123 O jornalista empreendedor: uma reflexão inicial sobre jornalismo, flexibilização do trabalho e os sentidos do empreendedorismo no campo profissional1 Michelle Roxo de Oliveira Doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Professora do curso de Jornalismo do FIAM-FAAM – Centro Universitário E-mail: [email protected] Rafael Grohmann Resumo: Considerando o cenário de flexibilização crescente das condições de uso e mobilização da força produtiva no mundo do trabalho, bem como seu impacto sobre a atividade profissional dos jornalistas, este artigo pretende realizar um esforço inicial de refletir sobre a noção de empreendedorismo, como parte de um projeto de pesquisa que tem a proposta de mapear os sentidos desta noção na fala de diferentes atores que constituem o campo jornalístico. Palavras-chave: Mercado de trabalho, flexibilização, jornalismo, empreendedorismo. El periodista empreendedor: reflexiones iniciales sobre el periodismo, el trabalho flexible y los sentidos del empreendedorismo em el campo professional Resumen: Teniendo en cuenta la creciente flexibilidad de establecer las condiciones de uso y la movilización de la fuerza productiva en el mundo del trabajo y su impacto en la actividad profesional de los periodistas, este artículo tiene la intención de hacer un esfuerzo inicial para reflexionar sobre la noción de emprendedorismo como parte de un proyecto de investigación que se ha propuesto para mapear los sentidos de ese término en el discurso de los diferentes actores que conforman el campo periodístico. Palabras clave: mundo del trabajo, flexibilización, periodismo, emprendedorismo. The Entrepeneurial Journalist: initial thoughts on journalism, flexible work and entrepreneurial way in the professional field Abstract: Considering the growing flexibility of setting the conditions of use and mobilization of productive force in the world of work and its impact on the professional activity of journalists, this article intends to make an initial effort to reflect on the notion of entrepreneurship as part of a research project that has proposed to map the senses of that term in the speech of different actors who make up the journalistic field. Keywords: World of work, flexibilization, journalism, entrepreneurship. Doutorando e Mestre em Ciências da Comunicação pela USP Professor dos cursos de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero e do FIAM-FAAM E-mail: [email protected] A profissão de jornalista tem apresentado significativas mudanças nas últimas duas décadas devido à introdução de novas tecnologias e ao redesenho da organização produtiva ocorrida no mundo do trabalho, mudanças que estão associadas, em nível mais amplo, ao processo de reestruturação 1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no Congresso Internacional de Comunicação e Consumo (Comunicon) – ESPM – 2014. Líbero – São Paulo – v. 18, n. 35, p. 123-132, jan./jun. de 2015 Michelle Roxo de Oliveira / Rafael Grohmann – O jornalista empreendedor: uma reflexão inicial sobre... 124 macroeconômica, com a passagem do fordismo para o chamado “regime de acumulação flexível”.2 Sobretudo a partir dos anos 1990, por meio da flexibilização crescente das condições de uso e mobilização da força produtiva, o número de jornalistas submetidos a diversificadas relações contratuais de trabalho subiu. Terceirização, contratos de As análises dos discursos sobre o mundo do trabalho revelam, em universo micro, os valores hegemônicos da sociedade vigente como um todo trabalho por tempo determinado, contrato de pessoa jurídica (PJ), cooperados e freelancers são figuras recorrentes no mercado profissional, que transferem aos trabalhadores “o peso das incertezas do mercado” (Fígaro; Nonato; Grohmann, 2013). A exemplo do que ocorre em outros setores e ramos produtivos (como um traço pós-fordista, flexível), o jornalista também tem enfrentado uma espécie de “deslocalização” do trabalho, na medida em que se 2 A discussão sobre flexibilidade nas relações de trabalho é bastante ampla e diversificada. Há certa concordância dentro da literatura especializada (Harvey, 2014; Castells, 2011) em localizar a emergência da flexibilidade a partir do chamado “regime de acumulação flexível”, que está associado ao pós-fordismo. Enquanto o fordismo baseava-se na especialização do operário de linha-de-montagem e nas tarefas únicas para as quais ele estava alocado, no regime de flexibilidade o trabalhador passa a ser responsável por efetuar várias tarefas. Em relação aos regimes e contratos de trabalho, há crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado, em detrimento das formas de emprego regular. No que diz respeito ao processo de produção, a acumulação flexível confronta a “rigidez” do fordismo e seu modelo de produção em massa, uniforme e padronizado. Caracteriza-se, entre outros aspectos, pela flexibilidade dos processos de trabalho, mercados de trabalho e produtos (produção segundo a demanda), bem como pelo surgimento de setores de produção novos e altas taxas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (Harvey, 2014). tornam comuns situações de subcontratos para realizar tarefas em casa, no ambiente doméstico, as quais requerem, inclusive, uma postura de prospecção frente a novas modalidades de serviços. Essas mudanças de fundo têm impacto nos contextos de produção e no desenho de um perfil profissional mais ou menos valorizado pelo mercado, com reflexos importantes nas discussões associadas ao tipo de comportamento necessário para a inserção (ou permanência) do trabalhador no processo produtivo. Flexibilidade, inovação, criatividade, capacidade de formação permanente e empreendedorismo são termos que se ajustam a toda uma gramática incorporada no mercado de trabalho, e que também impactam o mundo do jornalismo. Macedo (2002, p. 134) chama a atenção para o fato de que, no marco do paradigma pós-fordista, a flexibilidade das “ilhas” têm comumente exigido “maior plasticidade do trabalhador, ou seja, maior capacidade de operar em diferentes áreas e facilidade de adaptação”. No ambiente fabril, o impacto de mudanças tecnológicas e de processos de trabalho atinge especialmente operários mais velhos que experimentam a desvalorização de antigos saberes e enfrentam dificuldades para incorporar novas disposições (adequadas ao tipo de mão-de-obra requerida), a partir da vivência de uma espécie de obsolescência produtiva, segundo o que revela o estudo de Beaud e Pialoux (2009).3 As demandas do mercado apontam para uma formação geral de tal forma abrangente que permita mobilidade dentro de um cenário de rotatividade e desemprego. A capacidade de ser flexível, no sentido de se adaptar às circunstâncias e responder com eficiência a elas, torna-se, no mundo contemporâneo, uma espécie de valor social que ganhará ressonância em torno de noções como empre3 Etnografia realizada em fábricas da Peugeot na França. Líbero – São Paulo – v. 18, n. 35, p. 123-132, jan./jun. de 2015 Michelle Roxo de Oliveira / Rafael Grohmann – O jornalista empreendedor: uma reflexão inicial sobre... 125 endedorismo e “capital humano”;4 noções que ultrapassam o âmbito corporativo e contribuem para delinear os traços de uma “mentalidade econômica”, capaz de promover determinadas formas de subjetividade, orientada para uma ética empresarial do trabalho (López-Ruiz, 2007).5 Dentro dessa gramática, tudo se passa como se as chances de trabalho dependessem de estratégias individualizadas, mobilizadas por sujeitos dispostos a aproveitar ou não as “janelas de oportunidades” e de desenhar o seu destino de maneira competitiva, inovadora e eficiente, orientados pela aquisição ininterrupta de conhecimentos e capacidades que possuem valor econômico. Nota-se aqui a valorização de uma espécie de competência subjetiva associada à atitude, autonomia e motivação, na maneira como o indivíduo se posiciona e se conduz face às mudanças do mercado de trabalho, encontrando soluções para “ultrapassar desafios” e enfrentar relações de concorrência, marcando diferenças em relação a formas de emprego tradicionais. Considerando que a mobilização da força de trabalho está associada hoje, em certa medida, a representações desta natureza, o presente artigo pretende realizar um esforço inicial de pensar o discurso sobre o empreendedorismo (situando-o, de maneira mais específica, dentro de nosso interesse pelo jornalismo, a partir de alguns exemplos pontuais). Este movimento inicial é parte de um projeto de pesquisa que tem a proposta de mapear os sentidos desta noção na fala de O capital humano é definido como um conjunto de capacidades, habilidades e destrezas, que deveria supostamente ser gerido como outras formas de capital e adquirir valor de mercado. Como qualquer dono de capital, o indivíduo é visto aqui como capitalista de seu próprio capital humano e cabe a ele manter e aumentar o seu valor, promover novos investimentos de modo a evitar sua depreciação. A proposta da teoria do capital humano implica, em última instância, na eliminação da gramática do trabalho e do trabalhador, na medida em que tudo é visto como capital e todos como capitalistas (Lópes-Ruiz, 2007, p. 204). 5 Entendida, segundo o autor, como um conjunto de valores e normas “a partir do qual quem trabalha seja levado a pensar e a sentir a sua atividade como uma empresa particular e como motivo principal de sua vida” (Lópes-Ruiz, 2007, p. 30). 4 diferentes atores que constituem o campo jornalístico, como jornalistas, professores universitários, estudantes, coordenadores de curso, representantes sindicais e elite dirigente de empresas de comunicação. A dimensão discursiva sobre a flexibilização do trabalho Segundo a Ergologia (Schwartz; Durrive, 2008), todo trabalho tomado como atividade humana envolve, em alguma medida, prescrições. Estas prescrições, em nossa visão, possuem uma esfera discursiva e se enraízam nas práticas sociais de trabalho. Ou seja, se de um lado há a flexibilidade das formas de trabalho, por outro, há os discursos sobre a flexibilização do trabalho. As análises dos discursos sobre o mundo do trabalho revelam, em universo micro, os valores hegemônicos da sociedade vigente como um todo. Certamente, em nossos dias, ninguém se diria abertamente taylorista; o governo do trabalho, a gestão dos recursos humanos, propõe-se, ao contrário, a afrouxar a pressão sobre os processos operatórios, conscientes de que é melhor prescrever objetivos do que prescrever uma atividade que jamais se chega a abranger racionalmente. (...) [Mas] certas ‘inovações’ de gestão, como as práticas de normalização, certificação, não são isentas de retornos velados aos falsos confortos do taylorismo (Schwartz, 2011, p. 27). Fazer sucesso é ter as competências ajustadas ao “novo espírito do capitalismo” (Boltanski; Chiapello, 2009) em que a flexibilidade é um imperativo, ao lado do “espírito aventureiro”. Nesse zeitgeist, a noção de “carreira”, enquanto algo fixo e estável, se esvai, dando lugar a conceitos como “projetos”, “jobs”, “home-office” e “frilas”. O plano coletivo do trabalho também se modifica. “Na era da flexibilidade, as empresas estabelecem uma relação ambígua com seus empregados, pois os convidam a integrarem equipes/grupos de trabalho ao mesmo tempo em que lhes impõe relações Líbero – São Paulo – v. 18, n. 35, p. 123-132, jan./jun. de 2015 Michelle Roxo de Oliveira / Rafael Grohmann – O jornalista empreendedor: uma reflexão inicial sobre... 126 de trabalho individualizadas” (Bernardo, 2009, p. 93-94). A maioria das competências necessárias é centrada, então, na figura do indivíduo, louvado por seus acertos e culpabilizado por seus erros. Esta “ideologia meritocrática centrada no indivíduo” pode ser considerada como uma maneira de dominação, que oculta sua face social (Bourdieu, 2007), como uma illusio ou uma “naturalização das práticas”. Nesse contexto, a gramática da proteção social e do trabalho assalariado desliza progressivamente para o passado; em nome de uma celebração de estratégias individualizadas, desativam-se políticas públicas e perspectivas de ações coletivas mais profundas. Žižek (2014) chama, ironicamente, os “chefes” (ou “CEOs”, se quiser uma palavra mais ajustada) deste “novo espírito do capitalismo” de “comunista liberais”, que podem ser incorporados nas figuras de Bill Gates e George Soros. Eles “são geeks contraculturais que se apoderam de grandes companhias. Seu dogma é uma versão nova e pós-moderna da velha mão invisível do mercado de Adam Smith” (Žižek, 2014, p. 28). Os discursos são a favor do nômade, do diálogo, da cooperação, da interação espontânea, da liberdade e da flexibilidade contra a burocracia centralizada, a rotina e a hierarquia fixa. Nesta “virada semântica” (Fígaro, 2008), a própria palavra “desempregado” é, em certo sentido, silenciada, na medida em que as pessoas tem de se mostrar “disponíveis”, não “desempregadas”, pois em algum momento pode aparecer a “oportunidade” de um projeto interessante. Interessante e criativo. Há a celebração de uma “ascensão da classe criativa” – conceito de Richard Florida (2011), para quem os membros dessa “classe” compartilham o mesmo ethos, “que valoriza a criatividade, a individualidade, as diferenças e o mérito” (Florida, 2011, p. 8). O campo semântico da “criatividade” serve para legitimar alguns tipos de trabalho como bons e poderosos em detrimento de outros – colocados como maçantes, burocráticos, desqualificados – justamente a partir de argumentos ligados ao “mérito individual”. Outra palavra-gêmea da “criatividade” é a “inovação”, que segue a mesma argumentação. Para Florida (2011, p. 68), “a característica distintiva da classe criativa está associada ao envolvimento de seus membros em atividades cujo objetivo é inovar de forma significativa”. É dentro deste contexto de valorização de características como flexibilidade, criatividade e inovação que a noção de empreendedorismo e a figura do empreendedor ganham centralidade. Os empreendedores são positivados como heróis capazes de fazer prosperar não somente sua vida, mas a de todos ao seu redor. O Brasil, portanto, precisaria de tantos empreendedores quanto fosse possível, já que os desafios nacionais de eliminar o desemprego e extirpar a miséria são imensos (Salgado, 2012, p. 144). Em “O culto da performance”, Alain Ehrenberg (2010) coloca o empreendedorismo como um instrumento de heroísmo generalizado, construído como o “sucesso” por excelência. O que é ser bem-sucedido? Essa é uma questão que lembra uma outra: por que o sucesso se refere ao empreendedor? Ser bem-sucedido, hoje, é poder inventar seu próprio modelo, desenhar sua unicidade, ainda que idêntica à de todos os outros. Ser bem-sucedido é tornar-se si mesmo tornando-se alguém (Ehrenberg, 2010, p. 52). Ser “empreendedor”, então, é a chance de ser um líder, ascender socialmente e, ao mesmo tempo, fazer algo diferente, cool, como se fosse um “espírito empreendedor” que estivesse à disposição de todos os indivíduos determinados a adquirir essa “mentalidade”. Além disso, a figura empreendedora não é vista como um capitalista no sentido forte da palavra, seguindo a linha dos “comunistas liberais” citados por Žižek (2014). Segundo Ehrenbeg (2010, p. 117), “empreender não é mais percebido como um meio de extorquir Líbero – São Paulo – v. 18, n. 35, p. 123-132, jan./jun. de 2015 Michelle Roxo de Oliveira / Rafael Grohmann – O jornalista empreendedor: uma reflexão inicial sobre... 127 a mais-valia em benefício do capital. É uma solução, ao mesmo tempo, mais justa e mais eficaz de lutar contra a exclusão e as desigualdades de todas as ordens”. Casaqui (2014) observa que o imaginário do empreendedorismo é especialmente associado, na atualidade, ao “espírito juvenil”, por meio de discursos que promovem o engajamento em relação ao “novo espírito do capitalismo” e que buscam marcar uma espécie de distanciamento das gerações anteriores e de suas formas tradicionais de emprego. “Envelhecer” neste novo cenário seria, no limite, uma experiência social vinculada à incapacidade de incorporar as disposições deste “novo espírito” e de responder às exigências de desempenho flexível, autônomo, adequado ao novo tipo de trabalho e de processo produtivo. A partir desta reflexão inicial, podemos considerar as narrativas empreendedoras como “convocações biopolíticas” (Aidar Prado, 2013) ou “discursos circulantes” (Charaudeau, 2006) que ocorrem em diferentes dispositivos - nem sempre midiáticos, mas que aparecem, em alguma medida, midiatizados. As práticas e as narrativas empreendedoras estão nas empresas, nas escolas, nas redes sociais, na publicidade, na política, na economia, no jornalismo. Elas circulam por diversos campos sociais e são consumidas por diferentes agentes. Empreendedorismo no trabalho jornalístico Tendo como base alguns exemplos articulados de maneira exploratória neste artigo, queremos chamar atenção a seguir para narrativas sobre o empreendedorismo que circulam e são consumidas por sujeitos que compõem o campo jornalístico. Elas se revelam em discursos dos jornalistas sobre a profissão, na literatura especializada sobre o jornalismo e nas próprias discussões que atravessam a definição de currículos dos cursos de jornalismo. Ressaltamos que o empreendedorismo discutido aqui não é aquele que circula e se consome nas revistas, nos jornais e na televisão, tomados como dispositivos jornalísticos, mas o empreendedorismo ligado ao trabalho jornalístico e a uma dada definição de identidade que vem sendo forjada nos debates sobre o modo de ser profissional (apontado como desejável ou necessário) no cenário contemporâneo. A autoajuda empresarial projeta a “criatividade” e a “inovação” como palavras mágicas, capazes de instituir a realidade do sucesso profissional Ao analisar os discursos de jornalistas freelancers sobre o trabalho, Grohmann (2012) mostra como a flexibilização impacta no trabalho jornalístico e como, por vezes, os próprios jornalistas, principalmente os mais jovens, se mostram ajustados às prescrições do “novo espírito do capitalismo”. A importância de se ter uma visão empreendedora no jornalismo e a necessidade de aprender a negociar emergem na fala de alguns entrevistados como atitudes valorizadas para a inserção no mercado de trabalho. Uma das informantes, por exemplo, diz que os jornalistas freelancers precisam se pensar mais como “empresa real” para serem menos “angustiados”. Nota-se aqui uma culpabilização, de modo individual, do próprio jornalista que não se ajusta ou se adequa a esse modelo prescritivo hegemônico. O “sofrimento” no trabalho, então, é justificado não por conta das longas horas de trabalho, pelos baixos salários ou pela precariedade das relações contratuais, mas por conta de o jornalista não “conseguir ser empresário”. Líbero – São Paulo – v. 18, n. 35, p. 123-132, jan./jun. de 2015 Michelle Roxo de Oliveira / Rafael Grohmann – O jornalista empreendedor: uma reflexão inicial sobre... 128 A pesquisa também aponta como o vocabulário do mundo empresarial é acionado, no depoimento de informantes, a partir de expressões como “clientes” e “investimentos”;6 além de pontuar a conotação positiva atribuída por determinados jornalistas a palavras como freelancer e frila – na medida em que são associadas à atualidade e liberdade.7 As formas de emprego tradicionais são vistas como “acomodação” em um mundo que prescreve a constante atualização e a mobilidade de projetos No âmbito da literatura especializada, destacamos dois exemplos de livros que abordam o comportamento empreendedor como elemento significativo para o sucesso das práticas profissionais: “Entrepreneurial journalism”, de Mark Briggs (2012) e “Jornalismo freelance: empreendedorismo na comunicação”, de José Marques Rainho (2008). O primeiro ressalta a dimensão do jornalismo associada à oportunidade de negócios, reforçando esta orientação a partir de vários tópicos que convidam o leitor a desafios desta natureza: “faça negócios enquanto é um jornalista”, “desafios e vantagens para as mulheres como empreendedoras”, “não espere, inove”, “veja a inovação como um produto”, “você tem uma ideia ou um negócio?”, “se você tiver criatividade, vai inovar”. Trata-se, de modo geral, de enunciados relacioNota-se como algumas dessas expressões entram, em certo sentido, em conflito com “valores iluministas” associados historicamente à profissão de jornalista, como a noção de “serviço público”. 7 Conotação que faz com que os jornalistas naturalizem práticas como “frila fixo” como se fossem práticas freelancer “por excelência”, quando, na verdade, há mais imposição do que liberdade propriamente dita, além de um mascaramento das relações de trabalho. 6 nados ao mundo da autoajuda empresarial, que projetam a “criatividade” ou “inovação” como palavras mágicas, capazes de instituir a realidade do sucesso profissional. Tudo se passa como se inovação e o próprio empreendedorismo fossem caminhos “naturais” para os detentores do “dom” da criatividade, fórmula que associa, no limite, o sucesso ou o fracasso na profissão à posse deste atributo. Já o segundo livro (Rainho, 2008) situa a atividade freelancer na perspectiva do empreendedorismo e apresenta uma série de enunciados que possuem interdiscursividade com os pensamentos liberais e com os discursos gerenciais advindos do campo da Administração (Grohmann, 2013). O título de um dos capítulos revela de maneira significativa a nota propositiva da obra: “Empreendedorismo: A era das carreiras acabou: os sobreviventes serão orientados por projeto”. Exalta-se a liberdade da flexibilidade do trabalho; o sucesso dos sujeitos passa a ser “medido” pela produtividade em seu último projeto (Boltanski e Chiapello, 2009). Além desses livros, segundo a exploração inicial realizada para este artigo, localizamos discursos sobre empreendedorismo no trabalho jornalístico em textos publicados no site do “Observatório da Imprensa” - espaço de discussão de assuntos relacionados à profissão e de crítica do jornalismo brasileiro. Estes discursos mobilizam, de alguma maneira, valores enunciados até aqui. Nota-se a partir dos títulos mapeados que o empreendedorismo é visto como uma “aventura”, como performance positivada (conforme a definição de Ehrenberg, 2010): “Jornalistas devem ser jornalistas. E empreendedores” (24/04/2012); “Empreendedorismo jornalístico através de blogs” (24/05/2011); “Empreendedorismo Jornalístico atrai a atenção de universidades e profissionais desempregados no mundo inteiro” (24/05/2011), “Em defesa do empreendedorismo digital”; “A aventura do jornalismo empreendedor” (26/04/2005); “Aventureiros à vista” (15/07/2003). Líbero – São Paulo – v. 18, n. 35, p. 123-132, jan./jun. de 2015 Michelle Roxo de Oliveira / Rafael Grohmann – O jornalista empreendedor: uma reflexão inicial sobre... 129 No texto de Clayton Torres (2012), “Jornalistas devem ser jornalistas. E empreendedores”, o autor indica a necessidade de se contemplar outro perfil formativo ao afirmar que o sistema educacional brasileiro e as faculdades de jornalismo criam “empregados”, não “empreendedores”. As formas de emprego tradicionais são vistas como “acomodação” em um mundo que prescreve a constante atualização e a mobilidade de projetos. A chave para o jornalismo empreendedor, então, é a “inovação”, palavra reforçada em diferentes passagens do texto. O certo “conforto” e “status” oferecido pelas carteiras profissionais assinadas com grandes meios de comunicação faz com que uma legião de estudantes sonhe em repetir o óbvio, evitando uma inovação própria ou um confronto direto com os moldes jornalísticos vigentes. Perde o estudante, perde o mercado de comunicação, perde o jornalismo e, principalmente, perde a sociedade, pois não consegue ter um jornalismo inovador com mentes inovadoras (Torres, 2012, s/n). Nesse enunciado, podemos observar como o empreendedorismo é colocado como o caminho para o sucesso no “jornalismo novo”. O empreendedorismo é situado como potencial modelo alternativo de produção que faz frente aos “moldes jornalísticos vigentes”. Ele não parece ser visto somente como um modelo de negócio redutível a interesses específicos, mas como uma atividade que incorpora seu papel social e que pode integrar um “projeto de sociedade” impulsionado por “mentes inovadoras”. No texto de Carlos Castilho (2011), o valor da “independência” e a capacidade de gerenciamento do próprio trabalho são ressaltados como atributos desejáveis na definição do modo de ser do jornalista. Também aqui, encontramos a construção da oposição da figura do “jornalista empreendedor” em relação ao “jornalista formado pela faculdade para ser assalariado”. O jornalista profissional terá que ser também um empreendedor, ou seja, ter a capacidade de gerenciar seu trabalho de forma independente sempre de olho no equilíbrio entre receitas e despesas. Parece simples, mas não é, pois tanto os mais velhos como os recém graduados foram formados para trabalhar em empresas, como assalariados (Castilho, 2011, s/n). Em que pese a alusão dos dois autores sobre a ausência da dimensão formativa dos jornalistas como empreendedores nos cursos universitário, há que se ressaltar que, atualmente, a noção de empreendedorismo também ganha terreno nas discussões sobre os textos curriculares (como documentos que materializam uma narrativa, entre outras possíveis, de identidade jornalística e do que conta como conhecimento legítimo no processo formativo). Não por acaso, o documento da comissão de especialistas que embasou as novas diretrizes curriculares para a área de Jornalismo, publicado em 2009,8 aponta como um indicativo para a elaboração do Projeto Pedagógico dos cursos a necessidade de “dar ênfase ao espírito empreendedor” e a projetos inovadores, postulando o imperativo de “projetar a função social da profissão em contextos ainda não delineados no presente”. Assim, nota-se uma preocupação expressa no documento no que diz respeito a temas próprios do cenário contemporâneo como o contexto de mutação e convergência tecnológica e os processos de reestruturação produtiva no mundo do trabalho que estariam impondo novas demandas em termos de formação do trabalhador (como a ideia de formação continuada e empreendedorismo), bem como novas formas de relacionamento entre empresas jornalísticas e jornalistas, caracterizada pela emergência da figura de profissionais autônomos ou prestadores de serviços. Considerações Finais O tema do “empreendedorismo no jornalismo”, bem como suas consequências para o 8 DIRETRIZES Curriculares Nacionais para o Curso de Jornalismo. Relatório da Comissão de Especialistas instituída pelo Ministério da Educação. Portaria n. 203/2009, de 12 de fevereiro de 2009. Líbero – São Paulo – v. 18, n. 35, p. 123-132, jan./jun. de 2015 Michelle Roxo de Oliveira / Rafael Grohmann – O jornalista empreendedor: uma reflexão inicial sobre... 130 trabalho dos jornalistas, permanece pouco explorado na pesquisa brasileira dentro de uma perspectiva que busca compreendê-lo a partir das práticas discursivas e sociais dos sujeitos situados ou envolvidos, de alguma forma, com o campo jornalístico. Nos limites deste texto, apresentamos um esforço inicial de problematizar o tema, vislumbrando seu potencial desdobramento como objeto de pesquisas. Acreditamos que essa noção, proveniente do mundo empresarial, tem ganhado expressão no jornalismo como produto de práticas e discursos que se relacionam ao mercado de trabalho contemporâneo e que atuam na constituição de subjetividades - ou seja, a partir desse cenário pode-se pensar em mudanças, inclusive identitárias, dos jornalistas. Pode-se pensar, também, como determinados discursos articulados em torno desta noção têm implicações sobre, ou tensionam, em alguma medida, representações associadas à ética profissional jornalística, a partir de uma aproximação mais direta do mundo do jornalismo com a gramática do mundo dos negócios - aproximação que um cuidado distintivo (Bourdieu, 1996) em relação às especificidades do campo (interesse econômico x desinteresse do pólo simbólico constituído historicamente em torno do jornalismo) buscava evitar. (Oliveira, 2005). Embora não isentas de tensões e contradições, as narrativas sobre o empreendedorismo se articulam, de alguma maneira, à lógica prescritiva de um comportamento supostamente capaz de potencializar as oportunidades e diversificar as modalidades de ocupação, a partir de uma ética empresarial do trabalho. A partir do entendimento das prescrições, podemos enxergar as renormalizações (Schwartz; Durrive, 2008) e as ressignificações que os sujeitos-trabalhadores fazem em relação às prescrições do mundo do trabalho, a partir de sua atividade e de seus discursos sobre o trabalho. (artigo recebido mar.2015/aprovado abr.2015) Líbero – São Paulo – v. 18, n. 35, p. 123-132, jan./jun. de 2015 Michelle Roxo de Oliveira / Rafael Grohmann – O jornalista empreendedor: uma reflexão inicial sobre... 131 Referências AIDAR PRADO, J. L. Convocações Biopolíticas dos Dispositivos Comunicacionais. São Paulo: Educ, 2013. BEAUD, S. e PIALOUX, M. As transformações da fábrica. 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