A Europa Vê o Novo Mundo: Alexander Caldcleugh no Brasil
Julio Jeha
“A Inglaterra, com seu intelecto tão
preciso, tão bem calculado para lidar
de perto com questões morais, para
torná-las exatas por meio de números,
pesos, medidas, geografia, estatística,
por citação e por bom senso”.
(Hippolyte Taine, História da
Literatura Inglesa)
No início do século 19, a campanha de Napoleão para conquistar a Europa e o mundo
atinge seu zênite. Marchando em dreção à Grã Breatnha, seu maior obstáculo, o imperador
francês se alia aos espanhóis e intima os portugueses a se juntarem a ele. Carlos V, rei da
Espanha, declara guerra a dom João, o príncipe regente português, que, assim, concorda em
fechar os portos aos ingleses. Pego entre duas potências em conflito, dom João trás a corte e
seus tesouros para o Brasil, sob a proteção da marinha inglesa. Os conflito europeus se
estendem às Américas: as colônias espanholas se rebelam contra a metrópole e os Estados
Unidos declaram guerra contra a Inglaterra. Em 1815 a elevação do Braxil a reino unido ao de
Portugal põe fim ao sistema colonial e ao monopólio da metrópole.
A proteção contra franceses e espanhóis, entretanto, demandou compensações. Dom
João destitui os ministros francófilos e abre os portos brasileiros. Logo aparecem homens de
negócio, principalmente ingleses, interessados em relações mercantis diretas. Portugal perde,
além do monopólio, a primazia dos negócios brasileiros e deixa de intermediar nossos produtos,
que agora vão diretamente do Rio para Londres. De início os negociantes ingleses criam
escritórios de compra e agências de navios, e formam uma sociedade para importar as
mercadorias com maior demanda; mais tarde, deixam os portos e se espalham pelos centros
econômicos, ampliando as transações. Além de concessões alfandegárias que os favorecem
contra os concorrentes europeus e americanos, esses comerciantes têm o privilégio de um foro
autônomo, onde um juiz conservador julga suas causas. A Inglaterra recebe, assim, poderes de
caixa e suserana, e o Brasil se coloca em sua área de influência.
É nesse cenário que Alexander Caldcleugh acompanha o ministro inglês à corte do Rio de
Janeiro e viaja pela América do Sul, de 1819 a 1821. Se antes esse tipo de viagem era motivado
mais por curiosidade e necessidade de se mapear um território desconhecido, no século 19 à
expansão do conhecimento se junta a expansão do sistema capitalista mundial, e os interesses
mercantilistas prevalecem sem nenhum disfarce. Essa região do Novo Mundo escreve
Caldcleugh no prefácio ao seu relato, que até então estivera “fora do alcance da aventura
comercial estrangeira”, tinha sido “aberta aos empreendimentos britânicos por mudanças
revolucionárias e pela adoção de uma política liberal e iluminada”. Antes da abertura dos portos,
o país estava isolado do resto do mundo com extremo rigor e “pouco se sabia dele, com a
exceção das poucas obras de alguns eruditos ou dos relatos exagerados de portugueses e
espanhóis”. Ao contrário de muitos viajantes, que tornam explícita a conexão entre informação
e expansão comercial no prefácio, mas não retomam esse assunto no texto (Livingstone, por
exemplo), ele dedica grande parte de sua narrativa às condições econômicas e financeiras do país
e afirma convictamente o direito da Inglaterra à exploração do Brasil. Assim, as lutas por uma
hegemonia européia e os tratados impostos às nações mais fracas se convertem, na literatura de
viagem, em motivo para relatar as riquezas naturais e as possibilidades mercantis da América do
Sul.
Caldcleugh faz um relato que ele pretende científico, sem jamais questionar sua condição
de narrador privilegiado por circunstâncias políticas. Sua intenção explícita é mostrar as
oportunidades de negócio e, para tanto, tenta ser objetivo e isento. “O Autor”, diz ele, ainda no
prefácio, “tentou coligir todos os fatos que se relacionam ao governo, aos recursos e às
possibilidades dos países que visitou; e ele acredita ter traçado um esboço imparcial de cada
coisa que observou.” Na maior parte do relato, Caldcleugh se esconde por trás da paisagem e
das informações que encontra, mas, ao se expor a um novo mundo de experiências, ele se
contamina. Ele toma o partido do Brasil contra Portugal, emite comentários, faz ironia e
constantemente usa palavras portuguesas e o vernáculo brasileiro.
Em seu diário de viagem, Caldcleugh descreve o Brasil em relação à Inglaterra e, por
extensão, à Europa. Seu olhar se origina de lá, informado pela ideologia capitalista, à busca de
informações que permitam a expansão do comércio inglês e sua hegemonia sobre os demais.
Como o resto do Novo Mundo, o Brasil aparece como o Outro, o que é diferente do Eu inglês
e europeu, numa relação metrópole–colônia, centro–periferia. Caldcleugh descreve a geografia,
o clima, os costumes, as classes, animais, plantas e, é claro, o comércio e suas possibilidades.
Como tem por objetivo escrever um manual para possíveis investidores, ele se preocupa com o
brasileiro coletivo. A partir de suas informações sobre a raça e o clima, ele presume, os
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negociantes ingleses poderão entender cada brasileiro com quem tiverem de lidar. Seu olhar
oblitera as diferenças, comparando e contrastando o lugar onde está com o país de onde veio e,
vez por outra, com as outras colônias européias na África e na Ásia.
Desde sua partida da Inglaterra, em 9 de setembro de 1819, Caldcleugh observa, toma
notas e medidas, mas, ao contrário de outros viajantes, não se abstém de comentar o que vê. O
porto do Rio de Janeiro se apresenta em sua magnificência, que, segundo ele, muitos tentaram
descrever sem sucesso. Para não incorrer no pecado da presunção e repetir o fracasso, ele passa
a descrever sua localização e suas defesas. Faz o mesmo com a cidade, seus prédios públicos,
suas casas, ruas e estradas, e conclui: “por todos os lados o olho descobre paisagens majestosas,
cobertas com vegetação tropical exuberante; e não importa que o europeu possa, algumas vezes,
ficar aborrecido com a falta de conforto ou com o calor; ele geralmente reconhece que esse
lugar não é superado, ou sequer igualado, por nenhum outro que ele conheça”.
Ao subir para a província das minas, as oportunidades de observação se multiplicam e o
viajante faz um relato quase gráfico. As trilhas passam “pelas gargantas das montanhas, com um
precipício geralmente de um lado, tão densamente coberto de árvores e moitas que não se podia
descobrir nem sua profundidade nem o rio que se ouvia correndo estrepitosamente no fundo”.
A terra exibe “cor de pó de tijolo escuro” e, em alguns lugares, “a estrada estava coberta com
pedaços de cianita azul-claro e as escamas da ardósia ferromicácea reluziam por todos os lados
como brilhantes”. Os rios, de águas “cor de barro vermelho-escuro”, ainda oferecem “aos olhos
do observador uns poucos negros solitários, com uma bateia, procurando ouro e conseguindo
uma subsistência miserável e incerta de uns poucos vinténs por dia”. As cidades se erguem no
alto de morros em cujas encostas precipitosas “buracos enormes foram feitos nos veios ou
ninhos de quartzo; e, freqüentemente, um casebre pendura-se na entrada de uma dessas
escavações, como que para impedir a entrada de invasores”.
Porém, ao contrário do que muitos relatos de viagem fazem, o livro de Caldcleugh não
encena um desejo da volta ao paraíso. A paisagem que o acolhe nada tem de idílica ou pastoral; a
vegetação luxuriante abriga uma fauna barulhenta, estranha e ameaçadora. Aranhas, formigas,
carrapatos e pernilongos conspiram contra o bem-estar dos europeus. Cobras-corais e jararacas
infestam os jardins, jibóias enormes apavoram as montarias, cascavéis traiçoeiras matam
escravos, suruguaçus se escondem em moitas. As estradas são ruins e o calor, inclemente, mata
por desidratação. Se há algum Jardim do Éden, esse deve ser a Inglaterra, onde a natureza parece
ter sido domesticada e obedece a ciclos que, há muito, os homens conhecem e controlam.
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Mais do que a geografia, Caldcleugh acredita, o clima exerce influência determinante na
população do Brasil, assim como em outras colônias tropicais. Aqui, seus efeitos, “sem serem
particularmente favoráveis à longevidade, não são perniciosos para a vida humana”. Não resta
dúvida, diz ele, que o clima do Brasil seja melhor do que o dos Estados Unidos, ainda que de
acordo com critérios vagos (talvez ele estivesse pensando mais no clima político do que no
natural). O calor tropical do Rio de Janeiro, entretanto, “tornou qualquer respeito pelas leis da
sociedade extremamente desagradável” e “vestir-se por completo” era algo que só se fazia à
noite. Para ele, não são as leis da sociedade que devem se adaptar ao ambiente, mas o contrário,
ecoando a ideologia britânica de conquista da natureza e sua submissão às convenções de uma
cultura hegemônica.
Sobre a ópera do Rio de Janeiro, Caldcleugh observa que “não se pode negar que algumas
das Vênus do balé não tivessem exatamente um matiz europeu; mas, neste clima, deve-se fazer
grandes concessões”. O imaginário europeu fornece o ideal de beleza com o qual ele julga as
brasileiras, atribuindo, de maneira condescendente, as diferenças ao clima. Essa postura se
repete quando ele explica que “o clima e os hábitos reclusos das mulheres brasileiras têm, cedo
ainda, um efeito considerável em sua aparência” e logo sua juventude se vai.
O clima tem conseqüências mais graves. Ele priva os brasileiros, ou quem quer que more
no país, “daquela atividade mental que não falta na Europa e (...) produz, na verdade, uma
lassidão considerável”. Por isso e pela “variedade de carências, que deixa pouco tempo para o
prazer intelectual”, não existe literatura no Brasil. Um beneditino disse a Caldcleugh que “este
não é um país bom para a leitura”, com o que ele concordou, pois “é necessário mais energia –
mais amor pela leitura – do que os nativos deste excelente país têm, para lutar contra uma
lassidão crescente”. Como outros países tropicais, o Brasil não favorece a imigração européia
em massa: o calor excessivo, a rapidez da vegetação e a facilidade em obter comida provocam
“indolência, doença e morte”. A natureza nos trópicos é Outra; incontrolável, ela não se
submete à razão civilizadora e faz do Brasil um pandemônio onde os europeus podem encontrar
um destino nefasto.
A convivência das raças, no entanto, desmorona o arcabouço mental que Caldcleugh
utiliza para explicar o mundo. O mesmo clima que faz com que a gangrena se desenvolva com
rapidez e mate brasileiros e mulas é ótimo para os negros, que, em virtude dele, “em geral, têm
boas condições de saúde”. Para os europeus, ele trás malefícios, como aconteceu com os
colonos suíços que o governo tentou estabelecer no Rio: o clima os dizimou e afetou seus
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hábitos morais. Ainda que os mineiros exaltem a salubridade do clima das montanhas e
reclamem que o calor do Rio destrói a saúde, a ele parece que a província é malsã, impressão
confirmada pelo médico inglês estabelecido em Vila Rica. Se a população fosse homogênea, ele
lamenta em outra situação – e o clima uniforme como na Inglaterra, pode-se acrescentar – sua
tarefa seria mais fácil e sua teoria encontraria respaldo nos fatos.
Essa mistura de raças e o clima tropical produzem costumes próprios do país, que
Caldcleugh diz não querer julgar de maneira alguma. Aqui, como na maior parte da literatura de
viagem, a descrição das maneiras e dos costumes tenta apagar a individualidade do nativo,
codificar as diferenças e fixar o Outro num presente ahistórico, onde seus hábitos se repetem,
sem variação. Todos os brasileiros “se levantam cedo”, segundo ele, “e começam o dia se
debruçando nas janelas parcialmente vestidos, para aproveitar o ar da manhã; eles jantam cedo,
passam muito tempo no sofá, comem uma ceia substancial e se deitam”. Não ocorre a
Caldcleugh que ele está descrevendo alguns habitantes do Rio de Janeiro, que é apenas umas das
províncias. Mesmo depois de ter ido às Minas Gerais, bastante diferente da capital, segundo ele
próprio, Caldcleugh não corrige suas observações. Seu discurso só se altera com a passagem do
“eles” coletivo para o “ele”, não do indivíduo, mas do espécime tipo.
“Como fazem pouco exercício e comem muito, [os brasileiros] se tornam, naquele
período da vida quando as paixões se acalmam, mais corpulentos do que acontece na Europa em
geral: esse comentário se aplica mais particularmente às mulheres”. Aqui, ele generaliza Brasil e
Europa, mas distingue entre homens e mulheres. Essa distinção é ilusória; ela serve apenas para
validar a comparação em bloco. O mesmo acontece quando ele descreve a família. Como o
núcleo parental é o menor grupo constitutivo da sociedade, ele também – e principalmente por
isso – deve ser codificado, nivelado e reificado. “É aos domingos e nos dias de festa que a família
brasileira exibe toda sua riqueza e magnificência. A casa se prepara para ir à igreja desde cedo e
marcha, quase sem exceção, na seguinte ordem: primeiro, o chefe da família, (...) Em seguida
vem a dona da casa, (...) Depois vêm os filhos e filhas. Atrás vem a mulatinha favorita da
senhora, (...), e talvez mais duas ou três da mesma posição; depois, um mordomo preto, (...);
depois, pretos de ambos os sexos, com sapatos e sem meias, e alguns sem nenhum dos dois; e
dois ou três pretinhos, sem muita roupa para atrapalhar, formam a retaguarda.” As elipses
ocultam as descrições do vestuário, que, claro, é o mesmo para todos os brasileiros. A locução
“quase sem exceção” desempenha o mesmo papel que “particularmente” teve no exemplo
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anterior: ela parece abrir um espaço para a diferença quando, na verdade, está corroborando o
nivelamento da família brasileira.
A viagem às Minas Gerais e o encontro com outros brasileiros pouco faz para mudar o
discurso generalizante. Em Vila Rica ele teve a oportunidade de observar “como, em geral, as
senhoras das Minas são magras” e “adoram mostrar sua habilidade de fazer compotas, que todas
as classes gostam tanto que raramente se come fruta crua”. Note-se, além da generalização
sobre as mulheres, que “todas as classes” têm o mesmo gosto. “Em geral”, escreve Caldcleugh,
os mineiros “são altos, magros e bem feitos de corpo, com o semblante alegre e a pele morena
bem clara; eles têm pescoços longos e peitos estreitos, com cabelo e olhos pretos”. Outra vez,
“em geral” tenta qualificar a afirmação, mas o estratagema desmorona na frase seguinte:
“Dificilmente se encontra outra raça com características mais marcantes do que essa;
independentemente de suas roupas, eles logo se distinguem, nas ruas do Rio de Janeiro, dos
habitantes da costa brasileira ou de São Paulo”. Os mineiros como “raça” se salientam entre
outros grupos de brasileiros, mas, mesmo assim, no conjunto eles formam um bloco com
características indistintas aos olhos de Caldcleugh e, mais ainda, dos possíveis negociantes
ingleses.
Caldcleugh adota uma estratégia ainda mais niveladora com os portugueses e os negros.
Os portugueses “nunca se distinguiram pelo amor a essa virtude [limpeza]”; “suas casas
geralmente são mesquinhas e mal mobiliadas”, pois eles não se preocupam em dar “aquele ar de
conforto às suas casas que um inglês procura em qualquer circunstância”. Julgamentos morais
seguem procedimento idêntico e se aplicam a ambos os grupos: “uma grande parte dos vícios
dos portugueses e seus descendentes está imersa naquela massa de depravação peculiar aos
escravos, obrigados a obedecer todo desejo e paixão de seus senhores”. Desejo e paixão
misturados com depravação produzem conexões entre brancos e escravos, das quais resulta um
grande número de alforrias e uma raça mestiça. Porém, “a julgar pelos efeitos costumeiros da
alforria, o negro estaria melhor nos grilhões da escravatura. Os negros livres são geralmente
preguiçosos, cheios de vícios e desordeiros”. Isso se deve não totalmente à raça, mas “por terem
sido soltos no mundo sem estarem preparados”. O resultado é que, despreparados, eles se
desgraçam e dão um mau exemplo para os demais escravos. Caldcleugh não leva em conta que
os africanos foram desterrados, daí não “estarem preparados” para viver num ambiente
estranho, ainda que não exatamente hostil, onde eles ocupam a posição mais baixa na hierarquia
do poder.
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Além dos negros, os índios também perdem sua individualidade sob o olhar nivelador de
Caldcleugh. Seus hábitos nômades, segundo ele, “impedem totalmente o trabalho perseverante
necessário nas plantações, e pouco ou nada de bom pode advir do seu emprego”. Sua moral se
restringe a “uma vaga idéia de um espírito do bem e do mal e de um mundo futuro”. Da mesma
maneira como tenta distinguir uma raça das outras, entre os índios ele enxerga diferenças, mas
só no nível das tribos: ele jamais conseguiu “descobrir nenhuma semelhança entre os
botocudos, (...) e os puris, ou coropós, do Brasil, os índios do Paraguai, os araucanos do Chile
ou os descendentes, de crânio pequeno, dos súditos dos incas”. A estratégia é a mesma: os
índios são homogeneizados de modo a formar uma coletividade, mais fácil de serem
contrapostos uns aos outros e aos brasileiros, portugueses ou os outros europeus, tomados
como modelo e ponto de referência.
Tal diversidade de povos dificulta a análise que Caldcleugh pretende científica e isenta.
“Se a população fosse de uma só cor”, ele lamenta, “poder-se-ia descrever o caráter
predominante com mais facilidade”. Como isso não ocorre, ele passa a enumerar os traços de
cada grupo, transformando-os em massas sem características distintas. Assim, seu discurso
produz um Outro textual, sem ancoramento nem na realidade do eu narrador nem num
encontro em que ocorra contato com o Outro. Raça assume uma configuração que nada mais é
que uma lista de características descobertas a partir de uma observação que se quer atemporal e
objetiva. Ele avalia negros e índios em relação à sua capacidade de trabalho e sua adaptabilidade
aos projetos econômicos de exploração da terra, como se eles estivessem separados da natureza,
em reservas textuais. O processo ideológico de reificação se completa e a Inglaterra prevalece
como o centro que estrutura o discurso, que gera o saber e que ordena as relações de poder.
Na literatura de viagem, a descrição dos costumes e das maneiras da população se
encontra embutida na narrativa dos acontecimentos diários. Da mesma forma, as considerações
de Caldcleugh sobre o comércio brasileiro emergem episodicamente, mas sempre tendo como
referência a Inglaterra e seus interesses. Os ingleses têm “o comércio brasileiro inteiramente nas
mãos (...), como se existisse um monopólio exclusivo em seu favor”, ele escreve, garantido pelo
tratado de 1810, que concedia vantagens alfandegárias a seus produtos. Esse tratado, em sua
avaliação, “nada mais era que o quê a estrita amizade entre as duas cortes e a assistência material
de sangue e dinheiro fornecida a Portugal, de todas as maneiras, deram à Inglaterra o direito de
esperar. Esse tratado foi sempre considerado desfavorável pelos brasileiros, em parte por causa
de sua ignorância dos verdadeiros princípios do comércio e em parte por considerarem que o
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equivalente oferecido à mãe pátria por essas vantagens nada tivesse a ver com eles e não os
beneficiasse de maneira nenhuma”. Contendo sua indignação pelo desconhecimento que os
brasileiros demonstram para com os “verdadeiros princípios do comércio”, Caldcleugh
acrescenta que logo o acordo expira e que eles poderão, então, procurar quem lhes ofereça
maiores vantagens, mas tem certeza que o Brasil saberá enxergar o valor de um aliado tão
poderoso quanto o monarca inglês.
O Brasil compra tudo dos ingleses, “exceto o vinho de Portugal, e a importância desse
comércio para a Inglaterra pode ser bem avaliada quando se menciona que, depois das Índias
Orientais e Ocidentais e dos Estados Unidos, ele é o maior mercado de nossos tecidos e está
crescendo rapidamente”. O pagamento é feito “em diamantes e pedras preciosas, ouro, café,
algodão, açúcar e tabaco trazidos do interior (...), algumas drogas e madeiras tintórias”. A
Inglaterra não precisa temer nenhuma competição dos demais países com quem o Brasil faz
negócios, pois o “capital imenso que [os comerciantes ingleses] têm à sua disposição espanta
todos os estrangeiros e os força a abandonar qualquer idéia de competição”. Bom para a
Inglaterra, ruim para o Brasil, que se encontra nas mãos de um fornecedor quase que exclusivo,
com direitos e regalias que o favorecem em detrimento de seu próprio mercado. O sistema
colonial foi trocado pelo capitalista, e o monopólio de Lisboa, pelo açambarcamento de
Londres; o Brasil continua como um país periférico, consumidor de produtos manufaturados e
fornecedor de matéria prima.
Com a volta de dom João a Portugal, um grande número de comerciantes portugueses,
temerosos do que poderia lhes acontecer, também decidiu retornar. Por isso, aconselha
Caldcleugh, “convém ao novo governo dar todas as facilidades aos estrangeiros inclinados a
tentar sua fortuna no Brasil, garantindo-lhes em lei uma naturalização sem grandes custos e
completa proteção daí em diante”. Tais estrangeiros, ingleses em sua grande maioria, teriam
nacionalidade brasileira, diferenciada por privilégios comerciais e tratamento especial perante a
lei. Convenientemente, Caldcleugh se esquiva de mencionar qualquer regulamentação de
remessa de lucros ao exterior.
Na província das Minas Gerais seu olhar se desvia da população para as riquezas do solo.
Ele descreve, com detalhes, a composição dos minérios; avalia a capacidade produtiva das minas
e seu potencial de lucro; “visita todos os casebres e compra tudo que valha a pena possuir”. De
observador atento ele passa a consumidor voraz: “Nenhum outro lugar poderia ter mais
riquezas minerais, e a mula que eu tinha levado comigo de propósito gemia de tanto peso”. Na
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volta ao Rio ele compra mais cinco mulas, três das quais morreram de exaustão, sob o peso da
carga. Para evitar o incômodo de ter de mostrar sua bagagem em cada registro da estrada, ele
aceita uma carta do governador, isentando-o dessa obrigação legal. Comentarista atento da
sonegação de impostos por parte dos mineiros, Caldcleugh, entretanto, não estranha ser
merecedor de tal privilégio, que o livra, provavelmente, da prisão ou mesmo do degredo na
África. Como súdito inglês, esse era um tratamento que ele “tinha o direito de esperar”.
Ainda que a aliança da Inglaterra fosse com Portugal, Caldcleugh toma o lado do Brasil
toda vez que cita alguma divergência entre as antigas metrópole e colônia. Se levarmos em conta
a quantidade de material de construção naval de excelente qualidade que abunda no país, ele
julga que Portugal pouco fez, e, “mais cedo ou mais tarde, pode arrepender-se profundamente
da apatia preguiçosa que permitiu a ruína quase completa de sua marinha”. Os portugueses, diz
ele, não se distinguem pelo asseio, e a nobreza “prezava sua antigüidade mais que o normal e se
considerava (embora não seja fácil entender porque) decididamente superior a seus súditos”.
Também a língua distingue os dois povos: “A pronúncia dos brasileiros não é nem tão nasal
nem tão judia no som do s e, no todo, é uma língua mais agradável na boca de um brasileiro que
na de um nativo”. A crueldade dos portugueses, que “tinham o hábito de perseguir os índios
sempre que podiam”, não lhe passa desapercebida.
Tampouco lhe escapa a inabilidade política de dom João VI: se o rei tivesse perseverado
em sua decisão inicial de manter a sede do império aqui, comenta Caldcleugh, “e mandado seu
filho para a Europa, fazendo concessões e dando privilégios aos brasileiros, seu poder não teria
sido cerceado e a metrópole, de pouca importância depois da perda do Brasil, teria voltado ao
domínio de d. João VI.” Estaríamos, assim, na condição singular de ser um país sul-americano
com possessões na Europa, numa inversão do fluxo de poder e do eixo centro–periferia.
Pergunta-se se isso era um mero devaneio com repercussões geopolíticas além da
compreensão de Caldcleugh ou se ele, diplomata a serviço de Sua Majestade inglesa, acenava
com promessas de fortuna rápida a seus concidadãos e, ao mesmo tempo, com previsões
otimistas aos brasileiros. Esse futuro promissor, entretanto, vem condicionado: ele só ocorrerá
“se o Brasil se mantiver em paz por algum tempo”, isto é, sem revoltas republicanas e
nacionalistas que ponham em risco os empreendimentos europeus, e se “os negócios forem bem
conduzidos”, isto é, de acordo com os ingleses, versados que são nos “verdadeiros princípios do
mercado”. Caso essas duas condições sejam atendidas, “o tesouro prosperará por fim”, ele
garante.
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Mais que um compêndio para investidores, o livro de Caldcleugh dá forma às relações
entre a linguagem, o pensamento e a conduta que fundamentam o império inglês no início do
século 19. Como várias narrativas de viagem, ele representa a construção do Novo Mundo (e da
África e da Ásia) como o Outro da Europa. Reciprocamente, esse embate define a Europa como
fonte e origem da teia de relações de conhecimento e poder que constitui a civilização ocidental.
Ao contrário de outros relatos, porém, o narrador, que procura se esconder por trás de um
discurso pseudocientífico, às vezes irrompe como dono da narrativa, inserindo uma voz em
desacordo com as convenções desse tipo de literatura. Esse contraponto, entretanto, não basta
para desmistificar a possibilidade de se reificar maneiras e costumes, povos e paisagens em um
mundo sem diferenças, a serviço de uma ideologia hegemônica.
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