V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS INSTITUIÇÕES ESCOLARES E FORMAÇÃO DE PROFESSORAS NO NORDESTE DE MINAS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX JOÃO VALDIR ALVES DE SOUZA 1 Introdução Ainda está para ser sistematizada a história do processo de 2 institucionalização da escola no nordeste de Minas. O que se pode deduzir dos dados e de parte das informações disponíveis é que esse processo aconteceu muito lentamente e que somente a partir do final do terceiro quartel do século XX a escolarização básica obrigatória começou a tomar o curso da universalização. Até então, ela havia sido restrita a uma minoria da população, principalmente no meio rural, onde essa população estava maciçamente concentrada. Há fortes indícios, no entanto, de que foi grande a participação dos colégios católicos na constituição de um ideário escolar e social na região, formando as professoras que vieram a ocupar os quadros do ensino público fundamental ao longo de quase todo o século XX. Isso, entretanto, não era uma peculiaridade dessa região. A história da educação em Minas reserva um lugar de destaque para as redes públicas de escolarização, tomadas como um modelo a ser seguido por outras unidades da federação, não sendo possível passar ao largo da gloriosa história do Instituto de Educação de Minas Gerais, quando se pretende evidenciar a formação de professores “tipo exportação”. Essa celebração, entretanto, deve ser bem datada se se quer que ela não continue encobrindo outros espaços de formação docente, que grande influência tiveram na definição de uma identidade cultural fortemente sintonizada com os ideais religiosos do catolicismo. Na virada do século XIX para o século XX, apesar de todas as reivindicações que já se faziam pela implantação de escolas primárias e secundárias, a educação 1 Professor Adjunto de Sociologia da Educação no Departamento de Ciências Aplicadas à Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. 2 Este texto é parte de uma pesquisa mais ampla realizada na região nordeste do estado de Minas Gerais e defendida como tese de doutorado na PUC/SP, em 2000, com o título “Igreja, Educação e Práticas Culturais: a medição religiosa no processo de produção/reprodução sociocultural na região do médio Jequitinhonha mineiro”. A pesquisa analisou alguns dos meios através dos quais a Igreja se articulou para enfrentar o processo de laicização da cultura pretendido pelo Estado republicano. Além de ampliar seu aparato burocrático-institucional, ela constituiu vasta rede de escolarização e ampliou seus domínios interferindo sistematicamente nas associações leigas. No caso do presente artigo, trata-se de pontuar a constituição de uma rede escolar de formação de professoras, destacando-se o Colégio Nossa Senhora das Dores, de Diamantina; o Nazareth, de Araçuaí; e o São Francisco, de Teófilo Otoni. 1 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS escolar em Minas era artigo de luxo, restrito às elites urbanas da capital e das principais cidades do interior. Por época da proclamação da República, as novas autoridades mineiras encontraram uma herança escolar, deixada pelo regime monárquico, caracterizada por Paulo Krüger Mourão, no pioneiro O Ensino em Minas no Tempo do Império, como um “triste panorama”, expressão da “decadência do ensino oficial” até então ministrado na província. Mourão traça um amplo quadro da situação educacional em Minas, principalmente na segunda metade do século XIX, pontuando questões relativas à legislação, à organização burocrático-institucional, aos recursos didático- metodológicos, à situação dos professores e, principalmente, à historicidade das principais instituições educacionais que ali se instalaram. Recheado de relatórios oficiais, ora bastante elogiosos, ora severamente críticos, transparece no seu texto a forte presença do ideário católico, tanto na montagem dos seus próprios estabelecimentos de ensino quanto na ação que exerceram os religiosos no contexto da escola oficial. Enquanto vigorou o padroado, não foram raros os empreendimentos educacionais de membros da Igreja, cuja manutenção foi transferida para o poder público, ao que parece muito mais por pressões de clérigos zelosos que por iniciativa de administradores competentes. Todos esses relatórios dão conta da precária situação das escolas, sobretudo no que se refere à formação e remuneração de professores. Ainda assim, apesar de críticas severas ao magistério, como a de um relator que afirmava ter-se aí “acastelado a ignorância e a inépcia” e que “a mesquinhez dos vencimentos abonados aos professores e insuficiência das garantias concedidas ao magistério, o afastaram das habilitações reais”, não apenas eram severas as normas para a contratação de professores, como muito rígidas eram aquelas que se referiam à sua manutenção no cargo. Essa situação, ao que parece, não passou por mudanças substantivas até o final daquele século XIX, uma vez que, em meados dos anos 80, apesar de já haver pelo menos oito escolas normais oficiais (Ouro Preto, Campanha, Diamantina, Montes Claros, Paracatu, Juiz de Fora, São João Del Rei e Sabará), muitas eram as reclamações de que elas “não têm produzido os resultados de que delas se esperavam” ou que “há quase 50 anos era superior o nível da instrução elementar na Província”. 3 3 Mourão, 1959, p 142-144. 2 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS Foi nesse contexto de precariedade da rede oficial de ensino, que teve lugar a maciça entrada de ordens e congregações religiosas, tanto masculinas quanto femininas, que se encarregaram da educação primária e da formação de normalistas e religiosos para atuarem na romanização do catolicismo em Minas Gerais e recristianização da sociedade mineira e brasileira. Entre 1890 e 1921, entraram 10 (47,6%) das 21 congregações religiosas masculinas que se instalaram em Minas entre meados do século XVI e o ano de 1992. No mesmo período, instalaram-se 20 (50%) das 40 congregações femininas. A maioria absoluta delas, tanto masculinas quanto femininas, era composta de congregações fundadas na segunda metade do século XIX. Entre 1890 e 1961, foram fundados 30 dos 31 colégios religiosos masculinos que se estabeleceram em Minas nos séculos XIX e XX. No mesmo período, foram fundados 72 dos 77 colégios religiosos femininos. 4 Esses colégios estavam localizados, em sua maioria, na região centro-sul do estado. Mas não deixa de ser notável a criação de três escolas de formação de normalistas no nordeste de Minas, no final dos anos 1920, nas cidades de Araçuaí, Itambacuri e Teófilo Otoni. Isso significou uma considerável ampliação de oportunidades para a realização do sonho de se tornar professora, uma vez que, em todo o nordeste mineiro, até então, estava limitado ao Nossa Senhora das Dores, de Diamantina, fundado por Vicentinas francesas em 1866. Escolarização no nordeste mineiro Ainda hoje, a região nordeste de Minas é a que tem a menor taxa de urbanização do estado, em torno de 50%. Até meados dos anos 50, essa urbanização era ainda muito menor, adquirindo pouco significado na conformação da vida cultural, muito ligada às atividades de cultivo da terra. Exceto em algumas cidades, como Diamantina e Serro, de tradição histórica ligada à mineração, e em algumas áreas, como o baixo Jequitinhonha e o vale do Mucuri, onde a pecuária desenvolveu-se como atividade inserida no mercado com outras regiões do país, predominou no restante da região um conjunto de atividades econômicas voltadas para a subsistência. 4 Lopes e Bicalho, 1993, pp. 51-52. Arlindo Rubert descreve a decadência das instituições religiosas masculinas e femininas no início do século XIX e sua revivescência a partir de meados desse século. (Cf. Rubert, 1993). 3 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS Associados a essa condição de vida rural os índices de escolarização eram extremamente baixos. Além de baixos, na média geral, eles apontam ainda para uma discrepância bastante acentuada entre o meio rural e o urbano e entre homens e mulheres. Mesmo considerando-se muito vago o termo “sabem ler e escrever” e as distorções que esses dados podem apresentar, em decorrência da presumível precariedade no seu levantamento, pode-se ter uma idéia bastante aproximada da relação que essa população tinha com a cultura escrita: quase nenhuma. A média geral dos que “sabem ler e escrever”, para o conjunto dos municípios tomados como referência, era 16,5%, isto é, menos de um quinto da população. Excetuando-se Diamantina, com uma média de 37%, todos os outros municípios tinham, em 1950, uma média abaixo de 25% de alfabetizados. Mesmo Araçuaí, Pedra Azul e Teófilo Otoni, que eram importantes centros urbanos locais, tinham apenas 22% da sua população alfabetizada. Avançando-se para além dos números que expressam uma média, vamos encontrar em alguns detalhes as marcas de profundas discrepâncias. As mais visíveis estavam entre os índices de escolarização da população que habitava os pequenos núcleos urbanos e os da população rural. Enquanto no meio urbano, 48% da população se inscrevia no conjunto dos que “sabem ler e escrever”, no meio rural esse índice era de apenas 10%, isso sem esquecer que menos de 18% dessa população se encontrava em cidades ou povoados. Salta aos olhos o fato de que quanto mais baixo o índice de urbanização, mais alto era o índice de analfabetismo. Os quatro municípios que tinham mais de 90% da sua população no meio rural (Malacacheta, Minas Novas, Novo Cruzeiro e Turmalina) contavam aí menos de 7% de alfabetizados. Enquanto isso, os quatro municípios que tinham menos que 75% da sua população no meio rural (Diamantina, Jequitinhonha, Pedra Azul e Teófilo Otoni) contavam, na zona rural, com mais de 13% na condição de alfabetizados. Neste caso, Diamantina se destacava, porque ostentava um índice de 23% de escolarização no meio rural. Quanto à escolarização de homens e mulheres, são notáveis as diferenças, tanto no meio urbano quanto no rural. Em todos os municípios consultados, exceto na área urbana do Serro, os homens eram mais escolarizados que as mulheres. No meio urbano, 53% dos homens eram escolarizados, contra 44% das mulheres. Quanto ao meio rural, eram apenas 12% os homens que sabiam ler e escrever e menos de 8% das mulheres. Aqui, mais uma vez, local do domicílio e questão de 4 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS gênero se cruzam. Quanto maior a proporção da população rural sobre a urbana, menor é o índice de escolarização feminina. Em Malacacheta, Minas Novas, Novo Cruzeiro e Turmalina, municípios com mais de 90% de sua população no meio rural, menos de 5% da população feminina era alfabetizada. Em Diamantina, município com maior taxa de urbanização, 21% das mulheres do campo tinham essa habilidade, em Araçuaí elas eram 11% e em Pedra Azul, 10%. 5 Esses dados se referem ao ano de 1950. Portanto, no início do século esses indicadores eram, seguramente, ainda mais desfavoráveis. Ao final do século XIX, se o estado de Minas era mal servido de escolas, na sua porção nordeste elas eram praticamente inexistentes, principalmente as de grau médio, ou pós-primário. Muitas das escolas criadas nessa região tiveram vida curta e boa parte da instrução era ministrada por professores “autônomos”, dentro da modalidade de “aulas avulsas”, tanto nas cidades quanto nas fazendas. Mourão informa sobre a criação, em 1844, de uma cadeira de Latim e Poética em Minas Novas, centro histórico da região. Pouco tempo depois, em 1852, o professor interino de Latim, Rafael de Matos Paixão “pleiteou gratificação para lecionar Francês, tendo obtido opinião favorável do Diretor Geral da Instrução.” Nesse mesmo ano, foram criadas as cadeiras de Francês, Geografia, História, Filosofia e Retórica. Em 1854, o professor Rafael Paixão foi removido para Conceição do Mato Dentro, assumindo o seu lugar o professor José Bento Nogueira Júnior, que aí lecionou até pelo menos 1861. Em 1862, foi extinta a cadeira de Latim e Francês “por falta de freqüência”. 6 Ainda segundo Mourão, em 1867, foi criado um Externato em Minas Novas, que foi instalado em 10 de janeiro de 1868, “havendo aí 1 diretor e cinco cadeiras, sendo, uma de Latim, uma de Francês, uma de Inglês, uma de Aritmética, Álgebra, Geometria e Trigonometria e uma de História e Geografia.” Poucas informações há sobre o Externato, mas parece que não chegou a exercer qualquer tipo de influência. O local do seu funcionamento teria sido um sobrado do major Marcelino José Rodrigues e Silva, “que prontificou-se a ceder ao estabelecimento doze cadeiras de palhinha, quatro mesas e oito bancos, comprometendo-se ainda a completar a mobília que faltasse para o serviço do Externato.” Em agosto de 1867, foi nomeado Diretor o Reverendo José Pacífico Peregrino da Silva, cujo nome havia sido proposto pela Câmara de Minas Novas. Ele seria exonerado um ano depois. 5 6 Ferreira, 1958. Mourão, 1959, p. 134 e 312. Cf., também, Halfeld e Tschudi, 1998, pp. 116-118. 5 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS Se for correta a informação de Mourão, segundo a qual, em 19 de dezembro de 1868, foram dispensados os inspetores dos Círculos Literários dos cargos de diretores dos externatos de Minas Novas e Campanha, “visto estarem vagas as cadeiras, concluindo-se daí que esses estabelecimentos deixaram de funcionar”, deduz-se então que o Externato de Minas Novas talvez nem tenha chegado a funcionar. De acordo com relatório que a Assembléia Legislativa Provincial apresentou, em 1873, ao Presidente da Província, não havia sido instalada a Escola Normal de Minas Novas “por depender a sua criação da do externato, ao qual deve ser anexada”. Ele foi formalmente fechado por época da proclamação da República, juntamente com os de Campanha, Diamantina, Paracatu, São João Del Rei e Sabará, levando consigo o sonho de criação da Escola Normal. Já no período republicano, em 1897, foi finalmente criada a Escola Normal de Minas Novas, cujas atividades foram suspensas em 3 de julho de 1907. Em 1930, foi frustrada nova tentativa de reabertura da Escola Normal. Em 1894, fora fundada a Escola Normal de Araçuaí, que durou também apenas 10 anos. Se existirem, ainda estão para serem encontrados documentos a respeito de ambas. Até então, as informações sobre elas são muito escassas. O mesmo se pode dizer com relação ao Ateneu Fortalezense, fundado em 1899 pelo professor Hugolino de Melo Matos, em Pedra Azul, e que durou menos de cinco anos. Dentre todos os municípios da região, Diamantina era o que tinha a mais regular rede de escolas. Cidade de importância histórica, em decorrência da exploração dos diamantes, continuou como centro cultural da região ainda por um longo tempo, mesmo depois que a atividade mineradora perdeu a sua relevância econômica. Um dos principais cartões postais da cidade, o velho mercado de Diamantina, com sua praça ocupada por tropas e tropeiros de toda a região, continua sendo uma referência histórica dessa relação da cidade com o nordeste mineiro. Era para lá que se dirigiam os filhos e filhas “das gentes abastadas” da região que tinham interesse pela escolarização da prole. Enquanto os meninos iam principalmente para o seminário do Sagrado Coração de Jesus e o Colégio Diamantinense, as meninas iam para o Colégio Nossa Senhora das Dores e a Escola Normal. Em termos de instrução, Diamantina se destacava num panorama regional muito pouco propício à difusão da cultura letrada. Já no início do século XIX, o refinamento cultural da sua população era elogiado por todos os viajantes 6 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS estrangeiros que deixaram suas impressões de viagem sobre o lugar. Saint-Hilaire, por exemplo, diz que encontrou no Tijuco “mais ilustração que em todo o resto do Brasil, mais gosto pela literatura e um amor vivo pela instrução”. Impressões semelhantes foram registradas pelos ingleses John Mawe e Richard Burton, pelos alemães Spix e Martius e por um outro francês, Alcide d’Orbigny. 7 Mesmo que se considere bastante romanceada a visão de todos eles, é fato notável que os indicadores educacionais de Diamantina em 1950 se destacavam relativamente aos da região. Ao longo do século XIX, várias foram as escolas que se instalaram em Diamantina, de onde saíram vários ilustres e influentes homens públicos de expressão regional, estadual e nacional, tanto na esfera política quanto na religiosa. Ainda nos tempos do Império, foram criados o Ateneu São Vicente de Paulo, o Externato e Colégio Santo Antônio, a Escola Normal e, principalmente, o Seminário Episcopal, internato masculino dirigido pelos Lazaristas, e o Colégio Nossa Senhora das Dores, internato feminino dirigido pelas Irmãs Vicentinas. O Externato funcionou a partir dos anos 1860, sendo extinto com a proclamação da República. A Escola Normal não teve vida longa, funcionando entre 1879 e 1904, mas exerceu importante papel inclusive concedendo o diploma de normalista às egressas do Colégio Nossa Senhora das Dores. 8 Já o Ateneu foi a célula mater do Seminário Episcopal que, por sua vez, teve íntima relação com o Nossa Senhora das Dores. Segundo Mourão, o Ateneu São Vicente de Paulo de Diamantina foi um dos mais importantes estabelecimentos de formação humanista da província no final do século XIX. Ele não só permitiu a formação de muitos jovens do norte e nordeste da província, mas serviu de “sementeira de onde mais tarde germinaria o Seminário daquela cidade”. Funcionando desde os anos 50, a ele estão ligados os nomes de Serafim José de Menezes, presidente da Sociedade Promotora da Instrução, e de João Antônio dos Santos, primeiro bispo de Diamantina. 7 Cf. Barbosa, 1983; Almeida, 1983. O fechamento da Escola Normal pegou de surpresa a direção do Nossa Senhora das Dores. Os pais começaram a retirar suas filhas “visto não haver mais o vantajoso privilegio da prestação de exames e consequente validade dos titulos que assim deixaram de existir”. O problema somente foi resolvido no ano seguinte, quando, por interferência do novo bispo diocesano, Dom Joaquim Silvério de Souza, e de outros membros do corpo eclesiástico, um dos quais era membro do Congresso Legislativo estadual, “conseguiu a Irmã Michel uma disposição de lei equiparando o Collegio das Dores à Escola Modelo da Capital, disposição, esta, acceita e sanccionada pelo poder competente em data de 15 de setembro de 1905”. (Rocha, 1919, p. 32.) 8 7 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS Em 1853, Serafim Menezes solicitou do governo o pagamento, pelos cofres públicos, dos professores do Ateneu. Apesar dos amplos elogios ao desempenho do educandário, esse pedido não foi atendido, porque ele não se enquadrava no regulamento estabelecido pelo governo provincial quanto à concessão de auxílio financeiro. Em 1854, ano da criação do bispado de Diamantina, nova representação foi enviada às autoridades, “solicitando uma subvenção de cinco contos de réis anuais dos cofres provinciais, como auxílio ao Ateneu São Vicente de Paulo.” Mais uma vez foi elogiado o seu desempenho, mas negado o pedido, uma vez que, em função do padroado, as autoridades já previam maiores despesas futuras com a criação do novo bispado e, conseqüentemente, de um seminário. 9 Colégio Nossa Senhora das Dores Como primeiro bispo de Diamantina, a influência de Dom João Antônio dos Santos foi muito além da esfera propriamente eclesiástica, em que ele atuou como um dos “bispos reformadores”, engajado no movimento de romanização da Igreja Católica. Além do seminário, voltado para a formação teológica, e das Missões Diocesanas Permanentes, voltadas para a difusão da fé cristã, ele foi o principal responsável pela criação do Colégio Nossa Senhora das Dores, saudado por Aires da Mata Machado Filho como o lugar “de onde nos vem a Fé verdadeira e o modelo de fina educação de quem falava francês correntemente (...) cuja tradição continua na sóbria elegância e no amor à correção de linguagem das senhoras e moças diamantinenses”. 10 O Colégio Nossa Senhora das Dores foi um dos mais importantes educandários mineiros na virada do século e, sem dúvida alguma, o mais importante de toda a porção norte-nordeste do estado de Minas e do sul da Bahia. Muito influente em termos culturais e mais duradouro do que qualquer outra instituição de 9 Segundo Carlos Roberto Jamil Cury, “O Padroado era uma instituição ibérica pela qual a Igreja Católica e as monarquias luso-hispânicas estabeleciam tratados e alianças entre si. Por ele, a permuta de favores consistia nos privilégios outorgados à Igreja, entre os quais o reconhecimento da religião católica como religião oficial, e em contrapartida, a Igreja atribuía à monarquia o poder de controlar e fiscalizar uma série de iniciativas (que, hierarquicamente falando, caberiam à própria instituição religiosa). Desse modo, até a nomeação dos bispos dependia da autoridade imperial e os clérigos seculares eram de fato funcionários públicos. O imperador provia cargos eclesiásticos em troca de pagamento das atividades eclesiásticas exercidas pelos clérigos. Por outro lado, uma série de cargos públicos (que, politicamente falando, caberiam à instituição política) tinham como précondição de investidura o juramento de fé. É nesse sentido que havia o juramento à fé católica exigido dos professores que assumissem cadeiras de ensino nos estabelecimentos oficiais.” (Cury, 1993, p. 22.) Desde a Contra-Reforma a criação de uma diocese supunha a criação de um seminário. 10 Machado Filho, 1983, p. 127. 8 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS ensino regular, o Nossa Senhora das Dores foi, certamente, durante mais de cem anos, a maior escola de formação de professoras dessa região. Fundado em 1866 e entregue aos cuidados de irmãs Vicentinas francesas, o famoso Colégio da Rua da Glória é um dos principais monumentos arquitetônicos de Diamantina. O passadiço que liga as duas casas de um lado ao outro da rua é um dos principais cartões postais da cidade e foi construído depois da fundação do Colégio. Seu objetivo era dar resposta a uma questão de ordem prática: impedir que as internas atravessassem a rua ao passarem de uma casa a outra, para que não vissem a rua e para que não fossem vistas no seu cotidiano, para se livrarem, enfim, dos “efeitos perniciosos” do mundo exterior. Os rigores da moralidade das Vicentinas tentavam impedir qualquer margem de liberdade, quer dentro quer fora do educandário, enquanto as internas estivessem sob os seus cuidados, o que deixou profundas marcas na memória de todas as entrevistadas que deram depoimentos sobre as suas experiências no Nossa Senhora das Dores. 11 Vários cronistas diamantinenses celebram o fausto e as glórias que teriam tido lugar nas instalações que abrigaram o Colégio. Dentre eles, o mais vibrante foi o cônego Severiano de Campos Rocha, que, em 1918, publicou suas Memórias por época da comemoração do primeiro cinqüentenário do Internato. Seu relato fala do “aformoseamento da via pública em que se acha construído” o passadiço, do esplendor dos embelezamentos destinados ao prédio mais antigo como jardins, chafarizes, bosques e alamedas, dos seus ilustres moradores como governadores, intendentes e o bispo e, principalmente, dos ilustres hóspedes que abrigou e das magníficas festas que nele tiveram lugar, “preciosas relíquias do passado”, diz ele, lembranças das “priscas eras de luxos, fidalguias e grandezas mundanas”. 12 Além de fundar um seminário diocesano e uma escola de formação docente, Dom João Antônio se interessou, também, pela criação de uma instituição que acolhesse, amparasse e educasse meninas órfãs, “desherdadas da sorte e da fortuna”, como assinalou o cônego Severiano Rocha. Num ambiente em que “diamantes e impiedades caminhavam juntos”, como afirma Laura de Mello e Souza, riqueza e miséria, opulência e escassez, proteção e abandono também caracterizavam a paisagem. 11 Em Igreja, Escola e Comunidade (Souza, 2005) destaco as falas das diversas ex-professoras entrevistadas em Turmalina, Araçuaí, Minas Novas e Jequitinhonha. 12 Rocha, 1919, pp. 09-11. 9 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS E esse era um dos grandes problemas a serem enfrentados pelas educadoras, uma contradição brutal entre o ideal e o real, o discurso e a prática, a intenção e o resultado. A um elevado propósito de cultivar a boa educação, com o refinamento nos traços culturais e nos gostos individuais, principalmente no que se refere à educação feminina, contrapunha-se um universo social marcado por precaríssimas condições materiais e ideais de existência, o que fazia de grande número dessas mulheres presas fáceis de um mundo de “desordens”, de devassidão moral e corrupção dos valores mais sagrados ao ideal religioso, como prostituição, concubinato, aborto, abandono de crianças etc. Essas contradições estavam presentes na própria concepção do projeto pedagógico do bispo reformador. Sob o sagrado manto da boa intenção de proteger as “órfãs desvalidas” escondia-se também o sério problema da segregação social, reproduzido pela instituição que a deveria combater. As órfãs eram recolhidas em nome da dedicação e do amor de que teriam sido privadas em casa, mas foram transformadas em trabalhadoras manuais de cujo trabalho dependeu, por muito tempo, a possibilidade de as pensionistas cultivarem o espírito. 13 E essa não era apenas uma questão de diferença de opção, mas de franca desigualdade de oportunidades educacionais a que estavam submetidas as órfãs. Questões dessa natureza constituem objeto de estudo e crítica de muitos pesquisadores dos nossos dias. 14 Na virada do século XIX para o XX, entretanto, os religiosos satisfaziam-se em prestar assistência às socialmente desvalidas e formar professoras, sem se preocuparem em questionar a organização da estrutura social. No entusiasmo da celebração dos cinqüenta anos do Nossa Senhora das Dores, o cônego Severiano tinha o propósito não de realizar uma crítica aos problemas enfrentados, mas de engrandecer o pioneirismo das irmãs, dos padres e dos bispos que por ele trabalharam, elogiar as suas iniciativas e empreendimentos no campo econômico, fazer uma apologia do seu trabalho pedagógico e social e, sobretudo, enaltecer o papel que o educandário exercia como entidade que cultivava, regulava e difundia os princípios morais e os valores do catolicismo. O desfecho do seu texto é vigoroso no elogio do educandário. Da resenha que acabo de fazer, depois de bem pesada na fiel balança da rectidão e da justiça, força é concluir que as mais de cinco mil educandas, 13 Martins e Martins, 1993. Em Um Toque de Gênero (Muniz, 2003) Diva Muniz analisa exaustivamente esse ideário de formação pedagógica da mulher e da professora. 14 10 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS precedendo os necessarios conhecimentos, tem o Collegio habilitado, umas a ganharem a vida honesta e honradamente no magisterio publico ou particular; outras que a tanto não subiram, a obterem facil collocação em casas de boas familias, ou se tornarem excellentes esposas e mães exemplares, tendo todas o espirito e o coração solidamente apparelhados e armados, aquelle com as luzes da sciencia, este com o broquel da Religião e da virtude, que dia e noite as defende e as guarda contra as astuciosas investidas e emboscadas do anjo das trevas, inimigo de todo bem, e amigo de todo mal. 15 Há amplos indicadores que apontam a relevância da participação do Colégio Nossa Senhora das Dores na formação de um grande número de normalistas que institucionalizaram a escola na região. E não se trata apenas de reconhecer o significado quantitativo desse trabalho pedagógico, mas, sobretudo, qualitativo. Mesmo criticando os rigores aos quais se submetiam no interior do internato, as entrevistadas reconhecem que o ensino ministrado fez delas profissionais respeitadas em todos os lugares onde atuaram como professoras. Esse reconhecimento é comum entre as entrevistadas que se formaram nos outros colégios então criados. Colégio Nazareth Foram Irmãs Franciscanas Penitentes Recoletinas Holandesas quem fundaram o Colégio Nazareth em Araçuaí, cidade que fica a 330 km de Diamantina, a meio caminho entre o alto e o baixo Jequitinhonha. 16 Quando elas chegaram à cidade, em 1926, o Nossa Senhora das Dores já era uma instituição consolidada, com 60 anos de tradição. Cabia às Franciscanas não apenas criar um novo educandário, mas torná-lo uma alternativa atraente às alunas que viajavam centenas e centenas de quilômetros por um diploma de normalista. E, de fato, a memória do 15 Rocha, 1919, p. 41. A Congregação das Irmãs Franciscanas Penitentes Recoletinas foi fundada em 1623, em Limburgo, na Bélgica, por Madre Joana de Jesus (1576-1648), cujo lema era “pureza de coração, pobreza de espírito, caridade mútua e mortificação do corpo”. A Casa Mãe acha-se em Oirschot (Holanda). No Brasil, foi criado um Noviciado anexo ao Instituto Nossa Senhora do Carmo, em Barroso, Minas Gerais. “O fim essencial da Congregação é a santificação de seus membros; pois a Congregação Religiosa deve ser antes de tudo, sobretudo e sempre um cenáculo de santidade. Porque a santidade é o alicerce! O fim secundário é a educação da juventude, trabalho nos hospitais, trabalhos domésticos, costuras e diversos outros afazeres.” (Congregação das Irmãs Franciscanas Penitentes Recoletinas, Brochura publicada em Araçuaí, em 1961.) Dentre as mais de 250 congregações listadas pelo Dicionário Enciclopédico das Religiões, 39 são Franciscanas. Porém, a Congregação das Irmãs Franciscanas Penitentes Recoletinas não se encontra aí listada. As primeiras Irmãs a virem para o Brasil foram as que fundaram os Colégios em Araçuaí e Teófilo Otoni. 16 11 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS Colégio Nazareth é bem mais favorável que a que ficou do Nossa Senhora das Dores. A história do Nazareth é, em muitos aspectos, semelhante à do Nossa Senhora das Dores. Ele também foi fruto da iniciativa de religiosos, que haviam assumido o comando da diocese de Araçuaí doze anos antes. Sob a justificativa da necessidade de atender às precárias condições educacionais da região, mas muito preocupado, também, com a situação de um rebanho católico muito distanciado das ordenações de Roma, Dom Serafim Gomes Jardim, primeiro bispo da diocese, foi pessoalmente a Oirschot, na Holanda, tentar contratar algumas religiosas para trabalhar no nordeste mineiro. Em sua companhia, estava o seu vigário geral, o franciscano holandês Frei José de Haas, que viria sucedê-lo no comando da diocese, e que tinha uma irmã na Congregação das Franciscanas de Oirschot. Desse contato resultou o acordo quanto à partida das seis primeiras religiosas para a região. No dia 09 de março de 1926, as Irmãs deixaram a clausura e tomaram o navio “Flandria” no porto de Amsterdã rumo ao Rio de Janeiro, onde chegaram dezoito dias depois. Daí partiram em outro barco para Caravelas, no sul da Bahia, onde pegaram o trem para Teófilo Otoni, indo um pouco além até a estação de Queixada, onde uns tropeiros as esperavam para conduzi-las até Araçuaí. Chegaram no seu destino no dia 23 de abril de 1926, um mês e meio depois da partida de Oirschot. O relato da viagem é um misto de entusiasmo e agonia, de deslumbramento e decepção, de apreensão e angústia, expressões do primeiro contato com um mundo inteiramente novo e desconhecido. Irmã Amália fala da “vida de princesas” que tiveram fora da clausura; da grandiosidade do mar, “com suas ondas espumantes” e a visão da “redondeza da terra”; da “doença do mar”, que provocava a “revolta do estômago” e desespero nas suas colegas, pois “não havia bastante bacia para vomitar”; do encantamento com as maravilhas do Rio de Janeiro, do impacto da chegada ao sul da Bahia e da entrada no nordeste mineiro. São suas as palavras que se seguem: Sábado de Aleluia chegamos em Caravelas. Que pobreza, que casas tristes!... Parecia que o povo todo estava esperando o navio. Esta vista me deu uma saudade da Holanda... era demais! Frei José se ocupava das malas e demorou muito. Sentimos muito, de não poder dizer nada a ninguém. Era já bem tarde quando fomos ao nosso Hotel, um sobrado. Subimos uma escada muito alta e íngreme, cheia de buracos feitos pelos ratos. Tudo estava sujo aos nossos olhos. Um só toilette, onde não era nem possível pisar no chão e 12 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS o vaso não podia usar. Imagine com nossa roupa comprida. Como resolver essas coisas dificílimas! Com muita dificuldade arranjamos um vaso noturno. Coitado do Frei José, que com certeza ficou decepcionado com estas Irmãs Missionárias. 17 Quem faz um passeio a uma terra estranha, onde a língua e os hábitos diferentes da população caracterizam traços culturais inteiramente desconhecidos, experimenta a sensação da novidade, encanta-se ou decepciona-se com o que vê, mas em caso de desconforto sente-se aliviado por se tratar de uma situação passageira. É diferente, entretanto, a situação de quem deixa definitivamente o seu universo cultural e é forçado a mudar seus hábitos e adaptar-se ao “exótico”. Quem deixa o inverno europeu, por exemplo, e experimenta o verão equatorial sujeita-se ao desconforto de um clima sufocante e impiedoso no trato do corpo. No século XIX, esse problema vinha acompanhado da dúvida de que fosse possível uma civilização nos trópicos. Como diz João Camilo de Oliveira Torres, de forma jocosa, em sua História de Minas Gerais, “a questão dos trópicos” era um sério problema a ser enfrentado por aqueles que conheciam apenas um tipo de civilização, “aquela de casas quentes e fechadas, homens de sobrecasaca e cartola, mulheres carregando toneladas de roupas e afogadas em espartilhos”. 18 Todos os imigrantes nórdicos que vieram para o Brasil tropical certamente experimentaram essa sensação. Na segunda metade do século XIX, muitos europeus desarrumaram, no nordeste mineiro, as suas malas cheias de espartilhos, cartolas, fraques e sobrecasacas, alguns dos quais foram usados para se divertir com os índios, como descreve muito bem Cléia Weyrauch em Pioneiros Alemães de Nova Filadélfia. 19 Desde o início do século XX, os irmãos da Ordem dos Frades Menores ali enfrentavam calor e chuva com seus longos hábitos Franciscanos. Entre esses imigrantes alguns morreram, vítimas de febres, muitos não resistiram e voltaram e muitos outros ainda tiveram que conviver com a saúde debilitada. Para as Irmãs que vieram da Holanda para Araçuaí tudo isso foi sem dúvida um suplício, inclusive em decorrência dos pesados e sufocantes hábitos que tinham que usar. Mas havia muito mais e é importante falar das experiências concretas vividas por esses personagens que justificavam seus sacrifícios em nome da difusão da fé. Oriundas de uma “classe média” européia do início do século e habituadas à 17 Pequena História da Congregação..., 1995, p. 11. Torres, 1980, vol. 1, p. 65. 19 Weyrauch, 1997. 18 13 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS clausura, muito distanciadas dos problemas mundanos, a fim de se preservarem do “espírito corruptor do mundo”, essas Franciscanas parecem ter experimentado, pela primeira vez, o real significado da opção pelo voto de pobreza. No nordeste mineiro elas se encantaram com a “hospitalidade brasileira”, mas não puderam se livrar do desconforto do novo convívio num lugar onde a pobreza era gritante, muitos dos traços culturais da população eram derivados dessa condição miserável e, para elas, “tudo era novidade”. A viagem de trem para Teófilo Otoni foi a aula inaugural que elas tiveram sobre a vida na região. O cicerone Frei José de Haas ia apontando e explicando cada coisa que lhes chamava a atenção: “casas, gado, bananeiras, laranjeiras, jumentos, burros”, a venda de frutas em cada estação, a cinza crepitante que vinha da caldeira da locomotiva, o leite tirado no meio do pasto e tomado ali mesmo. Tudo isso marcou profundamente a personagem que, 55 anos depois, registrou por escrito o que a memória guardou daqueles dias de abril de 1926. Mais ou menos 11 horas da noite o trem parou em Urucu e resolveram de não continuar. Frei José ia procurar hospedagem. Estava muito escuro. Arranjaram para nós casas diferentes. Irmã Guilhermina e eu passamos numa praça cheia de lama em plena escuridão. Entramos na casa. Lá morava um casal com uma filha de dois anos, mais ou menos. Os pais já estavam dormindo, mas cederam sua cama para nós duas, sem contudo trocar lençóis ou cobertor. Devíamos admirar tamanha generosidade. Sentimos que a cama ainda estava quente. A nossa generosidade era aceitar essa situação. Bem cansadas, dormimos logo. 20 No dia seguinte, continuaram viagem cedo, “cada uma com sua história noturna”. Ficaram em Teófilo Otoni por uns 15 dias, até que as chuvas permitissem continuar rumo ao destino. Naquela época, o ponto final da linha de trem era Queixada, uma estação que, partindo do litoral rumo ao interior, ficava pouco depois de Novo Cruzeiro. De Queixada a Araçuaí, o percurso foi feito a cavalo, uma surpresa a cada trotada, uma novidade a cada curva, uma aventura inesquecível para as missionárias. Aprenderam a cavalgar, caindo vez ou outra; encantaram-se com os vaga-lumes, que não conheciam; perderam-se pelo caminho, em momentos de ousadia; estranharam a ausência de toilette, quando seus anfitriões faziam do quintal o banheiro; lamentaram as precárias condições habitacionais e se assustaram com os percevejos. Mas enfrentaram em pé de igualdade a fama de 20 Pequena História da Congregação..., 1995, p. 13. 14 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS comilões que tinham os mineiros: “Contra o nosso costume holandês, de não deixar nada no prato, pecamos gravemente.” 21 A chegada de padres e irmãs religiosas a esses povoados do interior era sempre festejada com muito entusiasmo. São inúmeros os relatos que falam da presença maciça e do contentamento dos moradores, do foguetório, da banda de música, dos discursos públicos de boas vindas, o que expressa realmente um gesto de marcante receptividade com que eram tratados esses religiosos ao se instalarem nas mais diversas localidades. No relato de Irmã Amália aparecem cenas da mais profunda admiração e curiosidade que despertavam por onde passavam. Alguns queriam apenas ver as Irmãs, outros se prontificavam a ajudá-las, outros, ainda, principalmente pessoas idosas, beijavam-lhes as mãos e pediam bênçãos, gestos que elas encaravam às vezes com naturalidade, às vezes com certo incômodo, às vezes simplesmente com incontido e indisfarçável sorriso de espanto. Essa gente simples sempre manifestava, diante dos estrangeiros, muito encanto e admiração. Todos esses gestos em muito contribuíram para que os visitantes dessa região sempre se referissem à hospitalidade, à generosidade e ao acolhimento com que eram recebidos pela população. Pouco tempo depois de chegar a Araçuaí, Irmã Amália, que trabalhou na região durante 48 anos, já tinha montado suas “adoráveis coleções de cobras, borboletas e orquídeas”. Em 1981, quando escreveu suas memórias, encerrou-as elogiando a hospitalidade do povo com quem conviveu. “Como é fácil lidar com o brasileiro: hospitaleiro, religioso, satisfeito e sabe tratar bem os estrangeiros...” Escreveu pouco, apenas 16 páginas, deixando a justificativa. “Podia escrever mais, mas estender tiraria o gosto de o ler.” 22 Esse primeiro grupo de Irmãs chegou a Araçuaí em abril de 1926, “para se dedicarem nessa cidade à educação e instrução da juventude”. 23 No dia 10 de junho daquele ano já abriam uma escola mista diurna para crianças de 06 a 15 anos, com o nome de Casa de Nazareth. Em concorrida solenidade de inauguração, Frei José de Haas “que incansavelmente lutou durante anos para ter Irmãs em sua paróquia”, celebrou missa, benzeu as instalações e fez um “eloqüente discurso”, enaltecendo a 21 Pequena História da Congregação ... 1995, p. 16. Relatório da viagem das seis primeiras Irmãs ... 1981, p. 16. 23 Fundação do Collegio Nazareth ... 1961, p. 75. 22 15 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS “grande significação do novo Colégio Nazareth para a cidade e toda a região”. Nesse primeiro dia de aulas, além das alunas, outros adultos curiosos ocuparam as salas querendo ouvir as irmãs. Isso deixou Irmã Amália muito embaraçada, o que exigiu a interferência de Frei José. Elas sequer falavam a língua local quando chegaram. No ano seguinte, começa a história do Internato do Colégio Nazareth, com 19 alunas. Durante vários anos epidemias de varíola, coqueluche e gripe interferiram no calendário escolar. Isso não impediu, entretanto, que, já em 1928, houvesse festa de encerramento do ano letivo, com exposição de trabalhos manuais feitos pelas alunas ao longo do ano, o que atraiu a atenção de grande número de pessoas e se tornou parte da rotina de fim de ano da escola. As sucessivas exposições desses trabalhos sempre foram destacadas pelas cronistas do Colégio, e muito boas lembranças deixaram em várias de suas ex-alunas entrevistadas. Elas se transformaram em importante espaço de ligação entre o Colégio e a comunidade. Em pouco tempo o Colégio Nazareth consolidou a sua boa imagem junto à população. O número de internas e externas aumentou muito já nos primeiros anos de funcionamento. O projeto arquitetônico do colégio, feito pelas próprias irmãs, despertou o interesse pela capacidade empreendedora das estrangeiras. Depois de intensa fiscalização por parte dos agentes do Estado, pelo decreto n0 9.713, de 20 de setembro de 1930, o Colégio Nazareth, com os cursos Primário e Normal, foi equiparado à Escola Normal do Estado, o que passou a servir, a partir de então, como fundamental peça publicitária. Em 1931 foram diplomadas as três primeiras normalistas: Adélia Chalub, Belarmina Ferreira e Maria Pereira de Sousa. Entre 1931 e 1985 mais de 1.300 normalistas receberam o diploma no Nazareth. Seu objetivo principal era promover a “educação de meninas, baseada na religião e moral catholica”, cujos maiores cuidados das Irmãs era “dirigir as inclinações das alumnas para o bem, inspirandolhes o espirito de trabalho, de economia e de ordem.” 24 Colégio São Francisco Além do Nazareth, em Araçuaí, dois outros colégios religiosos foram fundados na região, na mesma época. Um deles foi o Colégio Santa Clara, de Itambacuri, 24 Prospecto do Collegio “Nazareth”, 1930. 16 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS cidade fundada a partir de um aldeamento indígena, em 1873. A pedido, e pela interseção dos freis capuchinhos Serafim de Gorizia e Ângelo Sassoferrato, fundadores do aldeamento e da cidade, foi aí criada, em 1907, a primeira casa das Clarissas Franciscanas Missionárias do Santíssimo Sacramento. Nesse mesmo ano, elas fundaram um colégio para “abrigar crianças e jovens indígenas” e, ao mesmo tempo, um “internato e externato para as filhas dos colonizadores de Itambacuri e Teófilo Otoni”. Vinte anos depois, com o lema “Scientia et Virtus”, o Santa Clara foi equiparado à Escola Normal Modelo. Na sua primeira turma, de oito normalistas, havia duas alunas de Araçuaí. 25 Outro colégio religioso que grande relevância teve na formação de várias gerações de estudantes e professoras no nordeste mineiro foi o São Francisco, de Teófilo Otoni, fundado pelas mesmas Franciscanas que fundaram o Nazareth, em Araçuaí. Em 1923, havia sido criada na cidade a Ordem III da Penitência de São Francisco, pelo comissário provincial dos padres holandeses no Brasil, Frei Paulo Stein. Pouco tempo depois, sob a direção do Frei Dimas de Kok, foi empreendida uma campanha para a criação de um estabelecimento de ensino secundário para meninas e moças, que ficasse sob a responsabilidade de uma Congregação religiosa. Depois de contatos diversos com outras Congregações religiosas, as Irmãs Franciscanas Penitentes Recoletinas, de Oirschot, Holanda, se declararam prontas a entrarem em negociação acerca da fundação da referida escola em Teófilo Otoni. Porém, não atenderiam imediatamente a convocação, uma vez que já haviam se comprometido com a fundação do Colégio de Araçuaí. Em 1926, Dom Serafim Gomes Jardim, Bispo de Araçuaí, autorizou aos padres Franciscanos, nomeadamente ao Frei Dimas, a fundar um colégio feminino em Teófilo Otoni e a entregá-lo à administração da “Congregação das Irmãs Franciscanas de Oirschot, uma vez que não houvesse oposição da parte de seus superiores regulares e de acordo com as prescrições canônicas e Estatutos Diocesanos, e ainda de modo que a Mitra Diocesana ou a Paróquia de Teófilo Otoni não tivesse a menor responsabilidade econômica.” 26 Em agosto de 1926, Frei Dimas registrou a declaração de que se responsabilizaria pela viabilização dos recursos necessários à edificação do Colégio 25 26 Sobre a história do Colégio Santa Clara ver Rodrigues, 1986. Pequena História da Congregação... p. 25. 17 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS de forma a não onerar em absolutamente nada a Mitra Diocesana. Frei Dimas faleceu imediatamente depois, mas a negociação já havia definido a vinda de algumas Irmãs. No dia 10 de março de 1928, o Colégio foi inaugurado, começando a funcionar com 4 séries do ensino primário e o 10 ano do curso de adaptação. Mesmo precariamente, começou a funcionar, também, o internato, com 4 alunas. Em 1934, o Colégio São Francisco teve o seu curso Normal reconhecido pelo Governo mineiro. O internato funcionou até 1967, quando a ampliação da rede pública de ensino ampliou também as possibilidades de escolarização na região. Em dezembro de 1972, o tradicional Colégio São Francisco, depois de 44 anos ininterruptos de funcionamento, encerrou suas atividades. Na mesma época foram encerradas as atividades de um outro colégio das Irmãs Clarissas e, em 1980, o Colégio São José, dos Franciscanos foi entregue ao Estado. 27 Era um fim melancólico para as instituições de ensino que, durante quase todo o século XX, foram algumas das poucas oportunidades de escolarização da infância e da juventude daquela região. Ainda está para ser escrita a história do São Francisco, assim como está quase que totalmente a descoberto a história da educação da enorme quantidade de municípios do nordeste mineiro, em muitos dos quais atuaram as normalistas formadas nesses internatos religiosos. Conclusão Os internatos religiosos, de modo geral, tinham como objetivo desenvolver hábitos de boa conduta, visando formar um modelo ideal de mulher, boa mãe e boa esposa, ordeira, obediente e disciplinada. Os educandários femininos católicos assumiam essa atividade com muito vigor, sobretudo porque, à época, a maternidade e o lar eram concebidos como o espaço próprio da mulher. Mas esses internatos não se resumiam a isso, naturalmente, o que acabou por revelar o grande potencial da feminização do magistério como forma de barrar o processo de laicização da cultura. Eles formavam as mulheres para o espaço privado da maternidade e do lar, para ser exemplo de Maria, boa mãe e boa esposa, mas projetavam-nas no espaço público da educação e da escola. Por conseguinte, foi grande a contribuição feminina na difusão dos valores religiosos do catolicismo e no enfrentamento das 27 Pequena História da Congregação... p. 27. 18 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS matrizes de pensamento rivais. Através da formação das futuras professoras, os educandários religiosos tinham o objetivo de levar a sua influência muito além do público que preparava para a tarefa de educar. Como efeitos multiplicadores, deveriam essas educadoras difundir, nos seus locais de origem, os ideais da boa educação cristã, tão necessários ao reforço da religiosidade no seio de uma sociedade que se julgava estar cedendo aos apelos laicizantes do Estado republicano, que havia cortado seus vínculos com a religião. Além da contribuição que deram para retirar a influência feminina dos domínios exclusivos da vida privada, esses internatos contribuíram também para importante mudança cultural, uma vez que foram as professoras por eles formadas que ocuparam grande parte dos postos dos educadores que assumiram as escolas públicas que o Estado passou a implantar ao longo de todo o século XX, não só na região em foco, mas no estado de Minas e no país. Em resumo, com a feminização do magistério, as escolas católicas contribuíram para que as mulheres ascendessem à vida pública; com sua forte influência cultural no mundo da educação escolar, contribuíram para barrar o processo de laicização da cultura, uma vez que essas professoras eram também catequistas e missionárias. À missão de ensinar somouse a missão de difundir o catolicismo romano. Era uma formação orientada pelo modelo de mulher vigente à época, isto é, sobretudo a partir de 1854, com a instituição do dogma da Imaculada Conceição, a mulher ideal era a “filha de Maria”. Havia um forte apelo para que as alunas se filiassem à associação das Filhas de Maria e que as devoções marianas fossem difundidas fora da escola. Emergia daí um conjunto de referências que deveriam ser fortalecidas em outras esferas, junto a outros grupos de pessoas e em outras modalidades de participação. Em qualquer que fosse a instância participativa, entretanto, emergia uma figura de mulher mais ativa: a professora a quem cabia a tarefa de ordenar moralmente um mundo hostil e decaído, envolto em superstições e ignorância religiosa, mergulhado no pecado e na perdição. Referencias Bibliográficas ALMEIDA, Cônego Walter. “Diamantina e seus homens ilustres.” In; Sesquicentenário de elevação do Tijuco a vila Diamantina (1831-1981). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1983. BARBOSA, Waldemar de Almeida. “Diamantina.” In; Sesquicentenário de elevação do Tijuco a vila Diamantina (1831-1981). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1983. 19 V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS CURY, Carlos Roberto Jamil. “Ensino religioso e escola pública: o curso histórico de uma polêmica entre Igreja e Estado no Brasil.” Educação em Revista. Revista da Faculdade de Educação da UFMG. Vol. VIII, n0 17. Belo Horizonte, jun./1993. pp. 20-37. FERREIRA, Jurandyr Pires. (Org.) 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