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O jornalista empreendedor:
uma reflexão inicial sobre jornalismo, flexibilização
do trabalho e os sentidos do empreendedorismo
no campo profissional1
Michelle Roxo de Oliveira
Doutora em Comunicação pela
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Professora do curso de Jornalismo do
FIAM-FAAM – Centro Universitário
E-mail: [email protected]
Rafael Grohmann
Resumo: Considerando o cenário de flexibilização crescente das condições de uso e mobilização da força produtiva no
mundo do trabalho, bem como seu impacto sobre a atividade
profissional dos jornalistas, este artigo pretende realizar um esforço inicial de refletir sobre a noção de empreendedorismo,
como parte de um projeto de pesquisa que tem a proposta de
mapear os sentidos desta noção na fala de diferentes atores que
constituem o campo jornalístico.
Palavras-chave: Mercado de trabalho, flexibilização, jornalismo, empreendedorismo.
El periodista empreendedor: reflexiones iniciales sobre el periodismo, el trabalho flexible y los sentidos del empreendedorismo
em el campo professional
Resumen: Teniendo en cuenta la creciente flexibilidad de establecer las condiciones de uso y la movilización de la fuerza productiva en el mundo del trabajo y su impacto en la actividad
profesional de los periodistas, este artículo tiene la intención
de hacer un esfuerzo inicial para reflexionar sobre la noción de
emprendedorismo como parte de un proyecto de investigación
que se ha propuesto para mapear los sentidos de ese término
en el discurso de los diferentes actores que conforman el campo periodístico.
Palabras clave: mundo del trabajo, flexibilización, periodismo,
emprendedorismo.
The Entrepeneurial Journalist: initial thoughts on journalism,
flexible work and entrepreneurial way in the professional field
Abstract: Considering the growing flexibility of setting the
conditions of use and mobilization of productive force in the
world of work and its impact on the professional activity of
journalists, this article intends to make an initial effort to reflect on the notion of entrepreneurship as part of a research
project that has proposed to map the senses of that term in the
speech of different actors who make up the journalistic field.
Keywords: World of work, flexibilization, journalism, entrepreneurship.
Doutorando e Mestre em Ciências
da Comunicação pela USP
Professor dos cursos de Jornalismo da Faculdade
Cásper Líbero e do FIAM-FAAM
E-mail: [email protected]
A profissão de jornalista tem apresentado significativas mudanças nas últimas
duas décadas devido à introdução de novas
tecnologias e ao redesenho da organização
produtiva ocorrida no mundo do trabalho,
mudanças que estão associadas, em nível
mais amplo, ao processo de reestruturação
1
Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no Congresso Internacional de Comunicação e Consumo (Comunicon) – ESPM – 2014.
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macroeconômica, com a passagem do fordismo para o chamado “regime de acumulação flexível”.2
Sobretudo a partir dos anos 1990, por
meio da flexibilização crescente das condições de uso e mobilização da força produtiva, o número de jornalistas submetidos a diversificadas relações contratuais de
trabalho subiu. Terceirização, contratos de
As análises dos
discursos sobre o mundo
do trabalho revelam,
em universo micro,
os valores hegemônicos
da sociedade vigente
como um todo
trabalho por tempo determinado, contrato
de pessoa jurídica (PJ), cooperados e freelancers são figuras recorrentes no mercado
profissional, que transferem aos trabalhadores “o peso das incertezas do mercado”
(Fígaro; Nonato; Grohmann, 2013). A
exemplo do que ocorre em outros setores
e ramos produtivos (como um traço pós-fordista, flexível), o jornalista também
tem enfrentado uma espécie de “deslocalização” do trabalho, na medida em que se
2
A discussão sobre flexibilidade nas relações de trabalho é bastante ampla e diversificada. Há certa concordância dentro da
literatura especializada (Harvey, 2014; Castells, 2011) em localizar a emergência da flexibilidade a partir do chamado “regime
de acumulação flexível”, que está associado ao pós-fordismo.
Enquanto o fordismo baseava-se na especialização do operário
de linha-de-montagem e nas tarefas únicas para as quais ele
estava alocado, no regime de flexibilidade o trabalhador passa
a ser responsável por efetuar várias tarefas. Em relação aos regimes e contratos de trabalho, há crescente uso do trabalho em
tempo parcial, temporário ou subcontratado, em detrimento
das formas de emprego regular. No que diz respeito ao processo de produção, a acumulação flexível confronta a “rigidez”
do fordismo e seu modelo de produção em massa, uniforme
e padronizado. Caracteriza-se, entre outros aspectos, pela flexibilidade dos processos de trabalho, mercados de trabalho e
produtos (produção segundo a demanda), bem como pelo surgimento de setores de produção novos e altas taxas de inovação
comercial, tecnológica e organizacional (Harvey, 2014).
tornam comuns situações de subcontratos
para realizar tarefas em casa, no ambiente
doméstico, as quais requerem, inclusive,
uma postura de prospecção frente a novas
modalidades de serviços. Essas mudanças
de fundo têm impacto nos contextos de
produção e no desenho de um perfil profissional mais ou menos valorizado pelo
mercado, com reflexos importantes nas
discussões associadas ao tipo de comportamento necessário para a inserção (ou
permanência) do trabalhador no processo
produtivo.
Flexibilidade, inovação, criatividade, capacidade de formação permanente e empreendedorismo são termos que se ajustam a toda uma gramática incorporada
no mercado de trabalho, e que também
impactam o mundo do jornalismo. Macedo (2002, p. 134) chama a atenção para o
fato de que, no marco do paradigma pós-fordista, a flexibilidade das “ilhas” têm comumente exigido “maior plasticidade do
trabalhador, ou seja, maior capacidade de
operar em diferentes áreas e facilidade de
adaptação”. No ambiente fabril, o impacto
de mudanças tecnológicas e de processos
de trabalho atinge especialmente operários
mais velhos que experimentam a desvalorização de antigos saberes e enfrentam dificuldades para incorporar novas disposições (adequadas ao tipo de mão-de-obra
requerida), a partir da vivência de uma espécie de obsolescência produtiva, segundo
o que revela o estudo de Beaud e Pialoux
(2009).3
As demandas do mercado apontam para
uma formação geral de tal forma abrangente
que permita mobilidade dentro de um cenário de rotatividade e desemprego. A capacidade de ser flexível, no sentido de se adaptar
às circunstâncias e responder com eficiência
a elas, torna-se, no mundo contemporâneo,
uma espécie de valor social que ganhará ressonância em torno de noções como empre3
Etnografia realizada em fábricas da Peugeot na França.
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endedorismo e “capital humano”;4 noções
que ultrapassam o âmbito corporativo e
contribuem para delinear os traços de uma
“mentalidade econômica”, capaz de promover determinadas formas de subjetividade,
orientada para uma ética empresarial do trabalho (López-Ruiz, 2007).5
Dentro dessa gramática, tudo se passa
como se as chances de trabalho dependessem de estratégias individualizadas, mobilizadas por sujeitos dispostos a aproveitar
ou não as “janelas de oportunidades” e de
desenhar o seu destino de maneira competitiva, inovadora e eficiente, orientados pela
aquisição ininterrupta de conhecimentos e
capacidades que possuem valor econômico.
Nota-se aqui a valorização de uma espécie de
competência subjetiva associada à atitude,
autonomia e motivação, na maneira como
o indivíduo se posiciona e se conduz face às
mudanças do mercado de trabalho, encontrando soluções para “ultrapassar desafios” e
enfrentar relações de concorrência, marcando diferenças em relação a formas de emprego tradicionais.
Considerando que a mobilização da força de trabalho está associada hoje, em certa
medida, a representações desta natureza, o
presente artigo pretende realizar um esforço
inicial de pensar o discurso sobre o empreendedorismo (situando-o, de maneira mais
específica, dentro de nosso interesse pelo
jornalismo, a partir de alguns exemplos pontuais). Este movimento inicial é parte de um
projeto de pesquisa que tem a proposta de
mapear os sentidos desta noção na fala de
O capital humano é definido como um conjunto de capacidades, habilidades e destrezas, que deveria supostamente ser gerido como outras formas de capital e adquirir valor de mercado.
Como qualquer dono de capital, o indivíduo é visto aqui como
capitalista de seu próprio capital humano e cabe a ele manter e
aumentar o seu valor, promover novos investimentos de modo
a evitar sua depreciação. A proposta da teoria do capital humano implica, em última instância, na eliminação da gramática do
trabalho e do trabalhador, na medida em que tudo é visto como
capital e todos como capitalistas (Lópes-Ruiz, 2007, p. 204).
5
Entendida, segundo o autor, como um conjunto de valores e
normas “a partir do qual quem trabalha seja levado a pensar e
a sentir a sua atividade como uma empresa particular e como
motivo principal de sua vida” (Lópes-Ruiz, 2007, p. 30).
4
diferentes atores que constituem o campo
jornalístico, como jornalistas, professores
universitários, estudantes, coordenadores de
curso, representantes sindicais e elite dirigente de empresas de comunicação.
A dimensão discursiva sobre a
flexibilização do trabalho
Segundo a Ergologia (Schwartz; Durrive,
2008), todo trabalho tomado como atividade
humana envolve, em alguma medida, prescrições. Estas prescrições, em nossa visão,
possuem uma esfera discursiva e se enraízam
nas práticas sociais de trabalho. Ou seja, se
de um lado há a flexibilidade das formas de
trabalho, por outro, há os discursos sobre
a flexibilização do trabalho. As análises dos
discursos sobre o mundo do trabalho revelam, em universo micro, os valores hegemônicos da sociedade vigente como um todo.
Certamente, em nossos dias, ninguém se
diria abertamente taylorista; o governo
do trabalho, a gestão dos recursos humanos, propõe-se, ao contrário, a afrouxar
a pressão sobre os processos operatórios,
conscientes de que é melhor prescrever
objetivos do que prescrever uma atividade que jamais se chega a abranger racionalmente. (...) [Mas] certas ‘inovações’ de
gestão, como as práticas de normalização,
certificação, não são isentas de retornos
velados aos falsos confortos do taylorismo
(Schwartz, 2011, p. 27).
Fazer sucesso é ter as competências ajustadas ao “novo espírito do capitalismo” (Boltanski; Chiapello, 2009) em que a flexibilidade é um imperativo, ao lado do “espírito
aventureiro”. Nesse zeitgeist, a noção de “carreira”, enquanto algo fixo e estável, se esvai,
dando lugar a conceitos como “projetos”,
“jobs”, “home-office” e “frilas”.
O plano coletivo do trabalho também se
modifica. “Na era da flexibilidade, as empresas estabelecem uma relação ambígua
com seus empregados, pois os convidam a
integrarem equipes/grupos de trabalho ao
mesmo tempo em que lhes impõe relações
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de trabalho individualizadas” (Bernardo,
2009, p. 93-94). A maioria das competências
necessárias é centrada, então, na figura do
indivíduo, louvado por seus acertos e culpabilizado por seus erros. Esta “ideologia
meritocrática centrada no indivíduo” pode
ser considerada como uma maneira de dominação, que oculta sua face social (Bourdieu, 2007), como uma illusio ou uma “naturalização das práticas”. Nesse contexto, a
gramática da proteção social e do trabalho
assalariado desliza progressivamente para
o passado; em nome de uma celebração de
estratégias individualizadas, desativam-se
políticas públicas e perspectivas de ações coletivas mais profundas.
Žižek (2014) chama, ironicamente, os
“chefes” (ou “CEOs”, se quiser uma palavra
mais ajustada) deste “novo espírito do capitalismo” de “comunista liberais”, que podem
ser incorporados nas figuras de Bill Gates e
George Soros. Eles “são geeks contraculturais
que se apoderam de grandes companhias.
Seu dogma é uma versão nova e pós-moderna da velha mão invisível do mercado de
Adam Smith” (Žižek, 2014, p. 28). Os discursos são a favor do nômade, do diálogo,
da cooperação, da interação espontânea, da
liberdade e da flexibilidade contra a burocracia centralizada, a rotina e a hierarquia fixa.
Nesta “virada semântica” (Fígaro, 2008),
a própria palavra “desempregado” é, em certo sentido, silenciada, na medida em que as
pessoas tem de se mostrar “disponíveis”, não
“desempregadas”, pois em algum momento
pode aparecer a “oportunidade” de um projeto interessante. Interessante e criativo. Há a
celebração de uma “ascensão da classe criativa” – conceito de Richard Florida (2011),
para quem os membros dessa “classe” compartilham o mesmo ethos, “que valoriza a
criatividade, a individualidade, as diferenças
e o mérito” (Florida, 2011, p. 8).
O campo semântico da “criatividade”
serve para legitimar alguns tipos de trabalho como bons e poderosos em detrimento de outros – colocados como maçantes,
burocráticos, desqualificados – justamente
a partir de argumentos ligados ao “mérito
individual”. Outra palavra-gêmea da “criatividade” é a “inovação”, que segue a mesma
argumentação. Para Florida (2011, p. 68), “a
característica distintiva da classe criativa está
associada ao envolvimento de seus membros
em atividades cujo objetivo é inovar de forma significativa”.
É dentro deste contexto de valorização de
características como flexibilidade, criatividade e inovação que a noção de empreendedorismo e a figura do empreendedor ganham
centralidade.
Os empreendedores são positivados como
heróis capazes de fazer prosperar não somente sua vida, mas a de todos ao seu redor. O Brasil, portanto, precisaria de tantos
empreendedores quanto fosse possível, já
que os desafios nacionais de eliminar o desemprego e extirpar a miséria são imensos
(Salgado, 2012, p. 144).
Em “O culto da performance”, Alain
Ehrenberg (2010) coloca o empreendedorismo como um instrumento de heroísmo generalizado, construído como o “sucesso” por
excelência.
O que é ser bem-sucedido? Essa é uma
questão que lembra uma outra: por que
o sucesso se refere ao empreendedor? Ser
bem-sucedido, hoje, é poder inventar seu
próprio modelo, desenhar sua unicidade,
ainda que idêntica à de todos os outros. Ser
bem-sucedido é tornar-se si mesmo tornando-se alguém (Ehrenberg, 2010, p. 52).
Ser “empreendedor”, então, é a chance de
ser um líder, ascender socialmente e, ao mesmo tempo, fazer algo diferente, cool, como
se fosse um “espírito empreendedor” que
estivesse à disposição de todos os indivíduos
determinados a adquirir essa “mentalidade”.
Além disso, a figura empreendedora não é
vista como um capitalista no sentido forte
da palavra, seguindo a linha dos “comunistas
liberais” citados por Žižek (2014). Segundo
Ehrenbeg (2010, p. 117), “empreender não é
mais percebido como um meio de extorquir
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a mais-valia em benefício do capital. É uma
solução, ao mesmo tempo, mais justa e mais
eficaz de lutar contra a exclusão e as desigualdades de todas as ordens”.
Casaqui (2014) observa que o imaginário do empreendedorismo é especialmente
associado, na atualidade, ao “espírito juvenil”, por meio de discursos que promovem
o engajamento em relação ao “novo espírito
do capitalismo” e que buscam marcar uma
espécie de distanciamento das gerações anteriores e de suas formas tradicionais de emprego. “Envelhecer” neste novo cenário seria,
no limite, uma experiência social vinculada
à incapacidade de incorporar as disposições
deste “novo espírito” e de responder às exigências de desempenho flexível, autônomo,
adequado ao novo tipo de trabalho e de processo produtivo.
A partir desta reflexão inicial, podemos
considerar as narrativas empreendedoras
como “convocações biopolíticas” (Aidar Prado, 2013) ou “discursos circulantes” (Charaudeau, 2006) que ocorrem em diferentes
dispositivos - nem sempre midiáticos, mas
que aparecem, em alguma medida, midiatizados. As práticas e as narrativas empreendedoras estão nas empresas, nas escolas, nas
redes sociais, na publicidade, na política, na
economia, no jornalismo. Elas circulam por
diversos campos sociais e são consumidas
por diferentes agentes.
Empreendedorismo no
trabalho jornalístico
Tendo como base alguns exemplos articulados de maneira exploratória neste artigo, queremos chamar atenção a seguir para
narrativas sobre o empreendedorismo que
circulam e são consumidas por sujeitos que
compõem o campo jornalístico. Elas se revelam em discursos dos jornalistas sobre a
profissão, na literatura especializada sobre
o jornalismo e nas próprias discussões que
atravessam a definição de currículos dos cursos de jornalismo.
Ressaltamos que o empreendedorismo
discutido aqui não é aquele que circula e se
consome nas revistas, nos jornais e na televisão, tomados como dispositivos jornalísticos, mas o empreendedorismo ligado ao
trabalho jornalístico e a uma dada definição
de identidade que vem sendo forjada nos
debates sobre o modo de ser profissional
(apontado como desejável ou necessário)
no cenário contemporâneo.
A autoajuda
empresarial projeta
a “criatividade” e
a “inovação” como
palavras mágicas,
capazes de instituir a realidade do sucesso profissional
Ao analisar os discursos de jornalistas freelancers sobre o trabalho, Grohmann (2012)
mostra como a flexibilização impacta no
trabalho jornalístico e como, por vezes, os
próprios jornalistas, principalmente os mais
jovens, se mostram ajustados às prescrições
do “novo espírito do capitalismo”. A importância de se ter uma visão empreendedora
no jornalismo e a necessidade de aprender
a negociar emergem na fala de alguns entrevistados como atitudes valorizadas para a
inserção no mercado de trabalho. Uma das
informantes, por exemplo, diz que os jornalistas freelancers precisam se pensar mais
como “empresa real” para serem menos “angustiados”. Nota-se aqui uma culpabilização,
de modo individual, do próprio jornalista
que não se ajusta ou se adequa a esse modelo
prescritivo hegemônico. O “sofrimento” no
trabalho, então, é justificado não por conta
das longas horas de trabalho, pelos baixos salários ou pela precariedade das relações contratuais, mas por conta de o jornalista não
“conseguir ser empresário”.
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A pesquisa também aponta como o vocabulário do mundo empresarial é acionado, no
depoimento de informantes, a partir de expressões como “clientes” e “investimentos”;6
além de pontuar a conotação positiva atribuída por determinados jornalistas a palavras como freelancer e frila – na medida em
que são associadas à atualidade e liberdade.7
As formas de emprego
tradicionais são vistas
como “acomodação”
em um mundo que
prescreve a constante
atualização e a
mobilidade de projetos
No âmbito da literatura especializada,
destacamos dois exemplos de livros que
abordam o comportamento empreendedor
como elemento significativo para o sucesso
das práticas profissionais: “Entrepreneurial
journalism”, de Mark Briggs (2012) e “Jornalismo freelance: empreendedorismo na comunicação”, de José Marques Rainho (2008).
O primeiro ressalta a dimensão do jornalismo associada à oportunidade de negócios,
reforçando esta orientação a partir de vários
tópicos que convidam o leitor a desafios desta natureza: “faça negócios enquanto é um
jornalista”, “desafios e vantagens para as mulheres como empreendedoras”, “não espere,
inove”, “veja a inovação como um produto”,
“você tem uma ideia ou um negócio?”, “se
você tiver criatividade, vai inovar”. Trata-se, de modo geral, de enunciados relacioNota-se como algumas dessas expressões entram, em certo sentido, em conflito com “valores iluministas” associados historicamente à profissão de jornalista, como a noção de “serviço público”.
7
Conotação que faz com que os jornalistas naturalizem práticas como “frila fixo” como se fossem práticas freelancer “por
excelência”, quando, na verdade, há mais imposição do que
liberdade propriamente dita, além de um mascaramento das
relações de trabalho.
6
nados ao mundo da autoajuda empresarial,
que projetam a “criatividade” ou “inovação”
como palavras mágicas, capazes de instituir
a realidade do sucesso profissional. Tudo se
passa como se inovação e o próprio empreendedorismo fossem caminhos “naturais”
para os detentores do “dom” da criatividade,
fórmula que associa, no limite, o sucesso ou
o fracasso na profissão à posse deste atributo.
Já o segundo livro (Rainho, 2008) situa a
atividade freelancer na perspectiva do empreendedorismo e apresenta uma série de
enunciados que possuem interdiscursividade com os pensamentos liberais e com os
discursos gerenciais advindos do campo da
Administração (Grohmann, 2013). O título
de um dos capítulos revela de maneira significativa a nota propositiva da obra: “Empreendedorismo: A era das carreiras acabou:
os sobreviventes serão orientados por projeto”. Exalta-se a liberdade da flexibilidade do
trabalho; o sucesso dos sujeitos passa a ser
“medido” pela produtividade em seu último
projeto (Boltanski e Chiapello, 2009).
Além desses livros, segundo a exploração
inicial realizada para este artigo, localizamos
discursos sobre empreendedorismo no trabalho jornalístico em textos publicados no
site do “Observatório da Imprensa” - espaço
de discussão de assuntos relacionados à profissão e de crítica do jornalismo brasileiro.
Estes discursos mobilizam, de alguma maneira, valores enunciados até aqui.
Nota-se a partir dos títulos mapeados
que o empreendedorismo é visto como
uma “aventura”, como performance positivada (conforme a definição de Ehrenberg,
2010): “Jornalistas devem ser jornalistas. E
empreendedores” (24/04/2012); “Empreendedorismo jornalístico através de blogs”
(24/05/2011); “Empreendedorismo Jornalístico atrai a atenção de universidades e profissionais desempregados no mundo inteiro”
(24/05/2011), “Em defesa do empreendedorismo digital”; “A aventura do jornalismo
empreendedor” (26/04/2005); “Aventureiros
à vista” (15/07/2003).
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No texto de Clayton Torres (2012), “Jornalistas devem ser jornalistas. E empreendedores”,
o autor indica a necessidade de se contemplar
outro perfil formativo ao afirmar que o sistema educacional brasileiro e as faculdades de
jornalismo criam “empregados”, não “empreendedores”. As formas de emprego tradicionais
são vistas como “acomodação” em um mundo
que prescreve a constante atualização e a mobilidade de projetos. A chave para o jornalismo
empreendedor, então, é a “inovação”, palavra
reforçada em diferentes passagens do texto.
O certo “conforto” e “status” oferecido pelas
carteiras profissionais assinadas com grandes meios de comunicação faz com que uma
legião de estudantes sonhe em repetir o óbvio, evitando uma inovação própria ou um
confronto direto com os moldes jornalísticos vigentes. Perde o estudante, perde o mercado de comunicação, perde o jornalismo e,
principalmente, perde a sociedade, pois não
consegue ter um jornalismo inovador com
mentes inovadoras (Torres, 2012, s/n).
Nesse enunciado, podemos observar
como o empreendedorismo é colocado
como o caminho para o sucesso no “jornalismo novo”. O empreendedorismo é situado como potencial modelo alternativo de
produção que faz frente aos “moldes jornalísticos vigentes”. Ele não parece ser visto
somente como um modelo de negócio redutível a interesses específicos, mas como uma
atividade que incorpora seu papel social e
que pode integrar um “projeto de sociedade”
impulsionado por “mentes inovadoras”.
No texto de Carlos Castilho (2011), o valor da “independência” e a capacidade de gerenciamento do próprio trabalho são ressaltados como atributos desejáveis na definição
do modo de ser do jornalista. Também aqui,
encontramos a construção da oposição da
figura do “jornalista empreendedor” em relação ao “jornalista formado pela faculdade
para ser assalariado”.
O jornalista profissional terá que ser também
um empreendedor, ou seja, ter a capacidade de
gerenciar seu trabalho de forma independente
sempre de olho no equilíbrio entre receitas e
despesas. Parece simples, mas não é, pois tanto os mais velhos como os recém graduados
foram formados para trabalhar em empresas,
como assalariados (Castilho, 2011, s/n).
Em que pese a alusão dos dois autores
sobre a ausência da dimensão formativa dos
jornalistas como empreendedores nos cursos
universitário, há que se ressaltar que, atualmente, a noção de empreendedorismo também ganha terreno nas discussões sobre os
textos curriculares (como documentos que
materializam uma narrativa, entre outras
possíveis, de identidade jornalística e do que
conta como conhecimento legítimo no processo formativo). Não por acaso, o documento da comissão de especialistas que embasou
as novas diretrizes curriculares para a área
de Jornalismo, publicado em 2009,8 aponta como um indicativo para a elaboração do
Projeto Pedagógico dos cursos a necessidade
de “dar ênfase ao espírito empreendedor” e a
projetos inovadores, postulando o imperativo
de “projetar a função social da profissão em
contextos ainda não delineados no presente”.
Assim, nota-se uma preocupação expressa no
documento no que diz respeito a temas próprios do cenário contemporâneo como o contexto de mutação e convergência tecnológica
e os processos de reestruturação produtiva no
mundo do trabalho que estariam impondo
novas demandas em termos de formação do
trabalhador (como a ideia de formação continuada e empreendedorismo), bem como novas formas de relacionamento entre empresas
jornalísticas e jornalistas, caracterizada pela
emergência da figura de profissionais autônomos ou prestadores de serviços.
Considerações Finais
O tema do “empreendedorismo no jornalismo”, bem como suas consequências para o
8
DIRETRIZES Curriculares Nacionais para o Curso de Jornalismo. Relatório da Comissão de Especialistas instituída pelo
Ministério da Educação. Portaria n. 203/2009, de 12 de fevereiro de 2009.
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trabalho dos jornalistas, permanece pouco
explorado na pesquisa brasileira dentro de
uma perspectiva que busca compreendê-lo
a partir das práticas discursivas e sociais dos
sujeitos situados ou envolvidos, de alguma
forma, com o campo jornalístico. Nos limites
deste texto, apresentamos um esforço inicial
de problematizar o tema, vislumbrando seu
potencial desdobramento como objeto de
pesquisas.
Acreditamos que essa noção, proveniente
do mundo empresarial, tem ganhado expressão no jornalismo como produto de práticas
e discursos que se relacionam ao mercado
de trabalho contemporâneo e que atuam na
constituição de subjetividades - ou seja, a
partir desse cenário pode-se pensar em mudanças, inclusive identitárias, dos jornalistas.
Pode-se pensar, também, como determinados discursos articulados em torno desta
noção têm implicações sobre, ou tensionam,
em alguma medida, representações associadas à ética profissional jornalística, a partir
de uma aproximação mais direta do mundo
do jornalismo com a gramática do mundo
dos negócios - aproximação que um cuidado
distintivo (Bourdieu, 1996) em relação às especificidades do campo (interesse econômico x desinteresse do pólo simbólico constituído historicamente em torno do jornalismo)
buscava evitar. (Oliveira, 2005).
Embora não isentas de tensões e contradições, as narrativas sobre o empreendedorismo se articulam, de alguma maneira, à
lógica prescritiva de um comportamento supostamente capaz de potencializar as oportunidades e diversificar as modalidades de
ocupação, a partir de uma ética empresarial
do trabalho. A partir do entendimento das
prescrições, podemos enxergar as renormalizações (Schwartz; Durrive, 2008) e as ressignificações que os sujeitos-trabalhadores
fazem em relação às prescrições do mundo
do trabalho, a partir de sua atividade e de
seus discursos sobre o trabalho.
(artigo recebido mar.2015/aprovado abr.2015)
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Michelle Roxo de Oliveira / Rafael Grohmann – O jornalista empreendedor: uma reflexão inicial sobre...
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