entenderem o evangelho ou alguns conceitos cristãos à luz dos seus conceitos
animistas, gerando assim um sincretismo religioso, infelizmente comum em muitos grupos
tribais que receberam o evangelho.
Faz-se necessário um estudo mais profundo da cosmologia Maxakali, pois a mesma
é bastante complexa. O natural e o sobrenatural se confundem, não sendo claramente
distinguidos. As entidades espirituais são tão reais quanto as pessoas e objetos, daí o
convívio constante com elas. Seus tabus e costumes, partem do lendário para o cotidiano,
sendo justificados e instituídos através de mitos sobre ocorrências com seus ancestrais. Um
ponto que pode ser explorado na abordagem cosmológica, é a questão do surgimento do
homem. Há vários mitos sobre o inicial relacionamento do homem com Topa e o
afastamento do mesmo quando do rompimento de “um pacto”, com um conseqüente
castigo, em forma de um grande dilúvio (Soares, 1995.1), havendo variantes quanto ao
número de sobreviventes que deram origem ao povo Maxakali, repovoando a terra através
de relações com uma corça (Alves, 1999.91). Já os “brancos” seriam “descendentes das
cinzas de um monstro lendário, o ‘înmõxa” (Popovich, 1993.25). Entretanto, todos estes
mitos partem do pressuposto da já existência de pessoas, não havendo assim, um mito
sobre o surgimento do primeiro homem. Por várias vezes, este pesquisador levantou tal
questionamento e a reação dos anciãos foi titubeante, confessando não terem uma resposta.
Ao que parece, a principal razão da indiferença deles em relação ao Evangelho, é
porque vêem Jesus como o “Topa dos brancos61” e consequentemente, a Bíblia é a Palavra
do “Topa dos brancos” e assim por diante. Como a história da criação de Adão e Eva já foi
introduzida ao conhecimento dos mesmos através do Popovichs, há fortes possibilidades
61
Em entrevista com Zezinho Maxakali, no dia 08/02/02.
Minas Indígena 76
deles aceitarem esta história como a real, se feito uma eficiente abordagem. Isto
acontecendo, a idéia de “Topa dos Maxakali” e “Topa dos brancos” serem entidades
diferentes, pode mudar, já que se dará a ambas raças uma mesma origem. Em conversa
com cinco dos principais anciãos Maxakali, este pesquisador levantou esta questão e todos
concordaram que poderia ser uma possibilidade real.
3.2.4. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS
Em ambos centros estratégicos, há igrejas que poderiam se tornar parceiras tanto de
um trabalho missionário entre os Maxakali, como de uma futura igreja indígena.
Entretanto, todas são igrejas pequenas, com recursos limitados e pouca visão missionária,
sendo assim necessário que se faça um trabalho de conscientização e treinamento com
estas igrejas. Em Santa Helena de Minas há um pequeno trabalho da Igreja Presbiteriana
do Brasil, onde a missionária Marlene Martins congrega, que seria uma possibilidade. Está
presente também a Igreja Assembléia de Deus. Outra possibilidade seria com a Igreja
Batista de Batinga (BA), pois a mesma foi quase que fundada e hoje pastoreada pelo
próprio missionário Ronaldo Lima e equipe. Trata-se, entretanto, de uma pequena
comunidade, com poucos recursos financeiros, humanos e mesmo logísticos para tal
empreendimento. Ainda em Batinga, está presente também a Igreja Assembléia de Deus.
Entretanto, tais possibilidades seriam de parceria ou apoio missionário pois, dado à
preservação cultural por parte dos Maxakali, seria inviável congrega-los numa mesma
igreja com pessoas da civilização externa.
3.2.5. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS
Dado as muitas restrições por parte da FUNAI e de antropólogos, trabalhos de
cunho bi-ocupacional seriam os mais viáveis. Entretanto, não se pode descartar a idéia de
projetos específicos de plantio de igreja, por exemplo. O que segue são apenas algumas
sugestões de projetos que poderiam ser conciliados com uma abordagem missionária, mas,
certamente, existem outras possibilidades.
3.2.5.1. SAÚDE
Minas Indígena 77
Mesmo já existindo uma equipe de saúde e um trabalho missionário nesta área,
ainda há necessidade de profissionais de saúde, principalmente na aldeia do Pradinho, onde
o atendimento é mais precário. Médicos, dentistas e enfermeiros, com certeza seriam bemvindos, tanto pelos índios como pela FUNAI.
3.2.5.2. EDUCAÇÃO
Com a crescente necessidade que os jovens têm sentido de aprender o português,
necessidade esta que tende a aumentar, professores de português também seriam bemvindos, podendo trabalhar como voluntários nas aldeias dando aulas para jovens e adultos.
3.2.5.3. REFLORESTAMENTO
Algo que eles precisam com urgência é um processo de reflorestamento do
território, quase totalmente transformado em pasto para bovinos. Profissionais nesta área
poderiam entrar com um projeto de reflorestamento do território, envolvendo o
treinamento de índios para fazer o trabalho.
3.2.5.4. AGRICULTURA
Apesar de já cultivar a terra e tentarem comercializar alguns produtos, eles não têm
acesso às técnicas e opções que vão surgindo no mercado. Esta é uma das razões porque
seus produtos são desvalorizados e às vezes até menosprezados pela população regional.
Um profissional na área poderia dar-lhes uma grande contribuição, dando condições para
oferecerem produtos mais competitivos
3.2.5.5. PECUÁRIA
Ultimamente eles têm mostrado interesse em criar bovinos, pois assim teriam leite
e às vezes carne. Já solicitaram à FUNAI e ao CIMI doações de bovinos, entretanto, da
mesma forma que na agricultura, não possuem conhecimento da pecuária, pois nunca
criaram animais, além de incipientemente porcos e galinhas. Dado a extensão do seu
território, seria possível criar não apenas bois, mas também carneiros e cabras.
Minas Indígena 78
4. OS KRENAK
Queremos sonhar livremente, sem cercas, sem solitárias, sem policiais, descer e
subir de bote pelo Watu, recolhendo os peixes das armadilhas, sem medo de
tocaias. Suas águas um dia estarão limpas porque os brasileiros também
despertarão para proteger nossa fonte comum de vida!
Marcos Krenak62
4.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL
Marcados pelo contato mais violento de todo o leste do país, os Krenak são
caracterizados pela sua tenaz resistência ao sistema dominante, num esforço quase sobrehumano pela sobrevivência étnica e cultural. Vítimas de inúmeros massacres, expulsão do
seu território e intenso processo de miscigenação, eles não se curvaram, mesmo quando
reduzidos a algumas poucas dezenas. Novamente de posse do seu território, depois de
quase um século de peregrinação, eles se engajam num deliberado processo de resgate
étnico-cultural, buscando independência da sociedade externa. “Nós somos o capinzinho
que amarelou de tanto ficar debaixo da pedra e agora se levanta” (Krenak, 1997.45).
4.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA
Os Krenak são os remanescentes da famosa confederação dos Botocudos,
resultantes da união de dois subgrupos étnicos da mesma, tradicionalmente aliados, mas na
prática rivais entre si, principalmente na disputa pela liderança do grupo. Apresentam um
considerável índice de miscigenação com não-índios e com indígenas de outras etnias.
4.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA
A confederação dos Botocudos era formada por um grande número de grupos
étnicos que tendo se aliado na luta contra outras etnias, e posteriormente na resistência aos
colonizadores, compartilhavam uma mesma cultura e língua, possuindo uma pequena
variação lingüística que caracterizava cada grupo (Mattos, 2000.13). Com os projetos de
expansão dos exploradores, principalmente através dos quartéis e aldeamentos, estes vários
62
Em Krenak (1997.44).
Minas Indígena 79
grupos paulatinamente sucumbiram diante do sistema dominante. Foi assim com os
belicosos Pojixás que desapareceram nas proximidades do aldeamento de Itambacuri.
Alguns grupos porém, se refugiaram na floresta do Rio Doce, permanecendo ali por
algum tempo, mas com a abertura da Estrada de Ferro Vitória-Minas, que cortava
exatamente aquela região, se tornou inevitável a rendição destes grupos. Nesta altura, a
confederação Botocudos basicamente não existia mais, e assim, cada grupo se identificava
pelo nome do seu líder ou por alguma particularidade geográfica do seu território. O último
grupo a negociar a sua rendição foi o Gutkrak (montanha do cágado) liderado pelo Capitão
Krenak63, homem de grande liderança que foi substituído por seu filho Muin (Mattos,
2001.30). Os Krenak de hoje assim se autodenominam em função deste cacique.
Além de Gutkrak, há descendentes de outro grupo Botocudo, os Nakhré-hé, os
quais são fortemente miscigenados, principalmente com negros, o que aumenta a
rivalidade com o primeiro grupo, que apesar de também possuir um considerável grau de
miscigenação, defende a “pureza em relação às origens” (Mattos, 1996.204). O próprio
cacique, que é Nakhré-hé, é conhecido pelo nome de Nego em português, ou “Him” na
língua Krenak, que significa “preto”. É possível ainda que haja descendentes de um
terceiro grupo Botocudo, Miñajirum, e talvez até de um quarto, Naknenuk (Faria, 1992.28).
4.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA
Como remanescentes dos Botocudos, é possível que formem família com os Aranã,
mas isto ainda carece de comprovação, pois nem todos subgrupos Botocudos eram
etnicamente parentes.
4.1.1.3. TRONCO LINGÜÍSTICO
Segundo Aryon Rodrigues (1994.56), pertencem ao tronco Macro-Jê, família
Botocudo e língua Krenak. Vale ressaltar, que sua língua quase entrou em extinção, sendo
preservada apenas pelas mulheres mais idosas, entretanto, nos últimos anos tem sido feito
um esforço deliberado para que as crianças e adolescentes aprendam a sua língua, e
felizmente estão tendo êxito, pois hoje, as crianças e grande parte dos adolescentes já se
comunicam bem na língua tradicional, tendo inclusive, professores que a dominam.
4.1.2. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA
63
Vale recordar, que os caciques passaram a ser chamados de “Capitães”, desde a época de Marlière. De
acordo com Marcos Krenak, o nome “Krenak” significa “cabeça na terra”, se referindo ao tradicional
costume de colocarem a cabeça na terra antes de iniciar suas danças cerimoniais (Maurício, 1997.13).
Minas Indígena 80
O Território Indígena Krenak, somando um total de 3.983.09 ha., está localizado no
Município de Resplendor, Vale do Rio Doce, no sudeste de Minas, quase limítrofe com o
Espírito Santo. Tomando a cidade de Resplendor como referência, a reserva se localiza a
noroeste da mesma, na margem esquerda do Rio Doce, fazendo fronteira com o município
de Conselheiro Pena a oeste. A aldeia mais próxima dista 12 km de Resplendor, e esta dista
520 km de Belo Horizonte. Todo o percurso é em estrada, beirando a Estrada de Ferro
Vitória-Minas, na margem direita do Rio Doce, sendo por fim, necessário atravessar o
mesmo de bote, o que, dependendo da época é bastante perigoso ou até mesmo impossível.
No entanto, há pelo menos três entradas para a reserva. O Rio Eme corta todo o território,
desembocando no Rio Doce ao sul da reserva, e no centro do território está a Serra do
Kuparake, que divide a reserva no sentido leste-oeste.
4.1.3. DISTRIBUIÇÃO DEMOGRÁFICA
A população Krenak soma cerca de 230 pessoas, com pouco mais de trinta famílias
nucleares, oriundas de três famílias extensas, distribuídas em três aldeias, com habitações
altamente dispersas, algumas distando até quilômetros uma das outras. Com a expulsão dos
fazendeiros os índios aproveitaram suas casas de alvenaria para fixar residência.
A principal aldeia é chamada de Barra do Eme, localizada ao sul da reserva, no
encontro do Rio Eme com o Rio Doce. Ali está o grupo mais expressivo e articulador, com
uma liderança muito forte na pessoa de Laurita Félix. Os traços fisionômicos são mais
visíveis neste grupo, que preza por casamentos intraétnicos. Os principais projetos são ali
articulados e desenvolvidos, funcionando ali uma escola de ensino fundamental, dentro dos
parâmetros de escola indígena diferenciada.
Ao nordeste da reserva está a Aldeia do Eme, que apesar de ser a residência do
cacique Him ou Nego, é pouco expressiva e possui um número reduzido de famílias. É
onde se percebe o mais alto grau de miscigenação étnica e pouco interesse pela
preservação cultural. Estas e outras razões geram rejeição dos outros grupos que lutam
acirradamente pela preservação cultural e reafirmação da consciência étnica.
Por fim, ao noroeste da reserva localiza-se a Aldeia do Córrego da Gata, sob a
liderança de Basílio. Esta é a mais isolada geograficamente, sendo de difícil acesso. Lá
também funciona uma escola e são aliados ao grupo de Laurita Félix, da Barra do Eme, na
oposição ao cacique Him, do Eme.
Vale considerar que os Krenak têm a aldeia Tupã, dos Kaingang, em Vanuíre, São
Paulo, como o principal centro de migração. Lá vive um número considerável de krenaks
Minas Indígena 81
que para lá fugiram, principalmente durante os vários exílios que sofreram, e se fixaram
através de casamentos. Ainda hoje, há uma relativa movimentação de famílias indo e
voltando de Vanuíre, dado aos laços de parentesco e amizade. Segundo o cacique Him, é
provável que os Krenak de Vanuíre somem um número maior que os do Rio Doce 64. Além
deste, há também grupos de Krenak vivendo nas cidade de Colatina, no Espírito Santo, e
Conselheiro Pena, município vizinho da reserva, em Minas Gerais (Faria, 1992.14). Estes,
porém, já se integraram totalmente na sociedade externa, não demonstrando interesse em
retornar para o território tradicional.
4.1.4. SITUAÇÃO LUINGÜÍSTICA
Em alguns períodos da história, os Krenak chegaram a ser proibidos de falar a sua
língua (Dutra, 1998.103), o que, somado ao forçado processo de miscigenação e dispersão,
resultou numa perda quase total da língua, fazendo com que todos se tornassem falantes do
português. Entretanto, as mulheres mais idosas preservaram a língua, passando para suas
filhas, que não eram vistas como ameaça. Algumas delas, quando crianças, aprenderam a
falar apenas a língua tradicional, como Laurita Félix que veio aprender o português com
doze anos de idade, e Maria Júlia, que só aprendeu quando começou a estudar numa escola
convencional.
Novamente de posse do seu território tradicional, iniciaram um intenso processo de
resgate cultural e lingüístico, que já tem dado resultados visíveis e muito positivos. Grande
parte dos jovens, adolescentes e quase todas as crianças já se comunicam bem na sua
língua tribal, que é ensinada na escola como uma das principais disciplinas do seu
currículo. No lar, as mães, avós e irmãos, procuram intencionalmente conversar com as
crianças também na língua para desenvolver a capacidade de conversação. Assim, a
comunidade Krenak vai resgatando sua língua e linguagem tradicional. As palavras de
Laurita Félix são denunciadoras e também ricas em informações de como isto acontece:
No tempo do Pinheiro, os soldados não deixavam a gente falar na língua, diziam:
fala direito! Acho que por isso foram deixando de aprender (...) Eu falo com meus
netos, fico sozinha com meu netinho e converso com ele, tudo na língua. Mando ele
espantar galinha, ele espanta; mando ele tocar o gado, ele toca; tudo na língua
(Dutra, 1998.103).
Apesar de sabermos que a língua Krenak é do tronco Macro-Jê, da família
Botocudo, a mesma ainda carece de uma sistematização gramatical, pois em 1982 a
lingüista Lucy Seky iniciou um trabalho entre eles (Paraíso, 1998.430), mas não obteve
64
Em entrevista do dia 07/05/02.
Minas Indígena 82
êxito dada a resistência do próprio povo que rejeita quase tudo que vem de fora. A grafia
da língua é feita a partir do português de modo bem informal pelos próprios professores,
que vão tentando escrever da forma que pronunciam, juntamente com as mulheres mais
idosas que verificam se está sendo feito da forma correta. Alguns jovens Krenak receberam
bolsas de estudo e estão fazendo faculdade, e um dos professores Krenak tem o sonho de
fazer lingüística para analisar e grafar corretamente a sua própria língua, mas até então,
nada foi feito no sentido de levar este sonho à frente.
4.1.5. RELIGIOSIDADE
A despeito da forte influência católica que os Krenak receberam desde o contato,
eles são enfáticos em afirmar: “não somos católicos nem protestantes”65. Verificando um
pouco mais acuradamente a sua religiosidade, é fácil perceber que eles foram fortemente
influenciados pelo catolicismo regional. Entretanto, fica claro também que a sua base de
concepção tanto da religião, como do mundo, é animista. Poderíamos classifica-los então,
como animistas sincretistas com forte influência católica.
4.1.5.1. DANÇAS CERIMONIAIS
Segundo Mattos (1996.166), a dança cerimonial que os Krenak chamam
simplesmente de trabalho era realizada com muita freqüência próximo ao cemitério dos
seus ancestrais, em torno de uma estátua de madeira chamada Yonkyón que era uma figura
central na cosmologia Krenak. Yonkyón desapareceu em 1939, havendo fortes indícios de
que tenha sido roubado por Nimuendajú. Mattos (1996.166) sugere que tenha sido ele:
“Nimuendajú (1986), quando de sua visita à área em 1939, chegou a fotografá-la. Por volta
dessa mesma época teria ocorrido o seu desaparecimento”. Já Paraíso (1998.Internet)
afirma: “o mastro sagrado, levado da aldeia na década de 30 por Curt Nimuendajú”.
De qualquer forma, após o desaparecimento de Yonkyón os rituais foram
diminuindo até deixarem de ser praticados. Com o despertamento para o resgate cultural e
o surgimento de uma xamã, as danças voltaram a ser praticadas, mas não com o mesmo
vigor. Faria (1992.20) informa que durante a sua pesquisa de campo “em 1991 (...) os
Krenak haviam reconstruído a casa de religião, onde voltaram a praticar seus rituais
tradicionais (...)”. Consistem basicamente em danças, cantorias e na transmissão de
mensagens dos ancestrais à comunidade ou a determinadas pessoas. Rituais de nascimento,
iniciação, casamento e morte, já não são mais praticados.
65
Em entrevista com Ailton Krenak, um dos líderes de maior poder de articulação, no dia 07/05/02.
Minas Indígena 83
4.1.5.2. ENTIDADES ESPIRITUAIS
O universo espiritual Krenak é formado por um considerável panteão de entidades
que influenciam diretamente o seu dia-a-dia, pois apesar de não se relacionarem com elas a
nível de mediunidade ou mesmo de oráculo, suas atitudes e crenças giram em torno de
satisfazê-las ou pelo menos respeitá-las.
4.1.5.2.1. MARÉT-KMAKNIAM
Marét são seres espirituais que habitavam o céu (taru) Botocudo, sendo os grandes
ordenadores dos fenômenos da natureza, capazes de protegerem os índios (burúm)
enquanto os não-índios (kraí) estivessem distantes. Segundo eles, os marét são sempre
muito bondosos para os Krenak (Krenak, 1997.9).
O marét mais reverenciado pelos Krenak é o Marét-kmakniam (“velho Marét”).
Seria invisível para os kraí (não-índios) mas os informantes de Faria (1992.19) deram a
seguinte descrição:
“A sua aparência era de um homem pouco mais alto do que um anão, com a cabeça
branca e pêlos ruivos. Tinha como peculiaridade um pênis colossal que atingia até a
garganta das mulheres com que mantinha relações sexuais.”
Este possui uma esposa, chamada Marét-Jikky (“velha Jikky”) que sempre se
esconde dos olhos não apenas dos kraí, mas também dos Krenak e vive no céu, tendo o
casal vários filhos – os Marét-kmakanim-krouk – que também podem aparecer para os
burúm (Mattos, 1996.165).
4.1.5.2.2. NANITIONG (ou NANDYÓN)
Os nanitiong são os espíritos encantados dos mortos que também são dignos de
acato e veneração. São eles quem emitem os avisos de morte e por isto quem ver um
nanitiong está fadado a adoecer e até morrer. Assim como os marét, podem fecundar as
mulheres e ter filhos com elas, apesar de, ao que parece, não haver nenhuma história
ressente sobre um fato destes. Os Krenak crêem que cada pessoa possui uma alma
principal e várias secundárias, sendo que a morte acontece quando a principal deixa o
corpo, mas as demais permanecem ainda por algum tempo, podendo inclusive se
transformar em animais encantados – preferencialmente onças. Isto fica claro no
comentário que eles fazem sobre a morte do grande cacique Krenak: “E o tempo passou,
Minas Indígena 84
sentimos o fim de suas energias. Krenak chamou seu povo: Eu vou morrer (...) Veio outra
lua e a alma principal do velho Krenak deixou seu corpo” (Krenak, 1997.37).
Mattos (1996.168) relata também que “uma criança Nakhre-ré de 11 anos, ao
relatar a morte de um menino de 9 anos, baleado pela mãe, disse que este ao ser ferido,
saiu a correr, sendo seguido por sua alma um pouco atrás, até cair debaixo da cerca”.
4.1.5.2.3. KREMBÁ
Krembá era o pai de Laurita Félix e pelo seu depoimento pode-se deduzir que era
um pajé, sendo hoje o espírito (nanitiong) que orienta os Krenak através da xamã, Marilza,
filha de Laurita, logo, neta do próprio Krembá. Desde que começou a manifestar-se através
da sua neta, vem determinando que sejam “realizados os trabalhos de reorganizar o grupo,
voltar a ‘dançar’ seus rituais, fazer arcos e flechas, curar suas doenças pela forma
tradicional, falar sua antiga língua e recuperar o mastro sagrado” (Paraíso, 1998.Internet).
4.1.5.2.4. TOKÓN
Estes são os espíritos da natureza, que também mantêm contato com os xamãs
durante os rituais. Paraíso (1998.Internet) sugere que assumiram um papel central no
universo religioso Krenak, por estarem associados à disputa política entre as duas metades.
4.1.5.3. LUGARES E OBJETOS SAGRADOS
Ao que parece, o único objeto sagrado que os Krenak possuíam era exatamente o
Yonkyón que lhes foi roubado. Já lugares sagrados, eles possuem alguns, sendo os
principais os abrigos rupestres e a casa de religião.
4.1.5.3.1. OS ABRIGOS RUPESTRES
O Vale do Rio Doce é rico em abrigos rupestres, estudados em 1994 pela
antropóloga Izabel Mattos e pela arqueóloga-historiadora Alenice Baeta66, nos quais
predominam figuras de flechas que os Krenak identificam como “flechas encantadas” dos
seus ancestrais. Sobre isto Mattos (1996.173) comenta:
Não é provável que as pinturas existentes nos diversos abrigos rupestres do Vale do
Rio Doce tenham sido feitas por antepassados dos Krenak. Contudo, eles parecem,
de fato, apropriar-se e identificar-se com as pinturas, considerando-as ‘mágicas’,
(por acreditarem que nunca podem ser apagadas), interpretando-as como parte de
sua herança cultural, sendo que a visita a esses lugares lhes traz o sentimento de
encontro e comunicação com os Marét.
66
Arte Rupestre, Etno-História e Identidade Indígena no Vale do Rio Doce – MG. Belo Horizonte: UFMG,
1994.
Minas Indígena 85
Estes abrigos eram locais estratégicos para refúgio em caso de conflitos armados,
pois além da sua difícil acessibilidade é nos abrigos que os marét habitam, sendo as
pinturas, sinais deixados por eles. Quando os Krenak visitam estes abrigos, costumam
deixar oferendas às entidades que ali habitam. Eles se sentem guardiões dos abrigos, pois
crêem que a presença de kraí tira o encanto dos mesmos.
4.1.5.3.2. KIEME-BURÚM67 – “CASA DE RELIGIÃO”
A casa de religião é onde realizam suas danças cerimoniais, sendo um simples e
pequeno rancho improvisado. Desta forma, o seu encanto ou dimensão sagrada possui
caráter temporário. Na nossa pesquisa de campo observamos uma kieme-burúm, nas
proximidades da residência de Laurita Félix, abandonada no meio do mato.
4.1.6. ESTUDO DE PODER SOCIAL
É interessante a questão de poder social entre os Krenak, pois apesar de se tratar de
um grupo que luta unido pela sua sobrevivência e liberdade, se dividem internamente em
grupos rivais. A luta pelo poder social é facilmente perceptível já nos primeiros contatos.
Isto é comum em grupos exogâmicos, o que sugere a possibilidade de em tempos passados
terem adotado este mecanismo social.
4.1.6.1. CACIQUE
Desde o retorno dos Krenak da Fazenda Guarani em 1980, o cacique tem sido o
índio José Alfredo de Oliveira, apelidado Him na língua Krenak, ou Nego, em português,
por possuir muitos traços negros na sua fisionomia. Sob o cacique recai a responsabilidade
da representação externa do povo, bem como da liderança interna. Entretanto, Him tem
desempenhado apenas esta primeira função, pois internamente não detêm nenhuma
autoridade sobre os outros dois grupos que lhe são rivais. Na prática, sua permanência no
cacicado é uma questão emérita, pois foi ele quem liderou o retorno da Fazenda Guarani,
apesar da iniciativa ter sido de Laurita Félix. Outro fato, é que apesar de na prática
mulheres como Laurita Félix exercerem forte liderança, as mesmas não podem representar
o grupo publicamente. Esta última está preparando seu filho Rondon para se tornar um
cacique, o qual já até concorreu com Him numa eleição. Este “treinamento” tem respaldo
histórico, pois segundo Faria (1992.26) “a preparação do cacique para o exercício de suas
atividades era promovida por sua mãe. Esta mulher tinha o poder decisivo do grupo”.
67
Literalmente “casa de índio”.
Minas Indígena 86
4.1.6.2. LÍDERES DE ALDEIA
Como já mencionado, cada aldeia ou subgrupo, possui o seu líder local, o qual se
responsabiliza por todas as iniciativas e decisões locais. Desta forma, o grupo do Córrego
da Gata liderado por Basílio se aliou ao grupo da Barra do Eme liderado por Laurita Félix
na oposição à liderança do cacique Him. Dado ao poder de articulação de Laurita, alguns
projetos assistenciais destinados ao povo acabam beneficiando apenas estes dois grupos.
O poder de liderança de Laurita não é resultado apenas da sua capacidade de
articulação, mas também da sua ascendência genealógica. Ela é filha do antigo e venerado
xamã Krembá, neta do cacique Muin e bisneta do grande cacique Krenak. Isto justifica a
conclusão de Faria (1992.26) quando afirma que tradicionalmente “as lideranças deveriam
ser do mesmo grupo familiar”.
Uma questão que merece destaque é que o fato das mulheres deterem o domínio da
língua e a memória histórica do povo, acabam exercendo certa liderança, como o caso de
Marilza, Sônia e Paula Krenak, também aliadas de Laurita Félix.
4.1.6.3. XAMÃ
Já há muitos anos os Krenak não possuem um pajé, sendo as danças cerimonias
dirigidas pelo índio Nadiu, que é chefe do posto da FUNAI, e por Laurita. Entretanto, com
o desenvolver de atividades mediúnicas por Marilza Félix, que recebe o espírito do seu avô
Krembá, esta tem adquirido poder social nos dois grupos aliados que a consideram
efetivamente como uma xamã, obedecendo as orientações transmitidas pela mesma.
O grupo do cacique Him resiste ao xamanismo de Marilza, acusando-a de
impostora. O fato dela ser casada com um kraí depõe contra sua autoridade, pois é de
consenso geral que os marét e nanitiong “não gostam de sentir a ‘catinga’ de Kraí”
(Mattos, 1996.187). Ainda assim, pelo menos nos dois grupos aliados Marilza continua
gozando de grande aceitabilidade como xamã do povo Krenak.
4.1.7. PROBLEMAS SOCIAIS
4.1.7.1. SAÚDE
Minas Indígena 87
Os Krenak não são assistidos por uma equipe de saúde, tendo à sua disposição
apenas um veículo da FUNASA para conduzir até o posto médico ou hospital da cidade de
Resplendor, aqueles que necessitam de assistência. Há uma auxiliar de enfermagem
indígena, chamada Sônia, filha do cacique Him que, trabalhando no Posto Médico, é
liberada para atender pacientes do seu povo nos casos mais simples.
Não tendo pajé, a comunidade indígena abandonou quase que completamente seus
métodos tradicionais de medicina, tornando-se totalmente dependente do transporte da
FUNASA e atendimento do sistema de saúde da cidade. A questão principal é que um
único veículo nem sempre é suficiente para atender a todo o povo que é altamente disperso
por todo o território. Algumas famílias se vêem em dificuldade para solicitar o veículo
dada a sua localização isolada. As estradas que cortam a reserva estão em péssimo estado,
e em épocas de chuvas tornam-se intransitáveis, e isto se aplica não apenas ao transporte de
doentes mas ao transporte em geral.
4.1.7.2. ESCOLA
Nas aldeias Barra do Eme e Córrego da Gata há escolas de ensino básico para
crianças, apesar de funcionarem em estado de precariedade. Há professores indígenas,
formados pelo Projeto UHITUP no Parque Estadual do Rio Doce (Dutra, 1998.58), mas as
escolas não progrediram, funcionando somente no nível básico. Desta forma, os
adolescentes e jovens que desejam dar continuidade aos seus estudos precisam se deslocar
diariamente para a cidade de Resplendor, o que não é tão fácil. A prefeitura municipal
providenciou um ônibus para transportar os alunos krenak e demais da região, entretanto, é
preciso atravessar o Rio Doce de bote, o que, em épocas de enchentes, torna-se inviável.
Mesmo em tempos de seca não é tão fácil. Quando da nossa pesquisa de campo,
atravessamos o rio com o grupo de estudantes, sendo que dois remavam e um tirava água
com um balde, pois o bote estava furado.
Outro fato, e talvez o mais complicador, é que há um forte sentimento de
discriminação em relação aos indígenas por toda população regional, e por isto, os
estudantes Krenak em escolas convencionais são fortemente estigmatizados. A
discriminação em sala de aula é patente até por parte de vários professores. Há uma
professora da escola de Resplendor – Marli Schiavini de Castro – que fazendo parte do
GTME – Grupo de Trabalho Missionário Evangélico68 e ali atuando desde 1989, tenta
68
O GTME desenvolve um trabalho semelhante ao CIMI, não se envolvendo com evangelização. Atua na
área do assistencialismo e, no caso Krenak, foi um dos principais órgãos de articulação e apoio na luta pela
terra. A professora Marli Castro é a principal obreira do GTME entre os Krenak.
Minas Indígena 88
fazer um trabalho de conscientização sobre a questão indígena, na escola e comunidade, na
expectativa de diminuir o preconceito que parece estar impregnado no sentimento regional.
Vale considerar ainda, que estes estudantes sendo submetidos a um ensino formal,
num ambiente totalmente alienado da sua realidade, tendem a desenvolver um forte
sentimento de reação contra a população regional ou de excessiva aproximação cultural da
mesma, aumentando o clima de conflito ou desfigurando a sua identidade etnocultural.
Através do GTME, um grupo de crianças e adolescentes foi aceito num colégio
metodista na cidade de Colatina (ES), em regime de semi-internato, o que Faria (1992.28)
classifica como “dramática situação”:
(...) crescentemente as crianças Krenak estudam em Colatina, num colégio
protestante, em regime de semi-internato, garantindo a sobrevivência física, mas
inviabilizando a reprodução social do grupo constituindo-se num verdadeiro crime
de etnocídio o descaso das autoridades para com esta dramática situação.
Faria (1992.21) comenta ainda que no início dos anos noventa, quando os rituais
voltaram a ser praticados com mais freqüência, alguns jovens que estudavam neste colégio
se recusaram a participar dos rituais. Obviamente, pode-se perceber o forte preconceito da
autora para com evangélicos, mas é verdade que esta não é uma situação ideal para os
jovens Krenak. A falta de escola é um dos principais problemas atuais deste grupo.
4.1.7.3. RELACIONAMENTO COM A SOCIEDADE REGIONAL
O histórico clima de tensão entre os Krenak e a população regional, ainda é latente
nos dias atuais e a pesquisadora Mattos (1996.177) dedica todo um tópico do seu relatório
para tratar do termo pejorativo bugre, usado pela população regional para se referir a eles.
Semelhante ao termo caboclo, usado para designar os índios amazonenses em contato com
a população urbana, bugre se diferencia numa questão básica: enquanto caboclo nega ao
índio sua identidade, o aproximando da civilização externa, visando assim agregá-lo,
bugre nega a dignidade humana do índio, classificando-o como uma categoria inferior à
civilização externa, indigno de convívio, visando assim segregá-lo69.
Enquanto parte da população regional rejeita os bugres por considerá-los
preguiçosos, vagabundos, uma sub-raça, outros os evitam por considerá-los perigosos,
violentos, delinqüentes. A existência da Colônia Penal Indígena na reserva Krenak, sendo
69
Neste estudo, Mattos (1996.177-206) faz uma comparação e classificação dos termos índio – aquele
indivíduo distante, habitante da floresta, que anda nu, caçando e pescando, mais próximo à animalidade do
que da esfera humana; puri – índio que se aliou aos “brancos” na tarefa civilizatória dos demais índios, bom
selvagem; caboclo – índio que se misturou com a civilização urbana, digno de pena e, mesmo num nível
inferior, é aceitável no convívio regional, principalmente como mão-de-obra barata; bugre – ser desprezível,
selvagem, feroz, que dada à sua sub-raça e alto grau de periculosdade é indigno de convívio.
Minas Indígena 89
tutelados por policiais, somada à tradicional belicosidade deste grupo, desde os tempos dos
primeiros contatos, marcou a lembrança regional de forma quase indelével. A figura dos
bugres é sempre relacionada a delinqüentes e criminosos. Neste sentido, o relato de Mattos
(1996.190) é muito significativo:
Como forma de elogio por sua conduta julgada “honesta e trabalhadora”, os
conhecidos de um índio que vende peixe na cidade de Conselheiro Pena afirmamnos que “ele não é índio legitimo, mas misturado”, pois apenas desta forma
poderiam justificar a predisposição relativamente pacífica para o contato com um
“bugre” – inimigo potencial.
Por outro lado, há da mesma forma ou talvez ainda mais forte, um sentimento de
discriminação dos Krenak em relação à população regional. Eles se consideram superiores
aos kraí e são profundamente etnocêntricos, sendo esta uma das razões da sua forte
resistência cultural. Este etnocentrismo é fundamentado na cosmologia Krenak, tendo suas
raízes nas restrições que os marét e nanitiong fazem em relação à presença de kraí no
território indígena e principalmente nos abrigos rupestres, considerados morada destas
entidades. A simples presença de um kraí num lugar sagrado é suficiente para desencantálo, não pelo seu poder mas por sua impureza que profana o sagrado (Mattos, 1996.164).
Desta forma, os Krenak têm muita resistência à presença de não-índios no seu
território. Em nossa pesquisa de campo constatamos que neste sentido eles são realmente
os menos receptivos. Se o kraí é impuro e profanador, logo o burúm é uma raça superior,
ainda que massacrada e perseguida. Este sentimento de superioridade, somado à vívida
memória do processo de massacre e exploração, também por parte dos impuros kraí, gera
consequentemente um arraigado sentimento de discriminação e rejeição a tudo que vem de
fora. É por isto que as jovens Krenak que saíram da área por terem se casado com kraí,
mesmo mantendo fortes laços de ligação com a família, não são mais consideradas parte
efetiva da comunidade, principalmente no grupo de Laurita Félix.
Em parte isto explica também a rejeição a antropólogos, lingüistas, missionários,
bem como aos órgãos governamentais, como a própria FUNAI e FUNASA. O chefe de
Posto da FUNAI é indígena – Nadiu – e os contatos com o governo e autoridades são feitos
diretamente através do Núcleo de Cultura Indígena, estabelecido no município de Nova
Lima, região metropolitana de Belo Horizonte, fundado e presidido por Ailton Krenak, um
dos líderes indígenas do Estado com maior capacidade de articulação. Vale considerar, que
resistência e rejeição aos órgãos governamentais remonta também, e talvez principalmente,
ao fato do SPI e FUNAI terem sido por muito tempo órgãos de opressão aos Krenak,
Minas Indígena 90
principalmente com os exílios compulsórios para o território Maxakali e posteriormente
para a Fazenda Guarani. Isto fica bem evidente nas palavras de Laurita Félix:
Foi o tempo que nóis era bobo, que a FUNAI chegava botava nóis no carro e levava
nóis embora. Mas agora não carrega mais, não. Nóis passa fome, um dia come,
outro dia não come, mas o outro ano nóis num passa fome, não. Ela queria levar
nóis de volta prá Fazenda Guarani. Eu falei que não ia, não. Se lá é bom, ele pode
morar lá, nóis não (...) (Mattos, 1996.199).
4.1.8. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA
Principalmente os indígenas do grupo de Laurita Félix são enfáticos em afirmar que
não aceitam missionários no seu território70. Entretanto, a despeito desta resistência, a
Assembléia de Deus de um pequeno povoado próximo da reserva, chamado
Independência, tem entrado sorrateiramente pela aldeia mais isolada, Córrego da Gata,
onde já existe um grupo com cerca de vinte pessoas, entre membros e congregados, se
reunindo sistematicamente. Também na aldeia do Eme, há uma convertida e por isto a
igreja organizou um salão nas proximidades desta aldeia, onde realiza cultos semanais, na
expectativa de alcançar mais pessoas. Trata-se de um trabalho bem recente, iniciado e
realizado por voluntários, carente de esforços mais direcionados na área de instrução, bem
como contextualização, mas sem dúvida alguma um grande passo.
4.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS
É possível que os Krenak não sejam os mais resistentes ao evangelho, mas com
certeza são os menos receptivos ao trabalho missionário. Desta forma as possibilidades de
abordagens missionárias são minimizadas, mas em hipótese alguma totalmente
descartadas. Um fato amenizador, é que não tendo a FUNAI nem qualquer outro órgão
externo poder de manipulação sobre os Krenak, uma vez adquirida a simpatia destes as
portas estariam escancaradas para a atuação missionária. Logo, já podemos pressupor que
qualquer projeto missionário deve levar em consideração a aproximação amigável e
obtenção de confiança mútua com o grupo, bem como, um alto grau de flexibilidade por
parte do missionário.
O caminho que a Assembléia de Deus esta seguindo é muito sábio, iniciando o
trabalho pela aldeia mais isolada, pois desta forma tem evitado confrontos com o grupo
70
Em entrevista com Ailton Krenak, no dia 07/05/02.
Minas Indígena 91
mais tradicional. Neste caso, é realmente prudente deixar o grupo maior – de Laurita Félix
– para uma abordagem posterior. Certamente seria possível iniciar também um trabalho de
forma efetiva no grupo do cacique Him, dada à sua abertura para o externo. Pode-se levar
em contar também, que este grupo é geograficamente mais acessível, estando perto de uma
rodovia e do povoado de Independência.
4.2.1. LÍNGUA A SER UTILIZADA
Como todos são falantes do português mas nem todos são falantes da língua
tradicional, a abordagem deve ser feita mesmo no português. Entretanto, um interesse pelo
aprendizado da língua tradicional deve ser visto com bons olhos pelo grupo.
4.2.2. CENTROS ESTRATÉGICOS
Não resta dúvida de que a cidade de Resplendor seria o centro mais estratégico para
um trabalho entre os Krenak, porém, no caso de iniciar uma abordagem pela aldeia do Eme
– cacique Him – o povoado de Independência também seria uma excelente opção, apesar
da sua infra-estrutura não ser das melhores.
4.2.3. A QUESTÃO ANIMISTA
Mesmo não podendo ser classificados como um grupo puramente animista, sua
cosmovisão repousa sobre bases animistas. Logo, esta questão precisa ser tratada com
muita seriedade em uma abordagem missionária71. Parece que sua cosmologia gira em
torno do sagrado/profano, sendo que os kraí e tudo o que vem deles se enquadra nesta
segunda categoria, o que indica a necessidade de uma teologia de santo e profano com
sólida base bíblica, já no momento do evangelismo. Uma teologia de espíritos também se
fará necessária, dada a sua arraigada crença nos marét e nanitiong.
A questão do “desencanto” do seu mundo espiritual ou encantado com a simples
presença dos não-índios parece ser também uma questão central na sua cosmologia,
devendo assim receber uma atenção especial. Inclusive, Mattos (1996.165) faz um
comentário acerca da cruz por demais interessante:
O significado da cruz é muito curioso pois, se de um lado a ela são atribuídos
poderes de afugentar as almas dos mortos (nandyón) cuja visão traz a morte, por
outro lado ela destrói também os encantamentos dos “velhos” cujos ensinamentos
71
O livro Conhe Pãnda / Ríthioc Krenak – Coisa Tudo na Língua Krenak, que é uma coletânea de histórias
contadas pelos mais velhos e escritas pelos professores Krenak, pode ajudar na compreensão da cosmologia
Krenak. Ver KRENAK, Maurício & Outros nas Referências Bibliográficas.
Minas Indígena 92
são capazes de protegê-lo. Talvez por isso é que, hoje, no esforço de alimentar a
identidade étnica, os Krenak rejeitem a presença missionária na área.
Observe que eles atribuem poderes a um símbolo cristão, mas ao mesmo tempo o
consideram profano, desencantador do seu mundo espiritual, certamente, por se tratar de
um símbolo não-indígena. O próprio catolicismo regional é também um pouco sincretista e
pode ser que por isto não tenha feito muito sentido para os Krenak. Mas a apresentação de
um evangelho supracultural, que não é propriedade dos kraí nem dos burúm, que não pode
ser “desencantado” por nada, talvez cause interesse neste povo que traz no coração uma
grande expectativa pelo sagrado.
4.2.4. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS
Há várias possibilidades de integração com igrejas da região, inclusive, algumas
podem até apoiar missionários. A cidade de Resplendor é bastante evangelizada, tendo três
grandes Igrejas Presbiterianas do Brasil, três Assembléias de Deus, duas Metodistas, três
Batistas e outras três igrejas pentecostais de menor porte. É possível trabalhar em parceria
com as presbiterianas, assembléias e metodistas, e talvez, também com as batistas. A
Primeira Presbiteriana é atualmente pastoreada pelo Rev. João Batista Landim, que tem
interesse em atuar entre os Krenak.
Entretanto, seja qual for a igreja alvo de integração, faz-se necessário um sério
trabalho de conscientização, pois dado ao histórico impasse entre indígenas e população
regional, as igrejas não se sentem desafiadas a um trabalho entre os Krenak. Há
discriminação também por parte de evangélicos.
4.2.5. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS
Qualquer projeto de trabalho entre os Krenak será passivo de resistência, mas sem
um projeto que envolva algum tipo de assistencialismo, será ainda mais difícil conseguir
trabalhar com eles. Qualquer abertura para alguém atuar na reserva, será motivada pelo que
eles irão receber em troca.
4.2.5.1. SAÚDE
Minas Indígena 93
Como eles não são assistidos por uma equipe de saúde da FUNASA, esta é uma
área muito propícia e que seria vista com bons olhos. Médicos, dentistas e enfermeiros,
certamente serão bem aceitos pela comunidade dada a sua carência. Mesmo um trabalho de
prevenção e conscientização da comunidade, que poderia ser feito por técnicos em áreas
afins de saúde, poderia ser bem aceito. É provável que profissionais da saúde sejam aceitos
até como voluntários da FUNASA, podendo assim se locomover com o veículo que é
posto à disposição dos indígenas72.
4.2.5.2. ANÁLISE LINGÜÍSTICA
Apesar da resistência dos Krenak a antropólogos e lingüistas, eles têm consciência
da necessidade de um estudo sério da sua língua, o que em muito contribuiria para o
resgate da mesma que eles tanto desejam. Portanto, uma vez adquirida a simpatia e
amizade do grupo, certamente seria possível o desenvolvimento de um projeto de análise
lingüística e grafia da língua. Um projeto nesta área seria de grande contribuição para todo
o grupo, pois se tornaria numa ferramenta de perpetuação do idioma Krenak, e ao mesmo
tempo seria o melhor caminho para compreensão cultural e conhecimento da sua
cosmologia por parte do missionário.
72
Um caso deste tem acontecido com os Maxakali, onde uma missionária-enfermeira vem atuando entre eles
como voluntária da FUNASA deste dezembro de 1999 (cf. 3.1.6.4. 2ª Parte).
Minas Indígena 94
5. OS PATAXÓ
Pataxó é água da chuva batendo na terra, nas pedras,
e indo embora para o rio e o mar.
Kanátyo Pataxó73
5.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL
Vivendo numa situação razoavelmente estável, os Pataxó de Minas Gerais fazem
um esforço intencional de afirmar a sua indianidade, principalmente através da produção
artesanal e da introdução de palavras indígenas no seu vocabulário, visto terem perdido a
sua língua tradicional. Se caracterizam como os mais receptivos dos grupos indígenas do
Estado, sendo muito calorosos e alegres, mantendo também um bom relacionamento com a
sociedade regional, inclusive exercendo forte influência na política do município onde se
encontra o Território Indígena Pataxó.
5.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA
5.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA
Os Pataxó de Minas Gerais têm sua origem étnica nos Pataxó da Bahia,
particularmente no grupo de Barra Vermelha – os classificados como Pataxó Meridionais
(Faria, 1992.70) – de onde migraram. Em 1951, o grupo que ali habitava sofreu um dos
mais terríveis massacres registrados na história indígena da Bahia – o “fofo de 51”74quando policiais dispararam contra os índios que se defendiam com lanças, arcos e flechas,
totalmente indefesos contra a força militar. Grande parte da população adulta sucumbiu
ficando esta data marcada na memória étnica como a época do ressurgimento dos Pataxó.
Com um considerável contingente de homens mortos, no processo de recomposição
populacional houve vários casamentos interétnicos, inclusive alguns com não-índios.
73
Em Pataxó (1997b.23)
Maiores informações sobre este episódio estão disponíveis em várias fontes, como em Faria ( 1992. 75-77)
e em Dutra (1998.16) onde é relatado pela índia Vanusa Pataxó.
74
Minas Indígena 95
Entretanto, a consciência da sua indianidade nunca foi abalada, pelo contrário, eles fazem
questão de afirmar e reafirmar quem são. No grupo atual, constata-se a presença de
indígenas Krenak, Maxakali e Pankararu e alguns poucos não-índios.
Na década de 1960 outro episódio ameaça os Pataxó de Barra Vermelha, quando
foi criado o Parque Monumento Nacional de Monte Pascoal, reduzindo o seu território
tradicional em 23.000 ha. Isto desencadeou um processo de migração de grupos familiares
para outras regiões, e assim a família do índio Thyundayba migrou para Minas Gerais em
1975, onde fixou residência e foi seguida por várias outras famílias (Vilarino, 2001.17).
5.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA
Como os Maxakali, parece que inicialmente os Pataxó faziam parte da
confederação étnica chamada Naknenuk composta pelos Manoxó ou Amixakori,
Kumanaxó, Kutatói, Malali, Makoni, Kopoxó, Kutaxó, Pañâme e pelos já mencionados
Maxakali (Paraíso, 1999.Internet). Com a extinção da maioria destes grupos e as divisões
de outros, hoje os Pataxó de Minas fazem parte da família Maxakali que é formada pelos
próprios Pataxó (Minas e Bahia), Pataxó Hã-hã-hãe e Maxakali (Rodrigues, 1994.56).
5.1.1.3. TRONCO LINGÜÍSTICO
O lingüista Aryon Rodrigues (1994.56) os classificou como pertencentes ao tronco
Macro-Jê, família Maxakali e língua Pataxó.
5.1.1.4. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA
Mais conhecido como Fazenda Guarani, o Território Indígena Pataxó totaliza 3.270
ha. e está localizado no município de Carmésia, a 7 km da cidade com o mesmo nome, no
Vale do Aço, sub-região da cidade de Guanhães, distando cerca de 200 km de Belo
Horizonte. Há rodovia até a cidade de Carmésia, ficando um pequeno trecho de estrada até
os vilarejos Pataxó. O território consiste numa antiga fazenda cafeeira, que adquirida pelo
governo foi transformada na década de 1960 numa colônia penal indígena para onde foram
transferidos os detentos do território Krenak, bem como os próprios Krenak e um grupo de
índios Guarani, vindos do Rio de Janeiro. No final deste período, os Pataxó migraram para
esta fazenda em busca de abrigo e com a retirada daqueles outros grupos eles
permaneceram, fixando residência permanente e adquirindo posse legal do território.
Os vilarejos se localizam num vale, entre duas montanhas cobertas por uma
preservada floresta que dá condições aos Pataxó de produzirem artesanato em abundância,
Minas Indígena 96
principalmente em madeira. O solo é rico, porém desgastado pelo longo cultivo de café, e
um pequeno riacho corta o território, abastecendo os vilarejos. As casas de alvenaria
construídas e usadas pelos fazendeiros e posteriormente pelos funcionários da colônia
penal foram preservadas, sendo utilizadas como residência pelas várias famílias indígenas.
O antigo presídio ainda existe, inclusive com suas celas onde muitos índios sofreram, e foi
transformado num posto de saúde e ponto turístico para os visitantes que por ali passam.
5.1.2. DISTRIBUIÇÃO DEMOGRÁFICA
Somam trezentas pessoas, com um considerável contingente de crianças e
adolescentes, o que aponta o crescimento do grupo (Vilarino, 2001.16). Esta população
está dividida em três vilarejos, bem próximos uns dos outros, cada um com liderança
própria, com o mesmo conjunto de direitos e obrigações, não havendo qualquer tipo de
ascendência hierárquica. O grupo está distribuído em residências de famílias nucleares, e
não mais em famílias extensas como era o costume tradicional. Todos na mesma direção,
na margem da mesma estrada que dá entrada ao território, culminando no último vilarejo.
Desta forma, por ordem de acessibilidade, a primeira a ser encontrada é a Aldeia
Reintiri Imbiruçu, sendo a segunda maior aglomeração, onde funciona uma escola, e é
liderada pelo cacique Mangagá – Sebastião. Logo à frente se encontra a Aldeia Central,
onde está a maior aglomeração e consequentemente exerce maior influência em todo o
grupo. Ali se encontra o prédio da antiga colônia penal e por isto há um maior tráfego
turístico, bem como um maior fluxo de indígenas das outras aldeias dado ao fato de ali
estar o posto médico. Há também uma estruturada escola infantil, inclusive equipada com
computadores, que atende alunos desta aldeia e da terceira que não tem escola. O líder da
Aldeia Central é o cacique Thyundayba – Manoel Ferreira da Silva. Por fim, encontra-se a
terceira aldeia, chamada Pofi, que está bem próxima da segunda e é a menos influente pois
ali residem apenas três famílias, sob a liderança do cacique Bayara – José Terêncio.
5.1.3. SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA
Como quase todos grupos do Nordeste, eles perderam totalmente a sua língua
tradicional sendo hoje falantes apenas do português. Vale lembrar que sendo os Pataxó um
povo do litoral baiano, foram contatados pelos europeus bem cedo na história75, sendo este
contato com a civilização externa mantido ininterrupto até os dias atuais. Desta forma, a
75
Como os Pataxó sempre viveram distribuídos em vários grupos, o contato parece ter acontecido em
momentos diferentes, não havendo datas precisas. Tudo indica, que os o grupo Pataxó que habitava a região
de Porto Seguro foi contatado no século XVIII (Faria, 1992.70).
Minas Indígena 97
língua Pataxó se perdeu no tempo e com ela grande parte da sua cultura tradicional,
principalmente através da ação dos capuchinhos. Segundo o cacique Thyundayba76, os
mais velhos não ensinavam a língua aos filhos para evitar que estes fossem perseguidos.
Mas ocorreu um fato inovador no caso dos Pataxó. O alemão Maximiliano os
visitou quando ainda falavam a língua tradicional e registrou centenas de palavras com
seus significados. Recentemente, um antropólogo da Bahia trouxe uma lista de duzentos e
cinqüenta e oito palavras, as quais têm sido introduzidas no seu vocabulário. Na sua
maioria são substantivos, como nomes de animais, árvores e objetos, não sendo possível
desenvolver uma conversação, mas eles usam estas palavras no seu dia-a-dia como forma
de resgatar alguns traços da sua tradição. Deram um nome indígena a todos aqueles que
possuíam nome não-indígena, ficando os adultos com dois nomes, e as crianças recebem
apenas o nome indígena. Desta forma, há nomes como Thyundayba (pescador), Angohó
(lua), Bekoy (sol), Ytxahá (flor), Yrerewa (cachoeira), Haniahay (anta), Hwnka (semente).
5.1.4. RELIGIOSIDADE
Com o intenso processo de catequese dos capuchinhos, os Pataxó se tornaram
católicos, apesar de alguns traços da sua religiosidade tradicional ainda estarem presentes.
É difícil classificar o grupo como um todo, pois há divergência entre eles próprios,
inclusive entre os caciques. Enquanto alguns se identificam como católicos, outros se
identificam como crentes e ainda outros resistem à religiosidade externa afirmando
seguirem as suas próprias tradições, apesar de ser evidente a influência católica na sua
cosmovisão. Talvez possamos classificá-lo como católicos sincretistas.
5.1.4.1. DANÇAS CERIMONIAIS
A dança Pataxó é conhecida como awê sendo praticada com freqüência pois é um
sinal de afirmação da sua indianidade. Para a maioria o awê já perdeu seu sentido
religioso77 não passando de uma manifestação folclórica, mas em alguns grupos ainda há
manifestações de espíritos, com evidências de possessão o que indica certo grau de
misticismo e talvez alguns resquícios animistas. O índio Bekoy, chefe familiar de grande
credibilidade em todo o povo afirmou78: “nossa religião é o awê”.
Além de praticarem o awê freqüentemente em reuniões e celebrações internas, o
praticam sempre que recebem visitantes em maior quantidade e também viajam por
76
Em entrevista do dia 09/05/02.
Se bem que o cacique Thyundayba nos afirmou em conversa pessoal (09/05/02) que “toda música que
canta é em agradecimento a Deus e em sentido de oração”.
78
Em entrevista do dia 09/05/02.
77
Minas Indígena 98
cidades vizinhas ou mesmo distantes, para fazerem apresentações. Estas ocasiões são
preciosas para eles, por propiciar a venda de artesanato que é uma das suas principais
fontes de renda. Adultos e crianças se enfeitam para o awê pintando o corpo –
principalmente braços e rosto – com tinta feita de jenipapo e outras substâncias. Usam
também colares de sementes, madeira e penas, cocares e vários outros enfeites, além dos
vários tipos de chocalhos e instrumentos de percussão.
5.1.4.2. ENTIDADES ESPIRITUAIS
As várias entidades que compunham o panteão espiritual dos Pataxó desapareceram
paulatinamente da sua cosmologia com o processo de catequese católica, restando alguns
poucos personagens que parecem possuir mais um caráter folclórico do que divino nas suas
mentes. Crêem que Txopai (Deus) deu origem a tudo e inclusive já viveu aqui na terra com
os Pataxó, indo depois para o Itôhã (céu) onde vive e governa o mundo. É difícil,
entretanto, determinar se esta história vem da tradicional cosmologia Pataxó ou se trata de
uma adaptação do ensino bíblico da encarnação.
5.1.4.2.1. HAMÃY
Hamãy é “a protetora dos animais”, mas que também protege os Pataxó quando
estes não a entristecem. Vive na natureza e se enfurece se alguém ferir um animal e deixalo escapar, pois terá muito trabalho para curá-lo. Possui um abrigo para onde leva todos os
animais feridos para tratá-los, podendo induzir algumas pessoas até este abrigo se assim o
quiser. Ela também pode aparecer para as pessoas de várias formas e mesmo confundi-las
na floresta, não deixando-as encontrar o caminho para casa, quando abusam da sua
autoridade (Pataxó, 1997a.20). Entretanto, na nossa pesquisa não foi possível verificar se
Hamãy possui valor religioso ou apenas lendário. Parece que esta última opção é a mais
real, não havendo muita importância religiosa desta entidade na sua cosmologia.
5.1.4.2.2. CAMUNDERÊ79
Descrito como “um bicho muito cabeludo... perigoso... assustador”, o Camunderê
faz parte das lendas Pataxó como personagem que no passado “comia” crianças durante a
noite e que ninguém sabia onde ficava a sua boca. Certo dia, um velho e sábio índio se
escondeu e quando o Camunderê se aproximou de uma criança para devorar, o índio
descobriu que sua boca ficava nas proximidades do umbigo, sendo o único local que
79
Ver anexo 01: 4.1. O Camunderê.
Minas Indígena 99
golpeado poderia levar aquela criatura à morte. Desta forma, o índio acertou uma flecha na
boca da criatura que veio a morrer. Entretanto a história do Camunderê não terminaria aí,
pois a partir de então ele teria se transformado numa “assombração”: “apesar de estar
morto, até hoje existe assombração desse bicho perigoso” (Pataxó, 1997a.23).
Parece que estas são as duas, pelo menos principais, entidades espirituais que
restaram da antiga cosmologia Pataxó, mas não há rituais de veneração ou devoção a elas,
apenas respeito. No caso do Camunderê, tudo indica que eles o encaram apenas como uma
figura mitológica. Há indícios de veneração da lua, mas parece serem casos isolados, não
envolvendo todo povo. Segundo Kanátyo (Pataxó, 1997a.25), sua mãe venera a lua
fazendo orações para ela sempre que está cheia, crendo que esta a livra de vários males.
5.1.4.3. CASA DE REUNIÕES
Ao contrário da maioria dos grupos indígenas de Minas, os Pataxó não preservaram
objetos sagrados, nem mesmo para os seus rituais. Fazem uso da Casa de Reunião –
Cabana – que apesar de ser o local do awê, não chega a ser considerada sagrada por todo o
povo, a não ser por alguns como Kanátyo, que atribui caráter sagrado também à pedra, à
floresta e ao canto dos pássaros (Dutra, 1998.12). Esta é bem característica, com um
formato redondo, construída com grossos troncos de madeira, coberta por capim e possui
uma espécie de parede também de madeira com não mais que um metro de altura. É
realmente uma construção encantadora e por eles muito bem preservada. Ali realizam não
apenas as danças cerimoniais mas também as demais reuniões comunitárias.
5.1.5. ESTUDO DE PODER SOCIAL
A organização política dos Pataxó é centrada no chefe familiar, que ao seu modo
lidera sua família e responde por ela junto ao grupo. O sistema de liderança é simples, com
um cacique e subcacique para cada vilarejo, não havendo mais a função de pajé.
5.1.5.1. CACIQUE
Os caciques Thyundayba, Mangagá e Bayara lideram cada um uma aldeia ou
vilarejo, e juntos lideram todo o grupo. Não há qualquer ascendência hierárquica entre eles,
mas Thyundayba se destaca em influência por ser o líder da aldeia maior e também
vereador do município de Carmésia já no quarto mandato. Pesa também o fato de ter sido o
primeiro a migrar para a Fazenda Guarani em 1975, com sua esposa, quatro filhos e nora.
Aos caciques compete liderar o grupo nas decisões e iniciativas comunitárias, bem
como representá-lo externamente. Quando equipes saem para realizar apresentações em
Minas Indígena 100
escolas ou afins das cidades vizinhas, é o cacique quem escolhe ou indica. Também no
awê, é ele quem lidera a dança, dado ao fato de não possuírem mais pajé. São escolhidos
de forma democrática para mandatos de tempo indeterminado.
5.1.5.2. SUBCACIQUES
Geralmente chefes de famílias influentes de cada vilarejo, os subcaciques possuem
as mesmas especificações dos caciques só que na ausência destes. Entretanto, pela posição
de confiança e simpatia que detêm, a palavra dos mesmos são influenciadoras nas decisões.
5.1.6. PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
É latente a necessidade que os Pataxó de Minas sentem de afirmarem a sua
indianidade à sociedade externa. Parece que pelo fato de terem perdido a sua língua e
grande parte da sua cultura tradicional80, eles sentem a necessidade de demonstrar
publicamente que ainda assim continuam sendo indígenas, o que procuram fazer
principalmente através da venda de artesanato que é o principal contato e meio de interação
que têm com a sociedade externa. Parece que Faria (1992.90) percebeu com precisão este
sentimento e conseguiu expressá-lo com criatividade. Ela comenta que “cada peça
funciona como uma espécie de ‘atestado’ que é passado adiante e circula por membros da
sociedade nacional, fazendo com que todos os que o vejam saibam que os índios Pataxó o
produziram e, portanto, existem”. Mas é fácil perceber também, que a sua cultura se
manifesta em várias outras características da sua sociedade. Vejamos algumas:
5.1.6.1. POSSE COMUNITÁRIA DA TERRA
Certamente esta é uma das principais manifestações culturais da indianidade
Pataxó, pois como os demais grupos indígenas eles não têm a terra como propriedade
privada ou particular, não nutrindo o sentimento de posse pessoal. A terra é para eles um
bem comum, meio de sobrevivência, pertencente a todo grupo.
Mas há uma particularidade no caso dos Pataxó, pois enquanto na maioria dos
grupos não apenas a posse, mas também a exploração da terra é comunitária, recaindo
geralmente sobre o cacique a responsabilidade de determinar onde deve ou não fazer
cultivo, os Pataxó transferem a responsabilidade de exploração para as famílias (Faria,
80
Faria (1992.79) faz uma análise mais precisa acerca dos fatores modificadores da sua estrutura social,
apontando como primeiros e principais “o contato prolongado e, ao que parece, ininterrupto, entre os Pataxó
e a sociedade nacional, o aldeamento compulsório, a ação dos agentes governamentais e a sedentarização
forçada”.
Minas Indígena 101
1992.84). Isto é conseqüência da centralidade do chefe de família no sistema político. Cada
família tem o direito de cultivar um determinado pedaço de terra como bem lhe entender,
obviamente, desde que não prejudique a comunidade como um todo. Desta forma, as
plantações são realizadas em conjunto pela família nuclear, envolvendo geralmente pais,
filhos ou irmãos, ou mesmo genros, dependendo das negociações e interesses de cada um,
e não mais pelas famílias extensas.
5.1.6.2. CASAMENTO
Com um desejo intencional de resgatar pelo menos parte da sua cultura tradicional,
os Pataxó em escala ascendente vêm resgatando alguns costumes relacionados ao
casamento. Angthichay Pataxó (1997a.13) relata como estes acontecem:
No dia do casamento, os pais dos noivos, juntamente com os caciques, marcam o
lugar de onde o noivo começará a carregar a pedra. O rapaz carrega a pedra até o
local onde será realizado o casamento. Chegando lá, ele põe a pedra no chão e, ali
mesmo, os noivos trocam de cocar e, naquele momento, é realizada a cerimônia.
Depois da realização do casamento, todos os membros da comunidade vão para a
casa dos noivos beber cauim e festejar até o raiar do novo dia. Geralmente, os
Pataxó casam bem novos, entre doze e treze anos, mas hoje isto já está mudando e
estão se casando entre os quatorze, dezesseis e até os dezoito anos.
Faria (1992.80) explica este ritual ressaltando a pequena adaptação que sofreu na
Fazenda Guarani. Segundo ela, em Barra Vermelha o jovem deveria carregar, ao invés da
pedra, uma tora de madeira da floresta até o centro da aldeia, como comprovação da “sua
capacidade de transportar sua esposa, caso ficasse doente, ferida ou impedida de
locomover-se de onde estivesse até a aldeia”.
O cacique Thyundayba81 nos explicou que os casamentos intraétnicos são
realizados apenas na aldeia, de acordo com ritual acima descrito e seguido sempre pelo
awê. Já os casamentos interétnicos com não-índios são realizados também nos cartórios
civis, explicando que “no casamento com os branco, a moça num herda nada se não casar
no cartório, enquanto aqui ela herda de qualquer jeito”. Vale ressaltar, que com o
crescimento populacional os casamentos interétnicos vão ficando cada vez mais raros.
5.1.6.3. PRODUÇÃO ARTESANAL
A produção artesanal era tradicionalmente considerada pelos Pataxó como
atividade secundária, exercida em momentos não dedicados às atividades consideradas
81
Em entrevista do dia 09/05/02.
Minas Indígena 102
mais importantes. Entretanto, quando a partir de 1970 o fluxo turístico aumentou
assustadoramente em Porto Seguro, por ter sido ali realizada a primeira missa no Brasil, os
Pataxó passaram a ver o artesanato como uma fonte de renda, mesmo porque estavam
ameaçados com a redução do seu território, quando da criação do Parque Monumento
Nacional do Monte Pascoal. Faria (1992.87) informa que o incremento do artesanato
deveu-se à atuação do primeiro chefe de Posto da FUNAI em Barra Vermelha, que trouxe
para os Pataxó modelos do artesanato dos Xerente, e partir destes eles criaram novas
formas, de acordo com a aceitação do público.
O grupo de Minas produz artesanato numa escala considerável, vendendo nas
cidades vizinhas, aos visitantes da aldeia – aliás esta é uma das razões da sua calorosa
receptividade, pois todo visitante é visto como um cliente em potencial – e quando
convidados para apresentações em escolas ou afins, levam artesanato em abundância.
A produção é familiar, ficando os homens encarregados de talhar a madeira, fazer
arcos, flechas, lanças, cocares, tangas, pentes, colheres e gamelas, enquanto as mulheres
trabalham com as penas, enfeitando a produção masculina que exige esse tipo de adorno,
além de trançarem esteiras, chapéus e confeccionarem colares. As crianças também
participam ficando encarregadas das cestarias e dos acabamentos. Obviamente, tudo isto é
realizado de forma bem natural, sem qualquer rigidez, podendo variar de funções
dependendo do momento ou disposição de cada um. A existência de matas na Fazenda
Guarani facilitou a produção, principalmente dos objetos de madeira. Assim, grande parte
do tempo é dedicado à produção artesanal que é uma das principais atividade do grupo. É
interessante também observar o critério usado para atribuir preço às peças. Como na sua
visão a matéria-prima é dada pela natureza, não podendo portanto ser avaliada em termos
quantitativos, o preço é dado de acordo com a habilidade do artesão e com o tempo gasto
na confecção do objeto. A maior ou menor aceitação do produto no mercado, também é
levado em conta.
Outro produto muito peculiar dos Pataxó é o cauim, que é uma bebida feita da
mandioca, podendo utilizar também o abacaxi e o gengibre. Esta bebida é para o consumo
interno, não sendo comercializada, e é sempre consumida durante o awê, principalmente
em festas de casamento, quando, às vezes, acompanha um churrasco, sendo considerada
também como medicinal (Dutra, 1998.12)
5.1.7. SOBREVIVÊNCIA
A produção artesanal é um dos principais meios de sobrevivência dos Pataxó,
assim como a produção agrícola de subsistência. Entretanto, outros meios de
Minas Indígena 103
sobrevivência vêm sendo introduzidos na comunidade, como a piscicultura (criação de
peixes) e apicultura (criação de abelhas). Estes projetos tem sido um sucesso, mas
principalmente a piscicultura pois os mesmos não dispõem de rios onde possam pescar. A
criação de peixes tem melhorado a qualidade de vida dos Pataxó, que além de se
beneficiarem do produto para o consumo interno, começam a comercializá-lo. Já a
apicultura é um projeto mais recente não dando ainda grandes resultados, mas todos estão
com muita expectativa de sucesso. Para estes projetos eles contam com a participação de
entidades como a EMATER, SEE/MG, Prefeitura Municipal de Carmésia, além de ONG’s
como o CEDEFES e o CIMI (Mattos, 2000b.15).
Recentemente outras fontes de renda têm surgido e em muito contribuído para a
manutenção de várias famílias, bem como de todo o grupo. Os mais idosos conseguiram
aposentadoria, dez professores formados pelo Projeto UHITUP no Parque Estadual do Rio
Doce foram admitidos como professores indígenas remunerados para as duas escolas.
Também foram admitidos quatro agentes de saúde e dois auxiliares de enfermagem.
5.1.8. PROBLEMAS SOCIAIS
5.1.8.1. PRODUÇÃO AGRÍCOLA
Apesar de serem tradicionalmente caçadores-coletores e semi-nômades, quando
submetidos pelos colonizadores a um estilo de vida sedentário, os Pataxó da Bahia se
tornaram exímios agricultores, produzindo não apenas para seu consumo mas também para
comercialização. Entretanto, quando migraram para a Fazenda Guarani o solo da mesma já
estava desgastado com o cultivo de café o que limitou a capacidade de produção agrícola.
Ainda assim, produzem milho, feijão, arroz, cana, banana, mandioca, laranja e
outros produtos, mas em pequena escala, apenas para seu próprio consumo. Alguns ainda
tentam comercializar o excedente, mas acabam desanimando devido ao preço não ser tão
atrativo. Entretanto, eles têm recursos humanos para produzir muito mais e a suas terras
têm condições de propiciar uma produção maior, desde que seja devidamente revigorada.
5.1.8.2. TRANSPORTE
Não havendo meio de transporte que ligue a aldeia a qualquer cidade, contam com
apenas dois veículos que esporadicamente estão à sua disposição: a Toyota da FUNASA e
Minas Indígena 104
um veículo da FUNAI. A outra opção é se deslocar até a cidade de Carmésia – a 7 km – a
pé ou de bicicleta. Quando são convidados para realizar apresentações em outras cidades se
vêem com dificuldades de se deslocarem em um grupo maior, inclusive pelo fato de
levarem artesanato em abundância.
5.1.8.3. COMUNICAÇÃO
Como o contato com a civilização externa é intenso e constante, os Pataxó tem
sentido falta de um meio de comunicação. Seus parentes da Bahia, bem como os que estão
espalhados em Belo Horizonte, Mato Grosso e Belém não conseguem entrar em contato.
Assim, eles têm solicitado um telefone público para a aldeia.
5.1.9. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA
Apesar de não haver nenhum missionário atuando entre os Pataxó, há duas igrejas
que já reúnem um grupo considerável de membros das três aldeias. Mas há necessidade de
um trabalho de instrução pois os convertidos são pessoas simples e com pouca base
bíblica, apesar da vivacidade da sua fé.
5.1.9.1. ASSEMBLÉIA DE DEUS
Algumas famílias foram alcançadas pelo evangelho, através das Assembléias de
Deus, ainda na Bahia e uma destas migrou para a Fazenda Guarani. A partir de 2001 a
igreja de Carmésia começou a dar-lhes assistência e hoje já reúnem cerca de vinte pessoas
em cultos semanais, sendo inclusive benquistos pelo restante do grupo.
5.1.9.2. IGREJA PENTECOSTAL MISSIONÁRIA
Também da cidade de Carmésia, tem dado assistência às aldeias reunindo cerca de
dez pessoas. O trabalho desta não tem sido tão expressivo e parece não gozar da mesma
simpatia que a Assembléia de Deus.
Segundo o cacique Thyundayba, há também alguns espíritas82, mas particularmente
ele simpatiza com os evangélicos. Parece que esta sua simpatia tem influenciado o restante
do grupo, pois ele já esteve numa igreja evangélica por cinco anos, até que ficou viúvo e se
juntou a outra mulher deixando assim a igreja. Seu testemunho é impactante:
82
Não foi possível definir que tipo de espíritas: se kardecistas ou populares.
Minas Indígena 105
No momento eu não tenho religião, eu tenho fé em Jesus (...) agora, eu tenho
vontade de dedicar somente à crença, porque na crença a fé da gente é somente em
Um, então você tem que obedecer a Ele83.
5.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS
Vale a pena considerar desde já, que os Pataxó estão totalmente abertos ao trabalho
missionário devido a vários fatores. Um deles é que o fato de estarem em contato com a
civilização externa há muitos anos e terem recebido muito influência católica, a categoria
“cristão” não é algo tão distante e alienígena para eles. É positivo também o fato do
catolicismo não haver se tornado a “religião oficial” do grupo, pois apesar de
demonstrarem claramente a influência católica na sua cosmovisão, não se identificam
como tal. A presença de um grupo evangélico entre eles, pelo menos aparentemente não
sendo discriminados, é por demais significante, pois aponta para a consciência de alguém
poder ser cristão e continuar sendo índio. Aliás, a maioria dos convertidos Pataxó
participam sem dificuldade do awê, o considerando puramente cultural, sem qualquer
conotação religiosa. Uma das convertidas da Assembléia de Deus, testemunhou que no
grupo onde não há nenhum evangélico, durante o awê acontecem casos de manifestação
demoníaca, enquanto no grupo dela, onde estão os evangélicos isto não acontece. Outro
fato ainda, é a simpatia do cacique Thyundayba ao evangelho e o seu testemunho de que
mesmo sendo “crente” por cinco anos, nunca deixou de ser índio84. É também positivo o
pouco envolvimento deles com entidades de caráter antropológico, que via de regra
procura restringir o trabalho missionário. Dada ao seu grau de autonomia e poder de
manipulação, é provável que a FUNAI também não teria como colocar objeções.
Devemos considerar também que um trabalho missionário qualquer entre os Pataxó
deve levar em consideração o grupo de evangélicos ali já existente, principalmente o
trabalho da Assembléia de Deus que goza de boa simpatia do povo. Ali há pessoas
83
Em entrevista do dia 09/05/02.
A capacidade de assimilação do evangelho pelo cacique Thyundayba é fascinante, como nesta palavra
proferida em conversa pessoal:
Quando um índio na aldeia osasse com uma filha dele, ou irmã dele, ou mãe dele, o cacique ia lá,
chamava o capitão, mandava chamar a família, mandava ele ficar de joelhos ali, metia o pau, matava
ele de pancada, fazia uma carreira de fogo, queimava e pegava aquele restim de cinza que sobrasse e
jogava dentro d’água, para que não ficasse gente ruim, pois gente ruim não prestava. Se ele ficasse
ali, ia casar e sair mais gente ruim pra fazer o mesmo que ele fez. Então, pra evitar isto matava ele
que não fazia mais, e outro que entrasse ia evitar também, para não acontecer o mesmo. E isto está
escrito na Bíblia e Deus falou pra esse índio esse pensamento. Então, eu acho que o certo é a pessoa
ser crente porque só acredita em Deus único.
84
Minas Indígena 106
realmente convertidas e com fé vívida no evangelho, necessitando de instrução bíblica e
conscientização da necessidade de evangelização.
5.2.1. CENTROS ESTRATÉGICOS
Nas proximidades da reserva há a cidade de Carmésia – a 7 km – e a Vila
Esperança – a 15 km – sendo esta última, como o nome já indica, uma pequena vila às
margens da rodovia que liga a região à capital Belo Horizonte. Ambas são pequenas e com
poucos recursos, mas dada a localização da reserva sem dúvida seriam os centros mais
estratégicos. Além destes, seria possível o estabelecimento de uma base na cidade de
Guanhães, mas esta dista 50 km, o que torna não tão viável um trabalho a partir dali. Vale
ressaltar que esta última é uma cidade com maior estrutura e com igrejas grandes.
5.2.2. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS
Devido ao seu positivo envolvimento com o povo seria prudente e viável trabalhar
no mínimo em parceria com a Assembléia de Deus de Carmésia e esta certamente estaria
aberta para isto. Entretanto, a mesma se trata de uma igreja pequena, de poucos recursos e
com uma limitada visão da conscientização missionária, sendo assim necessário um
trabalho de conscientização. Outra possibilidade real e viável é com igrejas de Guanhães,
pois ali estão presentes, além de outras, a Igreja Presbiteriana e Assembléia de Deus,
ambas grandes e bem estruturadas. Estas poderiam servir como base de um trabalho
missionário, bem como assumir o trabalho em si.
5.2.3. ABORDAGEM COSMOLÓGICA85
Um fato curiosíssimo na cosmologia Pataxó é a história de Txopai e Itôhã, sobre a
qual eles até publicaram um livro86 para uso nas escolas e perpetuação da história. Segundo
esta lenda, quando na terra só existia animais, Txopai (Deus) desceu à terra através de uma
gota d’água da chuva e trouxe muita sabedoria, como a época certa de plantar e colher, a
forma como caçar e pescar, e como descobrir as ervas medicinais. Admirava a beleza do
85
Os Livros O Povo Pataxó e Sua História, e Txopai e Itôhã podem em muito ajudar na compreensão da
cosmologia Pataxó, pois consistem em lendas e na história do povo contadas pelos próprios Pataxó. Ver
PATAXO, 1997a e b nas Referencias Bibliográficas.
86
O Txopai e Itôhã (Deus e Céu), de autoria de Kanátyo Pataxó, foi publicado em 1997 numa parceria do
MEC/UNESCO/SEE-MG. O autor tem se destacado como escritor, compositor e poeta do povo Pataxó,
tendo grande participação também no livro O Povo Pataxó e Sua História, publicado no mesmo ano pela
mesma parceria. É professor, formado pelo Projeto UHITUP e um dos articuladores do grupo.
Minas Indígena 107
dia, da noite e das estrelas, fazia fogueira para se esquentar à noite e era aquecido pelo sol
durante o dia. Os demais indígenas vieram a existir também através de gotas d’água das
chuvas, povoando assim toda a terra. Txopai então passou seus conhecimentos aos demais
índios e quando estes já sabiam como viver, ele “se despediu dando um salto, e foi
subindo... subindo... até que desapareceu no azul do céu, e foi morar lá em cima no
‘ITÔHÃ’” de onde protege os indígenas aqui na terra. É por isto que na sua definição
poética, Kanátyo diz que “Pataxó é água da chuva batendo na terra, nas pedras, e indo
embora para o rio e o mar” (Pataxó, 1997b).
Na pesquisa de campo não foi possível descobrir se esta história vem da antiga
cosmologia Pataxó ou se é uma adaptação do ensino bíblico da encarnação de Cristo,
transmitida a eles pelos católicos, mas é fato que a mesma está impregnada nas suas
mentes, fazendo parte da sua cosmovisão e consequentemente influenciando toda a sua
concepção de mundo e divino. E como esta história tem sido usada na escola como livro
texto para suas crianças, além da sua transmissão oral, certamente continuará nas gerações
futuras. Desta forma, um bom uso desta lenda como ponte para a pessoa de Cristo, pode
surtir um grande efeito no grupo Pataxó, ou no mínimo, ser uma porta de entrada para sua
cosmologia.
5.2.4. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS
5.2.4.1. DISCIPULADO E ENSINO BÍBLICO
Dada a sua abertura e a já existência de um grupo de convertidos com plena
liberdade de culto e expressão religiosa, bem como do seu conhecimento geral do
cristianismo pela vertente católica, é possível um trabalho direto de discipulado e ensino
bíblico com este grupo de convertidos, bem como de evangelismo com o restante do povo.
Como já comentado, há várias pessoas genuinamente convertidas ali, gozando de boa
credibilidade por parte do restante do povo. Desta forma, estes convertidos munidos de
conhecimento bíblico e fervor evangelístico teriam condições de evangelizar os demais,
principalmente se focalizarem o trabalho em famílias que é o ponto forte da organização
social dos Pataxó.
Os professores seriam pessoas estratégicas, pois tem exercido forte influência em
toda esta geração de crianças e adolescentes, bem como os caciques que são líderes
respeitados por todo o povo. Ao que parece, até então isto não tem sido feito, pois ambas
as igrejas que ali atuam têm focalizado seu trabalho na realização de cultos nos lares
Minas Indígena 108
buscando obter mais convertidos. Um trabalho de instrução bíblica e discipulado poderia
ser realizado em parceria com estas igrejas, ou pelo menos com a Assembléia de Deus.
5.2.4.2. SAÚDE
A assistência na área de saúde tem sido razoável, pois além da presença constante
de uma enfermeira indígena – técnica, do povo Pankararu – na reserva, bem como dos
agentes de saúde, um médico da cidade de Carmésia faz atendimento nas aldeias uma vez
por semana, e eles ainda contam com o veículo da FUNASA que fica à sua disposição para
estes fins. Entretanto, mais profissionais nesta área certamente seriam bem-vindos,
principalmente na área odontológica, onde realmente precisam de uma atenção maior.
5.2.4.3. AGRONOMIA
O solo da reserva Pataxó é de excelente qualidade, mas está desgastado pelo
prolongado cultivo de café pelos fazendeiros que ali viveram durante décadas. É necessário
um trabalho de revitalização do solo para que possam produzir em maior escala, o que
seria de grande valia para todo o povo.
Minas Indígena 109
6. OS PANKARARU
Antes dos portugueses invadirem, nós índios tínhamos nossos costumes.
Os índios não adoeciam, mas foram tirando nossas riquezas e
deixando doenças, troca que nos trouxe muitas mortes.
Fabiana Pankararu87
6.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL
Após anos compartilhando com outros grupos indígenas o mesmo território, o
grupo Pankararu de Minas Gerais vive agora no seu próprio território onde tem liberdade
para desenvolver e reafirmar suas tradições culturais, produzir o necessário para sua
manutenção e alimentar o sonho de um dia ser um grande grupo vivendo de acordo com
seus costumes e desfrutando dos benefícios que a terra lhes oferece. Apesar de ser o menor
dos grupos indígenas do Estado, os Pankararu vivem relativamente bem, se relacionando
pacífica e amigavelmente com a sociedade regional, inclusive recebendo desta um
considerável apoio.
6.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA
6.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA E SITUAÇÃO DEMOGRÁFICA
Os Pankararu de Minas consistem em um pequeno grupo migratório do povo
Pankararu de Pernambuco, especificamente da aldeia conhecida como Brejo dos Padres, no
município de Tacaratú. De lá migraram na década de 1950, devido o grave problema da
seca e vários conflitos88 com posseiros, resultantes da construção da hidrelétrica de
Itaparica, no Rio São Francisco, que inundou a maioria das terras férteis da região
(Caldeira, 2001c.35). Como é característica cultural deste povo, eles se dividem em
famílias nucleares e assim este grupo que migrou para esta região nada mais é do que uma
família. Antes de chegar em Minas Gerais, conviveram com os Krahô, Xerente e Karajá, e
87
Em Thydêwá (internet).
Segundo Torres (internet), “entre todas as comunidades (de Pernambuco), é a mais envolvida em conflitos
pela posse da terra, embora a sua presença na região desde séculos atrás, seja incontestável”.
88
Minas Indígena 110
quando finalmente aqui chegaram foram recebidos pelos Pataxó da Fazenda Guarani, em
Carmésia, onde permaneceram por onze anos e estabeleceram laços matrimoniais com os
próprios Pataxó e também com os Krenak.
O grupo consiste numa família nuclear, tendo como progenitores o idoso casal
Eugênio Cardoso da Silva e Benvina Vieira, somando ao todo vinte pessoas, sendo dois
idosos, nove adultos e nove crianças. Quanto à origem étnica, são dezessete Pankararu, três
Pataxó e uma Krenak, distribuídos da seguinte forma:
Progenitores: Eugênio e Benvina
Filho/nora:
Cláudio e esposa (Krenak)
Filho/nora:
Ivan e Jossiléide (Pataxó)
Filha/genro:
Cléide e Dimas (Pataxó)
Filha/genro:
Cleonice e César (Pataxó) – residentes fora da aldeia.
A estes acrescenta-se mais um filho solteiro, e as nove crianças que, mesmo
possuindo pai ou mãe de outro grupo são consideradas Pankararu.
Vale ressaltar, que somente em Pernambuco os Pankararu somam cerca de seis mil
indígenas, e em São Paulo vivem cerca de mil pessoas, na favela do Real Parque, próximo
ao Morumbi, às margens do Rio Pinheiros.
6.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA
Segundo Prezia (2000.239) a família étnica é formada pelos Pankararu, Pankararé e
Pankaru. Arruti (1996.23) sugere outros grupos como membros da mesma família, mas
parece que esta sugestão não é tão bem comprovada como a classificação adotada por
Prezia.
6.1.2. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA E SITUAÇÃO TERRITORIAL
Em 1993, os Pankararu iniciaram o processo de articulação89 por uma terra onde
pudessem desenvolver melhor a sua cultura, e um ano depois conseguiram sensibilizar a
Diocese de Araçuaí, que doou 60 hectares de terra de uma fazenda chamada Alagadiço, no
município de Coronel Murta, Médio Vale do Jequitinhonha. Para lá se transferiram em
junho de 1994, onde com apoio de ONG’s, políticos e pastorais construíram a aldeia
89
A principal mentora deste processo foi a indigenista Geralda Soares, que conhecendo os Pankararu na
Fazenda Guarani e vendo o seu desejo de possuírem um território próprio, se dispôs a ajudá-los na
articulação. Não conseguindo terras no Vale do Rio Doce nem no Vale do Aço, devido ao elevado preço,
contactou o Bispo da Diocese de Araçuaí que se dispôs a doar, em esquema de comodato, os 60 hectares
onde hoje vivem.
Minas Indígena 111
Apukaré, com quatro casas de alvenaria para os respectivos casais, uma quadra de futebol,
canalização de água e energia elétrica. Mas apesar de possuírem água canalizada, não
havia rios no seu território, o que dificultava sua vida e produção. Foi quando em 2000, a
Igreja Metodista, através do GTME, doou-lhes mais 8 hectares de terra estendendo seu
território até o Rio Jequitinhonha que rega toda aquela a região.
A aldeia está localizada à margem esquerda da rodovia que liga as cidades de
Araçuaí e Coronel Murta, distando apenas 7 km desta última, 33 km da outra e cerca de
270 km de Belo Horizonte. A aldeia dista pouco mais que 1 km da rodovia, sendo este
trecho estrada não pavimentada.
6.1.3. SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA
Desde há muito os Pankararu perderam sua língua tradicional, falando hoje apenas
o português. Nas cantorias dos seus rituais religiosos há palavras da sua antiga língua, mas
apesar de preservá-las, nem eles mesmos sabem bem o significado. Segundo Prezia
(2000.239), Aryon Rodrigues os classificou apenas como um grupo que perdeu sua língua
tradicional, mas é provável que eram falantes de alguma língua do tronco Macro-Jê.
6.1.4. RELIGIOSIDADE
Apesar de numericamente reduzidos, a religiosidade Pankararu é forte e arraigada,
gerando assim um forte sincretismo religioso, pois oficialmente são considerados católicos.
O próprio nome da aldeia de origem – Brejo dos Padres – já indica uma atuação católica
junto a este grupo. Brejo dos Padres é o resultado de um aldeamento dos capuchinhos e
apesar de não haver consenso quanto à época de fundação, sabe-se que é muito antigo.
Torres90 (internet) informa que “acha-se envolvida em lendas ou suposições a época da
fundação do aldeamento, havendo, porém, indícios de que seja de 1802”. De qualquer
forma, podemos afirmar que a catequese católica junto aos Pankararu remonta a quase dois
séculos, o que indica que várias gerações foram influenciadas. Mesmo assim, sua
religiosidade tradicional é ainda muito forte, o que indica por sua vez um alto grau de
resistência religiosa, provavelmente conseqüente de traços animistas na sua arraigada
cosmovisão.
90
Almir Torres é índio da Tribo Fulni-ô, da cidade de Águas Belas, mora no Recife e criou um site sobre os
Índios de Pernambuco. Ver TORRES nas referências bibliográficas.
Minas Indígena 112
Eles se identificam como católicos e veneram vários dos seus santos, entretanto,
acham possível conciliar sua catolicidade com sua tradicional religião, como fica claro nos
textos abaixo, ambos registrados por índios Pankararu:
Porque nós somos católicos (...) Nós acreditamos em Deus, no bom Jesus da
Lapa, em Nossa Senhora, nos Santos. Mas não achamos que é a mesma coisa.
Deus acima de tudo e depois os Praiá que nos acompanham e nos protegem –
ensina sempre mãe Benvina Pankararu (Relatório, 2000.18)
Nós adoramos os Praiá, que em nossa tradição é Deus, que nos dão até hoje a
resistência, a luz, a força. São nossos próprios ancestrais que nos protegem (...)
Nossa religião é indígena. Nós passamos de pais para filhos, nós seguimos
nossos costumes (Thydêwá.Internet).
Desta forma, podemos classificar os Pankararu como católicos sincretistas, com
fortes traços animistas. As palavras da indigenista Vanessa Caldeira (2001c.37) são
ratificadoras neste sentido:
O sincretismo religioso compõe a realidade pankararu, assim como compõe a
realidade de grande parte das populações indígenas no país. Ser católico e possuir
uma crença indígena simultaneamente não significa problema para os Pankararu.
Acreditar em Deus e nos Praiás, participar do ritual do batismo da Igreja Católica e
realizar o ritual do Menino no Rancho, rezar o Pai Nosso e cantar para os Praiás
compõe hoje a cosmologia, a forma dos Pankararu perceberem e compreenderem o
mundo.
6.1.4.1. DANÇAS CERIMONIAIS
As danças cerimoniais Pankararu são marcadas pelas cantorias, indumentárias e
pinturas corporais, bem como pelos vários instrumentos, como flauta, o maracá e o apito
“rabo de tatu” (Relatório, 2000.18). São muito freqüentes e constituem a principal
manifestação cultural e religiosa dos Pankararu.
6.1.4.1.1. TORÉ
Os grupos indígenas do Nordeste, quase na sua totalidade, adotaram a expressão
Toré para suas danças cerimonias, mas cada um pratica o mesmo à sua forma, sendo
comum a dança, cantorias e o uso de alguma bebida que geralmente é peculiar a cada
grupo. Desta forma, os Pankararu também chamam de Toré sua dança tradicional, que
além de ser realizada em datas específicas e expontâneas, sempre estão presentes nos
demais rituais religiosos. No caso do Toré dos Pankararu, Torres (internet) faz uma
excelente descrição:
O Toré é dançado ao ar livre por homens, mulheres e crianças, em qualquer época
do ano, dependendo apenas da disposição da comunidade. Para os Pankararu, o
Minas Indígena 113
Toré é uma expressão de contentamento, um folguedo a que se entregam
freqüentemente "se a vida não estiver muito difícil pela falta de chuva". Dança-se,
de preferência, nos fins de semana "sem hora para terminar, varando noite e dia"
em certas ocasiões.
O local da dança é um terreiro onde os participantes, aos pares, formam um grupo
compacto em formação circular que gira em torno do centro. Cada par, ao
acompanhar o movimento do grupo, gira também em torno de si próprio e o terreiro
é pisado furiosamente por todos marcando o ritmo da dança. Além do baque surdo
dos pés, o ritmo é marcado por maracás (elaborados com pequenas cabaças) e pelas
vozes em coro dos dançarinos. Os versos, de difícil compreensão, são "puxados"
pelo guia do grupo e cantados em português mesclado com expressões do dialeto da
tribo.
6.1.4.1.2. MENINO NO RANCHO
Este é o ritual de iniciação dos meninos do grupo nos segredos da sua religiosidade
tradicional, quando os mesmos atingem cerca de doze anos de idade. A cerimônia tem
lugar num rancho armado no centro da aldeia, especificamente para este fim, sendo o
menino – ou meninos – pintado de branco e vestido de palha de croá. Dois grupos são
formados para disputar a criança, um pelos praiás – protetores mágicos, que dançam
vestindo suas indumentárias – e o outro pelos padrinhos do menino – que dançam pintados.
Trava-se uma luta simbólica terminando sempre com a vitória dos praiás que introduzem o
menino no poró, onde passa uma temporada servindo ao seu praiá, aprendendo da cultura,
e quando também recebem o seu próprio praiá.. Como é um ritual tipicamente masculino,
a única participação das mulheres é na cantoria, enquanto os homens lutam entre si. Mas
devemos ressaltar aqui, que apesar das mulheres não participarem da dança ou disputa em
si, sua participação é de fundamental importância pois sem as cantorias não se pode
realizar o ritual. Uma informante de Torres (internet), da aldeia Brejo dos Padres, fez a
seguinte explicação deste ritual:
(...) é dedicada a Mãe D'água que ameaça roubar a criança. Temendo perder a
criança, a mãe promove a festa para apaziguar a Mãe D'água. Os Praiás, que são
em número de vinte e dois, são os padrinhos secretos da criança e escondem a sua
identidade com longas vestes, cobrindo totalmente os seus corpos (...) No final, um
banquete é servido a todos pela mãe da criança.
Na pesquisa de campo não conseguimos constatar se este é realmente o fundo
cosmológico do ritual91, pois não vimos nenhuma referência à Mãe D’Água. Contudo, não
podemos descartar a possibilidade deste relato ser verdadeiro.
6.1.4.1.3. DANÇA DO CANSANÇÃO
91
A Dona Benvina é bastante resistente em dar informações sobre suas tradições e cultura, e como ela ocupa
posição de respeito no grupo, tivemos dificuldade em colher maiores informações.
Minas Indígena 114
Há também a Dança do Cansanção, geralmente realizada no primeiro sábado do
mês de março, quando as mulheres do grupo trazem do mato cestos cheios de umbu e os
oferecem aos homens com os quais irão formar pares para os festejos. Estes com o corpo
pintado de branco tentam, durante a dança, livrar-se dos golpes de galhos de cansanção 92
que lhes são enviados. É uma prova de agilidade dolorosa para os perdedores.
6.1.4.1.4. OUTRAS CERIMÔNIAS
O grupo de Minas Gerais deixou de praticar várias outras cerimônias que em
Pernambuco ainda são muito praticadas. Algumas foram abandonadas em virtude das
diferenças geográficas e falta de produtos comuns à terra. Outras devido ao reduzido
número de adultos que aqui vive. Entretanto, tais cerimônias fazem parte da cultura
Pankararu e certamente voltarão a ser praticadas quando houver um grupo numericamente
viável.
Dentre outras, poderíamos destacar a Festa do Umbu, realizada no início do ano,
quando aparecem os primeiros frutos do umbuzeiro. O primeiro fruto encontrado é trazido
“ao dono do terreiro poente” e preso a um fio entre duas forquilhas, onde os índios tentam
flechar o umbu. Os participantes se pintam de branco, usando vestes de palha de ouricuri
ou croá, armados de arco e flecha. Aquele que consegue flechar o umbu recebe como
prêmio um resistente cipó. Começa então a prova do puxamento do cipó, na qual um grupo
ao lado do nascente procura arrastar outro colocado ao lado do poente.
Há também a Dança dos Bichos, na qual os ganhadores são os que melhor
conseguem representar os movimentos de animais como o porco, o cachorro, a formiga e o
sapo.
6.1.4.2. ENTIDADES ESPIRITUAIS
6.1.4.2.1. PRAIÁS
“Os ‘praiás’, são os ‘encantados’, pessoas que têm o status de receberem espíritos
dos ancestrais para curas, vidências e outras práticas espirituais”93. Na prática, tanto os
espíritos dos ancestrais como os “encantados” que recebem estes espíritos são chamados de
praiás. São estas entidades que protegem os Pankararu e os orientam quanto aos seus
92
Vegetal que traz tanto no seu caule como nas folhas, uma grande quantidade de espinhos que causam
inchaço, coceira e queimação.
93
Em correspondência pessoal (28/05/02) do Missionário Élio Moraes, da MNTB, que trabalha com os
Pankararu no Pernambuco.
Minas Indígena 115
rituais e tradições. Participam de todos os rituais praticados na aldeia, quando alguns
homens do grupo pintam o próprio corpo e se vestem com as indumentárias feitas de croá –
um saiote que cobre até os pés e uma máscara ou peruca, que cobre toda a cabeça, rosto e
parte superior do corpo, de modo a ficar difícil identificar a pessoa durante a noite escura.
Os homens se enfeitam fora da aldeia e ao adentrarem a mesma as mulheres e crianças
devem acreditar que não são homens, pois quando estes recebem um praiá, eles se
transformam no próprio praiá.
A crença nos praiás é sem dúvida o ponto da sua religiosidade mais arraigado
culturalmente. Não se sabe ao certo quantos destes seres compõem o universo cosmológico
Pankararu, mas há indícios de que sejam em número de vinte e dois (Torres.Internet). Cada
grupo possui um praiá como seu protetor, que no caso do grupo de Minas é o Apukaré, por
isto o nome da sua aldeia. Sabe-se também que cada praiá possui seu canto e sua história
(Caldeira, 2001c.37). Não dispomos de maiores informações acerca das peculiaridades
destas entidades, mas tudo indica que os próprios Pankararu não se preocupam com estas
informações.
6.1.4.3. LOCAIS SAGRADOS
6.1.4.3.1. PORÓ
Os Pankararu não possuem uma “casa de religião”, pois o Toré é realizado ao ar
livre, no terreiro, com a participação de todos, mas o poró para eles é sagrado. Trata-se de
uma pequena clareira aberta na mata para os homens se arrumarem para as cerimônias
(Relatório, 2000.18). É ali que eles colocam suas vestimentas rituais e saem como
personificadores dos praiás. Isto acontece sempre antes dos rituais, quando fumam no
cachimbo (campiô) e também ingerem a “garapa” ou “decitá” – caldo de cana, na ausência
da qual, dissolvem a rapadura fazendo um caldo similar, que é o caso do grupo de Minas94.
Nos intervalos da dança sempre retornam ao poró para ingerirem mais “garapa”. Neste
local é terminantemente proibida a presença de mulheres, pois é ali que os homens
recebem os praiás – ao que parece, no momento que fumam o cachimbo – e as mulheres
não podem presenciar este momento. Na verdade, parece que a sacramentalidade deste
local está mais relacionada ao costume de manter sigilo às mulheres quanto ao que
acontece ali95.
94
Segundo a indigenista Geralda Soares, que atualmente tem dedicado seus trabalhos aos Pankararu e Aranã.
Em entrevista do dia 11/07/02.
95
Em correspondência pessoal (28/05/02), o missionário Élio Moraes, afirmou ser este costume muito
semelhante ao exibido no filme “ee-taow”, do povo Mouk da Papua Nova Guiné, e ressaltou que lá, em
Minas Indígena 116
É na mata que o índio faz sua concentração e depois vem para dançar. Nós
fumamos o Campiô (cachimbo) para honrar o Ar, os Mestres. Em fevereiro e
março, temos a dança da cansanção. Eu incentivo os mais novos, as crianças, a
conhecerem nossa cultura (Thidêwá.Internet).
6.1.4.3.2. RANCHO
Consiste numa pequena cabana, quadrada, com quatro forquilhas e coberta por
capim. É construído especificamente para a festa “Menino no Rancho”, e por isto seu
caráter sagrado é temporário – apenas durante a cerimônia. Fica exatamente no centro da
aldeia, podendo ser destruído ao final da cerimônia ou não. Neste caso, é reconstruído
quando de outra cerimônia. Ali o menino é introduzido para ser disputado pelos padrinhos
e praiás, quando simbolicamente são passados a ele os segredos tradicionais do grupo.
6.1.5. ESTUDO DE PODER SOCIAL
Como o grupo Pankararu de Minas é composto apenas por uma família, é natural
que os progenitores exerçam liderança, pois os demais são filhos e netos. Desta forma, a
liderança natural seria do senhor Eugênio, chefe da família, pois no povo Pankararu a
liderança é exercida por homens. Entretanto, o mesmo ficou cego e isto tem limitado a sua
atuação. Assim, a dona Benvina tornou-se a principal articuladora do grupo e tem exercido
uma autoritária liderança, a ponto de quase causar uma nova cisão no pequeno grupo. Ela é
extremamente tradicional, prezando pelos seus costumes e rejeitando até ajuda externa, o
que vem causando sérias discussões entre ela e principalmente seu filho Ivan, que tem
como aliado suas duas irmãs. Apesar de exercer esta forte liderança, não há um título
atribuído à posição da dona Benvina, o que indica o costume de liderança masculina e não
feminina do povo.
Entretanto, como existem rituais dos quais a mulher não pode participar, o líder
religioso precisa ser necessariamente um homem. Assim, mesmo cego o senhor Eugênio
tem desempenhado a função de pajé do grupo, pois sendo o mais idoso é detentor dos
segredos da sua religião.
Outra pessoa que tem se destacado na comunidade é a Cleonice, pelo fato de ser
AIS – Agente Indígena de Saúde. Apesar de não ter sido formada pelo projeto
governamental de assistência na área de saúde aos indígenas – FUNASA – a mesma seria
submetida a um treinamento complementar para passar a atuar como tal. Seu irmão Ivan,
Pernambuco, “a questão das mulheres não poderem saber quem está dentro da roupa é levado muito à sério”.
Uma índia ficou “olhando na espreita, um índio se vestir e o resultado foi desastroso. Segundo essa índia, ela
adoeceu por um ano e não quer mais saber de descobrir quem está vestindo aquela roupa”.
Minas Indígena 117
também tem recebido destaque somente pelo fato de estar estudando para se tornar um
professor indígena. Ele possui uma reconhecida capacidade de articulação e tudo indica se
tornar futuramente o líder do grupo.
Vale aqui ressaltar, que em Pernambuco eles continuam tendo como líderes o
cacique e o pajé, os quais parecem ser escolhidos pelos praiás. A afirmação do Pankararu,
Zé Índio, do Brejo dos Padres, indica este estreito relacionamento entre cacique e praiá:
“No segredo de nossa religião se sabe, os Encantados sabem quem é o verdadeiro Cacique,
sabem que eu represento ele” (Thydêwá.Internet).
6.1.6. OUTRAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
A fabricação de artesanatos tem sido bastante intensa na comunidade Pankararu, os
quais são usados tanto para enfeite pessoal, principalmente no momento do Toré e demais
cerimônias, como para comercialização como meio de angariar recursos para sua
subsistência. Além disto, poderíamos destacar também a posse comunitária da terra,
comum em todos os grupos indígenas, sua convicção e opção de serem e permanecerem
“diferentes” da sociedade externa, entretanto, é sem dúvida a sua religiosidade a principal
manifestação cultural.
6.1.7. SOBREVIVÊNCIA
Sua economia está centrada na realização da agricultura familiar de subsistência,
produzindo principalmente feijão, milho e mandioca. Criam animais de pequeno porte
como porcos e galinhas, e além de contarem com a venda de artesanatos, recebem cestas
básicas. Se valem também da aposentadoria dos dois idosos – Eugênio e Benvina – e do
salário da agente indígena de saúde – Cleonice. Enquanto estuda para professor indígena,
Ivan presta esporadicamente serviços como pedreiro na região e o Cláudio estava na
expectativa de ser contratado pela FUNAI como agende sanitário para cuidar da água.
6.1.8. PROBLEMAS SOCIAIS
Por ser um grupo pequeno, os Pankararu de Minas vivem relativamente bem, sem
maiores dificuldades. O problema real que enfrentam atualmente é a educação das
crianças, pois devido ao reduzido número não podem participar do Programa de
Implantação de Escolas Indígenas de Minas Gerais. A única opção para eles seria colocar
estas crianças para estudar em Coronel Murta, a 7 km, mas tem a questão de ser escola
Minas Indígena 118
convencional o que não é ideal para as crianças que vivem num ambiente totalmente
diferente e num período de resgate cultural. Ainda tem o problema de transporte.
Um outro problema seria o de saúde, pois mesmo a cidade de Coronel Murta não
oferece um bom atendimento – nem convencional, quanto menos diferenciado. Assim eles
precisam se deslocar para Araçuaí, a 37 km. Apesar de terem a Cleonice, ela é apenas
agente de saúde, trabalhando mais na área preventiva. Por enquanto, este problema não é
difícil de ser contornado, mas à medida que a população crescer certamente se tornará uma
grande dificuldade. Logo precisarão de mais terras também, pois a que hoje possuem não é
suficiente para um grupo muito maior.
6.1.9. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA
Não há qualquer presença missionária, bem como nenhum convertido ao
evangelho. Apesar da quantidade de igrejas nas duas cidades próximas – Coronel Murta e
Araçuaí – ser consideravelmente grande, nenhuma tem se sensibilizado pelo desafio de
evangelizar aquele grupo. O único trabalho evangélico ali atuante é o do GTME, que
através da Igreja Metodista participou ativamente no processo de articulação por terras,
vindo posteriormente até a doar os 8 ha. para complementar a doação da Igreja Católica.
Coordenado pela pastora Zélia Soares da Igreja Metodista de Governador Valadares, o
trabalho do GTME ali se limita ao assistencialismo, através da atuação da indigenista
Geralda Soares96.
6.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS
As possibilidades de um trabalho missionário entre os Pankararu são grandes e
necessárias, mesmo se tratando de um grupo tão reduzido. Suas características culturais e
sua religiosidade tão vivas, são indicadores da necessidade de um trabalho específico com
eles. Entretanto, é preciso estar ciente que o fato de ser um grupo pequeno não eqüivale
dizer que um trabalho com eles é mais fácil do que com outros grupos maiores. Aliás, a
resistência pode ser ainda maior, dado à necessidade de reafirmar suas tradições.
A líder Benvina certamente seria oposta a qualquer tentativa de aproximação com
objetivo de evangelização, dado às suas fortes convicções e autoritarismo, e ela pode
perfeitamente influenciar o restante do grupo. Logo, uma opção seria a aproximação do
96
Geralda Soares tem atuado ali como obreira do GTME.
Minas Indígena 119
grupo via assistencialismo, mas uma outra possibilidade pode ser também muito viável. A
Missão Novas Tribos do Brasil tem um trabalho em pleno andamento com o grupo
principal de Pernambuco. Talvez seja possível promover a mudança de uma família
convertida e madura na fé do Brejo dos Padres para cá, pois assim haveria menos
resistência. Não sabemos, entretanto, se isto seria realmente possível pelo fato do grupo de
Minas não manter qualquer relacionamento com o grupo de Pernambuco.
6.2.1. CENTROS ESTRATÉGICOS
Tanto Coronel Murta como Araçuaí seria boas opções, levando em consideração
que a primeira, apesar de distar apenas 7 km, possui pouca infra-estrutura, enquanto
Araçuaí já é bem mais estruturada. Inclusive, a indigenista Geralda Soares optou por
residir nesta última cidade, onde possui maiores possibilidades de articulação.
6.2.2. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS
Araçuaí possui boas e bem estruturadas igrejas, como a Batista, Presbiteriana e
Assembléia de Deus. Coronel Murta também possui algumas igrejas. A questão básica é a
falta de consciência e visão missionária. Um intenso trabalho de conscientização seria
necessário.
6.2.3. A QUESTÃO ANIMISTA
A questão dos praiás demanda uma atenção especial, se fazendo necessário um
estudo sério da cosmologia Pankararu para saber como abordar esta delicada e arraigada
questão. Uma teologia de espíritos será de extrema importância, pois certamente as
principais “perguntas” virão desta área, exigindo assim respostas sólidas e de profundidade
bíblica, para evitar um possível sincretismo como acontece com o catolicismo. Aliás, este
sincretismo em si também demanda atenção especial, pois demonstra a capacidade do
grupo em aceitar conceitos diametralmente opostos, com naturalidade e praticar ambos,
ainda que de forma superficial.
6.2.4. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS
6.2.4.1. EDUCAÇÃO
Minas Indígena 120
Enquanto uma escola indígena não é implantada no grupo, um profissional do
ensino certamente teria uma grande aceitação por eles para trabalhar com as crianças. Seria
possível montar um currículo inclusive diferenciado, com aulas de cultura e história
Pankararu dada pelos próprios adultos do grupo, ficando o profissional com as matérias
mais técnicas. As crianças estão quase todas dentro de uma mesma faixa etária, o que
facilitaria o trabalho.
6.2.4.2. EVANGELISMO E DISCIPULADO
Dado ao nível de influência da cultura externa e ao fato de falarem somente o
português, nada impede uma abordagem direta de evangelismo, como os missionários da
MNTB tem feito no Pernambuco97. Como já foi dito, neste caso a provável dificuldade
seria a resistência, principalmente da dona Benvina, por evitar influências externas.
97
Em correspondência pessoal do missionário Élio Moraes, do dia 28/05/02.
Minas Indígena 121
7. OS XUKURU-KARIRI
Eu quero saber se nesse programa tem terra! Porque o
problema de todo o mundo é a terra. O nosso problema é a terra!
Warkanã D’Aruanâ98
7.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL
Marcados por longos anos de luta por seu território tradicional e por uma história
de opressão e massacres tanto étnico como cultural, o afã dos Xukuru-Kariri é conseguir
viver em paz num território que lhes pertença, onde possam viver os valores da sua cultura
sem qualquer intervenção externa. Convencidos de que isto só seria possível quando
obtivessem suas próprias terras, concentraram todos os seus esforços na luta por este bem
comum. Após alguns anos de instabilidade e conflitos, peregrinando por vários lugares e
regiões, o grupo do cacique Warkanã D’Aruanâ (“onça pintada”) ou José Sátiro, como é
conhecido pela sociedade externa, migrou finalmente para Minas Gerais, onde encontrou
terra e paz, buscando se estabilizar tanto política, como sócio, econômica e culturalmente.
Com traços muito peculiares e característicos de uma cultura diferenciada, os
Xukuru-Kariri de Minas têm atraído a atenção da sociedade externa e com a mesma vem
convivendo pacificamente, enquanto no seu contexto interno lutam para reafirmar sua
cultura e religiosidade, que lhes é patente. Vivendo agora em uma região bastante diferente
da sua terra tradicional, com um clima tão distinto, eles enfrentam certas dificuldades de
adaptação, mas seguem com plena convicção de que serão bem sucedidos.
7.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA
7.1.1.1. SITUAÇÃO DEMOGRÁFICA E ORIGEM ÉTNICA
Os Xukuru-Kariri de Minas consistem em um grupo pequeno, somando hoje cerca
de setenta pessoas, quase todas parentes, sendo uma pequena facção do seu povo que
habita o Estado de Alagoas. Há uma outra facção também com cerca de setenta pessoas
98
Em Caldeira (2001d.20).
Minas Indígena 122
vivendo em Paulo Afonso, na Bahia, que sendo aliada desta de Minas negocia a sua união
com a mesma, o que deve acontecer dentro de pouco tempo.
O grupo de Minas tem sua origem nos conhecidos Xukuru-Kariri de Palmeira dos
Índios, no Estado de Alagoas onde se constituem em um povo com cerca de duas mil
pessoas, dividido em três principais facções. O faccionalismo99 é uma das características
marcantes deste povo, que tem sua história marcada por conflitos internos e divisões.
Como o nome já indica, a origem étnica deste povo se deve à união de dois grandes povos
originários da região de Pernambuco – os Xukuru – e de Alagoas – os Kariri Wakonã. Isto
se deu pela atuação de missões católicas naquela região ainda no século XVIII, que aldeou
estes dois povos exatamente no local onde hoje é a cidade Palmeira dos Índios. Através do
convívio forçado, que resultou numa miscigenação étnica por meio de casamentos
interétnicos, estes dois povos se fundiram nos hoje conhecidos como Xukuru-Kariri. No
século XIX houve ainda um forte processo de miscigenação deste grupo, que já se
mesclava, com camponeses nordestinos pobres de várias regiões (Oliveira Júnior. Internet).
Na região de Palmeira dos Índios eles se dividem em três principais facções, em
torno das famílias Santana e Celestino. Os Santana são influentes na Fazenda Cafurna,
enquanto os Celestino na Fazenda Canto. Na década de 1990, uma cisão destes últimos deu
origem a uma terceira facção em torno de Manoel Selestino, ex-cacique da Fazenda Canto.
Os conflitos destes grupos culminaram no assassinato do cacique Luzanel Ricardo,
sucessor de Manoel no cacicado da Fazendo Canto em dezembro de 1994. Com a
intensificação destes conflitos, alguns grupos menores migraram para outras regiões, sendo
um destes liderado por Warkanã de D’Aruanâ, também conhecido como José Sátiro, que
assumiu a posição de cacique do grupo que o seguiu. Quando deixaram Palmeira dos
Índios desceram rumo à Bahia onde se alojaram primeiro no município de Paulo Afonso e
depois em Botirama. Ali ocorreram novos conflitos, o que ocasionou a migração da família
de Warkanã para Minas Gerais em 1998, onde solicitaram à FUNAI a aquisição de uma
terra para o assentamento definitivo do grupo. Enquanto a situação estava sendo avaliada,
o grupo se fixou temporariamente no município de São Gotardo e finalmente em 2001
foram transferidos em caráter definitivo para o município de Caldas (Caldeira, 2001d.20).
7.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA
99
Sobre isto consultar o texto de Adolfo Alves de Oliveira Júnior: “Faccionalismo Xukuru-Kariri e a Atuação
da FUNAI”. Ver OLIVEIRA JÚNIOR nas Referencias Bibliográficas.
Minas Indígena 123
Ao que parece, a família étnica é formada pelos Xukuru-Kariri e os Kariri-Xocó de
Alagoas, os Xukuru de Pernambuco, os Kariri do Ceará e os Kiriri da Bahia. É possível
que tenham algum grau de parentesco também com os Xokó do Sergipe.
7.1.2. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA E SITUAÇÃO TERRITORIAL
A aldeia Xukuru-Kariri de Minas se localiza no município de Caldas, sul do
Estado, na região da cidade de Poços de Caldas. A aldeia está numa fazenda a 7 km da
cidade de Caldas que dista, por sua vez, cerca de 510 km de Belo Horizonte. Se trata de
uma fazenda com 101 hectares, de posse da União, destinada ao assentamento definitivo
do grupo. Da aldeia até uma rodovia são apenas 2 km, sendo assim um local de fácil
acesso. O grupo fixou residência onde era a antiga sede da fazenda, fazendo uso das
residências de alvenaria que já existiam. Segundo o filho do cacique, Clarismõn (sol)
também conhecido como Jânio100, o grupo tem costume de morar em cabanas de lona, mas
como a região é bastante fria, chegando à noite até a zero grau, faz-se necessário casas de
alvenaria, o que inclusive tem retardado a vinda do grupo que ainda está na Bahia, pois não
têm condições de construir casas.
7.1.3. SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA
Os Xukuru-Kariri pertencem ao tronco Macro-Jê, família Kariri e língua Kariri
(Prezia, 2000.231), mas apenas poucas pessoas ainda detêm o conhecimento e domínio
parcial da mesma. Todos são falantes do português sendo esta a língua usada no seu dia-adia. Entretanto, num esforço deliberado de reafirmação cultural, eles desejam que em um
futuro próximo todo o grupo domine a língua tradicional, e assim, têm o projeto de ensinar
a mesma de forma sistemática para as crianças e adultos assim que conseguirem criar uma
escola na aldeia. Já possuem duas professoras indígenas e o próprio Clarismõn é o
responsável pelo ensino da língua.
7.1.4. RELIGIOSIDADE
Sendo aldeados e catequizados por missionários católicos desde o século XVIII, os
Xukuru-Kariri incorporaram em sua religiosidade muitos aspectos do catolicismo,
principalmente a veneração de Maria e de alguns outros santos. Consequentemente
perderam também muito das suas crenças e tradições religiosas do passado, tornando-se
sincretistas com fortes aspectos animistas. Apesar de terem incorporado vários aspectos do
100
Em entrevista do dia 19/03/02.
Minas Indígena 124
catolicismo, fazem questão de distinguir entre este e a sua própria religião, como se pode
perceber nas palavras da índia Tânia (Thydêwá.Internet):
Meu nome é Tânia, tenho 35 anos, sou índia Xukuru-Kariri, da Aldeia Mata da
Cafurna e sou professora da mesma a 15 anos (...) Procuro separar muito os
costumes do Catolicismo dos costumes da cultura indígena. Eu sinto muito quando
eles afirmam ser católicos e adorar imagens.
Alguns traços animistas são bem evidentes no grupo e nas suas cerimônias
religiosas. Suas crendices são mantidas sob um rígido sigilo tornando difícil uma análise
das mesmas. Eles não permitem em hipótese alguma a presença de não-índios nos seus
rituais, com exceção de um, o Toré, e são proibidos de relatar os mesmos. Evitam até
comentar sobre seus costumes religiosos.
7.1.4.1. DANÇAS CERIMONIAIS
7.1.4.1.1. TORÉ
Como se trata de uma cerimônia comum a todos os grupos do Nordeste, o Toré é a
única dança aberta a todos e sobre a qual eles têm liberdade de comentar. Consiste numa
dança em círculo, quando todos entoam suas cantorias na língua tradicional que se
harmonizam com os vários instrumentos usados, marcando compasso com o pisar forte no
chão. O líder do grupo inicia a dança e todos o acompanham, usando instrumentos como o
maracá, flauta e os que o grupo dispuser. Como andam sempre com o corpo pintado, para o
Toré, bem como para qualquer outra cerimônia, se enfeitam com uma indumentária
apropriada para o momento. Sempre que são convidados para fazer apresentações em
escolas ou qualquer local público, é o Toré que exibem. Parece que este ritual possui mais
um aspecto folclórico do que propriamente religioso.
7.1.4.1.2. RITUAIS SAGRADOS
Os rituais sagrados são mantidos em absoluto segredo e nem mesmo os nomes são
revelados. São realizados num local sagrado dentro da mata onde não-índios não podem
em hipótese alguma se aproximar. Falando dos rituais dos antigos Kariri do São Francisco,
Prezia (2000.156) menciona o Warakidzã, como um dos rituais sagrados deste povo. É
provável que haja rituais semelhantes ou relacionados ainda hoje, mas na nossa pesquisa de
campo não foi possível constatar e parece não haver nenhuma literatura sobre tais rituais.
De qualquer forma, vale citar as palavras de Prezia:
Minas Indígena 125
Um dos principais rituais era o do Warakidzã, que durava de três a quatro dias e
ocorria na época do amadurecimento do coquinho do ouricuri, alimento preferido
do porco-do-mato. Nessa ocasião, Warakidzé descia da estrela Orion, como
“encantado”, na figura de um jovem formoso, exigindo enfeites de penas e
determinando a perfuração dos lábios dos adolescentes.
Eles praticam também um ritual de iniciação, sobre o qual Clarismõn comentou
com reservas e superficialmente101, sendo contudo, possível ter uma idéia:
A religião da gente, agente não revela, por que é nossos costumes, dos nossos
antepassados. É praticada dentro das matas. Existe um período que agente passa de
trinta a sessenta dias lá com os mais novos que não tem o conhecimento. Mas mais
adiante eu num posso passar pra você (...) O mesmo que tinha a trezentos anos
atrás, ainda existe hoje.
7.1.4.2. ENTIDADES ESPIRITUAIS
Apesar de todo o sigilo, foi possível constatar em nossa pesquisa que eles crêem em
uma entidade chamada Dejuá-lhá, à qual atribuem a criação de tudo e o governo do
mundo. Afirmam ser o mesmo “deus dos brancos”, apenas com nome diferente. Este ocupa
o cume da hierarquia no panteão de entidades que habitam seu mundo espiritual, tendo sob
seu controle um número indeterminados de entidades inferiores com as quais eles se
relacionam. Estas são mediadoras entre eles e Dejuá-lhá. Novamente, o comentário de
Clarismõn102 dá uma leve idéia desta realidade:
Dejuá-lhá, Deus que criou tudo (...) tem o principal e tem os outros que agente
também pede aquilo com o coração, então eles vão levar a mensagem para o
principal (...) só existe um Deus no mundo, pra todas as pessoas, que seja índio,
branco, negro... existe um Deus só.
Prezia (2000.156) fala também sobre algumas entidades que eram veneradas pelos
antigos Kariri do São Francisco, sendo possível que pelo menos algumas destas sejam
veneradas pelos Xukuru-Kariri:
Entre as entidades veneradas pelos Kariri destaca-se Nhinhó, criador do mundo e do
povo Kariri; Badzé ou Padzu, deus da floresta e do fumo que teve dois filhos:
Poditã, deus da caça, e Warakidzé, deus da chuva. Quem desrespeitasse essas
entidades poderia receber um castigo de morte dado através do bisamu ou pajé.
101
102
Idem.
Idem.
Minas Indígena 126
7.1.4.3. SINCRETISMO
Apesar dos sinais de animismo serem tão evidentes, a influência católica na sua
cosmovisão também é muito forte. Torres (internet) registra as palavras de um índio
Xukuru chamado Antero, que são sugestivas:
Nos tempos dos índios inocentes, encontraram a imagem de Nossa Senhora num
tronco de jucá, os padres levaram então, a Santa para a Igreja, mas a Santa voltou
para o tronco de jucá.103
Pelo que parece, na figura de Maria está concentrada a influência católica e
curiosamente eles consideram Palmeira dos Índios como “Terra do Nosso Senhor” e Minas
Gerais como “Terra da Nossa Senhora”104. Em uma sondagem feita pelos missionários
Ebenézer e Adriana Leal (s.d.4), da Missão Novas Tribos do Brasil, nos índios Xukuru de
Pesqueira, constataram a seguinte entidade na sua cosmologia:
“Mãe Tamaim” ou “N. S.ª das Montanhas”, uma versão de Maria, santa dos
católicos, que foi vista por três crianças em um certo local na Vila de Cimbres,
tendo esta aldeia como o lugar de adoração dessa divindade. Outros santos católicos
também são venerados pelos Xucurus, porém, com menos intensidade.
7.1.4.4. LOCAL SAGRADO
Como já comentamos, eles possuem um local sagrado que se localiza na mata e ao
que parece não se trata de uma construção, mas sim de uma clareira. Chama-se oricuri e
não-índios não tem acesso a este local que parece ser freqüentado por eles apenas nos
rituais. Todos os seus rituais sagrados são realizados lá. Algumas vezes a palavra oricuri
tem sido atribuída a um ritual, mas as palavras de um índio de Palmeira dos Índios, da
facção da família Celestino, deixam claro se tratar de um local e não de um ritual:
Temos uma outra aldeia que é o nosso "Oricuri", que é na mata, essa mata tem
importância para nós, pois sem ela não poderíamos manter nossa religião e nossos
rituais, lá podemos nos reunir e descansar, debater assunto que só a nós interessa, é
onde buscamos nossas ervas medicinais, que usamos para curar doenças conhecidas
e misteriosas.
Como poderíamos manter nossa religião sem nossa mata, onde tem os encantos e
mistérios que só nós temos o prazer de compartilhar com nossos irmãos indígenas,
hoje Kariri-Xocó? (Thydêwá.Internet).
7.1.5. ESTUDO DE PODER SOCIAL
O grupo de Minas tem uma liderança fortíssima na pessoa do cacique Warkanã
D’Aruanâ, também conhecido como José Sátiro, o qual possui uma notável capacidade de
103
104
Os Xacriabá têm uma lenda muito parecida, sobre o São João dos Índios (cf. 2.1.3.2.2. 2ª Parte).
Clarismõn, numa palestra na Universidade Federal de Viçosa, em 11/06/02.
Minas Indígena 127
articulação política, não apenas dentro do grupo, mas também começa a ter na sociedade
regional. Com uma expressiva oratória, tem sido convidado para dar palestras em vários
locais e em reuniões importantes. Em junho de 2002, foi convidado para palestrar na
Universidade Federal de Viçosa, quando a mesma realizava uma semana de palestras sobre
a questão social. Tem participado ativamente do movimento indígena e dos encontros
relativos à questão indígena em nível estadual e nacional, construindo rápida e boa relação
com as outras etnias do Estado. É possível perceber a perspicácia do cacique Warkanã nas
suas próprias palavras, registradas por Caldeira (2001d.21):
O programa de formação entre SETASCAD, FADEMA e Conselho dos Povos
Indígenas de Minas Gerais já começou certo, uma vez que foi elaborado por nós
mesmos e prevaleceu no programa o respeito a nós, povos indígenas. Confiamos
neste trabalho, pois o mesmo tem fortalecido as discussões quanto à nossa
autonomia e à firmação do nosso Conselho no Estado de Minas Gerais.
Desponta-se também a liderança do vice-cacique Clarismõn, também conhecido
como Jânio, que sendo filho do cacique Warkanã está sendo preparado pelo pai para
assumir futuramente a liderança do grupo. Este é jovem ainda, mas também com um
notável poder de articulação e liderança. Conhecedor da língua, da religiosidade, dos
costumes culturais que preservaram e aprendendo com o pai as artimanhas políticas tanto
internas como externas, tem substituído Warkanã na liderança do grupo quando este se
ausenta, bem como em encontros e até palestras quando o mesmo não pode comparecer. A
esposa do cacique e mãe de Clarismõn, a índia Tãira, ou Josefa, também tem exercido
liderança sobre o grupo, na ausência do seu esposo e do seu filho. O pajé do grupo ainda
está na Bahia, mas em negociação de transferência para Minas, com o restante do grupo.
Enquanto isto, Warkanã acumula a função de cacique e pajé, visto ser também conhecedor
dos segredos da religião tradicional.
Segundo Oliveira Júnior (internet), em Alagoas, além do cacique e do pajé, o povo
conta com liderança do conselho tribal, responsável pela intermediação entre o grupo e o
gestor local da assistência do órgão indigenista. Mas como aqui se trata de um grupo
reduzido, este último não se fez necessário ainda.
7.1.6. OUTRAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
7.1.6.1. ENFEITES CORPORAIS E INDUMENTÁRIAS
Os Xukuru-Kariri possuem um estilo de enfeitar o corpo muito peculiar e curioso,
se destacando dos demais grupos do Estado. Enquanto alguns grupos pintam apenas o rosto
Minas Indígena 128
– como os Maxakali – ou também os braços – como os Pataxó – eles pintam todo o corpo,
do tornozelo ao pescoço, e também o rosto. Usam uma tinta preta, feita de jenipapo para
pintar o corpo com formas geométricas diversificadas, tinta esta que fica impregnada na
pele, pois estão sempre retocando. No corpo usam sempre a cor preta, enquanto no rosto
usam vermelho. O vermelho simboliza o “sangue derramado” dos seus bravos guerreiros
que no passado morreram defendendo o seu povo, e o preto simboliza “luto” pelos muitos
que morreram. Enquanto no corpo usam riscos poligonais, no rosto fazem as vezes malhas
mesclando o preto e vermelho, ou então riscos horizontais. As mulheres às vezes pintam o
rosto com circunferências.
Usam também grandes enfeites de penas que alguns colorem com cores variadas
dando um aspecto de singular beleza. Alguns homens usam grandes penas presas ao braço
que se estendem até a altura da cabeça e algumas mulheres enfeitam seus sutiãs também
com penas. Usam variados tipos de colares e pulseiras, sendo que as mulheres preferem a
madeira e sementes, enquanto os homens preferem dentes de animais que eles abateram.
Certamente são os enfeites de osso que dão uma maior peculiaridade aos XukuruKariri quanto aos enfeites corporais. Além dos belos colares e pulseiras de presas de
animais, são peritos no manuseio de osso para a fabricação de enfeites variados. Alguns
jovens perfuram as orelhas com várias pequenas peças de osso e como brinco usam dentes
de duas raízes, sendo que uma perfura a pele. Clarismõn e alguns outros têm o nariz
perfurado com três pontiagudas peças de osso. Duas, de aproximadamente 3 cm, perfuram
o nariz no sentido vertical, de cima para baixo, ficando duas pequenas e obtusas pontas
para cima e duas pontiagudas pontas saindo de dentro das vias nasais. Como suporte destas
últimas, uma peça fina, de aproximadamente 7 cm, perfura o nariz em sentido horizontal,
deixando uma pontiaguda extremidade de cada lado. Isto lhe confere uma aparência
guerreira e feroz.
Em épocas especiais, como nas apresentações ou representações que fazem em
cidades, usam sobre suas bermudas um saiote de palha ou de capim, sendo o das mulheres
na altura dos joelhos e o dos homens na altura dos tornozelos. Alguns, como Clarismõn,
portam ainda uma bela lança de madeira, que lhe confere um aspecto de autoridade.
7.1.6.2. PRODUÇÃO ARTESANAL
Produzem artesanato em abundância tanto para enfeites ou uso pessoal, como para
comercialização. Dentre os muitos, podemos citar variados tipos de lanças, arco e flecha,
maracás, vários tipos de chocalhos, abundantes e variados colares, principalmente de
Minas Indígena 129
sementes, madeira e coco, saiotes de capim, muitos enfeites de pena, sutiãs diversos,
gamelas e outras vasilhas de madeira, e várias peças feitas de asas secas de pássaros. Ao
contrário de alguns grupos, eles valorizam este material produzido, colocando as vezes até
preços exorbitantes nos mesmos.
7.1.6.3. NOMES INDÍGENAS
Como forma de afirmação cultural, todas as pessoas da aldeia possuem um nome
indígena, cada um com seu respectivo significado, além do nome não-indígena. Desta
forma, há nomes como os já citados e outros:
Nome
Não-indígena
Nome
Indígena
Significado
Quem é
José Sátiro
Warkanã D’Aruanâ
“onça pintada”
cacique
Jânio
Clarismõn
“sol”
filho do cacique (vice-cacique)
Josefa
Tãira
José Antônio Taquari
esposa do cacique
sobrinho do cacique
Taiuanê.
Filha de Taquari
Ayrã
adolescente do grupo
7.1.7. SOBREVIVÊNCIA
Eles tentam vender este artesanato produzido aos visitantes da aldeia e em
exposições ou apresentações nas cidades onde vão, mas além da produção artesanal,
investem também na produção agrícola de subsistência, “tendo a família nuclear como
unidade primária de produção e consumo, coadjuvada por práticas inter-familiares de
auxílio mútuo” (Oliveira Júnior.Internet). Os principais produtos são milho, feijão,
mandioca e batata-doce, mas desde que mudaram para Minas vêm tendo problemas com a
produção. Como a região e clima são muito diferentes, ainda não conseguiram produzir em
quantidade satisfatória. Quando para aqui mudaram, perderam toda uma semeadura por ter
feito na época errada. Não há indígenas funcionários do governo, como na maioria das
outras tribos do Estado, pois não têm escola e a assistência de saúde é recente. Também
não têm idosos aposentados, pois o grupo é formado por pessoas relativamente novas.
Desta forma, a alimentação é o principal problema que estão enfrentando aqui em Minas.
Minas Indígena 130
7.1.8. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA
Não há missionários trabalhando com este grupo e nenhum convertido entre eles.
Parece que algumas igrejas evangélicas já estiveram dirigindo cultos esporádicos na aldeia,
mas não passou disto. Até onde constatamos através de sondagem nas igrejas da cidade de
Caldas, não há nenhum projeto de evangelização direcionado a este grupo, mesmo porque
são recém-chegados na região, algo totalmente novo e inusitado para as igrejas e população
regional.
7.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS
Sem dúvidas existem chances reais de abordagens missionárias neste grupo de
Xukuru-Kariri aqui residente, principalmente neste tempo de adaptação à nova região onde
fixaram residência definitiva. Mas é preciso estar ciente que apesar da abertura do cacique,
bem como de todo o grupo, para o diálogo com a sociedade externa, quando se trata de
religião os mesmos são bastante resistentes. As palavras se Clarismõn105 são denunciadoras
neste sentido:
Qualquer pessoa que seja de uma religião, ela venha falar da Palavra de Deus diante
da nossa comunidade, agente está sempre de porta aberta pra aceitar. Agente só
num aceita induzir a cabeça de nossos índio jovens, por que agente já nascemos
com uma religião, então agente não pode deixar de acreditar numa religião que vem
de muitos anos atrás pra acreditar em outra religião. Agora, sempre acreditando
porque só existe um Deus no mundo, pra todas as pessoas, que seja índio, branco,
negro... existe um Deus só. Agora existe costume que são diferente. Existe pastores
que vem aqui na nossa aldeia, fala com meu pai que é o cacique, fala com ele se dá
pra vim fazer um culto aqui. Meu pai sempre: as porta estão aberta, só num aceito
induzir a cabeça de nenhum índio.
Outro fato, é que o cacique Warkanã é cheio de artimanhas e manobras políticas,
procurando tirar proveito de todas as situações. Numa tentativa de abordagem missionária
no grupo certamente ele faria resistência e tentaria de alguma forma se aproveitar dos
interessados.
7.2.1. CENTROS ESTRATÉGICOS
A cidade de Caldas é suficientemente estratégica por estar apenas a 7 km da aldeia.
Trata-se de uma cidade de pequeno porte, interiorana, mas de fácil acesso e com muitas
105
Em entrevista do dia 19/03/02.
Minas Indígena 131
opções de transporte. Outra possibilidade é a cidade de Poços de Caldas, a qual é um dos
principais centros urbanos do sul de Minas. Cidade de excelente infra-estrutura, de porte
médio, mas a 27 km da aldeia.
7.2.2. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS
Em Caldas há algumas igrejas como Assembléia de Deus, Batista e Quadrangular,
mas todas pequenas e com pouca visão missionária. Certamente seriam geograficamente as
ideais, mas talvez as igrejas de Poços de Caldas sejam uma melhor opção. Lá sim há
muitas igrejas bem estruturadas, com certa visão missionária e certamente com
disponibilidade e condições de apoiar um trabalho indígena.
7.2.3. A QUESTÃO ANIMISTA
Dado ao caráter sigiloso da sua religiosidade, um estudo profundo da cosmologia
Xukuru-Kariri se faz necessário, pois ao que parece, isto ainda não foi realizado nem
mesmo do ponto de vista antropológico. Há aspectos animistas profundamente arraigados
na sua cosmovisão, o que se constitui um grande desafio a uma abordagem missionária. O
fato de crerem que existe um só Deus para índios e não-índios é por demais positivo, pois
se Dejuá-lhá se tratar realmente do Deus Verdadeiro, revelado nas Sagrados Escrituras,
muita coisas são simplificadas. Se o contrário for verdade, então temos aqui um fator
complicador, pois além de tratar com as questões animistas, teremos que desfazer todo um
sincretismo que vem sendo alimentado pela cosmologia tribal há séculos.
É evidente que se faz necessário uma teologia da singuralidade de Cristo na
mediação entre Deus e o homem, pois tanto na sua perspectiva animista quanto católicosincretista, há outros mediadores. Nos seus rituais tradicionais há todo um panteão de
espíritos que fazem a mediação entre eles e Dejuá-lhá, enquanto nas suas crendices
católicas a figura central é Maria.
Um fato curioso e que pode ser uma porta de entrada para sua cosmologia, quem
sabe até uma ponte para a pregação evangelho, é a grande ênfase que eles dão ao “sangue
derramado”. Na sua visão, o “sangue derramado” dos seus bravos e heróicos guerreiros
que pelo povo lutaram no passado tem um valor extraordinário, sendo constantemente
lembrados e homenageados. Ouvindo-os falar sobre, ou mesmo citar o “sangue
derramado” em suas falas, a impressão que se tem é que há todo um aspecto místico por
trás disto. Não seria surpresa se descobríssemos que nos seus rituais secretos há também
Minas Indígena 132
derramamento de sangue. Talvez uma analogia sobre o sangue de Cristo derramado na cruz
do Calvário pela humanidade, tenha um efeito inesperado na sua compreensão do
evangelho.
7.2.4. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS
7.2.4.1. ESCOLA
Atualmente as crianças e adolescente estão estudando na cidade de Caldas, sendo
transportados por um veículo da prefeitura municipal. Entretanto, eles estão desejosos de
terem uma escola na aldeia, para evitar que suas crianças sejam tão influenciadas pela
cultura externa, bem como para que possam ensiná-las a língua kariri. Há um professor da
língua e duas professoras de nível primário, mas falta um projeto consistente para a
implantação da escola. Profissionais do ensino, como professores e talvez principalmente
pedagogos, que possam cuidar desta parte burocrática e da supervisão pedagógica
poderiam facilmente criar uma escola de ensino diferenciado para este grupo, o que seria
de grande importância para eles.
7.2.4.2. AGRONOMIA
A principal dificuldade que hoje enfrentam é o desconhecimento da terra e clima. O
que plantar, quando e como. Alguém que possa lhes dar orientações nesta área seria muito
bem-vindo e poderia dar-lhes uma colaboração simples mas de grande valia.
7.2.4.3. EVANGELIZAÇÃO E DISCIPULADO
O grau de integração com a civilização externa, bem como o domínio do português
abre portas para um trabalho direto de evangelização do grupo. O problema seria a possível
resistência a ser enfrentada. Assim um obreiro indígena teria maior facilidade de
penetração e integração social com eles.
Minas Indígena 133
8. OS KAXIXÓ
“Kaxixó significa pedra, que é a Nossa Senhora da Lapa.
Na lei branca de vocês, cês chama caverna (...)”
Zezinho Kaxixó106
8.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL
Depois de séculos no anonimato, sufocados pela perseguição e posteriormente pela
discriminação, os Kaxixó reapareceram como demonstração de um profundo desejo de
viver a sua indianidade, trazendo à tona costumes e valores que estiveram camuflados
durante anos afim, mas nunca perdidos. Mesmo proibidos de revelar sua identidade, os
Kaxixó preservaram viva a consciência de serem indígenas, passando seus “segredos” e
tradições de pais para filhos.
Reconhecidos oficialmente pela FUNAI como grupo indígena em dezembro de
2001, depois de quinze anos de luta por tal reconhecimento, e quatro estudos
antropológicos, sendo o primeiro negativo, os Kaxixó se sentem agora totalmente livres
para viver num estilo de vida diferenciado e peculiar, colocando em prática a cada dia,
aquilo que vai sendo resgatado do seu passado de sofrimento e opressão. Sua grande luta
agora é pela posse de suas terras tradicionais e o resgate cultural tão desejado pelo grupo.
Estão, entretanto, conscientes de que há um longo caminho ainda a ser percorrido para
alcançar o que têm como ideal, se é que um dia alcançarão.
8.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA
8.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA
Para entendermos a origem étnica deste grupo, faz-se necessário voltarmos um
pouco na história do mesmo. A “lenda da resplandecente Sabarabussu” e o preamento 107 de
índios, motivaram as primeiras expedições de bandeirantes paulistas nas imediações do Rio
106
107
Em entrevista do dia 18/03/02.
Aprisionamento de indígenas para escravização.
Minas Indígena 134
Pará, ainda no século XVII (Diniz, 1965.13), havendo referências de expedições de
apresamento nas cabeceiras do São Francisco e entre este e o Rio das Velhas a partir de
1640 (Monteiro, 1994.82). Teria sido com estas bandeiras que os Kaxixó tiveram os
primeiros conflitos, resistindo à fixação dos mesmos no seu território. No século XVIII,
surge então a lendária figura do Capitão Inácio de Oliveira Campos108 e sua esposa Dona
Joaquina de Pompéu109, contra os quais a resistência Kaxixó foi inútil. Este Capitão Inácio,
que os Kaxixó chamam de “governo”, teria chegado na região com “mil negros” e um
grande contigente de “índios Carijó”110, subjugando os Kaxixó, se apossando de suas
terras, e os reduzindo a jagunços. Fornecia alimentos e carne para a corte, nos tempos de
D. João VI, sendo o trabalho feito por escravos e os índios utilizados como jagunços para
controlar negros. Enquanto estes eram obrigados a batizar-se, o índio jagunço devia ser
pagão (Nunes111.Internet) o que dificulta o levantamento histórico, pois naquela época a
certidão de batismo era o único registro civil. Após a morte do Capitão Inácio, em 1799,
(...) continou sua viúva, a célebre dona Joaquina do Pompéu, as atividades rurais de
criação e engorda de gado bovino, além da criação de cavalos e do plantio de
mantimentos (Diniz, 1962.116),
e
ao morrer, em 1824, sua herança compreendia um milhão de alqueires de terras,
mais de 1.000 escravos, 53.932 reses de criar, 9.000 éguas e 2.411 juntas de bois,
além de jóias, ouro em pó e em barra, baixelas de prata, que não foram declarados
(Mathieu, s/d.15,16).
Este momento de contato e dominação constitui o marco inicial da história de
formação étnica do grupo Kaxixó atual. Um dos filhos deste casal teve um relacionamento
com uma índia Kaxixó, chamada posteriormente de Tia Vovó. Deste relacionamento
nasceu Fabrício ou Fabrisco, como é lembrado pelo grupo. Aí começa o principal tronco
Kaxixó.
108
Segundo Franco (1954.99), no seu Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas:
Bandeirante das Minas Gerais, que saindo de Pitangui, ao tempo do governo do conde de Valadares,
em 1771, descobriu nas cabeceiras do rio das Velhas, no lugar em que mais tarde se fundou o arraial
do desemboque, umas minas de ouro, regressando com sua bandeira em princípio de 1773. No local
das minas foi erguida uma capela pelo padre Félix José Soares, o qual desde 1765 já percorria
aquelas paragens, na esperança das minas, afinal encontradas por Inácio de Campos.
109
O surgimento da cidade de Pompéu está ligada a esta família. Sobre a mesma pode-se consultar
MATHIEU, Célia. O Matriarcado Rural nas Gerais: Vida e Obra de Dona Joaquina de Pompéu. Belo
Horizonte: Biblioteca Pública de Minas, s/d. (Mimeo, do Concurso da Minas Mulher).
110
“O uso preponderante do termo carijó para se referir aos escravos índios, nas Minas do princípio do século
XVIII (...) a palavra carijó veio a se generalizar a quaisquer índios reduzidos, assim como passou mais tarde,
em meados do século XVIII, a designar também os índios mestiços” (Moraes, 1992.33,34). Ou seja, Carijó é
um termo genérico para todos índios escravos, e não necessariamente índio do povo Carijó. Palitot (internet)
esclarece também: “Carijó era o nome genérico dado aos indígenas que acompanharam os paulistas nas
minas, sendo que muitos deles devem ter permanecido na região, mantendo a língua geral ou o tupi paulista”.
111
O Padre Jerónimo Nunes era coordenador da CPT – Comissão Pastoral da Terra, da cidade de Pompéu, em
1986, quando pela primeira vez os Kaxixó revelaram sua indianidade. Atualmente se encontra em Portugal.
Minas Indígena 135
Para complicar a formação étnica dos atuais Kaxixó, entraram em cena mais dois
segmentos: os “Carijó” do século XVIII, procedentes de São Paulo, e os negros,
descendentes dos escravos africanos que trabalhavam na fazenda. Foi ainda a família de
Fabrisco que selou uma dessas uniões, pois um de seus filhos casou com uma índia Carijó
(Palitot.Internet). Por muito tempo, os Kaxixó foram conhecidos como “Índios Caboclos
da Vargem do Galinheiro”, hoje um bairro da cidade de Pompéu, antes conhecida como
“Buriti da Estrada”, local de passagem obrigatória para os tropeiros, que lá se abasteciam
com as galinhas criadas pelos “índios caboclos” (Mattos, 1999.57). Assim, os Kaxixó é um
caso bem peculiar dos chamados grupos indígenas “emergentes”, pois ao contrário do que
ocorre no Nordeste, onde a maioria dos grupos é descendente de antigas populações que
viviam nos aldeamentos missionários, os Kaxixó, são remanescentes de grupos que viviam
nas fazendas da região do baixo rio Pará, como agregados e jagunços.
Portanto, podemos concluir que os atuais Kaxixó são frutos da miscigenação dos
antigos Kaxixó112, com os “Carijó” – escravos de vários etnias – negros escravos e
“brancos” da família da Dona Joaquina, chamados de “povo do governo”. Por isto, no
grupo atual encontra-se pessoas de pele vermelha morenada, cabelos pretos e lisos, como o
ex-vice-cacique Jerry; pessoas negras, como o atual vice-cacique Zezinho; e pessoas
brancas de olhos claros, como o cacique Djalma.
8.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA
Como povo “emergente”, o atual grupo Kaxixó é etnicamente isolado, não
possuindo parentesco próximo com qualquer outro grupo indígena. Apresentando um alto
grau de miscigenação, é difícil sugerir até qual a família étnica dos antigos Kaxixó dado ao
fato de “Carijó” ser um termo genérico para todos os índios escravos do século XVIII.
8.1.2. DISTRIBUIÇÃO DEMOGRÁFICA
Dezesseis famílias, num total de sessenta e três indivíduos se envolveram
efetivamente na luta pelo reconhecimento étnico oficial. Entretanto, o senhor Djalma –
cacique Kaxixó – afirma que todo o grupo espalhado na região soma trezentos e cinqüenta
e seis pessoas113. A maior concentração está no Capão do Zezinho, mas há outros três
112
Caldeira (1999.35) informa que além dos “carijó”, negros e o “povo do governo”, há vários subgrupos
Kaxixó: “gentios, índios caboclos, índios da Criciúma, povo selvagem – xavante ou bicho, e os caboclos
d’água”.
113
Em entrevista do dia 18/03/02.
Minas Indígena 136
lugarejos não muito distantes. Caldeira (1999.15,16) fez um levantamento com muita
precisão da realidade demográfica Kaxixó:
Capão do Zezinho
(50 individuos/12 famílias)
11. Ozires – pai
Maria Inez (37) – mãe
1. Sr. Zezinho (64)114 – viúvo
Selmo (19) – filho
2. Vó Chica (81) – viúva
Sérgio (13) – filho
Geraldo (Geraldinho – 12) – neto
3. Divino (34) – pai
Cristina (27) – mãe
Breno (07) – filho
Delmo (15) – filho
Cleide (13) – filha
Melina (10) – filha
12. Pedro Baixinho (57) – pai
4. Djalma (62) – solteiro
Maria (50) – mãe
5. Nilvandro (29) – pai
Altair (31) – filho
Elenir (22) – mãe
Antônio (20) – filho
Daniela (07 meses) – filha
Geraldo (16) – filho
6. Geraldo (31) – pai
Ronilde (30) – mãe
Aparecida (15) – filha
Aldeir (13) – filho
Letícia (07) – filha
Lauro (04) – filho
Fazenda Criciúma
Felipe (01) – filho
(04 indivíduos / 01 família)
7. Marcelino (35) – pai
1. Antonieta (84) – mãe
Marilda (Ida – 31) – mãe
Eva (55) – filha
Fernanda (13) – filha
Jerry (25) – neto
Otávio (05) – filho
Lidiano (16) – neto
José (10 meses) – filho
8. Pedro F. Filho (53) – pai
Geni (47) – mãe
(08 indivíduos / 01 família)
Sérgio (16) – filho
1. José Francisco (Marreco – 44) – pai
Jaciara (12) – filha
9. Zico (50) – pai
114
Fazenda São José – Pindaíba
Vanda (40) – mãe
Gleison (20) – filho
Conceição (Sãozinha – 42) – mãe
Paulo (18) – filho
Ailson (23) – filho
Juliano (16) – filho
Os números entre parênteses indicam a idade de cada indivíduo, no final de 1998, época do levantamento
feito pela indigenista Vanessa Caldeira.
Minas Indígena 137
Reilson (16) – filho
2. João Izabel (63) – pai
Denilson (10) – filho
Dilson (25) – filho
Lorena (07) – filha
Franço (14) – filho
10. Almir (28) – pai
Edileuza (21) – mãe
Fazenda São José – Fundinho
Rodrigo (05) – filho
(01 indivíduo / 01 família)
Augusto (03) – filho
1. José Cândido (Zé Candinho 82) – viúvo
Catiana (02) – filha
Mariana (11 meses) – filha
8.1.3. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA E SITUAÇÃO TERRITORIAL
O Capão do Zezinho, principal concentração do grupo, se localiza no município de
Martinho Campos, na margem esquerda do Rio Pará, região centro-oeste do Estado, a 15
km do povoado de Ibitira, que por sua vez dista 180 km de Belo Horizonte e outros 15 km
da cidade de Martinho Campos. Portanto, o vilarejo Kaxixó está a 195 km da capital do
Estado. A estrada que liga o vilarejo a Ibitira apresenta um bom estado de conservação
sendo facilmente transitável.
O Capão do Zezinho consiste num pequeno vilarejo, com casas de alvenaria, água
encanada e energia elétrica. Boa parte dos moradores dispõe de aparelhos de televisão e
alguns até de antena parabólica. Toda a região é bem arborizada, havendo no vilarejo
grande quantidade de árvores frutíferas. Um templo católico está sendo construído no
centro, ao lado das duas únicas construções que não são de alvenaria: o Rancho ou Casa de
Ritual e o rancho de festas, ambos cobertos de capim e sem paredes. O primeiro é
destinado às suas danças tradicionais e missas, enquanto o segundo é destinado aos festejos
e comemorações. Neste vilarejo têm ainda um edifício para funcionamento de uma escola,
mas entretanto se encontra desativado. Nas proximidades do Capão do Zezinho há outros
três lugarejos de posse dos Kaxixó, que é a Fazenda Criciúma, Pindaíba e Fundinhos, estes
dois últimos na Fazenda São José.
Os Kaxixó não possuem território demarcado, estando entre os grupos de Terras
Indígenas a Identificar – conforme classificação do ISA (internet). Agora oficialmente
reconhecidos como grupo étnico, seu próximo passo e principal luta é exatamente pela
conquista de suas terras tradicionais, hoje sob posse de vários fazendeiros. Reivindicam
uma área de 27.150 ha. (Mattos, 2000b.19), enquanto atualmente ocupam apenas 35,28
hectares da seguinte forma distribuídos (Caldeira, 1999.30):
Minas Indígena 138
LOCALIDADE
Capão do Zezinho (famílias
MEDIDA
Parte da terra regularizada
SITUAÇÃO FUNDIÁRIA
Escritura em nome de
de Edileuza, Ida, Geni,
2,28 hectares
Djalma Vicente de Oliveira
Geraldo, Nivandro e Djalma)
Capão do Zezinho (famílias
Aproximadamente
Terra Devoluta
de Vó Chica, Zezinho,
2 hectares
Divino, Zico, Pedro Maria e
Pedro Baixinho)
Fazenda Criciúma (família
01 hectare
Terra Devoluta
de D. Antonieta)
Pindaíba
20 hectares
Posse da Terra
(Zé Candinho)
Fundinho
08 hectares
Posse da Terra
(Marreco)
Fundinho
02 hectares
Posse da Terra
(João Izabel)
TOTAL
35,28 hectares
Como se pode deduzir, este território não é suficiente para o grupo, ainda que
pequeno, produzir o suficiente para sua sobrevivência.
8.1.4. SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA
Com a repressão e opressão que sofreram no decorrer da história o grupo perdeu
totalmente a sua língua tradicional, sendo todos falantes do português. O senhor Djalma
insiste que alguns ainda falam a língua e que quando obtiverem terras voltarão a aprender a
mesma, mas isto parece muito improvável.
8.1.5. RELIGIOSIDADE
Quanto à religião, grande parte do grupo se identifica como católicos e na verdade
o são. Segundo o senhor Djalma, desde a época do lendário Capitão Inácio, a religião
tradicional foi proibida, assim como a língua e até o próprio nome da tribo115:
115
Em entrevista do dia 18/03/02.
Minas Indígena 139
(...) foi o “governo”, o Capitão Inácio de Oliveira Campo. Ele matô, robô a terra,
robô a língua, robô a religião, robô dança (...) aí trocô o nome, ninguém falava
Kaxixó.
Entretanto, assim como apenas camuflaram sua identidade étnica, o mesmo fizeram
com sua religiosidade, inclusive praticando seus rituais às escondidas, até na década de
1970 quando segundo o senhor Djalma “a religião católica foi instituída no grupo (...)
pelos fazendeiros, com o objetivo de ‘acabar com a lei dos índios’” (Caldeira, 1999.44),
obrigando-os a aprender a rezar:
Então, tá tendo vinte e quatro anos que eles deu a idéia de acabar com as leis do
índio e então levou nós para Divinópolis. Lá ensina a rezar, ensina a lei do branco.
Lá nós foi estudar o quê que é lei de rei, desde da América do Norte, tudo.
Aqui ele se refere ao curso de formação para Ministro de Eucaristia e Dirigentes de
Culto, da CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, que ele e seu irmão
Zezinho realizaram na década de 1980 na cidade de Divinópolis, oferecido em vinte e
cinco módulos. Durante três anos eles foram mensalmente a Divinópolis, quando também
tiveram acesso a leituras sobre a história do Brasil, entre outros temas. Parte do
conhecimento histórico do senhor Djalma foi adquirido ali. Caldeira (1999.44) tece
comentários ainda sobre as suas rezas num terreiro do Capão do Zezinho, chamado
Cruzeiro:
Os Kaxixó, durante o mês de maio, vão todas as noites ao Cruzeiro rezar. Levam a
imagem de Nossa Senhora Aparecida, uma vela e, ao iniciar a reza, estouram fogos,
acendendo uma fogueira. Cada noite um deles é o responsável pela leitura do
evangelho. Ao final de cada reza, os Kaxixó que estão em outras localidades –
como no estado de Goiás ou em Belo Horizonte – são lembrados. Pede-se proteção
e saúde para cada família Kaxixó.
Outra época tradicional é o dia de São Francisco de Assis (04/10), sendo a principal
festa comemorativa do grupo. Para esta vêm pessoas de toda a região e até parentes de
cidades distantes. Além das rezas, há comes e bebes com fartura, barraquinhas, e muito
forró, que é o estilo musical mais popular da região.
Entretanto, o grupo de dona Antonieta é bastante resistente ao catolicismo
apresentando fortes sinais de sincretismo. Ao que parece, eles são descendentes diretos dos
“jagunços” da Dona Joaquina, que por não serem batizados eram considerados pagãos, sem
religião. Logo, praticam a invocação de espíritos em rituais próprios que eles chamam de
“lei do índio” ou ainda “língua de Angüera”. Destes destaca-se o jovem Jerry, ex-cacique,
neto da dona Antonieta, que insiste em praticar rituais mediúnicos, onde há manifestação
Minas Indígena 140
de espíritos. Alguns chegam a “engolir cobras” no momentos destes rituais.116 Foi o Jerry
quem introduziu no grupo o nome Casa de Ritual para o Rancho, nome este que vai sendo
adotado pela maioria. Há um Kaxixó chamado Manoel Peão, considerado por todos o pajé
do grupo, por possuir “força e poder de cura”, mas este vive no povoado de Ibitira.
8.1.5.1. ENTIDADES ESPIRITUAIS
Da antiga comoslogia Kaxixó, duas entidades principais são ainda centrais na sua
cosmovisão. A primeira é Jacy, a quem atribuem as qualidades de Deus. Jacy era o nome
dado à lua por grupos Tupi na época do contato, sendo provável que os Kaxixó herdaram
este nome dos “carijó” que vieram de São Paulo e o relacionaram com o Deus Verdadeiro,
preservando-o até hoje. A este, faz oposição o terrível e malvado Angüera, nome que dão
ao próprio Diabo. Da mesma forma, parece se tratar de alguma antiga entidade do grupo,
da qual foi preservado o nome apenas, pois todos o definem como “o Capeta ou Demônio”.
Os rito lá vai vortando, mais os que é católico segue a católica, agora aquês que
num era católico aprendeu, cunhece quê que é Jesus Cristo (...) Jerry mesmo, que é
o vice-cacique, puxa muito é na língua Angüera. Eu não tinha falado isso. Angüera
na língua nossa, de índio, é o Capeta, é o demônio, uns chama de rabudo da língua
branca, né? Então esses selvagem era danado pra puxar é nisso. Então quando o
Jerry faz, num bate na turma bem aqui não, que ês puxa muito é na lei Angüera.117
Mas há ainda uma terceira classe de entidades presentes na cosmologia Kaxixó, que
são os lendários Caboclos d’Água. Sobre estes Caldeira (1999.34) comenta:
Seres fantásticos, os caboclos d’água representam a total rejeição ao contato com os
“brancos”. Refugiando-se nas águas do rio Pará, eles são descritos como homens de
estatura muito baixa, corpo coberto de pêlos e braços muito fortes. Habitando
algumas locas às margens do rio, eles teriam aprendido a sobreviver tanto na terra
quanto embaixo d’água (...).
Descritos como homens que nadam como peixes, surgindo apenas para algumas
pessoas, eles seriam possuidores de uma fala ou língua específica. Todavia, isto não
teria impedido a comunicação entre eles e seus parentes Kaxixó, pois são capazes
de se fazer entender ou de serem entendidos.
Estes seres balançam as canoas das pessoas, no intuito de brincar com elas, e os
Kaxixó teriam “cruzado” com eles nas águas do Rio Pará, compondo assim um grupo
desconhecido. Desta forma, os Kaxixó atuais se consideram descendentes destes seres.
8.1.5.2. DANÇAS TRADICIONAIS
A principal dança dos Kaxixó é a chamada Dança do Jacaré, que tem sido pouco
praticada mas ainda está vívida na memória de todo o povo. Entretanto, tudo indica que a
116
117
Segundo o senhor Djalma, na entrevista do dia 18/03/02.
Idem.
Minas Indígena 141
mesma possui apenas caráter folclórico, destituída do seu significado cerimonial. Sobre
esta, vale citar as próprias palavras do senhor Djalma118:
A dança do Jacaré é a nossa dança antes do 1500 (...) fica quatro de cá, não o tanto
que tivé, se tivé trinta, ô quarenta, cinqüenta de cá, e for cem, cinqüenta de lá.
Então ês fica de longe, só que num é igual Xavante que fica de lado. Aí, ês canta o
Jacaré e quando fala, cá “jacaré”, e ês fala, “a lagoa secô e ocê teve que vortar”, que
ês canta isse, aí os de lá vem e encontra no meio e ês dão uma vorta e os de cá passa
pra lá e os de lá passa pra cá (...) ês num tá cantando não porque nois tá dexando
demarcar a terra pra vortar esses 356 pra cá pra aí nois dançar Jacaré.
Há algumas outras danças que deixaram de ser praticadas, mas que eles esperam
voltar a praticá-las. Vale aqui citar também, a cerimônia de casamento que em alguns casos
são realizadas. Geralmente os jovens casais se “juntam” simplesmente, mas alguns
solicitam o casamento na “língua do Jacy”, sendo realizada uma cerimônia própria, sobre a
qual não obtivemos maiores detalhes. Sabemos que mais de uma pessoa pode realizar,
sendo uma destas o próprio senhor Djalma.
8.1.5.3. LOCAIS SAGRADOS
A alguns quilômetros do Capão do Zezinho, há uma gruta natural conhecida como
Gruta da Nossa Senhora da Lapa, muito venerada por todo o grupo e também pela
população regional. Segundo informação dos próprios Kaxixó e de moradores da região,
esta gruta é enorme, cabendo muitas pessoas, e como foram depositadas ali imagens de
santos católicos, é comum a realização de missas e rezas no local. Sobre esta, vale citar a
breve descrição da arqueóloga Alenice Baeta (1999.69):
Gruta localizada na Fazenda da Lapa, município de Martinho Campos. Trata-se de
um ambiente de interesse histórico e etnográfico, já que é visitado periodicamente
pelos moradores da localidade. No fundo da mesma foi erguido um altar com santos
católicos.
Ao chão foram observados fragmentos cerâmicos provavelmente do período
histórico. Trata-se de uns cacos simples, sem decoração, parcialmente oxidados,
apresentando brunidura na face externa. Em um dos suportes das paredes internas,
há algumas incisões de pelo menos algumas décadas, representando uma igreja.
Esta gruta, segundo depoimentos de alguns integrantes Kaxixó, em especial de
Djalma Kaxixó, “era lugar que os índios Kaxixó se reuniam para rezar”, sendo até
hoje um importante referencial da cultura e da história dos mesmos.
O outro local é o Rancho ou Casa de Ritual construída no centro do vilarejo do
Capão do Zezinho. Trata-se de um rancho com aproximadamente quatro metros de
comprimento por dois e meio de largura, com três troncos de cada lado e três ao centro,
118
Idem.
Minas Indígena 142
sem paredes, coberto de capim. Este foi construído recentemente, após a tentativa da Igreja
Católica de construir ali um templo, em 1995. O grupo da Antonieta se opôs radicalmente
a ponto dos ânimos se acirrarem e a discussão não chegar ao fim. Jerry então deu uma
sugestão: “(...) nós temos nosso modelo de fazer nossa casa. Vamos fazer de nosso jeito a
Casa de Ritual. De chão, barro batido, sapé e madeira, toda amarrada de cipó” (Soares,
1995b).
Neste Rancho passaram a ser realizados tanto rituais de invocação de espíritos,
como missas, rezas e novenas. Os primeiros eram realizados pelo Jerry e seu grupo, que
inclusive, segundo o senhor Djalma “num bate na turma bem aqui não”, ou seja, o grupo
do Capão do Zezinho não gostava. Atualmente o Rancho está quase abandonado, sendo
utilizado como depósito de arreios de animais e outros objetos diversos, e a Igreja Católica
está construindo um templo de alvenaria ao lado daquele.
8.1.6. ESTUDO DE PODER SOCIAL
8.1.6.1. CACIQUE
Eleito democraticamente, o cacique tem a responsabilidade de representar o povo
nos contatos externos, bem como liderar as reuniões e tomadas de decisão. É uma função
recente, pois somente depois que iniciaram a luta pelo reconhecimento e se reorganizaram
em tribo, foi possível e tornou-se necessário uma liderança constituída.
Como várias vezes citado, o atual cacique é o senhor Djalma Vicente de Oliveira,
mais conhecido como “Seu Djalma”, o qual configura-se como o porta-voz da história
Kaxixó. Sua história pessoal sintetiza a história de formação do grupo atual. Ele é filho de
índia Kaxixó com fazendeiro, criado pelos índios e cresceu convivendo com os negros.
Desta forma, teve acesso às várias fontes de informação acerca da história da região. Com
uma memória extraordinária e um grande interesse em conhecer “os causos” relatados
pelos mais velhos, tornou-se a principal referência para a compreensão da identidade
Kaxixó. Reside no Capão do Zezinho, tem hoje 65 anos de idade, solteiro e é muito
querido por todo o grupo. Sendo de cor branca e olhos claros, tem sua indianidade criticada
por muitos da sociedade externa, entretanto, basta conversar com ele por alguns minutos
para perceber a sua convicção de ser indígena.
8.1.6.2. VICE-CACIQUE
Minas Indígena 143
Tem a responsabilidade de responder pelo cacique na ausência do mesmo, bem
como auxiliá-lo em todas as suas atividades. Atualmente a função é exercida pelo senhor
Zezinho, de 67 anos, viúvo, irmão do senhor Djalma, também residente no Capão do
Zezinho. Apesar de não possuir todo o conhecimento histórico do seu irmão e se tratar de
um homem muito simples, também tem o apoio e respeito de todo o grupo. Ao contrário do
irmão, é de pele negra e cabelos crespos, o que leva igualmente muitos da sociedade
externa a criticar e duvidar da sua indianidade. Mas esta torna-se evidente no
comportamento do mesmo e na forma de falar da sua própria identidade.
8.1.6.3. CONSELHO TRIBAL
Como na maioria dos grupos indígenas do Estado, além do cacique e vice-cacique
há um Conselho, formado pelos anciãos do grupo, tanto homens como mulheres, ao qual
cabe pesar as decisões a serem tomadas, principalmente em se tratando de articulações
políticas tanto internas como externas do seu povo. Chamado simplesmente de
“Liderança”, atualmente é formado pelos chefes de família Zezinho (José Vicente), Eva,
Zé Francisco (Marreco), Vanda, João e Pedro (Baixinho)
8.1.6.4. OUTRAS PESSOAS DE DESTAQUE
Vale aqui destacar ao menos mais duas pessoas que gozam de grande credibilidade
no grupo. Manoel Peão, apesar de residir na cidadela de Ibitira, é considerado o pajé dos
Kaxixó por possuir poderes de cura – curador – e deter grande conhecimento dos seus
rituais tradicionais.
Apesar de bastante jovem, com apenas 28 anos, Jerry Adriane exerce grande
influência em todo o povo, sendo bem quisto por muitos. Neto da dona Antonieta, tem
demonstrado grande capacidade de articulação e discussão em torno da identidade étnica
do seu povo com profissionais e instituições indigenistas, tendo exercido a função de vicecacique por vários anos. É o autor das principais denúncias contra fazendeiros da região,
tendo sido inclusive, vítima de um atentado em abril de 1993 (Caldeira, 1999.39). De pele
vermelha-morena, cabelos e olhos negros, consideravelmente alto e com músculos
avantajados, nos eventos de representação e em reuniões especiais usa um belo cocar e
pinturas corporais que lhe dão uma aparência muito característica. Mas certamente a sua
maior influência sobre o grupo passa pela religiosidade, pois ele pratica rituais envolvendo
invocação de espíritos – língua de Angüera – sendo um pajé em potencial. Isto parece ter
Minas Indígena 144
herdado da avó Antonieta que também possui “poderes” espirituais, mas evita falar sobre
isso.
8.1.7. OUTRAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
As pinturas corporais têm sido cada vez mais usadas, principalmente em datas ou
locais especiais, como em congressos ou comemorações fora do seu território. Fazem
principalmente riscos de cores diversas no rosto e os homens também no tórax.
Interessante é que durante anos eles foram proibidos de se pintarem, mas segundo o senhor
Djalma, “quando alguém do grupo morria, eles levantavam escondido a tampa do caixão, e
pintavam o rosto da pessoa” (Baeta, 1999.62). Como enfeites usam principalmente, colares
e pulseiras de madeira ou sementes, e cada líder um belo cocar.
Têm produzido também bastante artesanato, alguns para uso pessoal, mas a
maioria para comercialização. Neste aspecto desenvolvem algo bastante peculiar, que é a
fabricação de peças de barro, geralmente enfeitadas com penas, como pequenos potes e
semelhantes. Dos grupos de Minas, somente eles trabalham com barro, o que demonstra
uma características bem particular. É evidente porém, que todas estas manifestações não
possuem mais um fim de embelezamento pessoal, mas sim de reafirmação cultural.
8.1.8. SOBREVIVÊNCIA
Como o território que atualmente eles têm posse é pequeno e não unificado, sendo
insuficiente para o abastecimento de todo o grupo, a maior parte dos Kaxixó são
empregados de fazendas vizinhas, principalmente como vaqueiros e roceiros. Entretanto,
mesmo com a insuficiência territorial, alguns praticam a agricultura familiar de
subsistência, cultivando principalmente feijão, arroz, milho, algodão, mandioca, cará e
amendoim, criando também animais de pequeno porte como porcos e galinhas.
Duas famílias – Zico e Ozires – praticam a pesca no Rio Pará como sua principal
fonte de subsistência, dispondo, entretanto, do mínimo de equipamentos, principalmente
geladeiras, o que dificulta colorar seus produtos no mercado regional (Caldeira, 2001b.43).
Outras famílias ainda se valem da aposentadoria dos mais idosos, como no caso do
grupo da dona Antonieta. Ela é aposentada e sustenta seus dois netos Jerry e Lidiano, com
o seu benefício. Jerry tem muita dificuldade em conseguir emprego na região por ser
identificado como uma forte liderança indígena, principalmente após as várias denúncias
contra fazendeiros.
Minas Indígena 145
8.1.9. RIQUEZA ARQUEOLÓGICA DO TERRITÓRIO
Após algumas denúncias por parte dos Kaxixó de fazendeiros destruindo sítios
arqueológicos do seu território tradicional, foram iniciados levantamentos nos municípios
de Martinho Campos e Pompéu, na região da Bacia do Baixo Rio Pará. Tais levantamentos
iniciais foram feitos pela arqueóloga e historiadora da UFMG, Alenice Baeta, em 1995,
sendo concluídos pelo arqueólogo Fabiano Lopes de Paula, do IEPHA – Instituto Estadual
do Patrimônio Histórico e Artístico. Quinze sítios arqueológicos foram encontrados, sendo
sete pré-coloniais e oito históricos, tendo sido percebidos sobretudo, grandes fragmentos
cerâmicos e estruturas de fornos, além de instrumentos líticos polidos, tais como
machadinhas, batedores, mão-de-pilão e quebra-cocos.
Obviamente, os sítios arqueológicos pré-coloniais identificados e cadastrados na
região historicamente apreendida pela comunidade Kaxixó, não podem ser
diretamente atribuídos aos antepassados da mesma (...)
entretanto,
(...) a reapropriação de determinados espaços e da cultura material arqueológica por
grupos em plena luta pelo reconhecimento oficial da sua identidade étnica, pode ser
concebido como um elemento de revitalização do vínculo do grupo com a terra que
habitam (Baeta, 1999.58-61).
De qualquer forma, a identificação e comprovação destes sítios arqueológicos no
território tradicional dos Kaxixó foi como uma injeção de ânimo na sua luta pelo
reconhecimento étnico oficial, pois ocorreu exatamente após o resultado do primeiro laudo
antropológico que lhes foi desfavorável (Paraíso, 1994.18).
8.1.10. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA
Não há qualquer trabalho evangélico junto ao grupo que, consequentemente,
também não conta com nenhum convertido.
8.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS
Apesar de não haver barreira lingüística e a cultural ser bastante minimizada, os
Kaxixó podem apresentar forte resistência à pregação do evangelho. Sendo um povo
“emergente” o desejo de reafirmação étnica e cultural é muito grande, podendo resistir ao
Minas Indígena 146
que vem de fora. Entretanto, é óbvio que o seu alto grau de integração com a cultura
regional e o conhecimento, ainda que elementar, do evangelho pela vertente católica
podem ser abridores de portas. Desta forma, as possibilidades de abordagem missionária
são muitas, necessitando apenas de obreiros.
8.2.1. CENTROS ESTRATÉGICOS
A cidade de Martinho Campos seria uma opção, oferecendo uma boa estrutura e
igrejas consideravelmente sólidas, mas dista 30 km. A cidade de Pompéu também seria
uma boa opção, estando inclusive mais próxima. Entretanto, por se localizar na margem
esquerda do Rio Pará, o acesso ao Capão do Zezinho, maior concentração Kaxixó, é
dificultado pela travessia do referido rio. Para evitar esta travessia seria necessário dar uma
volta inviável. Desta forma, a melhor opção seria então a cidadela de Ibitira, que sendo
apenas um distrito de Martinho Campos, pequena e com pouca estrutura, é local de maior
trânsito dos Kaxixó por distar apenas 15 km do território indígena.
8.2.2. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS
As igrejas evangélicas da região são na sua maioria pequenas e apresentam pouca
consciência missionária. Ao que parece, as possibilidades de integração seriam com as
igrejas Batista Nacional ou Assembléia de Deus de Martinho Campos. Talvez em Pompéu
haja também algumas possibilidades, mas de modo geral são bastantes limitadas. Seria
necessário um forte trabalho de conscientização.
8.2.3. A QUESTÃO SINCRETISTA
É preciso dar muita atenção a esta questão, e uma análise das práticas espíritas
realizadas por alguns do grupo se faz necessária. É preciso entender até que ponto estes
rituais demonstram traços de espiritismo ou animismo. É positivo o fato de muitos não
gostarem e nem aceitarem estes rituais, preferindo se apegar apenas às rezas e novenas,
mas ainda assim, este fenômeno precisa ser estudado.
Pelo contexto histórico de opressão e perseguição o grupo nutre um grande desejo
de libertação. Sendo assim, uma teologia de libertação solidamente bíblica deve gerar um
impacto muito positivo neste povo.
8.2.4. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS
Minas Indígena 147
8.2.4.1. ESCOLA
No Capão do Zezinho há um edifício destinado à escola, porém encontra-se
fechado por falta de professores. Alguns poucos estudantes se deslocam até Ibitira num
veículo cedido pela Prefeitura Municipal, outros estudam mesmo em casa. Atualmente há
três professores em formação no Parque Estadual do Rio Doce, pelo Projeto UHITUP –
Maria Aparecida, Fernanda e Gleison Humberto. Mas como sua cultura não apresenta tanta
diferença da regional, qualquer profissional do ensino teria portas abertas para se integrar
ao grupo Kaxixó.
8.2.4.2. PESCARIA
O Rio Pará é rico em peixes, apresentando uma excelente oportunidade tanto de
subsistência como de comercialização. Precisam de incentivo e disponibilização de
recursos e equipamentos simples, como refrigeradores e conservadores. Projetos de
piscicultura também poderia dar bons resultados.
8.2.4.3. ASSISTÊNCIA JURÍDICA
Sua principal luta agora é por terras, e parece que esta irá se estender por alguns
anos. Profissionais de Direito seriam de grande ajuda para o grupo que precisa se orientar
sobre o que, e como fazer.
8.2.4.4. EVANGELIZAÇÃO E DISCIPULADO
Sem sombra de dúvidas as portas estão abertas para quem desejar chegar e pregar o
evangelho, principalmente se iniciar pelo Capão do Zezinho que é onde está a maior
concentração e demonstram-se mais abertos.
Minas Indígena 148
9. OS ARANÃ
Nós, povo Aranã, lutamos tanto pela terra
como pelo reconhecimento étnico.
Raimundo Aranã119
9.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL
Apontados historicamente como extintos, o povo Aranã é o mais recente grupo
indígena “emergente” a despontar no cenário indígena de Minas Gerais. Com suas raízes
num passado de opressão e resistência, lutam hoje pelo reconhecimento étnico oficial junto
à FUNAI, em um processo de articulação e reorganização tribal recente mas bastante
consistente, o que nos leva a incluí-los na lista dos grupos indígenas do Estado. Mesmo
ainda não reconhecidos oficialmente, todo o movimento indigenista do Estado, bem como
do Espírito Santo e Nordeste, já se refere a eles como indígenas de Minas, devido as muitas
evidências da sua indianidade.
Ainda desaldeados e dispersos por várias partes do país, as esperanças de obtenção
do desejado reconhecimento étnico e posteriormente de terras para sua sobrevivência, vêm
despertando o interesse de várias famílias do grupo a se unirem com aqueles que estão
articulando o processo, aumentando assim as forças desta luta. O povo Aranã vê agora a
possibilidade de resgatar, ao menos parte daquele antigo estilo de vida dos seus ancestrais
que para os de hoje não passa de história e saudosismo. Vêem a possibilidade real de unir a
“grande família” em um só território, onde possam resgatar traços perdidos da sua cultura e
viver de forma comunitária, o que parece ser intrínseco à sua natureza.
Na sua maioria trabalhadores do campo, agricultores de subsistência e agregados de
fazendas, os Aranã jamais perderam a consciência de sua indianidade, mas por outro lado,
desconheciam totalmente os direitos que a Constituição Brasileira lhes assegura enquanto
indígenas. Somente com a chegada do grupo Pankararu para a região em 1994, eles se
despertaram e tomaram consciência dos direitos conquistados pelos povos indígenas do
119
Em Caldeira (2001a.7)
Minas Indígena 149
país. A partir daí começou então a sua articulação, e com ajuda de ONG’s e pastorais estão
inseridos hoje nos movimentos indígenas da região e país, cientes, entretanto, de que isto é
apenas o começo de uma luta que certamente se estenderá ainda por alguns anos. Mas tudo
isto gerou nos Aranã uma nova perspectiva de vida, um sentimento de reafirmação étnica e
cultural, uma sensação de orgulho por ser indígena, o que antes lhes era pejorativo. Em
2001, a Procuradoria Geral da República esteve no Vale do Jequitinhonha avaliando a
situação e a FUNAI solicitou à ABA que fizesse um laudo antropológico visando o
reconhecimento dos mesmos, o que está em andamento.
9.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA
O grupo que hoje articula seu reconhecimento étnico é o resultado da união de duas
famílias principais, ambas da mesma região, que por décadas vinham compartilhando as
mesmas convicções, alguns costumes, o mesmo território, e também sofrendo a mesma
discriminação, sendo estigmatizados pela sociedade regional e principalmente explorados
por fazendeiros. A família “Índio” tem sua origem indígena clara e incontestável, sendo
fácil evidenciar sua indianidade não apenas pelas características socioculturais do grupo
atual, mas também por sua linhagem genealógica que os liga à conhecida tribo Aranã do
século XVIII. Já a família “Caboclo” tem uma origem não muito clara, pois são fruto do
“cativeiro”, ou seja, de índios escravos que viviam a serviço dos poderosos da região, mas
a sua indianidade é igualmente incontestável. Vivendo o mesmo drama e compartilhando a
mesma consciência de serem diferentes, as duas famílias se uniram através de casamento
dando origem assim ao atual grupo Aranã.
9.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA
Faz-se necessário retornarmos à história para entendermos a origem étnica Aranã.
Segundo a indigenista Geralda Soares120 “o território tradicional deles era no município de
Capelinha, no Alto Jequitinhonha – onde hoje é Malacacheta, Itambacuri, Poté – Vale do
Rio Urupuca”. É provavelmente nesta região que até o século XVIII os Aranã habitavam,
fazendo parte da famosa confederação dos Botocudos. O professo José Carlos Machado,
escrevendo sobre a história de Capelinha se refere a eles:
120
Em entrevista do dia 11/02/02. Originária desta região, Geralda retornou para o Vale do Jequitinhonha
com os Pankararu em 1994, pois foi a principal articuladora da luta dos mesmos por terras. Tomando
consciência da situação dos Aranã, se dispôs a realizar um levantamento da história dos mesmos que
culminou na luta pelo reconhecimento étnico que hoje se desenvolve. Fixando residência na cidade de
Araçuaí, a 37 km dos Aranã, ela tem se dedicado quase que exclusivamente à esta luta, como agente do
GTME e CEDEFES.
Minas Indígena 150
(...) com a ferocidade do sangue botocudo nas veias, os Aranãs expulsaram as tribos
mais mansas do Urupuca e Surubim e aí se estabeleceram. Mas não sobreviveram à
luta com as tribos mais fortes na disputa por terras e alimentos. Além disso, o
confronto com os colonos brancos e as doenças extinguiram completamente a tribo
Aranãs (Oliveira.Internet).
Mas vale citar também as palavras de Mattos (2000b.16) sobre a origem os mesmos
e o contato com os colonizadores:
O povo Aranã também tem sua origem na história dos Botocudos. Distinguia-se, no
entanto, politicamente, de outros grupos Botocudos, conservando inclusive uma
pequena variação dialetal, significativa da distância que mantinham
estrategicamente como forma de reafirmarem sua diferença.
Os Aranã foram aldeados pelos missionários capuchinhos em 1873, no Aldeamento
Central Nossa Senhora da Conceição do Rio Doce, onde epidemias dizimaram a
população. Alguns sobreviventes migraram para o Aldeamento de Itambacuri, de
onde saíram os ancestrais dos Aranã de hoje para o trabalho em fazendas da região
do Vale do Jequitinhonha.
Soares121 confirma estas informações e acrescenta que na grande revolta dos
indígenas do aldeamento de Itambacuri122, quando os Pojixá flecharam alguns padres, os
Aranã estavam envolvidos na revolta e como os demais sofreram a represália. O exército
foi convocado e “fez uma limpeza étnica de Itambacuri até Campanário, matando todos os
índios que encontravam na mata”. Era também comum naquela época o tráfico de crianças
indígenas, sendo vendidas no litoral. Criaram então um asilo para meninas indígenas e nãoindígenas órfãs, enquanto os meninos eram dados aos fazendeiros e colonos para serem
criados como escravos. Uma família que vivia na região de Virgem da Lapa, trouxe um
menino indígena de Itambacuri, ao qual deram o nome de Manoel. Este cresceu nesta
região, se casou com uma indígena que possivelmente teria sido trazida também do
aldeamento de Itambacuri (Oliveira.Internet) e com ela teve três filhos, fazendo algo
totalmente inusitado na história indígena do Estado, e talvez do país: como prova da
consciência de sua indianidade, afirmação étnica e protesto ao contexto de opressão que
vivia “inseriu a denominação ‘Índio’ em seu nome, transformando essa palavra substantiva
no patronímico de sua família” (Caldeira, 2000a.6) e passando a se identificar e ser
identificado como Manoel Índio, ou “Mané Índio”.
121
Idem.
Próximo da cidade de Itambacuri, há um povoado chamado “Cachoeira dos Aranã”, em referência a este
povo.
122
Minas Indígena 151
Um dos seus filhos, registrado como Pedro Inácio Figueiredo123, mas conhecido
como Pedro Sangê, tornou-se capataz de uma grande fazenda chamada Campo, da família
Campos, e foi além do seu pai na ousadia de reafirmar sua indianidade, pois registrou em
cartório civil dez dos seus treze filhos com o sobrenome Índio – os do seu segundo
casamento.
Tanto Manoel como seu filho Sangê são lembrados como homens de grande
rebeldia, tendo enfrentado o sistema de escravidão através de atos, como o de se
autodenominar “Índio”, afirmando sua identidade indígena e demonstrando resistência à
dominação. A imagem de Pedro Sangê é sempre associada ao estereótipo indígena, mas ele
possui algumas habilidades que o tornava especial para a época, como comenta Caldeira
(2001a.6):
Descrito como homem de cabelos longos, que usava duas tranças, ele era muito
respeitado por sua coragem e bravura. Todavia, ao contrário da maioria dos
indígenas, Pedro possuía o domínio da leitura e da escrita, o que surpreendia e
aumentava o respeito por ele, que também era sacristão de igreja, rezador,
curandeiro, sapateiro e alfabetizador.
Seu filho Pedro Índio de Souza, conhecido como “Gilmar” acrescenta com orgulho
que seu pai era também padeiro, cozinheiro, costureiro, foi militar e tocava violão e
sanfona124. Alfabetizou alguns dos seus filhos e ficou também conhecido pelas festas que
organizava. Trabalhando em várias fazendas, foi na Fazenda Campo que ele permaneceu
por mais tempo, constituindo assim a grande família Índio.
Nesta mesma fazenda a família Índio conheceu a família Caboclo e com ela se
uniu. Mattos (1998.14,15) classifica a expressão Índio como um patronímio, enquanto
Cabloco como um cognome pejorativo, carregado de discriminação, indicando que os
primeiros se apoderaram desta expressão como forma de reafirmar sua etnicidade,
enquanto os outros receberam a expressão “caboclo”, ou “cabôco”, como é pronunciado na
região, como um estigma de depreciação por parte da sociedade regional. Segundo ela,
“este grupo familiar é historicamente identificado como mão-de-obra desclassificada das
grandes fazendas da região”.
123
O sobrenome “Figueiredo” provavelmente é por ter nascido e sido criado na fazenda da família
Figueiredo, em Virgem da Lapa, que era uma das três maiores famílias de colonizadores da região – as outras
era Murta e Freire. As três são descendentes de um mesmo inconfidente que se escondeu nesta região e criou
um aldeamento.
124
Em entrevista do dia 20/03/02. “Gilmar” é um dos filhos mais velhos de Pedro Sangê e reside há vários
anos em Belo Horizonte com sua família que soma 73 pessoas. Conservando o sentimento comunitário, sua
família reside quase toda nas proximidades da sua residência.
Minas Indígena 152
A família Caboclo vem da Fazenda Alagadiço, de propriedade da família Murta125,
onde o Coronel Murta “possuía, entre seus escravos, índios ‘comprados’ através de uma
rede de tráfico de crianças que caracterizou a colonização daquela região”. Parece que esta
família é o resultado da mistura de indígenas, provavelmente de vários grupos, com
escravos africanos, pois geralmente a expressão “caboclo” tem sido empregada exatamente
para índios que se miscigenaram com negros.
O principal laço de união destas duas famílias se deu através do casamento de
Joverdil Índio, filho de Sangê, mais conhecido como Jóvi, com Emiliana Cabocla, que fez
questão de passar a assinar Índio, pois Caboclo não era assinatura, e também registrou
todos seus filhos com este sobrenome. Daí, as famílias se uniram concentrando-se
principalmente na fazenda Alagadiço, dando origem ao atual grupo Aranã.
9.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA
Se a hipótese dos Aranã pertencerem historicamente à confederação dos Botocudos
for real – e há muita probabilidade que sim – então eles formam família com os Krenak,
que são os tradicionais remanescentes Botocudos de Minas Gerais.
9.1.2. DISTRIBUIÇÃO DEMOGRÁFICA
Os Aranã articulados na luta pelo reconhecimento étnico oficial somam cerca de
oitenta e cinco pessoas, espalhados nos municípios de Coronel Murta e Araçuaí, no Médio
Vale do Jequitinhonha, ligados às famílias de Joverdil e Antônio Carlos, na Fazenda
Alagadiço; João, Fazenda Campo; Rosa e Terezinha, na cidade de Araçuaí. Neste relatório
mencionaremos várias vezes os outros grupos, mas estes mencionados são o foco do nosso
levantamento.
Há um grande número de parentes espalhados por várias partes do país, ligados a
diferentes filhos de Sangê. Em São Paulo há um número considerável, ligado a Maria
Amélia Índio; no Paraná há um outro grupo, ligado a José, filho do primeiro casamento de
Sangê; em Pará de Minas também residem algumas famílias, através da Mazilte Índio; mas
o maior grupo está na Grande Belo Horizonte, ligados principalmente a “Gilmar” e sua
irmã Isabel, espalhados pelas proximidades da zona industrial, Juatuba, Betim e Caeté.
Somente a família de “Gilmar” soma setenta e três pessoas. Estes porém não se interessam
em retornar para o Vale do Jequitinhonha, pois de lá saíram há muitos anos, mas alguns
sugeriram a aquisição de um território na região de Janaúba para se agruparem ali. Foram
125
Descendentes do famoso Coronel Inácio Murta. A cidade de Coronel Murta recebeu este nome em sua
homenagem.
Minas Indígena 153
feitas algumas reuniões com estas famílias, entretanto, é pouco provável que realmente se
engajem na luta. Há outros de paradeiro desconhecido.
9.1.3. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA E SITUAÇÃO TERRITORIAL
A principal concentração de famílias Aranã envolvidas na luta, está exatamente na
Fazenda Alagadiço, situada no Município de Coronel Murta, na margem esquerda da
rodovia que liga a referida cidade a Araçuaí. Dista apenas 7 km de Coronel Murta, 33 km
de Araçuaí e cerca de 270 km de Belo Horizonte. A rodovia apresenta um bom estado de
conservação.
A Fazenda Alagadiço foi uma das propriedades da família Murta. Dona
Marianinha, filha do Coronel Inácio Murta, herdou esta fazenda do seu pai e por não deixar
descendentes doou a mesma à Igreja Católica em 1944. No início da década de 1990, o
Bispo da Diocese de Araçuaí decidiu promover uma “reforma agrária” nas terras da
Fazenda Alagadiço, titulando lotes de terra para as famílias de trabalhadores que lá
habitavam. Foi nesta oportunidade que o grupo Pankararu foi beneficiado com 60 ha. de
terra onde estabeleceu a aldeia Apukaré. As quatro famílias diretamente ligadas a Joverdil
Índio – Jóvi – foram beneficiadas com 13 ha. da fazenda e seu irmão Antônio Carlos Índio
arrendou um pedaço da mesma fazenda, ligado àquele do seu irmão, onde trabalha com sua
família, facilitando assim a articulação do grupo e tentando resgatar o sistema de habitação
comunitária126. Ali eles habitam em casas muito simples, mas de alvenaria, e enfrentam o
problema de não terem acesso ao Rio Jequitinhonha, que banha aquela região.
Já as famílias ligadas a João Índio, trabalham como agregados na Fazenda Campo,
de propriedade da família Campos, hoje residentes na capital. Esta se localiza também no
município de Coronel Murta porém na zona rural, sendo de difícil acesso. A única forma
de chegar até lá é a cavalo, com muita atenção para não se perder no caminho. Ali habitam
em choupanas muito simples, cobertas de palha, por eles mesmos construídas. É região
árida, com escassez de água principalmente na época da seca que castiga a região.
O desejo de todo o grupo é adquirir posse definitiva destas duas fazendas pois já se
apoderaram delas como seu território tradicional. Entretanto, nem tudo é tão simples, pois
faz-se necessário primeiro o reconhecimento étnico oficial por parte da FUNAI, o que
demanda um laudo antropológico bem complexo favorável à sua indianidade. A ABA
ficou responsável por este laudo e o CEDEFES está providenciando documento similar,
com previsão de conclusão para o ano de 2002.
126
Segundo Geralda Soares, em entrevista do dia 11/02/02.
Minas Indígena 154
9.1.4. SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA
Segundo Geralda Soares127, os Aranã falavam uma língua pertencente ao tronco
Macro-Jê e família Botocudo, mas perderam totalmente, sendo falantes do português.
9.1.5. RELIGIOSIDADE
Sofrendo primeiramente o forçado processo de catequese pelos capuchinhos e
posteriormente às proibições e imposições por parte dos fazendeiros, o grupo perdeu quase
totalmente a sua religiosidade tradicional, sendo assimilados pelo catolicismo. Mas cada
concentração de famílias têm demonstrado uma tendência religiosa bem particular.
Desta forma, o grupo da Fazenda Alagadiço é evidentemente católico, sendo
fortemente apegados à veneração de santos, ao culto a Maria e à prática de novenas. Estas
novenas são famosas na região, quando se reúnem para cantar, rezar e fazer peregrinações
de até três quilômetros em atitude de veneração a determinados santos. Na verdade, quase
toda população regional, principalmente da zona rural, pratica estas novenas.
As famílias da Fazenda Campo, apesar de também serem católicas, apresentam
fortes sinais de sincretismo. Praticam alguns rituais que segundo eles foram ensinados pelo
patriarca Pedro Sangê, a quem são atribuídos muitos conhecimentos cerimonias. Este
sincretismo é compreensível, pois o próprio Sangê era sincretista, sendo ao mesmo tempo
curandeiro128, benzedeiro e sacristão. Atualmente um dos filhos de Joverdil tem se tornado
conhecido por seus poderes de cura e conhecimento de ervas medicinais.
Já as famílias de Belo Horizonte são quase todas evangélicas, principalmente os
descendentes diretos de “Gilmar”. Na sua maioria pertencem à Igreja do Evangelho
Quadrangular, sendo alguns obreiros da mesma, como o próprio “Gilmar” e dois dos seus
filhos. Um dos seus genros é pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. Há evangélicos
de outras igrejas, sendo todos pentecostais. Sobre as famílias de São Paulo, não obtivemos
informações.
9.1.6. ESTUDO DE PODER SOCIAL
Desaldeados e espalhados por várias fazendas, os Aranã foram assimilados pela
cultura regional perdendo o costume de possuir uma liderança do grupo. Como qualquer
127
Idem.
Vale aqui ressaltar, que o curandeiro no contexto regional não se limita a manusear ervas medicinais, mas
envolve rituais geralmente de invocação de espíritos e “simpatias” para obter êxito nos tratamentos.
128
Minas Indígena 155
família da zona rural da região, o líder é cada chefe de família que exerce autoridade
geralmente não apenas sobre seus filhos solteiros, mas também sobre os casados e
respectivas famílias, incluindo noras e netos. Mas agora que começam a se agrupar,
algumas pessoas estão tendo ascendência social, despontando assim lideranças. Na
Fazenda Alagadiço, Joverdil e Antônio Carlos são os principais expoentes, por serem os
mais idosos do grupo, mas Raimundo, filho deste último, também tem demonstrado
capacidade de liderança e articulação. Enquanto isto, na Fazenda Campo é o próprio João
quem exerce autoridade.
Entretanto, na cidade de Araçuaí há duas Aranã, Rosa e Terezinha, filhas de Pedro
Sangê, que apesar de serem mulheres são consideradas pelo povo de alguma forma como
líderes. Estas conseguiram estudar e uma se tornou professora. Dado ao nível de formação,
elas detêm maior capacidade de articulação e diálogo com entidades e pessoas envolvidas
na luta, sendo portanto pessoas chaves para todo o grupo.
9.1.7. PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
Apesar da dispersão eles mantiveram a consciência da sua indianidade, e talvez o
que mais contribuiu para isto foram os encontros familiares. Periodicamente eles
promovem o encontro de todas as famílias para se confraternizarem e firmar os laços
fraternais. Estes encontros são motivos de festa e comemoração para todo o grupo que se
alegra e aproveita para cantar, contar histórias e rezar. Esta é sem dúvida uma das
principais manifestações culturais deste povo, pois evidencia o sentimento de “grande
família”, se distinguindo como segmento diferenciado da sociedade regional.
Nestes encontros, aproveitam ainda para fabricar e ingerir uma bebida muito
peculiar das famílias Aranã, chamada de “chamego”. “Ela é feita a partir de uma planta
corante, conhecida como ‘quiabinho’, garapa de cana e cachaça, como ensinou Pedro
Sangê” (Mattos, 1998.19), e eles afirmam que ninguém fica bêbado ao ingeri-la, mas
apenas “chamegoso”, daí o seu nome. Segundo Geralda Soares129, realmente a bebida
possui baixo teor alcoólico. O próprio cultivo do “quiabinho” também é um manifestação
cultural, pois é muito peculiar das suas famílias.
Depois do movimento em busca do reconhecimento étnico, eles passaram também a
produzir artesanato e a praticar a pintura corporal. Entretanto, isto é claramente uma
tentativa de reafirmação cultural e não uma prática preservada. O contato com os
Pankararu os tem influenciado bastante. O território dos mesmos está dividido
129
Em entrevista do dia 11/02/02.
Minas Indígena 156
simplesmente por uma cerca, mantendo assim um próximo convívio e boas relações de
amizade. Não conhecendo a região, pediram ajuda aos Aranã no cultivo da terra e assim
iniciou uma relação que resultou na luta pelo reconhecimento étnico deste últimos.
Os Pankararu procuraram os Aranã para se informarem do que e como se plantava
nesta região, épocas de plantio e colheitas, de onde vinha a água, e começou assim
uma articulação entre eles. Os Aranã, profundos conhecedores da região, inteiraram
os Pankararu, e conscientes de serem índios também, começaram a se reunir com
eles, participando de encontros, visitas, projetos, inclusive a se vestirem e pintarem
como índios, o que não acontecia mais.130
Foi nestes encontros que conheceram a indigenista Geralda Soares a quem
solicitaram um levantamento da sua história. Desta forma, os Pankararu têm exercido forte
influência cultural sobre o grupo Aranã que anseia pelo resgate da sua cultura.
9.1.8. SOBREVIVÊNCIA
São agricultores de subsistência, vivendo assim do cultivo da terra. Plantam
principalmente milho, feijão e melancia. Agora que produzem artesanato, sempre que
podem procuram comercializá-los. Na Fazenda Campo, por ser bem isolada, vivem de
forma muito peculiar. Sobre isto vale citar as palavras de Mattos (1998.19):
Lá se planta, cria animais de pequeno porte e se caça. A água é pouca e a seca às
vezes castiga a região. Quase autosuficientes, consomem o que podem produzir e
vivem seu modo de vida sem depender da cidade. Os gêneros que precisam
“importar” da cidade, como querosene das lamparinas, sal, etc., são adquiridos aos
sábados, dia de feira, onde se vende ou troca mercadorias por eles produzida.
9.1.9. PROBLEMAS SOCIAIS
9.1.9.1. TERRAS
A principal dificuldade dos Aranã é exatamente a falta de terras. Os da Fazenda
Alagadiço não dispõem de território suficiente para produzir o necessário para a
sobrevivência de todo o grupo, sem contar que parte da pequena terra que cultivam é
arrendada. Os da Fazenda Campo, além de não terem posse da terra onde residem,
enfrentam a mesma dificuldade de insuficiência territorial e agora estão com dificuldades
também para plantar, pois os proprietários não mais permitem a utilização das áreas onde
costumavam plantar à meia, temendo talvez a alegação de usucapião por parte da
comunidade.
130
Idem.
Minas Indígena 157
Eles precisam de terras suficientes para unirem todas as famílias interessadas, se
reorganizando definitivamente em grupo. Somente desta forma poderão trabalhar
efetivamente o resgate cultural e a reafirmação étnica que desejam. Um fato negativo é que
o problema territorial é tão gritante para o grupo que às vezes dá-se uma impressão de
estarem mais interessados na posse de terras do que na reorganização etnocultural, ainda
que esta será conseqüentemente inevitável.
9.1.9.2. SECA
A seca castiga toda a região do Vale do Jequitinhonha que chega a ser conhecido
erroneamente como “vale da miséria”, mas o caso particular dos Aranã da Fazenda
Alagadiço tem o agravante de não possuírem acesso a nenhum rio. Seu território de cultivo
é limitado ao norte por uma cadeia de montanhas com um considerável bosque no seu
cume; ao oeste está o território Pankararu; a leste fazendas; e ao sul a rodovia que liga
Araçuaí e Coronel Murta. O Rio Jequitinhonha dista menos de mil metros desta rodovia,
mas há uma gleba impedindo o acesso dos mesmos.
Desta forma, não podendo usufruir dos benefícios do Rio Jequitinhonha, em época
de seca, eles se vêem em grande dificuldade até de sobrevivência. Trata-se de região muito
quente, onde até os poucos animais sofrem com o calor e a falta de vegetação. Seria
necessário um sistema de irrigação para facilitar a produção em épocas de seca, mas
enquanto não obtiverem posse de terras isto é inviável.
9.1.9.3. ESCOLA
As crianças e adolescentes Aranã que desejassem estudar, teriam que percorrer a pé
ou de bicicletas um trajeto de 7 km até a cidade de Coronel Murta, numa rodovia asfaltada
e com considerável fluxo de veículos, o que constituiria uma situação de risco. Tinham que
retornar à noite o que complicava ainda mais. Através da mediação da indigenista Geralda
Soares, que presta serviços para o GTME, a Igreja Metodista alugou uma casa em Coronel
Murta para o grupo que desejasse estudar, o que tem facilitado os estudos pelo menos dos
adolescentes que podem permanecer na cidade.
Entretanto, é evidente que isto não é o ideal, pois neste momento de reafirmação
étnica e resgate cultural, mais do que nunca estes adolescentes deveriam estar com suas
respectivas famílias. Não sendo ainda reconhecidos oficialmente, não podem se beneficiar
dos programas de assistencialismo indígena, como a Escola Indígena Diferenciada.
Minas Indígena 158
9.1.9.4. DISCRIMINAÇÃO
Historicamente portadores dos estigmas “Índio” e “Cabloco”, são vistos por grande
parte da sociedade regional como uma categoria social inferior. Apesar de ter membros do
grupo de pele vermelha e cabelos lisos e longos, muitos possuem cor quase negra e cabelos
crespos, dado a miscigenação com negros escravos, o que leva alguns a duvidarem da sua
indianidade, influenciados pelo fantasia do “índio puro”. Outros, exatamente por não
duvidarem da sua indianidade os discriminam, pois alimentam preconceitos contra os
“índios”. Esta estigmatização vinha levando “alguns dos nomeados à tendência de eliminar
o sobrenome, tão carregado de significados, das gerações subsequentes” (Mattos, 1998.12).
Isto aconteceu durante anos principalmente nos residentes em cidades, mas vários da zona
rural também eliminaram o sobrenome “Índio” dos seus filhos. Alguns não foram
registrados com este sobrenome por que os cartórios não permitiram, como aconteceu com
sete dos quatorze filhos do “Gilmar”, em Belo Horizonte.
Desta forma, são vistos como mão-de-obra barata ou desclassificada das grandes
fazendas da região, principalmente os da família Caboclo, que vêm de uma realidade
histórica não tão antiga de escravidão. Com a chegada dos Pankararu e dos trabalhos da
indigenista Geralda Soares, bem como o próprio movimento pelo reconhecimento dos
Aranã, a população regional vem sendo conscientizada sobre a questão indígena, mas isto é
um processo lento, que certamente perdurará por alguns anos.
9.1.10. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA
No grupo do Vale do Jequitinhonha engajado na luta pelo reconhecimento, não há
evangélicos e nenhum trabalho missionário voltado a eles. A única presença evangélica se
faz pelo trabalho do GTME, mas este se limita à assistência social, não se engajando em
trabalhos de proclamação. A obreira do GTME, Geralda Soares, é católica131.
9.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS
Sendo um povo “emergente” e ainda em processo de reconhecimento étnico, o
desejo e necessidade de reafirmação étnica e cultural é muito grande, podendo levá-los a
resistir ao que vem de fora. Sua tendência no momento pode ser mais de retornar às
práticas de rituais, como acontece na Fazenda Campo, do que dar atenção a uma outra
131
A obreira do GTME entre os Krenak, Marli Castro, também é católica (cf. 4.1.6.2. 2ª Parte).
Minas Indígena 159
“crença”. Entretanto, é óbvio que o seu alto grau de integração com a cultura regional e o
conhecimento do evangelho, ainda que elementar, pela vertente católica, podem ser
abridores de portas, ampliando as possibilidades de abordagens missionárias.
9.2.1. CENTROS ESTRATÉGICOS
Tanto Coronel Murta como Araçuaí seriam boas opções, levando em consideração
que a primeira apesar de distar apenas 7 km possui pouca infra-estrutura, enquanto Araçuaí
já é bem mais estruturada. Inclusive, a indigenista Geralda Soares optou por residir nesta
última cidade, onde possui maiores possibilidades de articulação.
9.2.2. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS
Araçuaí possui boas e bem estruturadas igrejas, como a Batista, Presbiteriana e
Assembléia de Deus. Coronel Murta também possui algumas igrejas. A questão básica é a
falta de consciência e visão missionária. Um intenso trabalho de conscientização seria
necessário.
9.2.3. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS
9.2.3.1. ASSISTÊNCIA JURÍDICA
Neste momento quando estão engajados na luta pelo reconhecimento étnico,
precisam muito de orientação e assistência jurídica no processo de articulação e contatos
com entidades e pessoas diversas. A luta por posse de terras também demandará muita
ajuda jurídica, o que abre portas para profissionais da área. A indigenista Geralda Soares já
faz um trabalho de apoio e a indigenista Vanessa Caldeira, do CEDEFES de Contagem,
também tem atuado nesta área, mas a primeira é pedagoga e a segunda antropóloga.
Alguém que possa dar este tipo de assistência a eles seria bem-vindo e por demais útil na
luta dos Aranã.
9.2.3.2. EDUCAÇÃO
Não tendo uma escola no território, profissionais do ensino certamente teriam uma
grande aceitação para trabalhar com as crianças, tanto na Fazenda Alagadiço como na
Fazenda Campo. Talvez a necessidade desta última seja ainda mais gritante nesta área. A
Minas Indígena 160
memória de Pedro Sangê como alfabetizador gera uma simpatia quase instintiva no grupo
em relação a educadores. Isto precisa ser aproveitado.
9.2.3.3. EVANGELISMO E DISCIPULADO
Mas dado ao nível de influência da cultura externa e ao fato de falarem somente o
português, nada impede uma abordagem direta de evangelismo. Uma possibilidade real e
muito estratégica, seria o envio de um obreiro Aranã, do grupo de Belo Horizonte para
trabalhar com o seu próprio povo. Em contato com “Gilmar”, conhecemos o seu filho
Geraldo Magela, que é obreiro da Igreja do Evangelho Quadrangular, e fizemos a ele esta
sugestão, que muito lhe agradou. Além dele, tem o próprio “Gilmar” e seu outro filho
Pedro Paulo, que é missionário Quadrangular. Para tanto seria necessário treinamento do
obreiro, pois todos eles são pessoas dedicadas mas sem qualquer treinamento bíblicoteológico. Seria necessário também o levantamento de sustento, pois dificilmente suas
igrejas assumiriam a responsabilidade financeira, se bem que esta questão seria
solucionada se o mesmo conseguisse emprego em um dos centros estratégicos. Como na
região já existe a Igreja do Evangelho Quadrangular, o mesmo poderia trabalhar em
parceria com a mesma.
Minas Indígena 161
TERCEIRA PARTE
Uma Análise Missiológica das Abordagens
Missionárias na Minas Indígena
Minas Indígena 162
1. ABORDAGENS MISSIONÁRIAS
As abordagens missionárias em qualquer ambiente indígena têm por objetivo, a
posteriori, gerar transformações sociais as quais mostram-se necessárias segundo os
critérios dos investigadores. Por esta razão, a atuação missionária entre indígenas tem sido
por demais criticada por antropólogos, lingüistas, indigenistas e sertanistas, o que leva
alguns, em reação a estas críticas, a crer na utopia de que o evangelho não muda a cultura.
Isto tornou-se um “mito” no meio evangélico e, até mesmo missionário, que precisa ser
combatido. Vale citar as palavras do missiólogo Ronaldo Lidório (2001a.29):
O evangelho respeita a cultura entretanto é inocência missiológica afirmarmos que
o evangelho não muda a cultura. A própria razão do evangelho vem com o
pressuposto de transformação.
Em contrapartida, é preciso também entender que “transformação” não é sinônimo
de “destruição”, ou seja, o evangelho causa mudanças, mas não necessariamente destruição
cultural. A idéia de que o trabalho missionário destrói a cultura indígena é outro “mito”
alimentado e difundido por aqueles que criticam a atuação missionária. E aqui podemos
novamente citar Lidório (2001a.29,30):
“A ação missionária contribui para a destruição étnico-cultural”. Um grave engano.
Começamos pelo movimento lingüístico onde o missionário lingüista grafa o
idioma nativo e alfabetiza os indígenas em sua própria língua assegurando que esta
língua materna não morrerá como aconteceu com mais de 35 grupos indígenas que
falam apenas o português e com grave descaracterização cultural. Portanto não
promovemos o etnocídio nem a etnofagia cultural.
O resultado da abordagem missionária será sempre transformação, e é nesta
perspectiva que queremos neste capítulo fazer uma breve análise das abordagens que já
foram adotadas por missionários e agências junto aos indígenas de Minas Gerais, tecendo
algumas considerações que cremos ser relevantes para futuras abordagens. Vale ressaltar,
que aqui estarão em foco as abordagens, as estratégias, e não a pessoa dos missionários
que, sem exceção são servos fiéis que dedicaram e/ou dedicam suas vidas para que o reino
seja expandido entre estes grupos indígenas do Estado.
Minas Indígena 163
2. ABORDAGEM LINGÜÍSTICA
A abordagem lingüística utiliza-se das técnicas ou ferramentas lingüísticoantropológicas para estabelecer um contato real e comunicativo com o povo, resultando
geralmente em análise e grafia da língua materna, alfabetização e tradução bíblica. Trata-se
de uma abordagem que exige muita responsabilidade, bem como capacidade técnica, sendo
na maioria das vezes um trabalho de vários anos. Muita dedicação, paciência e integração
social com o povo se faz necessário, pois não é possível fazer um estudo apenas
lingüístico, é sim necessário uma compreensão macro-cultural.
No Brasil Indígena, esta abordagem tem sido um dos principais instrumentos de
preservação cultural nos vários grupos que recebem missionários lingüistas. Os primeiros
trabalhos nesta área tiveram início ainda em 1928 com a Missão Caiuá, que atuando entre
os Caiuá registraram seu idioma e criaram cartilhas de alfabetização, que vieram a se
tornar instrumentos de preservação tanto lingüística como cultural. Em 1946, tiveram
início os trabalhos da NTM – New Tribes Mission132 e dez anos depois chegaram os
missionários da WBT – Wycliffe Bible Translators e SIL – Summer Institute of
Linguistics133 (Souza, 1996.38,39), tendo este último, como um dos alvos principais,
grupos indígenas que estavam sob ameaça de extinção. Sua abordagem consistia
basicamente na análise lingüística, elaboração de cartilhas, educação na língua materna e
tradução bíblica. Foi a partir do trabalho destes missionários que a abordagem lingüística
passou a ser efetivamente adotada entre indígenas do Brasil. Grupos que outrora estavam
em acelerado processo de extinção passaram a experimentar um considerável crescimento
populacional.
Na Minas Indígena, o único grupo a receber esta abordagem foi os Maxakali, que
em 1959 receberam, através do SIL, o casal de missionários lingüistas Harold e Frances
132
Em 1953 criou razão social nacional como MNTB – Missão Novas Tribos do Brasil, incluindo brasileiros
no seu rol de membros até se tornar totalmente nacional.
133
Hoje Sociedade Internacional de Lingüística.
Minas Indígena 164
Popovich (cf. 3.1.6.1. 2ª Parte). Nesta época os Maxakali estavam em processo de
extinção, como comenta a própria Frances Popovich134:
O atual diretor da SIL no Brasil pediu que fossemos para os Maxakali, já que
estavam em fase de extinção (havia apenas 197 remanescentes).
Harold e Fances Popovich são americanos, na época ele formado em Zoologia
Química-Física (1951) e ela em enfermagem psiquiátrica (1951) e enfermagem geral
(1955). Fizeram o curso lingüístico de verão do SIL em duas etapas (1956 e 1957).
Chegaram ao Brasil em março de 1958, estudaram português por dois meses no Rio de
Janeiro e por três meses em Anápolis, se dirigindo para a aldeia Maxakali em fevereiro de
1959, quando iniciaram o aprendizado da língua no método monolingüe. Em 1962 iniciam
a tradução do Novo Testamento que seria concluída somente em 1979, impresso em 1980 e
distribuído em 1981.
2.1. ÁREAS DE ATUAÇÃO
2.1.1. ANÁLISE DA LÍNGUA MATERNA
Os Popovich foram os primeiros lingüistas a analisar a língua Maxakali, grafando a
mesma que até então era ágrafe. Como os Maxakali não falavam – e até hoje a maioria não
fala – o português, o método de aprendizado foi monolingüe, e segundo o próprio Harold
Popovich (Antunes, 1999.ii), o processo não foi nada fácil:
A Análise fonológica de Maxakali demorou por causa da sua complexidade.
Levaram três anos para concluir enquanto a média é de seis meses. Começamos o
estudo em 1959 e terminamos em 1962.
A partir desta primeira análise, alguns outros lingüistas se aventuraram a estudar a
língua Maxakali, mas todos usando como ponto de partida a análise realizada pelos
Popovich.
2.1.2. ELABORAÇÃO DE CARTILHAS
O casal elaborou cinco cartilhas de aprendizado da língua, as quais foram
posteriormente revisadas por outros lingüistas mas até hoje são usadas na alfabetização das
crianças na Escola Indígena Diferenciada, implantada nas aldeias por iniciativa
governamental.
134
Em correspondência pessoal do dia 11/01/02.
Minas Indígena 165
Infelizmente, durante o trabalho de tradução não foi possível realizar um trabalho
de alfabetização em maior escala, como novamente comenta o próprio Harold Popovich
(Antunes, 1999.ii):
Juntos com os índios Maxakali, desenvolvemos o primeiro conjunto de cartilhas.
Somente uma meia dúzia deles aprendeu a ler e escrever.
Estas cartilhas são: cartilha 1 – Patap’; cartilha 2 – Kokex; cartilha 3 – Mõmõka; e
cartilha 4 - Yãyã’ (Popovich, 1992a, b, c e d).
2.1.3. TRADUÇÃO BÍBLICA
Como já mencionado, o trabalho efetivo de tradução do Novo Testamento cobriu
um período de dezessete anos (1962-1979), excluindo aqui o período de aprendizado,
análise da língua e impressão. Foi um tempo árduo e de muito trabalho, com vários
imprevistos e dificuldades, como enfermidades, revolta do povo contra fazendeiros, pouco
interesse em aprender a ler e escrever, e ainda o estado de miséria do povo que vivia
totalmente à margem da sociedade regional, sendo por ela discriminado. Várias campanhas
de incentivo à leitura foram feitas, mas todas com pouco sucesso135.
Ainda assim, o resultado foi uma tradução do Novo Testamento completo e de
excelente qualidade. Mesmo depois de algumas décadas, tendo a língua sofrido
consideráveis modificações ou evolução, os próprios Maxakali elogiam a tradução como
ainda atual e compreensível a todos136.
2.1.4. ASSISTÊNCIA DE SAÚDE
Sendo a missionária Frances também enfermeira, além do trabalho lingüístico, ela
atendia ao povo na área de saúde, fazendo curativos, aplicações e afins, sendo assim
recordada como “mulher muito boa”. “Dona Francisca”, como era chamada e até hoje
recordada por eles, se tornou conhecida em toda a região, principalmente nas fazendas
vizinhas da aldeia, sendo procurada até por não-índios para atendimentos de saúde.
O senhor Jorge Cardoso, mais conhecido como “Dodi”, hoje morador da cidade de
Santa Helena, recorda com carinho quando naquela época ainda adolescente, recebeu
cuidados da “Dona Francisca” num ferimento que teve na perna: “Sempre que olho para
esta marca me lembro da Dona Francisca. Ela ainda é viva?”137
135
Segundo Frances Popovich. Idem.
Zezinho Maxakali, em entrevista do dia 08/02/02.
137
Em entrevista do dia 06/08/02.
136
Minas Indígena 166
2.2. EFEITOS POSITIVOS
Reafirmação Lingüística – Reduzidos a um pequeno grupo, sofrendo forte pressão
e influência externa, inclusive com não-indígenas vivendo com eles na aldeia, a tendência
era perder totalmente a sua língua materna como aconteceu com quase todos os grupos
indígenas do leste do país. Mas com o estudo lingüístico que foi realizado, bem como com
o processo de tradução demandando informantes e revisores, a língua foi valorizada e o
povo incentivado a preservá-la. Quando da distribuição do Novo Testamento foi feita uma
campanha de alfabetização, numa parceira da SIL, FUNAI e UFJF – Universidade Federal
de Juiz de Fora (1980-1984), tendo como um dos principais objetivos a preservação da
língua materna (Antunes, 1999.v). Foi criado o curso de alfabetização bilíngüe, oferecido a
vinte a quatro líderes Maxakali, que na sua maioria tornaram-se professores efetivos de
suas aldeias, quando implantada a Escola Indígena Diferenciada em 1996. O povo passou a
se orgulhar em falar uma língua própria, pois agora até a sociedade externa os admirava
por isto, enquanto antes, era motivo de depreciação. Ao serem argüidos acerca dos
benefícios desta abordagem, os próprios Maxakali não hesitam em apontar a questão
lingüística como o principal legado dos missionários138.
Preservação Étno-populacional – Em 1959 eram apenas cento e noventa e sete
indivíduos, em acelerado processo de extinção, hoje são cerca de mil pessoas em acelerado
processo de crescimento populacional. Vale lembrar que na década de 1960 eles estiveram
totalmente abandonados pelos órgãos governamentais, pois o SPI estava em processo final
de desestruturação (cf. 5.1. 1ª Parte). A FUNAI só veio dar uma maior assistência na
década de 1970 (cf. 5.3. 1ª Parte) e as várias ONG’s e outros órgãos governamentais na
década de 1980 (cf. 5.4.3. 1ª Parte). Sendo assim, a preservação étnica dos Maxakali devese em grande parte à atuação dos missionários, exatamente neste momento histórico de
tamanha carência. A assistência de saúde em muito contribuiu para a repopulação,
principalmente evitando a morte dos recém-nascidos, e a simples presença dos
missionários na aldeia serviu de inibição à ação de fazendeiros e outros opressores
externos sobre o povo.
Aplicação Cultural do Termo Topa (Deus) – Até então, o termo Topa estava
adormecido na sua cosmologia (cf. 3.1.4.2. 2ª Parte). Eles sempre creram na existência de
Topa como criador de todas as coisas, mas não criam na possibilidade de reestabelecer
relacionamento com Ele algum dia. Isto foi reavivado na memória cultural do povo,
138
Nas entrevistas com Zezinho Maxakali (08/02/02) e Maria Diva (07/02/02).
Minas Indígena 167
certamente trazendo expectativas e esperanças. Prova disto é o clamor que eles levantaram
a Topa, em 1971, pedindo libertação dos espíritos opressores. Infelizmente, ao que parece
faltou uma resposta a esta expectativa. O próprio uso do nome tribal para Deus foi por
demais positivo, pois aponta uma valorização não apenas da língua mas também da
cosmologia. Esta escolha foi muito feliz, pois a descrição que eles fazem de Topa confere
com os atributos bíblicos de Deus.
Reconhecimento do Trabalho Missionário na Ótica Lingüista-antropológica –
Dado à qualidade e seriedade do trabalho realizado, mesmo os indigenistas, lingüistas e
antropólogos mais críticos tem sido constrangidos a reconhecer a contribuição destes
missionários ao povo Maxakali. Alguns têm omitido o trabalho deles, por não encontrar
argumentos sólidos para crítica. Isto é positivo pois contribui para a mudança da visão dos
profissionais das ciências humanas em relação aos missionários.
2.3. EFEITOS NEGATIVOS
Não resta dúvida de que o trabalho em foco alcançou com sucesso seu objetivo, que
sempre foi a tradução do Novo Testamento. Mas analisando a abordagem como um todo,
talvez possamos apontar alguns pontos negativos da mesma, não por deficiência dos
missionários, mas pelas circunstâncias em si.
Impossibilidade de Leitura – Como já citado, o próprio Harold menciona que
“somente uma meia dúzia deles aprendeu a ler e escrever”, ou seja, foi traduzido um Novo
Testamento para não leitores. Infelizmente isto não é novidade, pois segundo Lidório
(2001a.19), ainda hoje apenas trinta por cento dos missionários tradutores conseguem
traduzir e alfabetizar ao mesmo tempo, ou seja, não sendo realizado trabalho em equipe as
possibilidades de traduzir bíblias para não leitores são grandes. Com a campanha de
alfabetização realizada na entrega do Novo Testamento, houve realmente uma valorização
da língua por parte do povo, entretanto, neste processo houve também um intervalo de
aproximadamente dez anos desde a saída do casal Popovich até a chegada de novos
missionários. Neste período, uma forte influência de antropólogos, lingüistas e pedagogos
foi exercida sobre todo o povo, levando-os a tratar com descaso o Novo Testamento. Se
um número expressivo de indígenas tivesse sido alfabetizado durante o processo de
tradução, poderia até ter sido criado núcleos de alfabetização nos vários agrupamentos
Minas Indígena 168
residenciais, usando como primeira literatura o Novo Testamento. Isto poderia causar um
impacto sem precedentes na história daquele povo.
Desinteresse pelo Texto Sagrado – Sendo a abordagem feita por apenas um casal,
não foi plantada uma igreja, sendo o trabalho de evangelização feito de forma bem
asistemática, como comenta a própria Frances Popovich: “A orientação na fé se fez
principalmente na mesa de tradução”139. Segundo ela, houve um mover de Deus sobre o
povo, mas não chegou a ser organizada uma igreja:
A gente testemunhou um movimento do Espirito Santo no meio dos Maxakali em
1971. Que alguns se converteram não duvido, mas o que mais vi foram pessoas
impressionadas com a realidade da existência de Deus. Eu nunca disse que o povo
se converteu em grande número. Simplesmente não sei.140
Em outra correspondência, se referindo ao mesmo mover de Deus entre eles,
acrescenta:
(...) os Maxakali (durante uma ausência nossa do campo) clamou para Topa (Deus)
pela libertação dos espíritos que oprimiam. Um grande numero reconheceu a
realidade de Deus.141
Desta forma, o resultado foi um povo com Bíblia mas sem igreja, logo, o interesse
de leitura desta Bíblia é pouquíssimo. Quando da distribuição em 1981, todas as famílias
receberam um exemplar, mas atualmente, não mais que quinze pessoas conservam o Novo
Testamento. Alguns por serem professores o utilizam muito esporadicamente para
aperfeiçoar sua leitura – não mais que quatro – e outros o guardam como uma recordação
do saudoso “amigo Aroldo”. Muitos exemplares foram vendidos ou doados,
principalmente para pastores e “crentes” que visitam as aldeias e querem ter um exemplar
do Novo Testamento Maxakali – talvez simplesmente para dizer: estive lá. Outros
simplesmente foram destruídos por falta de interesse, ou ainda pela influência de
antropólogos, lingüísticas e até mesmo missionários do CIMI que apontam o Novo
Testamento como algo danoso à sua cultura. Numa correspondência pessoal a antropóloga
Maria Hilda Paraíso, que exerce muita influência sobre os Maxakali, comentou: “graças a
Deus, a única coisa para a qual os Maxakali usam a Bíblia, é para assento”.
Como o trabalho de tradução é árduo e exige tempo, ainda hoje, em algumas
agências, os missionários tradutores são orientados a não se envolverem com plantio de
igrejas, pois correm o risco de não darem conta das duas coisas. O exemplo dos Maxakali
deve servir como um alerta. É válido lembrar que depois de vinte anos de desinteresse por
139
Em correspondência do dia 11/01/02.
Em correspondência do dia 01/10/01.
141
Na correspondência de 11/01/02.
140
Minas Indígena 169
uma Bíblia disponível na sua própria língua, é difícil motivar um povo como este à prática
da leitura e estudo da mesma. É mais estratégico traduzir a Bíblia para línguas que já têm
igrejas plantadas, como instrumento de amadurecimento da fé e auto-teologização. É
preciso repensar a prioridade na ordem das abordagens missionárias.
2.4. ALGUMAS SUGESTÕES
Atualmente, dois dos oito grupos indígenas de Minas ainda poderiam ser alvos da
abordagem lingüística. O deliberado esforço dos Krenak pelo resgate da língua materna
(cf. 4.1.4. e 4.2.5.2. 2ª Parte), abre portas para a atuação de lingüistas. A sua língua ainda
não foi devidamente analisada e grafada. A grafia por eles utilizada é uma adaptação do
português, feita pelos próprios indígenas, sem qualquer critério lingüístico. Um estudo foi
iniciado mas não pôde ser concluído por problemas de relacionamento da lingüista com o
povo, deixando assim um precedente negativo. Mas com amizade, isto pode ser superado.
Os Xukuru-Kariri é o outro grupo que pode ser alvo desta abordagem. O seu grande
desejo de firmar novamente a língua materna como sinal de reafirmação étnico-cultural (cf.
7.1.3. 2ª Parte), abre portas para um trabalho missionário de resgate lingüístico. No seu
caso seria um pouco mais difícil, pois há poucos falantes e, pelo que parece, com pouca
fluência, mas de qualquer forma é uma porta aberta.
Não resta dúvidas de que a abordagem lingüística foi de grande importância e
relevância para o povo Maxakali. As considerações aqui levantadas visam apenas chamar a
atenção para o fato de que se a mesma houvesse sido conjugada com uma abordagem
kerygmática, por exemplo, os efeitos positivos poderiam ser muito maiores.
Minas Indígena 170
3. ABORDAGEM KERYGMÁTICA142
Esta abordagem utiliza-se da transmissão de uma mensagem com conteúdo
religioso e proposta espiritual a fim de gerar transformações na dimensão das convicções e
práticas religiosas do povo, redundando numa conseqüente transformação sociocultural.
Partindo do pressuposto de que o evangelho é supra-cultural, as transformações por ele
causadas se configuram numa remissão da cultura que se encontra infestada de mazelas e
deturpações introduzidas por espíritos malignos que dominam o povo através do engano.
Ao contrário do que muitos pensam, os indígenas não vivem em clima de completa
harmonia com a natureza e com o seu mundo espiritual (Souza, 2001). Os Maxakali, por
exemplo, como são os mais arraigados em sua religiosidade tradicional, apresentando um
complexo quadro religioso animista, praticam muitos rituais onde há danças e cânticos em
abundância. A leitura feita por muitos é a seguinte: apesar das muitas dificuldades, é um
povo feliz, pois vive cantando. Em conseqüência desse tipo de leitura, foi lançado um
filme com o nome “Maxakali – Povo do Canto”, enaltecendo o espírito alegre deste povo.
Entretanto, uma leitura mais crítica e profunda, revelaria que muitas das suas cantorias e
danças indicam um estado de profunda tristeza e opressão, pois são feitas como
apaziguamento da fúria dos espíritos ou agradecimento a eles. Ou seja, os grupos indígenas
animistas ou sincretistas, vivem uma realidade espiritual de opressão e domínio das trevas,
numa desesperada procura por redenção.
A abordagem kerygmática visa proporcionar liberdade a estes povos através da
pregação do evangelho, como único meio de libertação e redenção. Esta abordagem é
ampla, podendo ser aplicada através de várias frentes de atuação ou ênfases estratégicas,
mas via de regra com o objetivo de plantar uma igreja indígena. Na Minas Indígena,
constatamos a abordagem kerygmática entre os Maxakali, Xacriabá, Pataxó e mais
recentemente entre os Krenak.
142
De κηρυγµα – “proclamação”. Quanto às conceituações teológicas, ver PACKER (1966.36).
Minas Indígena 171
3.1. ÁREAS DE ATUAÇÃO
3.1.1. ENSINO BÍBLICO
É também entre os Maxakali que esta frente de atuação se faz presente, através da
equipe da MNTB (cf. 3.1.6.2/3. 2ª Parte). Usando como base o livro “Alicerces Firmes”,
da referida Missão, a idéia é ensinar paulatinamente, de forma simples e muito consistente,
os fundamentos da fé cristã, expondo todo o Antigo Testamento como alicerce do Novo,
bem como a vida, ensino, sacrifício e ressurreição de Jesus, através de sessenta e oito
lições que devem ser traduzidas para a língua materna e ensinadas ao povo, de forma
cronológica, na expectativa de que com a compreensão da Bíblia, o Senhor os leve à
conversão. Há todo um cuidado para evitar o sincretismo.
Formada por dois casais de missionários, esta equipe já está atuando entre eles há
dez anos. Após alguns anos trabalhando com os Zo’é no Pará e depois com os Pankararu
em Pernambuco, o missionário Ronaldo Lima casou-se com a também missionária Kátia,
vindo trabalhar como casal entre os Maxakali, em março de 1992. Ambos fizeram os
cursos teológico e lingüístico oferecidos pela MNTB, e atualmente ele é o responsável pela
tradução e ela pela elaboração de um dicionário da língua. O casal Adair e Zilene Gomes,
após concluírem instituto bíblico e lingüístico da MNTB, formou equipe com aquele
primeiro casal, em abril 1992. Ele é o responsável pela coleta de dados culturais e ela pela
análise e descrição da cultura.
Com visão específica de plantar igrejas, os dois casais foram introduzidos e
apresentados à tribo pelo próprio Harold Popovich e iniciaram o aprendizado da língua e
cultura. Até fevereiro de 2002 haviam traduzido 35 das 68 lições bíblicas do “Alicerces
Firmes”, mas o processo efetivo de ensino bíblico através do estudo das referidas lições foi
iniciado em meados de 2000143. Residindo em Batinga, na Bahia, concentraram esforços
primeiramente na aldeia do Pradinho, mas, recentemente, voltaram seus esforços para a
aldeia de Água Boa, que fica ainda mais distante.
3.1.2. EVANGELISMO PESSOAL
Novamente presente nos Maxakali, a abordagem kerygmática com ênfase no
evangelismo pessoal foi utilizada pelo missionário João Maria Silva, da Igreja Assembléia
de Deus de Belo Horizonte (cf. 3.1.6.5. 2ª Parte). Bacharel em teologia, após alguns anos
trabalhando como obreiro na cidade de Entre Rios, interior de Minas Gerais, foi enviado
143
Segundo o missionário Ronaldo Lima, em entrevista do dia 09/02/02.
Minas Indígena 172
pela referida igreja para trabalhar com os Maxakali de Água Boa, em agosto de 1999.
Fixando residência em Santa Helena de Minas, a 12 km da aldeia, e posteriormente em
Machacalis, a 24 km desta última, lá permaneceu até julho de 2001. Visitando a aldeia
diariamente e depois semanalmente, seu trabalho consistiu em visitas às várias famílias
testificando do evangelho em português, pois não aprendeu a língua, se limitando assim ao
evangelismo dos poucos bilingües. Deixou o campo sem presenciar conversões144.
Bem recentemente, o mesmo tipo de abordagem passou a ser adotada por um novo
casal de missionários entre os Maxakali. Se trata de Agustinho (Aguigu) e Nelice
Cipriano, enviados numa parceria de igrejas Presbiterianas e Assembléias de Deus,
mediada pela Missão Horizontes em maio de 2002, com objetivo de plantar igrejas (cf.
3.1.6.6. 2ª Parte). Residindo também em Santa Helena de Minas, começaram logo a
evangelizar os indígenas que quase diariamente vão àquela cidade, pois não têm
autorização para atuar na aldeia. O missionário Agustinho é índio Makuxi e isto causou um
forte impacto no povo, pois perceberam que alguém pode perfeitamente ser cristão e
continuar sendo índio. Em julho deste ano, o índio Zezinho Maxakali se entregou a Cristo
com sua família145. Obviamente estes missionários apenas colheram o que há anos vinha
sendo semeado, mas aponta um interessante fator que consideraremos mais à frente.
Esta abordagem se faz presente também entre os Pataxó, através da atuação das
Igrejas Assembléia de Deus e Pentecostal Missionária da cidade de Carmésia (cf. 5.1.9. 2ª
Parte). Os obreiros locais de ambas as igrejas semanalmente visitam a aldeia dando
assistência aos que já se decidiram por Jesus e realizando cultos evangelísticos nos lares. O
evangelismo é feito de forma bem pessoal e informal, prezando pela amizade e confiança.
Têm obtido bons resultados, pois cerca de trinta pessoas já se decidiram por Jesus146.
A mesma abordagem ainda se faz presente entre os Krenak, também pela atuação
da Assembléia de Deus, só que desta vez da cidade de Independência (cf. 4.1.7. 2ª Parte).
Dado a forte resistência do grupo, irmãos voluntários desta igreja iniciaram um trabalho de
evangelismo na aldeia mais isolada, de forma sorrateira e muito pessoal. Lentamente,
alguns foram se interessando pelo evangelho e hoje já reúne cerca de vinte pessoas.
3.1.3. CONFRONTO DE PODERES
144
Entrevista do dia 20/01/02.
Conforme correspondência pessoal da missionária Marlene Martins, de 08/07/02.
146
Conforme entrevista com o Pr. Alvenir Costa, no dia 09/05/02.
145
Minas Indígena 173
Os Xacriabá têm sido há vários anos alvos da abordagem kerygmática com ênfase
em confronto de poderes, ou, mais especificamente, libertação espiritual e curas divinas,
através do trabalho de três igrejas locais de cidade vizinhas.
A partir de um trabalho em São João das Missões, irmãos voluntários da
Congregação Cristã no Brasil começaram a evangelizar os indígenas resultando em
várias conversões. O trabalho teve continuidade e hoje somam cerca de noventa pessoas
em oito aldeias diferentes, sendo assistidas por um obreiro voluntário, do vilarejo de
Rancharia (cf. 2.1.6.1. 2ª Parte).
Inicialmente sob a responsabilidade da sua sede na cidade de Manga, a Igreja
Pentecostal Deus é Amor iniciou um trabalho em algumas aldeias, contando hoje com
cerca de sessenta convertidos, sendo agora atendidos pelo obreiro da cidade de Itacarambi.
Uma igreja pentecostal da cidade de São João das Missões chamada Alfa e Ômega também
iniciou um pequeno trabalho na reserva, mas não podendo dar continuidade seus membros
se transferiram para a referida Igreja Deus é Amor (cf. 2.1.6.2. 2ª Parte).
Sob a responsabilidade da sede em Manga, obreiros da Assembléia de Deus
iniciaram um trabalho em duas aldeias, há cerca de quatro anos, contando hoje com trinta e
duas pessoas (cf. 2.1.6.3. 2ª Parte). Em cada aldeia ordenaram um diácono para liderar o
trabalho, ambos pessoas simples e semi-analfabetas, mas de liderança, sendo
supervisionados por um presbítero de Manga que dá assistência ao trabalho todas as
quintas-feiras. Proibidos pela FUNAI de construir templo dentro da reserva, construíram
um pequeno salão na outra margem do Rio São Francisco, fora do território indígena, mas
perto das duas aldeias. Assim, os membros precisam apenas atravessar o rio para participar
das várias reuniões semanais147.
Todos os três trabalhos têm uma forte ênfase na libertação espiritual, por entender
que o povo vive sob opressão maligna, sendo muitos possessos de espíritos imundos.
Pratica-se com freqüência exorcismos e uma forte ênfase também é dada a curas divinas,
como demonstração do poder de Deus, pois muitas vezes enfermidades são diagnosticadas
como obra dos espíritos imundos.
3.2. EFEITOS POSITIVOS
147
Conforme entrevista com o Pr. Édson Campos, no dia 10/04/02.
Minas Indígena 174
3.2.1. ENSINO BÍBLICO
Valorização da Língua – Pelo fato dos missionários se comunicarem na língua
materna do povo, os indígenas se sentem valorizados em ver um não-índio falando o seu
idioma, gerando consequentemente boa receptividade tanto dos missionários como da
mensagem por eles pregada. Isto aponta para o valor do aprendizado da língua por parte do
missionário.
Forum para Melhor Entendimento do Universo Indígena – Havendo um bom
relacionamento de amizade entre missionários-indígenas, há liberdade para diálogo e
compreensão cultural. Isto é significativo pois somente compreendendo a cosmovisão
indígena o evangelho poderá ser apresentado de forma relevante para aquela cultura.
Complementação Cosmológica – A consistência dos estudos que vêm sendo
ministrados tem preenchido as lacunas da cosmologia tribal com verdades bíblicas. Por
exemplo, os Maxakali não possuem um mito para a criação do homem 148, mas em
conseqüência do ensino acerca de Gênesis, alguns já começam a aceitar o relato bíblico da
criação como verdadeiro, situando-o antes do seu mito do dilúvio149. Isto aponta a
importância do estudo da cosmologia tribal, pois desta forma o evangelho vai se infiltrando
na consciência étnico-cultural do povo.
3.2.2. EVANGELISMO PESSOAL
Impacto das Conversões Sobre o Restante do Povo – Especialmente entre os
Pataxó e Krenak, com a conversão de alguns indígenas o restante do grupo tem percebido
que é possível ser cristão sem deixar de ser indígena. Sendo possuidores de certo
conhecimento do evangelho pela vertente católica romana, tem sido possível praticar um
evangelismo que exige respostas, e estas estão sendo positivas.
Impacto de Um Obreiro Indígena – É difícil avaliar a recente abordagem
kerygmática junto aos Maxakali em termos de efeitos, pois está apenas no seu início, mas
não podemos deixar de mencionar a conversão de Zezinho Maxakali juntamente com sua
família. Em correspondência pessoal150 a missionária Marlene Martins, aponta como fator
propiciador a presença do recém-chegado missionário Agustinho (Aguigu), devido ao
mesmo ser indígena também. Segundo ela, esse fato impactou fortemente a Zezinho
Maxakali que apesar de ser um dos professores e líderes mais influentes de toda a tribo, e
148
Sempre que interrogados sobre, remontam ao mito do dilúvio como sendo a origem dos Maxakali, mas o
mesmo pressupõe a já existência de pessoas (ver Anexo 01: 2.1. O Dilúvio).
149
Na entrevista com Maria Diva, do dia 07/02/02.
150
De 08/07/02.
Minas Indígena 175
também um dos únicos realmente bilingüe, tinha um sério problema com álcool, bebendo
constantemente. Com a chegada de Agustinho e a abordagem evangelística do mesmo,
Zezinho parou de beber e depois de quinze dias sem experimentar álcool – fato até então
inusitado – confessou a Jesus como Salvador e Senhor já testemunhando uma leveza em
seu coração.
Este fato nos aponta uma estratégia que precisa ser explorada no trabalho
missionário entre indígenas do nosso país: obreiros indígenas trabalhando com os próprios
indígenas. Obviamente se trata apenas da colheita de uma semeadura que vinha sendo feita
no coração daquele homem, certamente desde os seus tempos de infância no convívio com
os Popovich, e continuada através dos demais missionários, mas de qualquer forma este
fato é por demais relevante. A comunicação estrangeiro ou nacional-nativo por melhor que
seja jamais será igual à comunicação nativo-nativo. Vale aqui levantar a questão dos
“índios citadinos”151. Talvez seja viável investir na evangelização destes indígenas que
vivem em cidades, treiná-los como obreiros e enviá-los novamente aos seus respectivos
povos como missionários, sob a supervisão de obreiros nacionais já experientes na área.
Temos aqui também um caso clássico das três “ondas” missionárias (Souza,
1996.36-37), ou seja, “estrangeira” – SIL com os Popovich; “nacional” – MNTB com os
Lima e Gomes, Assembléia de Deus com o João Maria e Emanuel com a Marlene Martins;
e “indígena” – Horizontes com os Cipriano. Observemos ainda, que as duas últimas
“ondas” estão conjugadas, pois o casal Cipriano está atuando em parceria com Marlene
Martins e os casais Lima e Gomes, pesando ainda o fato de serem apoiados por uma
Missão nacional não-indígena. Isto é extraordinário, pois se conjugada toda a técnica
estrangeira, com a experiência nacional e a capacidade nata indígena, podemos ter aí uma
“grande onda”, forte o suficiente para, sob o mover de Deus, mudar a atual realidade
indígena brasileira.
3.2.3. CONFRONTO DE PODERES
Redefinição Cosmológica – A ênfase no rompimento com as práticas sincréticas, a
pregação que exige resposta decisória e a prática de exorcismos, tem redefinido a
cosmologia Xacriabá, ao desmascarar os espíritos com os quais se relacionam
demonstrando que estes são enganadores, manipuladores do mal.
Expectativa de Libertação – Isso tem gerado esperanças no grupo, ao demonstrar
que há possibilidade de libertação n’Aquele que é Todo-Poderoso. Não resta dúvidas que
151
Termo antropológico recente usado para os indígenas que vivem em cidades.
Minas Indígena 176
as muitas respostas positivas e decisões por Jesus, têm sido propiciadas por esta
expectativa de libertação, pois vivem sob opressão espiritual.
Rompimento com o Animismo – Mesmo involuntariamente está presente nesta
ênfase um princípio sugerido por Alan Tippet (Lewis, 1986.54) para o trabalho com grupos
tribais: o princípio do “confronto”. Segundo ele, em grupos assim faz-se necessário um ato
de rompimento com a antiga religiosidade, ou “ritual de separação”, que sirva como
recordação de que aquelas antigas práticas e crenças ficaram para trás e agora é uma nova
caminhada.
3.3. EFEITOS NEGATIVOS
3.3.1. ENSINO BÍBLICO
Lentidão do Processo de Ensino – Levaram-se oito anos para que a efetiva
comunicação do evangelho fosse iniciada. Obviamente vários fatores contribuíram para tal
demora, como várias enfermidades, restrições, proibições e perseguição, mas de qualquer
forma é preciso convir que foi lento. Além do que o próprio processo de ensino das lições é
lento também, pois são ensinadas a famílias e não a todo o grupo. Toda esta lentidão acaba
fazendo com que a mensagem tenha pouco impacto sobre o povo.
Perda da Identidade Missionária – Depois de anos junto ao povo sem um
trabalho sistemático de evangelização, a razão da presença dos missionários pode ficar
distorcida na ótica indígena. Com a chegada dos missionários há uma expectativa por parte
do povo sobre qual novidade estes lhes trarão. Se o evangelho não for apresentado de
forma relevante como esta novidade, a mesma ficará subentendida como sendo qualquer
outra atividade desenvolvida pelos missionários.
Ausência de Resposta Bíblicas às Perguntas Culturais – O objetivo desta
abordagem tem sido expor o conteúdo bíblico apenas, na expectativa de que a
compreensão deste gere conversões, mas é necessário ir além e desenvolver uma teologia
de respostas. Por exemplo: os meninos Maxakali para alcançarem a maioridade precisam
necessariamente passar pelo ritual de iniciação, recebendo o seu yãmiy (espírito) sem o
qual nunca serão aceitos nas reuniões dos homens nem poderão se casar (cf. 3.1.4.1.3. 2ª
Parte). Se tornar-se cristão implica em abandonar os rituais, como os meninos se tornariam
adultos no cristianismo? Perguntas como estas são levantadas culturalmente pela
comunidade indígena e precisam de respostas para que a mensagem do evangelho seja
Minas Indígena 177
relevante. Falta ainda um certo grau de agressividade. O evangelho não pode ser
apresentado apenas para que se tome conhecimento. A mensagem de Jesus sempre exigiu
uma resposta ativa e assim deve ser a mensagem missionária.
3.3.2. EVANGELISMO PESSOAL E CONFRONTO DE PODERES
Imaturidade Cristã - Como já mencionado é difícil avaliar a recente abordagem
entre os Maxakali, mas entre os Pataxó e Krenak, bem como na ênfase de confronto de
poderes entre os Xacriabá, falta exatamente um sólido programa de ensino bíblico e
discipulado. Muita atenção tem sido dada à conversão e depois aos cultos que têm também
uma ênfase mais evangelística ou libertação, tendo como resultado imaturidade da fé.
Dependência de Liderança Não-indígena – Se pessoas estão se convertendo mas
não estão crescendo na fé, logo, líderes indígenas não estão sendo treinados e
consequentemente também não há indícios de uma auto-teologização. No caso dos
Xacriabá, tem-se levantado alguns líderes indígenas, como o obreiro da Cristã no Brasil e
os dois diáconos da Assembléia de Deus, mas não há qualquer tipo de treinamento destes
líderes. Apesar de terem liderança, possuem um ínfimo conhecimento bíblico, podendo
conduzir as igrejas para um nível ainda maior de imaturidade. Não há assim sinal de
autoctonia com uma excessiva dependência de liderança não-indígena.
Vale alertar também, que como uma sólida teologia bíblica não tem sido elaborada
em resposta às perguntas culturais e existenciais do povo, há um risco de sincretismo
animista-evangélico (Lidório, 1998.60) entre os Pataxó e Krenak, enquanto entre os
Xacriabá este risco é muito pequeno, devido a atenção que é dada ao rompimento com a
antiga religiosidade.
Um ponto negativo comum na abordagem kerygmática é a falta de envolvimento
com os problemas do povo. Faltam propostas de solução para os principais problemas
enfrentados por estes grupo. Por exemplo, nada tem sido feito para sanar o analfabetismo
dos Xacriabá (cf. 2.1.5.3. 2ª Parte), o alcoolismo Maxakali (cf. 3.1.5.2. 2ª Parte), o
desgastado relacionamento dos Krenak com a sociedade regional, marcado pela
discriminação (cf. 4.1.6.3. 2ª Parte), ou a produção agrícola na cansada terra Pataxó (cf.
5.1.6.1. 2ª Parte). O principal efeito desta falta de envolvimento social é a compreensão
limitada do evangelho, como uma mensagem puramente espiritual. Uma das
características do animismo que basicamente todos os grupos mineiros ainda mantêm bem
vívida, é a compreensão da religião como algo “utilitário e prático” e não como um
conjunto de princípios que visam unir o homem a Deus (Lidório, 2001b.27). Desta forma,
Minas Indígena 178
se não houver um envolvimento direto com os problemas por eles enfrentados, a
mensagem fica pouco relevante e a compreensão distorcida. É preciso pensar num
evangelho integral, que toque não apenas o espiritual, mas também o cotidiano.
3.4. ALGUMAS SUGESTÕES
Pelo menos mais duas principais áreas de atuação precisam ser agregadas a esta
abordagem, em especial nos povos onde já existe um grupo de convertidos: discipulado e
formação de líderes indígenas. Estes recém convertidos precisam ser conduzidos da
imaturidade à maturidade cristã, e isto só pode acontecer através de um processo de
discipulado, onde cristãos maduros acompanham os novos na fé, transmitindo-lhes através
do ensino bíblico e da prática diária, os fundamentos da fé cristã. Somente com cristãos
indígenas maduros estas igrejas se tornarão fortes o suficiente para evangelizarem o
restante do povo. Este primeiro discipulado precisa ser feito pelos obreiros não-indígenas
que estão atuando nestes grupos e assim o processo se torna natural com os demais que
forem se convertendo. Nos grupos abordados, constatamos certa preocupação com esta
questão apenas entre os Pataxó, no trabalho da Assembléia de Deus, mas ao que parece,
não chega a ser efetivamente um discipulado, e sim um doutrinamento para batismo (cf.
5.1.9.1. 2ª Parte).
Cristãos maduros precisam ser conduzidos ao serviço e para isto faz-se necessário
treinamento. É preciso investir nos convertidos com capacidade de liderança e clara
vocação, para que estes se tornem os próprios líderes da igreja plantada no seu povo. Estas
igrejas não podem continuar dependendo de obreiros não-indígenas que as visitem uma vez
por semana. Um treinamento contextualizado à realidade do povo deve ser priorizado,
habilitando indígenas a ministrar e liderar outros indígenas, rumo à autoctonia.
Infelizmente não constatamos esta preocupação em nenhum grupo abordado. Os obreiros
Xacriabá da Assembléia de Deus, foram ordenados deliberadamente como estratégia para
“segurar” os demais convertidos152, não considerando a maturidade cristã destas pessoas,
mas apenas o tempo de conversão e poder de influência (cf. 2.1.6.3. 2ª Parte).
De modo geral, todos os oito grupos indígenas de Minas estão abertos a uma
abordagem kerygmática direta, obviamente, podendo haver um menor ou maior grau de
aceitação. Dos quatro grupos que não estão sendo alvos desta abordagem, com certeza dois
estariam de portas abertas para missionários: Kaxixó (cf. 8.2. 2ª Parte) e Aranã (cf. 9.2. 2ª
152
Em entrevista com o Pr. Édson Campos, no dia 10/04/02.
Minas Indígena 179
Parte). Ambos apresentam um quadro tanto religioso como sociocultural semelhante, se
denominando católicos, porém com pequenos sinais de animismo, e lutando por terras, o
que abre portas para todos que quiserem de alguma forma somar forças. Já os Pankararu
(cf. 6.2. 2ª Parte) e os Xukuru-Kariri (cf. 7.2. 2ª Parte), provavelmente devem apresentar
certa resistência inicial, mas prezando pela amizade e confiança mútua as restrições podem
ser superadas. Ambos possuem forte influência católica, apesar de preservarem práticas e
cosmovisão animista.
Esta realidade sincretista animista-católico romana destes grupos precisa receber
muita atenção. Hesselgrave (1995.301-305) aponta a necessidade de estratégias específicas
para grupos assim, o que é muito significativo, pois no contexto brasileiro temos pensado
em grupos católicos e animistas separadamente, enquanto a religiosidade da Minas
Indígena apresenta uma conjugação destes dois princípios, sendo ambos aceitos como
verdadeiros em menor ou maior escala. Logo, ao planejar abordagens missionárias para
estes grupos é preciso considerar os dois princípios religiosos ativos ao mesmo tempo.
A abordagem kerygmática tem obtido bons resultados com efeitos muito positivos
em todos os grupos abordados. Mas queremos chamar atenção novamente para a
conjugação de abordagens, como um ideal estratégico. Se as três principais frentes de
atuação – ensino bíblico, evangelismo pessoal e confronto de poderes – fossem
conjugadas, com certeza os efeitos positivos seriam maximizados e os negativos
minimizados. Melhor ainda seria uma conjugação com outra abordagem, como a socioassistencial, por exemplo.
Minas Indígena 180
4. ABORDAGEM SOCIO-ASSISTENCIAL
A abordagem socio-assistencial propõe a aproximação e legitimação tanto da
pessoa do missionário quanto da mensagem transmitida por ele. Aproximação porque, via
de regra, a forma mais viável de se contactar um grupo indígena tem sido oferecer-lhe algo
material que o beneficie de alguma forma. Legitimação porque a mensagem do evangelho
se traduz em ações práticas, visando abençoar o homem de forma integral, e não apenas
espiritual. Nesta abordagem as necessidades sociais do grupo alvo são detectadas e uma
proposta assistencial é viabilizada por iniciativa da agência e/ou missionário, servindo
como meio de aproximação, mas não deixando por isto de ser uma ajuda legítima e
sincera.
Neste sentido, não têm sido poucas as críticas contra os programas assistenciais de
missionários, alegando que os mesmos são “puramente instrumentais” (Wright, 2002.83),
ou seja, são apenas meios para alcançar suas “segundas intenções”. Não há dúvida de que
mesmo numa abordagem socio-assistencial o fim é a proclamação do evangelho para a
glória de Deus, mas isto não tira a legitimidade do meio. Os programas assistenciais
oferecidos a grupos indígenas por missionários têm sido instrumentos de grande bênção
para muitos povos, que na sua maioria vivem abandonados ou mal assessorados pelos
órgãos governamentais.
Esta abordagem está presente apenas nos Maxakali, através de uma única frente de
atuação – os serviços de enfermagem da missionária Marlene Martins. Enfermeira técnica,
começou a trabalhar com os mesmos em dezembro de 1999, através da Missão Emanuel de
Governador Valadares e da Terceira Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte. Aceita como
enfermeira voluntária pela FUNASA, iniciou seu trabalho numa época quando ainda não
havia uma equipe de saúde junto aos Maxakali, trabalhando assim sozinha por vários
meses, na aldeia de Água Boa, a partir da cidade de Santa Helena de Minas, onde reside.
Mesmo sendo jovem e solteira, logo adquiriu respeito e amizade da parte dos indígenas,
tornando-se muito querida por todos eles. Sua visão é discipular alguns dos líderes, para
Minas Indígena 181
que estes evangelizem aos demais, mas dado aos muitos afazeres, seu trabalho tem se
limitado quase que somente à área de saúde, testemunhando do evangelho nas
oportunidades que surgem. Por não falar a língua, sua comunicação se limita aos que
entendem o português. A Missão Emanuel está tentando adquirir um terreno nas
proximidades da aldeia, para sediar projetos de desenvolvimento social e congregar os
convertidos. Tem também procurado trabalhar em parceria com a MNTB e Horizontes, até
então não obtendo muito sucesso com esta primeira.
4.1. EFEITOS POSITIVOS
Treinamento de Indígenas – Agentes indígenas de saúde estão sendo treinados, e
além de auxiliarem a enfermeira nas suas atividades, atuam junto ao povo com saúde
preventiva. A atitude não tem sido de paternalismo, mas de incentivo aos indígenas a
tomarem eles próprios as precauções e medidas devidas.
Proposta de Solução a Um Problema Específico – Esta abordagem vai
diretamente ao encontro de uma dificuldade social específica do povo (cf. 3.2.5.1. 2ª
Parte), evocando portanto, o princípio da integralidade do evangelho. Algo prático é feito
como demonstração de uma mensagem que toca a alma mas também o corpo, o que é
significativo para um grupo animista cuja religiosidade possui fins utilitários.
Integração social – Apesar de não residir na aldeia, a missionária atende de
segunda a sexta, durante todo o dia, sendo assim a pessoa que passa maior tempo com eles,
tendo como efeito a integração social, tão necessária para o êxito missionário. Ela participa
dos principais acontecimentos do dia-a-dia do povo, sendo aceita como parte da
comunidade. Por fim, podemos apontar o relacionamento de amizade desenvolvido entre a
missionária e indígenas, gerando um ambiente de confiança. É bem verdade que às vezes é
surpreendida por algumas incompreensões e ingratidão, especialmente após a conversão de
Zezinho maxakali, mas sabe que possui a confiança do povo. Sua palavra tem autoridade,
protocolada por um comportamento idôneo e sério.
4.2. EFEITOS NEGATIVOS
Perda da Tecnologia Nativa no Tratamento e Cura – Nenhum incentivo tem
sido dado ao uso de ervas medicinais, por exemplo, que durante séculos foi o meio natural
de tratamento utilizado pelos Maxakali. Há uma deficiência na preservação do
Minas Indígena 182
conhecimento medicinal indígena, em detrimento do constante atendimento de saúde com
tecnologia desconhecida. Com isto os rituais de cura são pouco praticados, o que
entretanto, não chega a ser algo positivo, pois a causa não é o evangelho, e sim a
dependência da assistência externa. Seria muito positivo não apenas o incentivo ao uso,
mas também o aprendizado de manipulação da medicina natural.
Comunicação Limitada - Pelo fato de não usar a língua materna a comunicação
fica limitada aos poucos bilingües. Além de não conseguir se comunicar de forma efetiva
com qualquer pessoa, não é possível transmitir as verdades do evangelho no português a
um povo que mantêm como primeira e quase única a sua língua materna. Como são
resistentes às influências externas, podem também resistir à mensagem do evangelho se
esta for transmitida na língua da sociedade dominante. A devida valorização lingüística
não foi dada.
Compreensão Limitada da Cultura – Pelo fato de não haver um estudo cultural
visando alcançar a cosmovisão do povo, a compreensão da cultura também é limitada. Isto
é grave pois não é possível apresentar uma mensagem evangélica relevante para um povo
sem a compreensão da sua cultura. Não é possível propor respostas culturalmente
relevantes sem ter alcançado o nível dos significados e funções dos variados fenômenos da
sua religiosidade.
Perda da Identidade Missionária – A grande demanda pelo atendimento de saúde
limita o tempo para a pregação efetiva do evangelho, e por isto, aos olhos do povo o
trabalho assistencial acaba se tornando a razão da presença da missionária entre eles. A
proclamação propriamente dita se tornou assistemática, reduzida a oportunidades
esporádicas. Isto é agravado pelo fato de não haver um projeto específico de trabalho, com
alvos claros e bem definidos, de onde se pretende chegar. Esta é uma dificuldade muito
comum nos ministérios bi-ocupacionais, especialmente em contexto tribal animista. Sem
objetivos bem definidos e delimitações de atuação, o trabalho assistencial pode se tornar
um fim em si mesmo, quando não para o missionário, pelo menos para o povo, o que
diminui o impacto da presença missionária, por confusão de identidade.
5.3. ALGUMAS SUGESTÕES
Certamente a abordagem socio-assistencial é a forma mais conveniente de se ter
acesso aos grupos indígenas de Minas, tendo em vista as suas muitas necessidades sociais e
Minas Indígena 183
as restrições impostas pela FUNAI. É lamentável o fato desta abordagem estar presente
apenas entre os Maxakali, pois todos os oito grupos estariam com portas abertas para
missionários desta área. Apenas para citar alguns exemplos, poderíamos apontar os
Xacriabá que necessitam de assistência na área de saúde e alfabetização de adultos (cf.
2.1.5.1. e 2.1.5.3. 2ª Parte), enquanto os Krenak (cf. 4.1.6.2. 2ª Parte) e Xukuru-Kariri (cf.
7.2.4.2. 2ª Parte) precisam de suporte pedagógico para suas escolas; os Pataxó carecem de
assistência na área de agronomia (cf. 5.2.6.3. 2ª Parte) e os Pankararu e na área de
educação infantil (cf. 6.2.4.1. 2ª Parte), enquanto os Kaxixó (cf. 8.2.4.3. 2ª Parte) e Aranã
(cf. 9.2.3.1. 2ª Parte) precisam de assistência jurídica na luta por terras. Ou seja, há um
grande universo de oportunidades missionárias a partir da assistência social que precisam
ser aproveitadas e bem usadas para que o evangelho seja efetivamente proclamado a estes
grupos indígenas de Minas Gerais.
Apesar de termos apenas um exemplo de abordagem socio-assistencial na Minas
Indígena, fica evidente a sua relevância. As opções de frente de atuação são muitas,
maximizando as possibilidades de trabalho missionário entre estes grupos. Mas vale
novamente ressaltar que conjugando-se esta abordagem com a kerygmática, a
probabilidade de efeitos positivos serão muito maiores. Não sendo conjugadas, a atuação
missionária se limitará à presença da igreja, como nas “tradições” missionárias católica e
ecumênica, também presentes na Minas Indígena, e que agora serão vistas.
Minas Indígena 184
5. AS TRADIÇÕES MISSIONÁRIAS
A esta altura cremos ser válido fazer uma breve consideração acerca das “tradições”
missionárias (Scherer, 1991.32)153. As tradições católica e ecumênica tem se preocupado
como poucas com a presença, ou seja, se fazer presente entre os indígenas através de
ajudas humanitárias diversas; a tradição evangelical tem se preocupado mais com a
proclamação, ou seja, a pregação ou comunicação efetiva do evangelho, se bem que, de
forma ascendente, tem procurado um equilíbrio através dos programas assistenciais;
enquanto a tradição pentecostal tem se preocupado quase exclusivamente com a
proclamação. Na Minas Indígena isto é facilmente percebido através das missões e suas
respectivas ênfases.
5.1. TRADIÇÃO CATÓLICA
Faz-se presente através da atuação do CIMI entre os Maxakali. Criado em 1972,
como órgão oficial da CNBB, sob forte influência do Concílio Vaticano II, particularmente
da teoria dos “cristãos anônimos” de Karl Rahner (1989.368,369), o CIMI tem como um
dos seus princípios básicos “uma mística missionária norteada pelo diálogo intercultural,
inter-religioso e ecumênico” (CIMI, s.d.), não atuando e protestando contra quem atua com
a proclamação do evangelho aos povos indígenas. Sua linha de atuação se limita à
assistência social, como articulação por terra e programas assistenciais, ou seja, presença.
5.2. TRADIÇÃO ECUMÊNICA
Faz-se presente através da atuação do GTME entre os Krenak, Pankararu e Aranã.
Criado em 1979 com a proposta de “repensar o conceito de missão e evangelização, trocar
153
Geralmente são estudadas a tradição católica, ecumênica e evangelical, mas aqui acrescentamos a
pentecostal, por entender que esta constitui uma abordagem à parte da evangelical.
Minas Indígena 185
idéias e experiências e estreitar laços de amizade, apoiando-se mutuamente”, numa
parceria das igrejas Luterana, Metodista, Anglicana e Presbiteriana Independente, o GTME
se definiu em 1988 “por um trabalho específico de apoio e solidariedade aos povos
indígenas”, propondo limitar sua atuação às áreas de educação, saúde, economia,
organização, assistência jurídica e articulação por terras (GTME, s.d.). Em Minas, atua
entre os três povos mencionados através de duas obreiras católicas, sob a supervisão da
Igreja Metodista de Governador Valadares, não se envolvendo com proclamação, mas
apenas com presença.
5.3. TRADIÇÃO EVANGELICAL
Primeiramente se fez presente através da atuação da SIL e agora através da MNTB,
Emanuel e Horizontes, entre os Maxakali. Apesar da tradição evangelical ser conhecida
pela sua ênfase quase única na proclamação, neste caso vê-se certo equilíbrio, pois tanto
na SIL como Emanuel, a ênfase de abordagem é exatamente a presença, contrabalançada
pela proclamação via MNTB e Horizontes.
5.4. TRADIÇÃO PENTECOSTAL
Mesmo sem agência missionária, os pentecostais se fazem presentes através dos
trabalhos de iniciativa de igrejas locais, junto aos Xacriabá, Pataxó e Krenak, bem como
estiveram também entre os Maxakali. Neste caso, são o oposto das tradições católicas e
ecumênicas, se preocupando exclusivamente com a proclamação.
Biblicamente entendemos que o equilíbrio se faz necessário, pois o evangelho parte
de um pressuposto de integralidade, sendo preciso abordar o homem no seu todo, de forma
holística. É preciso cuidar da alma, mas também do corpo. É preciso cuidar da saúde, mas
também da salvação. É preciso lutar pela libertação dos opressores sociais, mas também
dos opressores espirituais. Jesus era “poderoso em obras e palavras” (Lc 24.19), “fazia e
ensinava” (At 1.1), e portanto, para que nossas abordagens missionárias sejam bíblicas é
necessário conjugar, a exemplo do Mestre, presença e proclamação.
Minas Indígena 186
CONCLUSÃO
Minas Indígena – Levantamento Sociocultural e Possibilidades de Abordagens
Missionárias nos Grupos Indígenas de Minas Gerais, além de um relatório acadêmico é
um desafio à Igreja brasileira no sentido de direcionar esforços para este bloco indígena
que, mesmo aberto à atuação missionária, tem sido esquecido no movimento de
evangelização transcultural e expansão da igreja. Minas Indígena apresenta um desafio
não apenas de direcionar, mas também de somar esforços com os poucos missionários e
igrejas locais que têm se sensibilizado e envolvido na evangelização destes povos, até
agora esquecidos pela maioria das agências missionárias brasileiras.
Uma das principais razões da omissão a este bloco indígena no movimento
missionário, tem sido a ausência de informações sobre o mesmo. Não apenas nas igrejas,
mas também em todo Estado de Minas Gerais e no Brasil de forma geral, poucos sabem da
existência de oito grupos indígenas no território mineiro. A maioria tem ciência apenas de
dois deles, Maxakali e Krenak, devido às campanhas pela regularização territorial dos
mesmos que na década de 1990 alcançou conhecimento internacional. Ainda assim, são
muitos os que ignoram a existência até destes dois grupos mais conhecidos. Não sabendo
da sua existência e do desafio missionário que estes indígenas representam, pouco se fala
neles, pouco se ora por eles e, consequentemente, poucos são enviados até eles.
Uma das relevâncias deste relatório é que o pesquisador se propõe a enviar um
documento de divulgação, com os principais dados destes grupos, para as principais igrejas
do Estado de Minas, agências e juntas missionárias e mesmo para qualquer pessoa que se
interessar. Se propõe ainda disponibilizar as informações na íntegra, para aqueles que
desejarem conhecer a realidade da Minas Indígena ou se envolver mais diretamente com a
obra missionária para alcançar estes povos.
Outro fator relevante, é que as informações aqui contidas poderão contribuir em
muito para futuros missionários que desejarem atuar em qualquer um dos grupos indígenas
de Minas. Uma questão cruciante no início de abordagens missionárias, é por onde, quando
e como começar. Neste sentido, o levantamento sociocultural de cada grupo aqui
Minas Indígena 187
registrado, bem como as estratégias de abordagem apontadas e indicações de
possibilidades de trabalho, se constituem numa contribuição para novas estratégias de
alcance no trabalho missionário entre estes povos.
Uma abordagem missionária responsável, deve levar em consideração a cultura do
povo alvo, envolvendo seus comportamentos, valores, língua, religiosidade e cosmovisão.
Deve considerar a real situação social que ele vive, envolvendo questões de sobrevivência,
liderança local, relacionamento com a sociedade externa e problemas sociais. Fatores como
etnicidade, história cultural, centros de migração, níveis de receptividade e comunicação
bilingüe, também precisam ser considerados. Ou seja, o conhecimento da situação
sociocultural de um determinado grupo étnico, é de primária importância para a elaboração
de uma proposta de abordagem missionária relevante direcionada ao mesmo. Assim sendo,
afirmamos a hipótese desta pesquisa verdadeira, pois o levantamento sociocultural de cada
grupo indígena de Minas Gerais pode contribuir para a elaboração de abordagens
missionárias direcionadas aos mesmos.
Como conclusão desta dissertação, três questões principais precisam ser aqui
relembradas: a real situação destes grupos, as abordagens missionárias que já foram
adotadas entre eles, e uma sugestão das possíveis abordagens futuras que seriam mais
relevantes.
1. Quanto à real situação da Minas Indígena, se torna relevante e necessário apontar
quatro aspectos principais: religioso, cultural, étnico e social. Como vimos, a Minas
Indígena foi submetida a um forçado processo de catequese católico romana ao longo de
séculos, quando os missionários capuchinhos fundavam aldeamentos. Nesse processo,
ajuntavam várias tribos diferentes em um determinado local, forçavam todas a aprender o
português, proibiam os rituais nativos e obrigavam a participar dos rituais católicos. Muitos
destes aldeamentos se tornaram povoados e até cidades, como por exemplo, Itambacuri e
São João das Missões, permanecendo ainda por muitos anos sob forte influência do clero
católico. Os grupos subjugados cederam às imposições católicas, alguns até aceitando o
catolicismo como nova religião, mas não abriram mão dos seus valores religiosos mais
profundos. Na sua cosmovisão nativa, o catolicismo foi reinterpretado a partir de uma base
animista. Muitos ‘santos católicos’ apenas substituíram antigas entidades do universo
espiritual indígena, ritos católicos substituíram rituais animistas e práticas nativas foram
“catolicizadas”, ou seja, foram mudadas as formas, mas os significados permaneceram os
Minas Indígena 188
mesmos. Houve uma mistura de dois princípios religiosos diferentes154, com a aceitação de
ambos como verdadeiros, em maior ou menor escala. Desta forma, a Minas Indígena
apresenta um quadro religioso de sincretismo animista-católico romano155. Esta
realidade exige uma abordagem específica para grupos sincretistas, evocando o princípio
do “rompimento”, pois do contrário o sincretismo pode aumentar mais ainda. No
momento da evangelização, a exposição bíblica deve ser simples e objetiva, carecendo,
entretanto, de muito ensino bíblico pós-conversão, pois do contrário será grande o risco de
imaturidade na fé.
Durante séculos, a Minas Indígena foi alvo de massacres, desapropriação territorial,
dispersão, exílios, imposições e proibições. Os grupos que hoje existem, são sobreviventes
de um dos mais bárbaros genocídios do território brasileiro. No entanto, a resistência
exigiu deles muitas manobras, adaptações e concessões. O relacionamento e dependência
da sociedade externa, e em especial da sociedade urbana, se intensificou tanto que resultou
num quadro cultural de grande descaracterização. Muito da sua cultura tradicional se
perdeu durante o processo. Muitos dos antigos costumes não mais existem. Quase todos os
grupos perderam suas línguas maternas. Vários traços da sociedade externa hoje são
comuns em suas aldeias. Tal realidade evoca o princípio de resgate cultural nas
abordagens missionárias direcionadas a estes grupos. Os aspectos culturais benéficos,
como o uso de ervas medicinais para tratamento de enfermos, o sentimento comunitário e
de partilha, a produção artesanal e tantos outros, precisam ser valorizados, mesmo aqueles
que estão caindo em desuso por causa da influência externa. Especial atenção deve ser
dada ao resgate e reafirmação lingüística nos três grupos que preservam em menor ou
maior escala suas respectivas línguas maternas.
Considerados como uma sub-raça, atrasados, primitivos, os indígenas de Minas
Gerais sofreram um processo deliberado de assimilação por parte dos dominadores que
usaram especialmente os religiosos católicos para alcançarem seus objetivos. Nos
aldeamentos, além de ser ensinado o português como língua e imposto o catolicismo como
religião, era fomentado o casamento de indígenas com negros e brancos, num processo
forçado de miscigenação, como a melhor forma de acabar com a “raça” e manter a mão-deobra barata ou até mesmo escrava. Em alguns casos, como os Xacriabá e Kaxixó, estes
154
No caso do Xacriabá, há um terceiro elemento: espiritismo afro-brasileiro, introduzido no universo
indígena através dos negros fugitivos e posteriormente libertos que acharam abrigo no território Xacriabá e
com eles contraíram matrimônio.
155
Podemos excetuar aqui os Maxakali, nos quais a influência católica romana é ínfima, prevalecendo o
animismo.
Minas Indígena 189
casamentos se deram também de forma espontânea, pois muitos escravos e ex-escravos se
refugiavam nos territórios indígenas. Como resultado, a Minas Indígena apresenta um
quadro étnico de forte miscigenação. Assim como os indígenas do Nordeste, nossos
indígenas também são classificados como “índios de segunda categoria”, “aculturados”,
“caboclos”, “bugres”, o que evoca o princípio de reafirmação etno-cultural a ser
trabalhado na abordagem missionária. Não apenas a cultura e língua do grupo, mas
também a sua indianidade precisa ser considerada. A abordagem missionária pode
contribuir para esta reafirmação étnica ao valorizar a indianidade do grupo, lutar contra a
anomia156, conscientizar o grupo da sua identidade étnica, e mesmo conscientizar a própria
população regional quanto à questão indígena, no sentido de reafirmar a sua identidade.
Apesar das várias conquistas obtidas especialmente nas últimas três décadas, os
grupos indígenas de Minas vivem à margem da sociedade externa, sofrendo privações e
muitas necessidades. Na maioria, as terras são insuficientes para prover o necessário para a
sobrevivência de todo o grupo. Os Xacriabá possuem terras suficientes, mas sofrem com a
seca. Os Pataxó também possuem terras suficientes, mas estas estão desgastadas pelo
prolongado cultivo de café. Em alguns grupos, como os Kaxixó e Aranã, os homens
prestam serviços em fazendas vizinhas para manter suas família, mas nem sempre há vagas
para todos. Como conseqüência, a dependência das cidades é cada vez maior, e as
condições de obter subsistência cada vez menores. Muitos peregrinam pela região
mendigando como os Maxakali, o que aumenta a intolerância e discriminação por parte da
sociedade regional. Assim sendo, a Minas Indígena apresenta um quadro social de
marginalização, o que evoca um princípio de ênfase assistencial nas abordagens
missionárias. Numa realidade como esta, não basta pregar o evangelho, é preciso assistir o
povo pelo menos nas suas principais necessidades. A pregação deve estar conjugada com
projetos de desenvolvimento social, ou seja, faz-se necessário trabalhar tanto com
proclamação como com presença.
2. Quanto às abordagens missionárias adotadas na Minas Indígena, foram
constatadas três – lingüística, kerygmática e socio-assistencial – cada uma com suas
respectivas frentes de atuação, pontos fortes e fracos, mas todas com o objetivo de ver o
reino de Deus expandido entre os indígenas de Minas Gerais. A abordagem lingüística foi
a primeira a se fazer presente, através da qual a língua Maxakali foi analisada e grafada, e
elaboradas cartilhas de alfabetização que até hoje são usadas. Foi também oferecida
assistência na área de saúde e realizada a tradução integral do Novo Testamento, como
156
Termo sócio-antropológico para perda de identidade etnocultural.
Minas Indígena 190
principal legado desta abordagem. A língua foi valorizada, a população preservada e a
etnicidade Maxakali reafirmada. Em contrapartida, uma igreja não foi plantada e apenas
um pequeno grupo foi alfabetizado. Os Xukuru-Kariri e Krenak também precisam receber
esta mesma abordagem e ter uma igreja plantada em seu meio.
Presente em quatro grupos, a abordagem kerygmática apresenta diferentes frentes
de atuação. Entre os Maxakali, sua ênfase principal tem sido o ensino bíblico através do
método de lições cronológicas que cobrem da criação ao sacrifício de Cristo. Por ser lento
e bastante passivo, o trabalho já se estende por dez anos, ainda sem constatar conversões.
Entre os Pataxó e Krenak, a ênfase desta abordagem tem sido o evangelismo pessoal,
através de amizade desenvolvida entre membros de igrejas locais de cidades vizinhas e os
indígenas. Resultados positivos em termos de conversões tem sido alcançados, entretanto,
não há qualquer orientação missiológica e estratégias missionárias definidas, como
cuidados de contextualização, instrução destes convertidos e formação de liderança
indígena. A abordagem kerygmática ainda está presente entre os Xacriabá, onde sua
principal ênfase está no confronto de poderes, especialmente na libertação espiritual e
curas divinas. O trabalho de evangelização é realizado também a partir de igrejas locais de
cidades vizinhas, sendo o que apresenta melhores resultados em termos de conversões. De
igual forma, não há nenhum orientação missiológica, carecendo especialmente de instrução
bíblica e formação de líderes.
Por fim, foi constatada a abordagem socio-assistencial entre os Maxakali.
Oferecendo assistência social na área de saúde, especificamente enfermagem, tem sido
uma demonstração prática do evangelho que vai de encontro às necessidade não apenas
espirituais, mas também físicas do homem. No entanto, devido a alta procura e necessidade
dos serviços de saúde, o tempo para a proclamação em si tem ficado bastante limitado, o
que é agravado pelo fato de não falar a língua. É necessário ressaltar que os demais grupos
ainda não receberam esse tipo de abordagem.
Todas estas abordagens são louváveis, representando o esforço de servos fiéis que
doaram e estão doando suas vidas na Minas Indígena. Entretanto, não podemos deixar de
considerar que falta conjugação de esforços. Se a situação sociocultural de cada povo fosse
considerada nas diferentes ênfases, ou mesmo se as diferentes abordagens fossem aplicadas
em conjunto, de forma que uma complementasse a outra, os efeitos positivos certamente
seriam maximizados em detrimento dos efeitos negativos. Por exemplo, se na abordagem
kerygmática o evangelismo pessoal fosse realizado de forma mais agressiva, com
confronto de poderes, e seguido de um sólido ensino bíblico, os resultados seriam
Minas Indígena 191
diferentes. E se a abordagem kerygmática atuasse também com assistência social, ou a
socio-assistencial atuasse também com evangelização, o impacto certamente seria maior.
3. Quanto às abordagens missionárias que seriam mais relevantes na Minas
Indígena, não é tão simples arriscar uma única resposta, pois o campo em foco é amplo,
com uma complexa e diversificada realidade sociocultural. Todavia, considerando os
aspectos gerais mencionados anteriormente, este autor julga que o ideal seja uma
conjugação das abordagens kerygmática e socio-assistencial, tendo como principais
ênfases, o evangelismo pessoal com confronto de poderes, ensino bíblico com formação de
liderança indígena, e assistência social, especialmente nas áreas da saúde e educação.
Como é evidenciado neste relatório, as possibilidades de abordagens missionárias
nestes grupos são muitas e diversificadas. Basicamente todos os oito grupos apresentam
portas abertas na área de educação de crianças e adolescentes, e alguns também na área de
alfabetização de adultos. Especialmente educadores e orientadores pedagógicos teriam
facilidade em atuar nestes povos, com projetos de baixo custo, pois dado ao contexto
social, instalações simples atenderiam à necessidade.
Saúde é outra porta aberta em todos os grupos. Apesar do órgão governamental de
saúde estar presente, mantendo inclusive equipes bem estruturadas em alguns povos, há
sempre necessidade e vagas para mais profissionais. Enfermeiros, médicos e dentistas são
os mais requisitados, com grande probabilidade de serem admitidos pelo governo, mas
auxiliares e técnicos em enfermagem também teriam grandes chances.
Agricultura, pecuária, agronomia e reflorestamento são possibilidades mais
limitadas, mas sem dúvida existentes. Os Xukuru-Kariri carecem de orientação agrícola,
por desconhecerem as terras mineiras; os Pataxó necessitam de orientação agronômica para
revigorar as suas terras, desgastadas pelo prolongado cultivo de café; os Krenak precisam
reflorestar seu território desmatado pelos fazendeiros que transformaram tudo em pasto
para bovinos; os Maxakali estão solicitando doação de bovinos para produzirem leite e
carne, entretanto, não possuem qualquer conhecimento de pecuária por serem tipicamente
caçadores e coletores. Profissionais nestas áreas podem dar uma grande contribuição a
estes grupos, enquanto lhes anunciam o evangelho.
Os Xukuru-Kariri necessitam de auxílio lingüístico para reafirmar a sua língua
materna. De igual forma os Krenak carecem de análise da sua língua que, apesar de antiga,
ainda não foi alvo de um trabalho lingüístico relevante. Os dois grupos emergentes –
Kaxixó e Aranã – precisam de assistência jurídica, especialmente na luta pela aquisição de
terras. Estas são apenas algumas portas abertas para igrejas, missões e missionários que
Minas Indígena 192
desejam conjugar proclamação com presença. Basicamente todos os oito grupos estão
abertos para a pregação direta do evangelho e dado ao alto grau de contato com a
civilização externa, são poucas as restrições dos órgãos governamentais. Em última
análise, faltam apenas obreiros dispostos e disponíveis para aceitar este desafio e igrejas e
agências com visão para enviá-los.
Obviamente, este relatório não encerra o assunto, aliás, apenas inicia. Em momento
algum o pesquisador teve a pretensão de esgotar a temática da Minas Indígena. Pelo
contrário, a intenção foi disponibilizar material que fomente novas e mais extensas
pesquisas. Apenas para citar algumas possibilidades e sugestões, a questão do sincretismo
animista-católico romano destes grupos é um campo vastíssimo e que carece de um estudo
específico; cada grupo em si, merece ser alvo de pesquisa específica, especialmente na
questão cultural e religiosa; as razões da resistência Maxakali ao evangelho, durante
décadas afins; o trabalho do casal Popovich entre os Maxakali seria uma pesquisa
gratificante e certamente em muito contribuiria tanto no estudo de abordagens missionárias
aos indígenas, quanto em técnicas de tradução bíblica e questões de vida missionária.
Nesta dissertação estão dados disponíveis para futuras reflexões sobre a Minas Indígena,
bem como para a elaboração de abordagens e estratégias específicas para cada grupo.
Minas Indígena 193
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PUBLICAÇÕES
ALVARES, Myriam Martins. A Cultura Maxakali. In: Campanha Internacional Pela
Regularização do Território Maxakali. Belo Horizonte: CEDEFES, 1995.
ALVES, William Rosa (org). Geografia da Nossa Terra – Uxuxet ax, hãm Xeka Ãgtux.
Brasília: MEC/SEF/DPEF, 2000.
ANTUNES,
Marisa
Aparecida
Domingos.
Pequeno
Dicionário
Maxakali-
Portugues/Portugues-Maxakali. Juiz de Fora: FBN, 1999.
CEDEFES. A Luta dos Índios Pela Terra – Contribuição à História Indígena de Minas
Gerais. Contagem: 1987.
CIMI. Por Uma Terra Sem Males – Semana dos Povos Indígenas 2002.
CIMI-LE. Maxakali na Luta Pela Vida. Belo Horizonte: 1984.
---------. Povo Maxakali – Ontem e Hoje... Desafios e Sonhos! Belo Horizonte: 1999.
CUNHA, Manuela Carneiro da (org). História dos Índios do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
FRANCO, Francisco de Assis de Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do
Brasil. São Paulo: Comissão do IV Centenário, 1954.
GOMES, Mércio Pereira. Políticas Indigenistas. In: Os Índios e o Brasil – Ensaios Sobre
um Holocausto e Sobre uma Nova Possibilidade de Convivência. Petrópolis:
Vozes, 1991.
GUIART, Jean. Chaves da Etnologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
HESSELGRAVE, David J. A Comunicação Transcultural do Evangelho. Vl. 2.
Comunicação, Cosmovisão e Comportamento. São Paulo: Vida Nova, 1995.
ISA - Instituto Socioambiental. Povos Indígenas no Brasil (1996-2000). São Paulo: 2000.
JOSÉ, Oiliam. Indígenas de Minas Gerais. Belo Horizonte: Movimento Perspectiva,
1965.
Minas Indígena 194
KRENAK, Maurício & Outros. Conhe Pãnda Ríthioc Krenak. Coisa Tudo na Língua
Krenak. Belo Horizonte: MEC/UNESCO/SEE-MG, 1997.
LEWIS, Jonatán. Mision Mundical – Un Análisis del Movimiento Cristiano Mundial. La
Dimensión Estratégica. Oregon: CBF, 1986.
LIDÓRIO, Ronaldo Almeida. Comunicação Missionária – Comparando a Cultura
Ocidental com a Cosmovisão Konkomba. Um Estudo de Caso. Cambuci: JME,
1998.
---------. Novas Fronteiras. Cambuci: APMT, 2001a.
---------. Plantação de Igrejas e a Comunicação Transcultural do Evangelho às Origens
Animistas. In: Revista Capacitando para Missões Transculturais. No. 10. São
Paulo: APMB, 2001b.
MACHADO, José Carlos. Senhora da Graça da Capelinha. Capelinha: 2000.
MARTINS, Joaquina Júlia. A questão fundiária e o direito à terra. In: Campanha
Internacional pela Regularização do Território Maxakali. Belo Horizonte:
CEDEFES, 1995.
MATOS, Kleber Gesteira. In: ALVES, William Rosa (org). Geografia da Nossa Terra –
Uxuxet ax, hãm Xeka Ãgtux. Brasília: MEC/SEF/DPEF, 2000.
MATTOS, Izabel Missagia de. Temas para o Estudo da História Indígena em Minas
Gerais. In: Cadernos de História. Vl. 5, no. 6. Belo Horizonte: PUC/MG, julho de
2000a.
MAXAKALI, Gilberto & Outros. Maxakali – O Livro que Conta Histórias de
Antigamente. Belo Horizonte: MEC/SEE-MG, 1998.
MCILWAIN, Trevor & EVERSON, Nancy. Alicerces Firmes da Criação até Cristo.
Anápolis: MNTB, 1997.
NIMUENDAJÚ, Curt. Mapa Etnohistórico de Curt Nimuendajú. Rio de Janeiro: IBGE,
1981.
MONTEIRO, John. Negros da Terra – Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo.
São Paulo: Cia. das Letras, 1994.
MORENO, Cézar. A Colonização e o Povoamento do Baixo Jequitinhonha no Século
XIX – A Guerra Justa Contra os Índios. Belo Horizonte: Canoa das Letras, 2001.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma Etnologia dos “Índios Misturados”? Obstáculos e
Perspectivas. In: Índios do Nordeste: Temas e Problemas. Rio de Janeiro: UFRJ,
1999.
Minas Indígena 195
OLIVEIRA, José Nunes. Índios Xacriabá – O Tempo Passa e a História Fica. Belo
Horizonte: MEC/UNESCO/SEE-MG, 1997.
PACKER, J. I. O Evangelismo e a Soberania de Deus. São Paulo: Vida Nova, 1966.
PACÓ, Domingos Ramos. Hámbric Anhamprán ti Maltâ Nhiñchopón? 1918. In:
RIBEIRO, Eduardo Magalhães (org). Lembranças da Terra – Histórias do Mucuri e
Jequitinhonha. Contagem: CEDEFES, s.d.
PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. Maxakali – O Povo do Canto. In: Campanha
Internacional pela Regularização do Território Maxakali. Belo Horizonte:
CEDEFES, 1995.
--------. Os Botocudos e sua Trajetória Histórica. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org).
História dos Índios do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
PATAXÓ, Angthichay & Outros. O Povo Pataxó e Sua História. Belo Horizonte:
MEC/UNESCO/SEE-MG, 1997a.
PATAXÓ, Kanátyo. Txopai e Itôhã. Belo Horizonte: MEC/UNESCO/SEE-MG, 1997b.
POPOVICH, Frances Blok. A Organização Social dos Maxakali. Brasília: SIL, 1994.
PREZIA, Benedito & HOORNAERT, Eduardo. Brasil Indígena – 500 Anos de
Resistência. São Paulo: FTD, 2000.
PROUS, André. A Pré-História do Estado de Minas Gerais. In: LPH – Revista de
História, Vl. 2, no. 1. Ouro Preto: Departamento de História/UFOP, 1991.
---------. As Primeiras Populações do Estado de Minas Gerais. In: TENÓRIO, Maria
Cristina (org). Pré-História da Terra Brasilis. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.
RAHNER, Karl. Curso Fundamental da Fé. São Paulo: Paulinas, 1989.
RIBEIRO, Eduardo Magalhães (org). Lembranças da Terra – Histórias do Mucuri e
Jequitinhonha. Contagem: CEDEFES, s.d.
RODRIGUES, Aryon Dall'Igna. Línguas Brasileiras - Para o Conhecimento das Línguas
Indígenas. São Paulo: Loyola, 1994.
ROOSEVELT, Ana. O Povoamento das Américas – O Panorama Brasileiro. In:
TENÓRIO, Maria Cristina (org). Pré-História da Terra Brasilis. Rio de Janeiro:
UFRJ, 1999.
SCHERER, James A. Evangelho, Igreja e Reino – Estudos Comparativos de Teologia da
Missão. São Leopoldo: Sinodal, 1991.
SEIXAS, José Coelho S. Povo Xacriabá. In: Revista Informativa da Qualificação
Profissional. Belo Horizonte: SETASCAD, novembro de 2001.
Minas Indígena 196
SOARES, Geralda Chaves. Os Boruns do Watu – Os Índios do Rio Doce. Contagem:
CEDEFES, 1992.
---------. Das Guerras no Jequitinhonha ao Rio Umburanas. In: Campanha Internacional
pela Regularização do Território Maxakali. Belo Horizonte: CEDEFES, 1995a.
---------. Levantamento de Acontecimentos da História Maxakali. In: Campanha
Internacional pela Regularização do Território Maxakali. Belo Horizonte:
CEDEFES, 1995b.
SOUZA, Isaac Costa de. De Todas as Tribos – A Missão da Igreja e a Questão Indígena.
Viçosa: Ultimato, 1996.
NÃO PUBLICADOS
ALVARES, Myriam Martins. Yãmiy, os Espíritos do Canto – A Construção da Pessoa na
Sociedade Maxakali. Campinas: UNICAMP, 1992 (Dissertação de Mestrado).
ALVES, Vânia de Fátima Noronha. O Corpo Lúdico Maxacali – Desvelando os Segredos
de Um ‘Programa de Índio’. Belo Horizonte: FAE/UFMG, 1999 (Dissertação de
Mestrado).
AMORIM, Maria Stella de. A Situação dos Maxakali. Rio de Janeiro: UFRJ, 1966.
ARRUTI, José Maurício Paiva Andioni. O Reencantamento do Mundo – Trama
Histórica e Arranjos Territoriais Pankararu. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.
BAETA, Alenice Mota. Levantamento Arqueológico do Baixo Vale do Rio Pará. In:
CALDEIRA, Vanessa & Outros. Kaxixó: Quem é Esse Povo? Belo Horizonte:
CEDEFES/ANAI, 1999.
CALDEIRA, Vanessa & Outros. Kaxixó – Quem é Esse Povo? Belo Horizonte:
CEDEFES/ANAI, 1999.
CIMI-LE. Mapeamento das Escolas Indígenas – Povo Maxakali. Machacalis: 1999.
--------. O Povo Maxakali – Sua História e Costumes, Desafios e Perspectivas.
Machacalis: 2000.
DINIZ, Sílvio Gabriel. Pesquisando a História de Pitangui. Prefeitura Municipal: Belo
Horizonte, 1965.
DUTRA, Mara Vanessa (coord). Bay – A Educação Escolar Indígena em Minas Gerais.
Belo Horizonte: SEE-MG, 1998.
FARIA, Maria Juscelina de (coord). A População Indígena de Minas Gerais – Panorama
Histórico e Situação Atual. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1992.
Minas Indígena 197
FILHO, Hernando Baggio & NASCIMENTO, José Carlos. Dossiê de Tombamento dos
Sítios Espeleológicos de São João das Missões. São João das Missões: Prefeitura
Municipal, 2002.
LEAL, Ebenézer e Adriana. Questionário de Sondagem da Tribo Xucuru. Pesqueira:
MNTB, s/d.
MATTOS, Izabel Missagia de. Borum, Bugre, Kraí – Constituição Social da Identidade e
Memória Étnica Krenak. Belo Horizonte: UFMG, 1996 (Dissertação de
Mestrado).
---------. O Nome de (do) “Índio” – Memória e Identidade Étnica de uma Família
Sertaneja. São Paulo: UNICAMP, 1998.
---------. Os Kaxixó e a Identidade – Da Re-invenção Cultural ao Re-conhecimento
Oficial. In: CALDEIRA, Vanessa & Outros. Kaxixó: Quem é Esse Povo? Belo
Horizonte: CEDEFES/ANAI, 1999.
MORAES, L. O Índio na História de Minas Gerais – O Século XVIII. Belo Horizonte:
UFMG, 1992 (Relatório final de iniciação científica).
PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. Identidade Étnica dos Xakriabá. Brasília: FUNAI,
1987.
---------. Relatório Antropológico Sobre os Índios Maxakali. Salvador: FUNAI, 1992.
---------. Laudo Antropológico Sobre a Comunidade Denominada Kaxixó. Salvador:
UFBA, 1994.
PEREIRA, Deuscreide G. Alguns Aspectos Gramaticais da Língua Maxakali. Belo
Horizonte: UFMG, 1992 (Dissertação de Mestrado).
POPOVICH, Andrew Harold (org). Kokex. Brasília: SIL, 1992a (Cartilha Maxakali 2).
--------- (org). Mõmõka. Brasília: SIL, 1992b (Cartilha Maxakali 3).
--------- (org). Patap’. Brasília: SIL, 1992c (Cartilha Maxakali 1).
--------- (org). Yãyã’. Brasília: SIL, 1992d (Cartilha Maxakali 4).
Relatório Pankararu ao Exmo. Sr. Bispo da Diocese de Araçuaí. Aldeia Apukaré, 05 de
dezembro de 2000.
SCHETTINO, Marco Paulo Fróes. Relatório de Identificação e Delimitação da Terra
Indígena Xakriabá Rancharia – MG. Brasília: FUNAI, 1999.
SILVA, Cácio Evangelista da. Maxakali – Um Breve Perfil Cultural. Viçosa: CEM, 2001
(Monografia de Mestrado).
SOARES, Geralda Chaves. Mitos Maxakali. Contagem: CEDEFES, 1995.
---------. Relatório da Viagem aos Kaxixó. CEDEFES, 1995b.
Minas Indígena 198
SOUZA, Isaac Costa de & ASSIS, Elias Coelho. Índio Também Peca. 2001 (no prelo).
TORRETA, Oscar. Uso e Abuso de Substâncias Alcoólicas ao Interno do Grupo
Indígeno Maxakali. Belo Horizonte: UFMG, 1997.
WRIGHT, Robin M. (org). Transformando os Deuses – Os Múltiplos Sentidos da
Conversão Entre os Povos Indígenas no Brasil. Vl.2. Campinas: UNICAMP, 2002
(no prelo).
PERIÓDICOS
ABDALA, Isabela & RODRIGUES, Alan. Todo Dia é Dia de Álcool. In: Revista IstoÉ.
São Paulo: Três, 18 de novembro/1998, nº 1520.
CALDEIRA, Vanessa. Povo Aranã. In: Revista Informativa da Qualificação Profissional.
Belo Horizonte: SETASCAD, novembro de 2001a.
--------. Povo Kaxixó. In: Revista Informativa da Qualificação Profissional. Belo
Horizonte: SETASCAD, novembro de 2001b.
--------. Povo Pankararu. In: Revista Informativa da Qualificação Profissional. Belo
Horizonte: SETASCAD, novembro de 2001c.
--------. Povo Xukuru-Kariri. In: Revista Informativa da Qualificação Profissional. Belo
Horizonte: SETASCAD, novembro de 2001d.
CASAS, Rachel de las. Povo Maxakali. In: Revista Informativa da Qualificação
Professional. Belo Horizonte: SETASCAD, novembro de 2001.
CHAVES, Luiz Antônio. Direito Indígena no Brasil. Belo Horizonte: CIMI-LE, 2002.
CIMI. Conselho Indigenista Missionário. Folheto de divulgação, s.d.
FRAGA, Everaldo. Maxakali – O Povo do Canto. In: Revista AMEM. Ano I, no. 03. Belo
Horizonte: 2000.
GTME. Grupo de Trabalho Missionário Evangélico – Em Solidariedade com os Povos
Indígenas. Folheto de divulgação, s.d.
MARCATO, Sônia de A. Remanescentes Xakriabá em Minas Gerais. In: Revista do
Arquivo do Museu de História Natural. Vl. III. Belo Horizonte: UFMG, 1978.
MATTOS, Izabel Missagia de & Outros. Povos Indígenas de Minas Gerais. Belo
Horizonte: Assembléia Legislativa de Minas Gerais, 2000b.
--------. Povo Krenak. In: Revista Informativa da Qualificação Profissional. Belo
Horizonte: SETASCAD, novembro de 2001.
Minas Indígena 199
NIMUENDAJÚ, Curt. Índios Machacarí. In: Revista de Antropologia. São Paulo:
EDUSP, 1954.
RUBINGER, Marcos Magalhães. O Desaparecimento das Tribos Indígenas em Minas
Gerais e a Sobrevivência dos Índios Maxakali. In: Revista do Museu Paulista. São
Paulo: Nova Série, 1963.
VILARINHO, Marcelo. Povo Pataxó. In: Revista Informativa da Qualificação
Profissional. Belo Horizonte: SETASCAD, novembro de 2001.
FONTES ELETRÔNICAS
CASAS, Raquel de las (org). Povos Indígenas no Brasil – Somos Todos Parentes.
www.indio.org.br. Capturado em 25/02/02.
NUNES, Jerónimo. Brasil 500 Anos – Que Índios Viu Cabral? www.webx.ca/portilus/
Ed_398/Cronicas/cr01. Capturado em 06/08/02.
OLIVEIRA JÚNIOR, Adolfo Neves de. Faccionalismo Xukuru-Kariri e a Atuação da
FUNAI.
http://geocities.yahoo.com.br/esp_cultural_indigena.
Capturado
em
29/07/02.
OLIVEIRA, Tadeu. Índios Aranã – A Luta Pelo Reconhecimento de um Povo.
www.cantaminas.com.br/indios_aranas. Capturado em 16/08/02.
PALITOT, Estevão. Kaxixó – As Complexas Raízes de Um Povo Ressurgido.
http://br.groups.yahoo.com/group/Tribo_Virtual/message/279. 02/05/01.
PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. Krenak. www.isa.org.br. 1998.
----------. Maxakali. www.isa.org.br. 1999.
THYDÊWÁ (Esperança da Terra). Índio na Visão do Índio. www.propesq.ufpe.br/
conic2000/Pibic/Ciencias_ Humanas. Capturado em 25/07/02.
TORRES, Almir. Índios de Pernambuco. www.uol.com.br/almirtorrer. Capturado em
25/07/02.
ENTREVISTAS
(Todas as entrevistas aqui listadas foram feitas in locu pelo próprio pesquisador.
Com a exceção das devidamente indicadas, todas foram gravadas e o pesquisador
tem em seu poder as respectivas fitas K7. A ordem alfabética aqui segue o nome ou
cognome que aparece nas citações no texto.)
ADAIR Gomes. Missionário entre os Maxakali, desde 1992, através da Missão Novas
Tribos no Brasil. Batinga: 09/02/02 (não gravada).
Minas Indígena 200
AILTON Krenak. Um dos principais líderes Krenak. Aldeia Barra do Eme: 07/05/02 (não
gravada).
ALVENIR da Silva Costa. Pastor da Igreja Assembléia de Deus da cidade de Carmésia,
que dá assistência à aldeia Pataxó. Fazenda Guarani: 09/05/02 (não gravada).
ANA Ribeiro. Viúva do Milguelsinho – conhecido como “amansador de índios” – morou
por muitos anos na aldeia Maxakali em convívio direto com estes indígenas e com
o casal de missionários Popovich. Conhecedora da sua religiosidade e costumes.
Santa Helena de Minas: 06/02/02.
BENVINA Vieira. Líder do grupo Pankararu de Minas Gerais. Aldeia Apukaré: 11/02/02.
CLARISMÕN (Jânio). Vice-cacique Xukuru-Kariri. Aldeia Xukurú-Kariri: 19/03/02.
DIVA, Maria. Uma das principais líderes Maxakali, eleita em 2000 vereadora do
Município de Santa Helena de Minas. Santa Helena de Minas: 07/02/02.
DJALMA Vicente de Oliveira. Cacique Kaxixó. Capão do Zezinho: 18/03/02.
DODI (Jorge Cardoso dos Santos). Morador da cidade de Santa Helena de Minas, criado
numa fazenda próxima à aldeia Maxakali, onde conviveu com estes indígenas e
com o casal de missionários Popovich. Santa Helena de Minas: 06/02/02 (não
gravada).
ÉDSON Ferreira Campos. Pastor da Igreja Assembléia de Deus de Manga, responsável
pelo trabalho da mesma entre os Xacriabá. Manga: 10/04/02.
GILMAR Maxakali. Professor indígena e um dos principais líderes Maxakali. Aldeia
Água Boa: 08/02/02.
“GILMAR” (ou Pedro Inácio Índio). Um dos filhos de Pedro Sangê e principal progenitor
do grupo Aranã de Belo Horizonte. Belo Horizonte: 20/03/02 (não gravada).
HIM (ou Nego, ou ainda José Alfredo de Oliveira). Cacique Krenak. Aldeia do Eme:
07/05/02.
JOÃO Maria Silva. Ex-missionário entre os Maxakali na Aldeia Água Boa, através da
Igreja Assembléia de Deus de Belo Horizonte. Teixeiras: 20/01/02.
MARLENE Martins. Missionária entre os Maxakali da aldeia Água Boa, atuando como
enfermeira. Enviada pela Terceira Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte, através
da Missão Emanuel de Governador Valadares. Santa Helena de Minas: 06/02/02.
RODRIGÃO (Manoel Gomes de Oliveira). Cacique Xacriabá e vice-prefeito do Município
de São João das Missões. São João das Missões: 09/04/02.
RONADO e Kátia Lima. Missionários entre os Maxakali, desde 1992, através da Missão
Novas Tribos no Brasil. Batinga: 09/02/02 (não gravada).
Minas Indígena 201
SOARES, Geralda Chaves. Indigenista do CEDEFES e GTME, atualmente atuando entre
os Aranã e Pankararu no Vale do Jequitinhonha. Araçuaí: 11/02/02.
THYUNDAYBA. Cacique Pataxó e vereador do Município de Carmésia. Fazenda
Guarani: 09/05/02.
TOTÓ. Um dos mais idosos índios Maxakali, amigo do casal de missionários Harold e
Frances Popovich. Aldeia Água Boa: 07/02/02.
ZEZINHO (ou Zé Pirão). Professor indígena e um dos principais líderes Maxakali. Aldeia
Água Boa: 08/02/02 (não gravada).
Minas Indígena 202
ANEXO 01:
MITOS E LENDAS DA MINAS INDÍGENA
1. XACRIABÁ
1.1. YAYÁ, A ONÇA CABOCLA
Uma índia Xacriabá e sua filha estavam passeando. A mãe disse: estou com fome e
com vontade de comer carne.
A filha respondeu: eu vou lá. Vou matar uma vaca. Quando eu voltar correndo com
a boca aberta, coloque esse ramo na minha boca.
A moça sumiu e logo depois uma onça pulou em cima de uma novilha e a matou.
Voltou correndo com a boca aberta para a mulher. A mulher teve medo e correu. A onça
era a moça e nunca mais voltou a ser moça.
Ela se escondia de dia e de noite saía e ia aos currais dos fazendeiros e matava a
vaca. Os fazendeiros um dia entregaram o ferro de marcar o gado e a onça cabocla não
comia mais o seu gado.
Registrado pelo antropólogo Romeu Sabará
em 1976 (Paraíso, 1987.42)
1.2.
UÍARA, A MÃE D’ÁGUA
Dizia-se que numa paragem longínqua do Brasil, havia uma serra diferente das
outras. Dizia-se que essa tal serra era toda verde, por ser de esmeralda toda ela. Os rios
próximos, lagos, areias, os pássaros, as nuvens, até o próprio luar, tinham tons esverdeados
por causa dos reflexos verdes da serra.
Minas Indígena 203
Esta serra maravilhosa ficava às margens da lagoa de Vaparuçu, longe, muito
longe. As pedras verdes eram os cabelos de Uíara, a mãe d’água. Uma linda sereia de
cabelos verdes e olhos azuis profundos. Possuía um palácio encantado e atraía, com seus
lindos olhos e com sua linda beleza, todos os que a viam. Ela arrastava-os para as
profundezas do mar. Nós não queríamos que a Uíara, chamada de mãe d’água, acordasse.
Registrado por José dos Reis Xacriabá (Oliveira, 1997.62)
2. MAXAKALI
2.1. O DILÚVIO
A Lontra
Antigamente os Maxakali conversavam com Topa. E este era seu amigo. Topa
visitava as suas aldeias. E deu para eles uma linda Lontra. Com ela, disse Topa, os
Maxakali jamais passarão fome. Vocês, farão assim: "levarão a Lontra para o rio de modo
que ela possa pescar peixes para vocês. Ela entrará no rio e de lá vai jogar na margem
muitos peixes. Os Maxakali encherão os seus "terrê" (sacolas de embira) e levarão para a
aldeia, onde os peixes serão repartidos e ninguém passará fome. Mas tem uma exigência:
os três primeiros peixes que ela jogar na areia serão enormes e vocês os separarão para
mim. E assim os Maxakali fizeram por muitos anos. Não havia fome em suas aldeias e eles
viviam felizes.
Um dia, porém, o genro de um dos mais velhos pediu ao sogro a lontra encantada
para ir pescar. O sogro lhe contou toda a história e o trato com o Topa. E ele se foi para a
beira do rio. Tudo ocorreu como fora combinado. A Lontra pulou no rio: Unch! Unch!
Unch! Mergulhou de novo e jogou na margem três grandes peixes. Os peixes sagrados!
Depois continuou a mergulhar e jogou mais peixes.
Ao ver os três peixes grandes, o genro disse: Que nada! Vou levar esses três peixes
para mim. E colocou-os no terrê. Também encheu as outras sacolas com os peixes
pequenos. Terminado o seu trabalho, a Lontra subiu no barranco e começou a cheirar os
peixes procurando os seus. Não os encontrando, pulou no rio... e desceu o rio abaixo.
O Maxakali desesperado começou a gritar: Lontra! Lontra! Volte! Mas a Lontra não
entendia a linguagem do Maxakali e ela foi embora para não mais voltar.
Minas Indígena 204
O Maxakali voltou para a aldeia com os peixes. Muito envergonhado, ele contou
tudo para o mais velho. A aldeia inteira entrou em profundo estado de medo e tristeza, pois
o mais velho disse: Você errou. Topa vai nos castigar, um grande castigo cairá sobre nós!
O Dilúvio
Anoiteceu. Os Maxakali preocupados, se recolheram em suas cabanas. E o tempo
se escureceu. Uma chuva torrencial se abateu sobre a terra. Quando os Maxakali
acordaram, as águas tinham apagado as fogueiras e uma enorme escuridão se fez.
Desesperados, eles viram que a água chegava debaixo dos giraus (cama de vara). Juntaram
seus poucos pertences e suas crianças e correram para cima das árvores. Ali a água os
alcançava e eles eram derrubados na correnteza. Buscaram, então, a montanha mais alta. E
aí também a água os alcançou... E assim morreram todos os Maxakali daquele tempo!
Topa Salva um Maxakali
O genro, no entanto, em meio a grande pavor, encontra um pedaço de pau oco e
entra nele. Ele tapou as extremidades com areia e couro de veado e ali ficou por quarenta
dias flutuando no grande mar de águas que se formara. Passada a tempestade, as águas
baixaram e Topa quis ver como ficou a terra. E ele veio em forma de besouro (Mangangá)
voando, voando... ZZZ! ZZZZ! ZZZ! Não sobrou nada, disse ele ao seu acompanhante.
De repente. ouviu-se uma voz: Topa! Topa! Me tira daqui! Topa circulou o pau de
onde saía a voz. Mandou seu acompanhante ir buscar um machadinho para cortar. Era
inacreditável alguém ter escapado. Quando chegou o machadinho, Topa marcou o lugar
para cortar! Aí não, disse a voz. Aí é minha perna. Como vou andar? E assim
sucessivamente: a cabeça... como vou pensar? Os braços... como vou flechar? Até que o
homem disse: aí pode cortar, pois Topa tinha marcado por cima da sua cabeça, no lugar da
pele do veado. Topa retirou-o de dentro do pau. Fez uma fogueira e foi aquecendo-o,
girando seu corpo em torno das labaredas, como quem assa carne. Que coisa horrível! O
homem estava branco, magro e todo cagado. Fedia de longe.
Depois que ele foi se recuperando, Topa alimentou-o com mel, amendoim,
bananas, carne, frutas... e lhe disse: agora que você está bom vou levar você comigo, para o
meu lugar (o Hamnoy), pois você está só. Mas o maxakali não quis ir: eu não sou Deus!
Meu lugar é aqui! Disse Topa: então eu vou te ensinar a fazer uma armadilha para pegar
uma mulher para você, pois você não suportará ficar só. E Topa ensinou-lhe a fazer um
mundéu. E depois disso se foi.
Minas Indígena 205
O maxakali seguia o conselho de Topa ao pé da letra. Armava sempre o mundéu na
direção ensinada por Topa. Caíram ali vários bichos da floresta. Mas com nenhum o
casamento dava certo. Até que caiu nele uma guariba. E ele se casou com ela. Quando
nasceu, o filho era uma guaribinha. E como das outras vezes, ele a mandou embora, pois
nascera bicho e não filho de gente.
O Maxakali Encontra Gente e o Povo Renasce
O maxakali se desesperava de tão só. Uma noite armou mais uma vez o mundéu na
direção ensinada por Topa. E ouviu vozes: opa, essa voz... é voz de gente. Não é de bicho!
Exclamou. E rápido seguiu pela mata em direção à voz. Viu então uma pequena cabana. Lá
dentro viu uma veadinha (Mas essa era uma mulher, pois estava encantada). Ele chegou e
bateu palma. Ela saiu à porta. Ele, respeitoso, ficou à distância com seu arco e flechas.
- Bom-dia! O marido da senhora está em casa?
-
Não! Ele está trabalhando na roça.
-
Vou até lá! Disse ele, pois pensou que não ficaria bem ele ali sozinho com a mulher do
outro.
Ele se foi. Chegando na roça espiou... e viu um forte e grande veadão capinando a
roça... todo suado. O maxakali pensou: vou matá-lo. Atirou suas flechas e zás! Flechou o
homem e o matou. Jogou seu corpo no mato e retornou à casa da mulher.
-
Encontrou o meu marido? Perguntou a mulher.
-
Não, não o vi.
-
Então vamos esperá-lo.
Ele se sentou do lado de fora da casa. Muito tempo se passou... O maxakali então se
casou com a veadinha encantada. E daí nasceu esta gente Maxakali de hoje.
Registrado por Geralda Soares (1995),
na aldeia Pradinho.
2.2. QUANDO TOPA VIVIA NA TERRA
Antigamente Topa vivia na terra. Um dia ele cortou uma grande árvore e deixou o
tronco caído no chão. Ao lado deste deitou o seu filho ainda bebê e afastou-se por algum
tempo. A criança, quando se viu sozinha, começou a chorar. Neste momento alguns
Minas Indígena 206
homens passaram ali por perto e encontraram o pequeno chorando. Um deles decidiu levar
o bebê para que sua mulher o criasse.
Ty, assim era o nome, mamou nesta mulher até crescer e saber de todas as coisas.
Quando já tinha por volta de três anos, Ty pediu à seu yãyã – irmão da mãe – para esticar
para ele um couro de cutia. Seu yãyã assim o fez. Ty amarrou este couro em seu pecoço
sobre as costas e correu arrastando-o pelo chão no interior da casa. O barulho produzido
pelo couro formou nuvens negras sob o teto da casa. Ty levantou os braços e relâmpagos
saíram deles. Ele correu novamente pela casa arrastando o couro e uma chuva fina caiu no
seu interior. Passaram-se os anos e Ty cresceu. Quando tinha por volta de dez anos, ele
pediu novamente ao yãyã para esticar para ele o couro. Desta vez Ty pediu couro de veado.
Seu yãyã atendeu o pedido e Ty amarrou no seu pescoço o couro do veado e repetiu o que
fizera da primeira vez. Percorreu também os pátios externos das casas. Nuvens negras
envolveram toda a aldeia. Ele levantou seus braços fazendo-os relampear e correu
novamente pela aldeia. A chuva, então, caiu forte sobre as casas. Anos se passaram e Ty
tornou-se um rapaz. Voltou a procurar o seu yãyã e fez o mesmo pedido. Agora o couro
seria de um jaguar. Seu yãyã lhe entregou o couro pedido e Ty amarrou-o no pescoço como
das outras vezes. Correu por toda a aldeia e pelo seu pátio externo – isto é, cruzou a Casa
de Religião. Uma grande tempestade desabou sobre a aldeia e por toda a região próxima.
Um dia seu yãyã foi à mata para tirar mel e Ty o acompanhou. Quando o tio se
preparava para derrubar a árvore (forma tradicional Maxakali de tirar mel), Ty disse que
ele próprio cortaria a árvore. Amarrou o couro de jaguar no pescoço e correu pela mata
reunindo muitas nuvens negras no céu e, levantando os braços fez relampear, iniciando
uma violenta tempestade e ventania. De repente, do céu veio um grande estrondo: um raio
desceu à terra caindo ao lado dos dois homens e, de dentro deste, surgiu a mãe de Ty – a
mulher de Topa – que reencontrara o filho por causa dos relâmpagos e da tempestade. Ela
quebrou a árvore para o yãyã do rapaz e o levou de volta para o céu.
Registrado por Alvares (1992.207,208)
3. KRENAK
3.1. O TEMPO QUE DEUS ANDAVA NO MUNDO
Minas Indígena 207
Quando Deus andava no mundo, para ver quem era bom era quem era ruim, ele
encontrou no meio da mata, uma aldeia e ficou prá saber se os índios eram bons ou ruins.
Então Deus virou tamanduá que era manso, e eles o levaram pra casa. O tamanduá ficou lá.
Os índios falaram para o tamanduá olhar os meninos. O tamanduá ficava e os índios iam
caçar, pescar, e pegar raiz nativa, que se chama caratinga. Eles traziam, para o tamanduá,
formigas. O tamanduá olhava para as formigas e ficava quieto, os índios ficaram
assustados de ver o tamanduá falar.
Aí os meninos perguntaram: você fala, tamanduá?
O tamanduá respondeu: eu falo, mas não é pra vocês falarem com os outros não.
Quando eles chegarem, vocês falam que eu comi as formigas.
Eles chegaram com mais formigas para o tamanduá, o tamanduá falou para os
meninos: eu quero mel, caratinga e beijú.
Os meninos responderam ao tamanduá: você não é gente igual a nós, você é
tamanduá. Tem que comer formigas.
O tamanduá falou: eu não sou tamanduá.
Quando os índios iam dormir, os meninos pegavam um gomo de bambú com mel e
água, e caçavam caratinga para o tamanduá. Toda vez quando os índios chegavam com
caça, os meninos davam para o tamanduá, até que Deus foi embora.
Aí Deus falou para os meninos: aqui tem gente boa e gente ruim.
Os meninos falaram que os outros índios não sabiam que ele era Deus, mas sim
tamanduá.
Aí Deus falou para os meninos: não vai falar nada para vocês, vocês vão ser índios
bons e sabidos. Eu vou ajudar vocês em tudo que vocês precisarem eu ajudo. E Deus foi
embora.
Registrado por Maurício Krenak (1997.32,33)
4. PATAXÓ
4.1. TXOPAI E ITÔHÃ (Deus e Céu)
Antigamente, na terra, só existiam bichos e passarinhos, macaco, caititu, veado
tamanduá, anta, onça, capivara, cutia, paca, tatu, sarigüe, teiú... Cachichó, Cágado, quati,
Minas Indígena 208
mutum, tururim, jacu, papagaio, aracuã, macuco, gavião, mãe-da-lua e muitos outros
passarinhos.
Naquele tempo, tudo era alegria. Os bichos e passarinhos viviam numa grande
união. Cada raça de bicho e passarinho era diferente, tinha seu próprio jeito de viver a vida.
Um dia, no azul do céu, formou-se uma grande nuvem branca, que logo se transformou em
chuva e caiu sobre a terra. A chuva estava terminando e o último pingo de água que caiu se
transformou em um índio.
O índio pisou na terra, começou a olhar as florestas, os pássaros que passavam
voando, a água que caminhava com serenidade, os animais que andavam livremente e
ficou fascinado com a beleza que estava vendo ao seu redor. Ele trouxe consigo muitas
sabedorias sobre a terra. Conhecia a época boa de plantar, de pescar, de caçar e as ervas
boas para fazer remédios e seus rituais.
Depois de sua chegada na terra, passou a caçar, plantar, pescar e cuidar da natureza.
A vida do índio era muito divertida e saudável. Ele adorava olhar o entardecer, as noites de
lua e o amanhecer. Durante o dia, o sol iluminava seu caminho e aquecia seu corpo.
Durante a noite, a lua e as estrelas iluminavam e faziam suas noites mais alegres e bonitas.
Quando era à tardinha, apanhava lenha, acendia uma fogueirinha e ficava ali olhando o ceu
todo estrelado. Pela madrugada, acordava e ficava esperando clarear para receber o novo
dia que estava chegando. Quando o sol apontava no céu, o índio começava o seu trabalho e
assim ia levando sua vida, trabalhando e aprendendo todos os segredos da terra.
Um dia, o índio estava fazendo ritual. Enxergou uma grande chuva. Cada pingo de
chuva ia se transformar em índio. No dia marcado, a chuva caiu. Depois que a chuva parou
de cair, os índios estavam por todos os lados. O índio reuniu os outros e falou: olha,
parentes, eu cheguei aqui muito antes de vocês, mas agora tenho que partir.
Os índios perguntaram: pra onde você vai?
O índio respondeu: eu tenho que ir morar lá em cima no Itôhã, porque tenho que
proteger vocês.
Os índios ficaram um pouco tristes, mas depois concordaram: tá bom, parente, pode
seguir sua viagem, mas não se esqueça do nosso povo.
Depois que o índio ensinou todas as sabedorias e segredos, falou: o meu nome é
“Txopai”.
De repente, o índio se despediu dando um salto, e foi subindo... subindo... até que
desapareceu no azul do céu, e foi morar lá em cima no “Itôhã”.
Narrado e registrado pelo índio Kanátyo Pataxó (1997).
Minas Indígena 209
4.2. O CAMUNDERÊ
O camunderê era um bicho muito cabeludo, e além de perigoso, também era
assustador. Ele gostava de comer criança. Todas as noites ele aparecia. Quando chegava
em uma casa, se tivesse criança, ele a devoraria e depois ia embora.
Um certo dia, ele chegou em uma casa e um índio sábio, conhecedor dos segredos
da mata, ao perceber a presença do monstro, pegou seu arco e flecha e, escondido, ficou
tocaiando o bicho. Pois, até então, ninguém havia descoberto onde era que ficava sua boca.
De repente, o bicho arrepiou os cabelos e já ia engolindo uma criança. No momento em
que ele arrepiou os seus cabelos, o índio velho, pela primeira vez, viu a boca, que ficava
nas proximidades do umbigo. De imediato, lançou sobre o umbigo do monstro uma flecha.
O bicho, sem muita demora, tombou no chão, dando um estrondoso e assustador grito.
Daquele dia em diante, acabou o camunderê, mas apesar de estar morto, até hoje
existe assombração desse bicho perigoso.
Registrado por Angthichay Pataxó (1997a.23)
Minas Indígena 210
ANEXO 02:
MAPA DA MINAS INDÍGENA
Minas Indígena 211
ANEXO 03:
QUADRO DE VISUALIZAÇÃO DA MINAS INDÍNGENA
Minas Indígena 212
MINAS INDÍGENA
Visualizando a Presença Indígena em Minas Gerais
REMANESCENTESa
POVO
MUNICÍPIO
REGIÃO
TERRITÓRIO
POPULAÇÃO
ALDEIAS
ORIGEM
Maxakali
Krenak
Pataxó
Pankararu
XukuruKariri
São João das
Missões
Norte
Vale do Rio São
Francisco
53.014,92 ha.
7.000
23
MG
Santa Helena
Bertópolis
Resplendor
Carmésia
Coronel Murta
Caldas
Nordeste
Vale do Mucuri
Sudeste
Rio Doce
Leste
Vale do Aço
5.293,13 ha.
1.000
2
MG
3.983,09 ha.
230
3
MG
3.270 ha.
300
3
BA
Nordeste
Médio Vale do
Jequitinhonha
68 ha.
20
1
PE
Aranã
Maxakali
Pataxó Hã-hã-hãe
Pankararé
Pakaru
Português
Português
Sincretistas
AnimistasCatólicos
Txopai
Sincretistas
AnimistasCatólicos
Deus
Hamãy
Camunderê
Praiás
Apukaré
Xerente
Xavantes
Pataxó
Pataxó Hã-hã-hãe
LÍNGUA
Português
Maxakali
NOME P/ DEUS
PRINCIPAIS
ENTIDADES
LOCAIS
SAGRADOS
IGREJA
BÍBLIA
MISSIONÁRIO
a
EMERGENTESc
Xacriabá
FAMÍLIA ÉTNICA
RELIGIOSIDADE
MIGRATÓRIOSb
Sincretistas
AnimistasCatólicos
Deus
Yayá
Terreiro
d
Sim
Não
Topa
Hãmgãyãgnag
Yãmixop
Yãmiy
Português
e Krenak
Sincretistas
AnimistasCatólicos
Tupã
Marét
Nanitiong
Krembá
Kuxex
Kieme-Burúm
Animista
Não
NT
7g
e
Sim
Não
Não
f
Sim
Não
Poró
Rancho
Não
Não
Kaxixó
Aranã
Martinho
Campos
Centro
Vale do
Rio Pará
35,25 ha.
60
3
MG
Coronel Murta
Araçuaí
Nordeste
Médio Vale do
Jequitinhonha
85
MG
-
Krenak
Português
Português
Católicos
Católicos
Jacy
Deus
?
Angüera
-
Ouricuri
-
-
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Sul
101 ha.
70
1
AL
Xukuru
Kariri
Kariri-Xocó
Xokó
Português
e Kariri
Sincretistas
AnimistasCatólicos
Dejuá-lhá
Grupos originariamente mineiros que sobreviveram étnico-culturalmente ao processo de colonização/dizimação.
Grupos de outros Estados que migraram para Minas Gerais.
c
Grupos mineiros que desapareceram historiograficamente como etnias, mas se reorganizaram novamente lutando/adquirindo reconhecimento étnico oficial junto à FUNAI.
d
Congregação Cristã no Brasil, do povoado de Rancharia, com cerca de 90 pessoas, em oito aldeias; Deus é Amor, da cidade de Itacarambi, com cerca de 60 pessoas; e Assembléias de Deus, da cidade de Manga,
com 32 pessoas, em duas aldeias. Ao todo são 23 aldeias, restando ao menos 10 sem igreja.
e
Assembléia de Deus, da cidade de Independência, com cerca de 20 pessoas.
f
Assembléia de Deus (cerca de 20 pessoas) e a Igreja Missionária Pentecostal (cerca de 10 pessoas), ambas da cidade de Carmésia.
g
Dois casais, da Missão Novas Tribos do Brasil, trabalhando com plantio de igrejas desde abril/92, uma missionária-enfermeira (dezembro/99), da Missão Emanuel, e agora um recente casal (maio/02) da Missão
Horizontes. As primeiras conversões se deram em julho/02 – uma família.
b
Minas Indígena 213
ANEXO 04:
CARTA RÉGIA DE 13/05/1808 157
Declarada “Guerra Justa” contra os Botocudos
D. João VI recebe
denúncias contra os
Botocudos que
defendem seus
territórios.
Pedro Maria Xavier de Ataíde e Mello, do meu Conselho, Governador e
Capitão General da Capitania de Minas Gerais. Amigo. Eu o Principe
Regente vos envio muito saudar. Sendo-me presentes as graves queixas
que da Capitania de Minas Geraes têm subido à minha real presença, sobre
as invasões que diariamente estão praticando os índios Botocudos,
antropophagos, em diversas e muito distantes partes da mesma Capitania,
particularmente sobre as margens do Rio Doce e rios que no mesmo
desaguam e onde não só devastam todas as fazendas sitas naquellas
visinhanças e tem até forçado muitos proprietários a abandonal-as com
grave prejuizo seu e da minha Real Coroa, mas passam da mais barbara
antropophagia, (...)
Os Botocudos
derrotam os
invasores.
(...) tendo-se verificado na minha real presença a inutilidade de todos os
meios humanos, pelos quaes tenho mandado que se tente a sua civilização
e o reduzil-os a aldear-se e a gozarem dos bens permanentes de uma
sociedade pacifica e doce, debaixo das justas e humanas Leis que regem os
meus povos; e até havendo-se demonstrado, quão pouco util era o systema
de guerra defensivo que contra elles tenho mandado seguir, visto que os
pontos de defeza em uma tão grande e extensa linha não podiam bastar a
cobrir o paiz: sou servido por estes e outros justos motivos que ora fazem
suspender os effeitos de humanidade que com elles tinha mandado
praticar, ordenar-vos, em primeiro lugar.
Declaração de
Guerra
Que desde o momento, em que receberdes esta minha Carta Regia, deveis
considerar como principiada contra estes Indios antropophagos uma guerra
offensiva que continuareis sempre em todos os annos nas estações seccas e
que não terá fim, senão quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de
suas habitações e de os capacitar da superioridade das minhas reaes armas
de maneira tal que movidos do justo terror em sociedade, possam vir a ser
vassallos uteis, como já o são as immensas variedades de Indios que nestes
meus vastos Estados do Brazil se acham aldeados e gozam da felicidade
que é consequencia necessaria do estado social.
Formação de
Milícias armadas
para atacar os
índios.
Em segundo logar sou servido ordenar-vos que formeis logo um Corpo de
Soldados pedestres escolhidos e commandados pelos mesmos habeis
Commandados que vós em parte propuzestes e que vão nomeados nesta
mesma Carta Régia, os quaes terão o mesmo soldo que o dos Soldados
Soldado índio ganha Infantes; e sendo Indios domesticos, poderá diminuir-se o soldo a 40 réis,
menos.
como se faz na guarnição dos Presidios dos Barretos e da Serra de S. João
(...)
A terra dos índios é
divida entre os
comandantes.
157
(...) Em terceiro logar, ordeno-vos que façais distribuir em seis districtos,
ou partes, todo o terreno infestado pelos Indios Botocudos, nomeados seis
Commandantes destes terrenos, a quem ficará encarregada pela maneira
Cópia desta Carta Régia se encontra, na íntegra, nos arquivos do CEDEFES.
Minas Indígena 214
que lhes parecer mais profunda, a guerra offensiva que convém fazer aos
Indios Botocudos (...)
Estratégia da
guerra.
(...) A estes Commandantes ficará livre o poderem escolher os soldados
que julgarem proprios para essa qualidade de duro e aspero serviço, e em
numero sufficiente para formarem diversas Bandeiras, com que hajam
constantemente todos os annos na estação secca de entrar nos matos;
ajudando-se reciprocamente não só as Bandeiras de cada Commandante,
mas todos os seis Commandantes com as suas respectivas forças, e
concertando entre si plano mais proficuo para a total redução de uma
semelhante e atroz raça antropophaga. Os mesmos Commandantes serão
responsaveis pelas funestas consequências das invasões à sua guarda, logo
que contra elles se prove omissão, ou descuido:
Os índios
aprisionados
deveriam ser
escravos por dez
anos ou toda a vida.
Que sejam considerados como prisioneiros de guerra todos os Indios
Botocudos que se tomarem com as armas na mão em qualquer ataque; e
que sejam entregues para o serviço do respectivo Commandante por dez
annos, e todo o mais tempo em que durar sua ferocidade, podendo elle
empregal-os em seu serviço particular durante esse tempo e conserval-os
com a devida segurança, mesmo em ferros, enquanto não derem provas do
abandono de sua atrocidade e antropophagia.
Quem matar mais
terá salário maior.
Em quarto logar, ordeno-vos que a estes Commandantes se lhes confira
annualmente um augmento de soldo proporcional ao bom serviço que
fizerem, regulado este pelo principio que terá mais meio soldo aquelle
Commandante que no decurso de um anno mostrar, não sómente que no
seu districto não houve invasão alguma de Indios Botocudos, nem de
outros quaesquer Indios bravos, de que resultasse morte de Portugueses,
ou destruição de suas plantações; mas que aprisionou e destruiu no mesmo
tempo maior numero, do que qualquer outro Commandante (...)
Fiscalização da
perseguição aos
índios.
Controle do Rio
Doce.
Quem invadir mais
terra fica dez anos
(...) Em quinto logar ordeno-vos que em cada tres mezes convoqueis uma
Junta que será por vós presidida (...) na qual fareis conhecer do resultado
de tão importante serviço; e me dará conta pela Secretaria do Estado de
Guerra e Negocios Estrangeiros, de tudo o que tiver acontecido e for
concernente a este objecto, para que se consiga a redução e civilização dos
Indios Botocudos, si possível for, e a das outras raças de Indios que muito
vos recommendo e podendo tambem a Junta propor-me tudo o que julgar
conveniente para tão saudaveis e grandes fins, particularmente tudo o que
tocar à pacificação, civilização e aldeação dos Indios (...)
(...) Propondo-me igualmente por motivo destas saudaveis providencias
contra os Indios Botocudos, preparar os meios convenientes para o futuro
a navegação do Rio Doce, que faça a felicidade dessa Capitania, e
desejando igualmente procurar, com a maior economia da minha Real
Fazenda, meios para tão saudavel empreza; assim como favorecer os que
quizerem ir povoar aquelles preciosos terrenos auriferos, abandonados
hoje pelo susto que causam os Indios Botocudos (...)
(...) vos ordeno que em todos os terrenos do Rio Doce actualmente
Minas Indígena 215
sem pagar dízimo.
infestados pelos Indios Botocudos, estabeleçais de accordo com a Junta da
Fazenda, que os terrenos novamente cultivados e infestados pelos Indios,
ficarão isentos por dez annos de pagarem dizimo a favor daquelles que os
forem por em cultura de modo que se possa reputar permanente: que
igualmente fique estabelecida por dez annos a livre exportação e
importação de todos os generos de commercio que se navegarem pelo
mesmo Rio Doce (...)
Moratória para os
grileiros da terra
indígena durante
seis anos.
(...) que finalmente fique decretado, que concedo a todos os devedores da
minha Real Fazenda que forem fazer semelhantes estabelecimentos de
cultura e de trabalhos auriferos, a especial graça, de uma moratoria, que
haja de durar seis annos da data desta minha Carta Régia, em cujo periodo
não poderão ser inquietados por dividas que tenham contrahido com a
minha Real Fazenda, (...)
Dada no Palácio do Rio de Janeiro em 13 de maio de 1808
Príncipe D. João VI
Minas Indígena 216
ANEXO 05:
ÁLBUM DA MINAS INDÍGENA
Minas Indígena
Indígena Xacriabá
Típico Casebre Xacriabá
216
Minas Indígena
Indígena Maxakali
Palhoça Maxakali
217
Minas Indígena
Crianças Maxakali
À esquerda, Zezinho Maxakali e sua família cantando em uma
igreja evangélica da região (convertido em julho de 2002).
À direita, missionário Aguigu Cipriano (indígena Makuxi).
Missão Horizontes – Maxakali (desde maio de 2002).
218
Minas Indígena
Crianças Krenak
Adolescentes Krenak
às margens do Watu – Rio Doce
219
Minas Indígena
Indígenas Pataxó
oferecendo seus
artesanatos.
À direita, o cacique
Thyundayba.
Indígenas Pataxó
com trajes
especiais
para o awê –
dança
tradicional.
220
Minas Indígena
Ritual Pankararu
Os homens de máscaras são os praiás (“encantados”)
e as mulheres devem acreditar que são espíritos.
Indígenas Pankararu às margens do Rio Jequitinhonha
221
Minas Indígena
222
Warkanã D’Aruanâ
Cacique Xukuru-Kariri
Clarismõn
Vice-cacique
Xukuru-Kariri
Minas Indígena
Indígena Kaxixó
Jerry Adriane, ex-cacique Kaxixó (em palestra)
223
Minas Indígena
Indígena Aranã
Kuxex – Casa de Religião Maxakali.
O local mais sagrado de toda a aldeia, proibido às mulheres.
224
Minas Indígena
Kieme-Burúm – Casa de Religião Krenak
Casa de Reuniões Pataxó
225
Minas Indígena
Rancho – Casa de Ritual Pankararu
Casa de Ritual Kaxixó
226
Minas Indígena
Casa de Reuniões Aranã
Ao centro, Dra. Francês Popovich
Missionária-lingüista entre os Maxakali de 1959-1981 – SIL
227
Minas Indígena
Missionários Ronaldo e Kátia Lima e suas quatro filhas
MNTB – Maxakali (desde abril de 1992)
Missionária-enfermeira Marlene Martins
Missão Emanuel – Maxakali (desde dezembro de 1999)
228
Download

Minas Indígena - Instituto ANTROPOS