A Europa Vê o Novo Mundo: Alexander Caldcleugh no Brasil Julio Jeha “A Inglaterra, com seu intelecto tão preciso, tão bem calculado para lidar de perto com questões morais, para torná-las exatas por meio de números, pesos, medidas, geografia, estatística, por citação e por bom senso”. (Hippolyte Taine, História da Literatura Inglesa) No início do século 19, a campanha de Napoleão para conquistar a Europa e o mundo atinge seu zênite. Marchando em dreção à Grã Breatnha, seu maior obstáculo, o imperador francês se alia aos espanhóis e intima os portugueses a se juntarem a ele. Carlos V, rei da Espanha, declara guerra a dom João, o príncipe regente português, que, assim, concorda em fechar os portos aos ingleses. Pego entre duas potências em conflito, dom João trás a corte e seus tesouros para o Brasil, sob a proteção da marinha inglesa. Os conflito europeus se estendem às Américas: as colônias espanholas se rebelam contra a metrópole e os Estados Unidos declaram guerra contra a Inglaterra. Em 1815 a elevação do Braxil a reino unido ao de Portugal põe fim ao sistema colonial e ao monopólio da metrópole. A proteção contra franceses e espanhóis, entretanto, demandou compensações. Dom João destitui os ministros francófilos e abre os portos brasileiros. Logo aparecem homens de negócio, principalmente ingleses, interessados em relações mercantis diretas. Portugal perde, além do monopólio, a primazia dos negócios brasileiros e deixa de intermediar nossos produtos, que agora vão diretamente do Rio para Londres. De início os negociantes ingleses criam escritórios de compra e agências de navios, e formam uma sociedade para importar as mercadorias com maior demanda; mais tarde, deixam os portos e se espalham pelos centros econômicos, ampliando as transações. Além de concessões alfandegárias que os favorecem contra os concorrentes europeus e americanos, esses comerciantes têm o privilégio de um foro autônomo, onde um juiz conservador julga suas causas. A Inglaterra recebe, assim, poderes de caixa e suserana, e o Brasil se coloca em sua área de influência. É nesse cenário que Alexander Caldcleugh acompanha o ministro inglês à corte do Rio de Janeiro e viaja pela América do Sul, de 1819 a 1821. Se antes esse tipo de viagem era motivado mais por curiosidade e necessidade de se mapear um território desconhecido, no século 19 à expansão do conhecimento se junta a expansão do sistema capitalista mundial, e os interesses mercantilistas prevalecem sem nenhum disfarce. Essa região do Novo Mundo escreve Caldcleugh no prefácio ao seu relato, que até então estivera “fora do alcance da aventura comercial estrangeira”, tinha sido “aberta aos empreendimentos britânicos por mudanças revolucionárias e pela adoção de uma política liberal e iluminada”. Antes da abertura dos portos, o país estava isolado do resto do mundo com extremo rigor e “pouco se sabia dele, com a exceção das poucas obras de alguns eruditos ou dos relatos exagerados de portugueses e espanhóis”. Ao contrário de muitos viajantes, que tornam explícita a conexão entre informação e expansão comercial no prefácio, mas não retomam esse assunto no texto (Livingstone, por exemplo), ele dedica grande parte de sua narrativa às condições econômicas e financeiras do país e afirma convictamente o direito da Inglaterra à exploração do Brasil. Assim, as lutas por uma hegemonia européia e os tratados impostos às nações mais fracas se convertem, na literatura de viagem, em motivo para relatar as riquezas naturais e as possibilidades mercantis da América do Sul. Caldcleugh faz um relato que ele pretende científico, sem jamais questionar sua condição de narrador privilegiado por circunstâncias políticas. Sua intenção explícita é mostrar as oportunidades de negócio e, para tanto, tenta ser objetivo e isento. “O Autor”, diz ele, ainda no prefácio, “tentou coligir todos os fatos que se relacionam ao governo, aos recursos e às possibilidades dos países que visitou; e ele acredita ter traçado um esboço imparcial de cada coisa que observou.” Na maior parte do relato, Caldcleugh se esconde por trás da paisagem e das informações que encontra, mas, ao se expor a um novo mundo de experiências, ele se contamina. Ele toma o partido do Brasil contra Portugal, emite comentários, faz ironia e constantemente usa palavras portuguesas e o vernáculo brasileiro. Em seu diário de viagem, Caldcleugh descreve o Brasil em relação à Inglaterra e, por extensão, à Europa. Seu olhar se origina de lá, informado pela ideologia capitalista, à busca de informações que permitam a expansão do comércio inglês e sua hegemonia sobre os demais. Como o resto do Novo Mundo, o Brasil aparece como o Outro, o que é diferente do Eu inglês e europeu, numa relação metrópole–colônia, centro–periferia. Caldcleugh descreve a geografia, o clima, os costumes, as classes, animais, plantas e, é claro, o comércio e suas possibilidades. Como tem por objetivo escrever um manual para possíveis investidores, ele se preocupa com o brasileiro coletivo. A partir de suas informações sobre a raça e o clima, ele presume, os 2 negociantes ingleses poderão entender cada brasileiro com quem tiverem de lidar. Seu olhar oblitera as diferenças, comparando e contrastando o lugar onde está com o país de onde veio e, vez por outra, com as outras colônias européias na África e na Ásia. Desde sua partida da Inglaterra, em 9 de setembro de 1819, Caldcleugh observa, toma notas e medidas, mas, ao contrário de outros viajantes, não se abstém de comentar o que vê. O porto do Rio de Janeiro se apresenta em sua magnificência, que, segundo ele, muitos tentaram descrever sem sucesso. Para não incorrer no pecado da presunção e repetir o fracasso, ele passa a descrever sua localização e suas defesas. Faz o mesmo com a cidade, seus prédios públicos, suas casas, ruas e estradas, e conclui: “por todos os lados o olho descobre paisagens majestosas, cobertas com vegetação tropical exuberante; e não importa que o europeu possa, algumas vezes, ficar aborrecido com a falta de conforto ou com o calor; ele geralmente reconhece que esse lugar não é superado, ou sequer igualado, por nenhum outro que ele conheça”. Ao subir para a província das minas, as oportunidades de observação se multiplicam e o viajante faz um relato quase gráfico. As trilhas passam “pelas gargantas das montanhas, com um precipício geralmente de um lado, tão densamente coberto de árvores e moitas que não se podia descobrir nem sua profundidade nem o rio que se ouvia correndo estrepitosamente no fundo”. A terra exibe “cor de pó de tijolo escuro” e, em alguns lugares, “a estrada estava coberta com pedaços de cianita azul-claro e as escamas da ardósia ferromicácea reluziam por todos os lados como brilhantes”. Os rios, de águas “cor de barro vermelho-escuro”, ainda oferecem “aos olhos do observador uns poucos negros solitários, com uma bateia, procurando ouro e conseguindo uma subsistência miserável e incerta de uns poucos vinténs por dia”. As cidades se erguem no alto de morros em cujas encostas precipitosas “buracos enormes foram feitos nos veios ou ninhos de quartzo; e, freqüentemente, um casebre pendura-se na entrada de uma dessas escavações, como que para impedir a entrada de invasores”. Porém, ao contrário do que muitos relatos de viagem fazem, o livro de Caldcleugh não encena um desejo da volta ao paraíso. A paisagem que o acolhe nada tem de idílica ou pastoral; a vegetação luxuriante abriga uma fauna barulhenta, estranha e ameaçadora. Aranhas, formigas, carrapatos e pernilongos conspiram contra o bem-estar dos europeus. Cobras-corais e jararacas infestam os jardins, jibóias enormes apavoram as montarias, cascavéis traiçoeiras matam escravos, suruguaçus se escondem em moitas. As estradas são ruins e o calor, inclemente, mata por desidratação. Se há algum Jardim do Éden, esse deve ser a Inglaterra, onde a natureza parece ter sido domesticada e obedece a ciclos que, há muito, os homens conhecem e controlam. 3 Mais do que a geografia, Caldcleugh acredita, o clima exerce influência determinante na população do Brasil, assim como em outras colônias tropicais. Aqui, seus efeitos, “sem serem particularmente favoráveis à longevidade, não são perniciosos para a vida humana”. Não resta dúvida, diz ele, que o clima do Brasil seja melhor do que o dos Estados Unidos, ainda que de acordo com critérios vagos (talvez ele estivesse pensando mais no clima político do que no natural). O calor tropical do Rio de Janeiro, entretanto, “tornou qualquer respeito pelas leis da sociedade extremamente desagradável” e “vestir-se por completo” era algo que só se fazia à noite. Para ele, não são as leis da sociedade que devem se adaptar ao ambiente, mas o contrário, ecoando a ideologia britânica de conquista da natureza e sua submissão às convenções de uma cultura hegemônica. Sobre a ópera do Rio de Janeiro, Caldcleugh observa que “não se pode negar que algumas das Vênus do balé não tivessem exatamente um matiz europeu; mas, neste clima, deve-se fazer grandes concessões”. O imaginário europeu fornece o ideal de beleza com o qual ele julga as brasileiras, atribuindo, de maneira condescendente, as diferenças ao clima. Essa postura se repete quando ele explica que “o clima e os hábitos reclusos das mulheres brasileiras têm, cedo ainda, um efeito considerável em sua aparência” e logo sua juventude se vai. O clima tem conseqüências mais graves. Ele priva os brasileiros, ou quem quer que more no país, “daquela atividade mental que não falta na Europa e (...) produz, na verdade, uma lassidão considerável”. Por isso e pela “variedade de carências, que deixa pouco tempo para o prazer intelectual”, não existe literatura no Brasil. Um beneditino disse a Caldcleugh que “este não é um país bom para a leitura”, com o que ele concordou, pois “é necessário mais energia – mais amor pela leitura – do que os nativos deste excelente país têm, para lutar contra uma lassidão crescente”. Como outros países tropicais, o Brasil não favorece a imigração européia em massa: o calor excessivo, a rapidez da vegetação e a facilidade em obter comida provocam “indolência, doença e morte”. A natureza nos trópicos é Outra; incontrolável, ela não se submete à razão civilizadora e faz do Brasil um pandemônio onde os europeus podem encontrar um destino nefasto. A convivência das raças, no entanto, desmorona o arcabouço mental que Caldcleugh utiliza para explicar o mundo. O mesmo clima que faz com que a gangrena se desenvolva com rapidez e mate brasileiros e mulas é ótimo para os negros, que, em virtude dele, “em geral, têm boas condições de saúde”. Para os europeus, ele trás malefícios, como aconteceu com os colonos suíços que o governo tentou estabelecer no Rio: o clima os dizimou e afetou seus 4 hábitos morais. Ainda que os mineiros exaltem a salubridade do clima das montanhas e reclamem que o calor do Rio destrói a saúde, a ele parece que a província é malsã, impressão confirmada pelo médico inglês estabelecido em Vila Rica. Se a população fosse homogênea, ele lamenta em outra situação – e o clima uniforme como na Inglaterra, pode-se acrescentar – sua tarefa seria mais fácil e sua teoria encontraria respaldo nos fatos. Essa mistura de raças e o clima tropical produzem costumes próprios do país, que Caldcleugh diz não querer julgar de maneira alguma. Aqui, como na maior parte da literatura de viagem, a descrição das maneiras e dos costumes tenta apagar a individualidade do nativo, codificar as diferenças e fixar o Outro num presente ahistórico, onde seus hábitos se repetem, sem variação. Todos os brasileiros “se levantam cedo”, segundo ele, “e começam o dia se debruçando nas janelas parcialmente vestidos, para aproveitar o ar da manhã; eles jantam cedo, passam muito tempo no sofá, comem uma ceia substancial e se deitam”. Não ocorre a Caldcleugh que ele está descrevendo alguns habitantes do Rio de Janeiro, que é apenas umas das províncias. Mesmo depois de ter ido às Minas Gerais, bastante diferente da capital, segundo ele próprio, Caldcleugh não corrige suas observações. Seu discurso só se altera com a passagem do “eles” coletivo para o “ele”, não do indivíduo, mas do espécime tipo. “Como fazem pouco exercício e comem muito, [os brasileiros] se tornam, naquele período da vida quando as paixões se acalmam, mais corpulentos do que acontece na Europa em geral: esse comentário se aplica mais particularmente às mulheres”. Aqui, ele generaliza Brasil e Europa, mas distingue entre homens e mulheres. Essa distinção é ilusória; ela serve apenas para validar a comparação em bloco. O mesmo acontece quando ele descreve a família. Como o núcleo parental é o menor grupo constitutivo da sociedade, ele também – e principalmente por isso – deve ser codificado, nivelado e reificado. “É aos domingos e nos dias de festa que a família brasileira exibe toda sua riqueza e magnificência. A casa se prepara para ir à igreja desde cedo e marcha, quase sem exceção, na seguinte ordem: primeiro, o chefe da família, (...) Em seguida vem a dona da casa, (...) Depois vêm os filhos e filhas. Atrás vem a mulatinha favorita da senhora, (...), e talvez mais duas ou três da mesma posição; depois, um mordomo preto, (...); depois, pretos de ambos os sexos, com sapatos e sem meias, e alguns sem nenhum dos dois; e dois ou três pretinhos, sem muita roupa para atrapalhar, formam a retaguarda.” As elipses ocultam as descrições do vestuário, que, claro, é o mesmo para todos os brasileiros. A locução “quase sem exceção” desempenha o mesmo papel que “particularmente” teve no exemplo 5 anterior: ela parece abrir um espaço para a diferença quando, na verdade, está corroborando o nivelamento da família brasileira. A viagem às Minas Gerais e o encontro com outros brasileiros pouco faz para mudar o discurso generalizante. Em Vila Rica ele teve a oportunidade de observar “como, em geral, as senhoras das Minas são magras” e “adoram mostrar sua habilidade de fazer compotas, que todas as classes gostam tanto que raramente se come fruta crua”. Note-se, além da generalização sobre as mulheres, que “todas as classes” têm o mesmo gosto. “Em geral”, escreve Caldcleugh, os mineiros “são altos, magros e bem feitos de corpo, com o semblante alegre e a pele morena bem clara; eles têm pescoços longos e peitos estreitos, com cabelo e olhos pretos”. Outra vez, “em geral” tenta qualificar a afirmação, mas o estratagema desmorona na frase seguinte: “Dificilmente se encontra outra raça com características mais marcantes do que essa; independentemente de suas roupas, eles logo se distinguem, nas ruas do Rio de Janeiro, dos habitantes da costa brasileira ou de São Paulo”. Os mineiros como “raça” se salientam entre outros grupos de brasileiros, mas, mesmo assim, no conjunto eles formam um bloco com características indistintas aos olhos de Caldcleugh e, mais ainda, dos possíveis negociantes ingleses. Caldcleugh adota uma estratégia ainda mais niveladora com os portugueses e os negros. Os portugueses “nunca se distinguiram pelo amor a essa virtude [limpeza]”; “suas casas geralmente são mesquinhas e mal mobiliadas”, pois eles não se preocupam em dar “aquele ar de conforto às suas casas que um inglês procura em qualquer circunstância”. Julgamentos morais seguem procedimento idêntico e se aplicam a ambos os grupos: “uma grande parte dos vícios dos portugueses e seus descendentes está imersa naquela massa de depravação peculiar aos escravos, obrigados a obedecer todo desejo e paixão de seus senhores”. Desejo e paixão misturados com depravação produzem conexões entre brancos e escravos, das quais resulta um grande número de alforrias e uma raça mestiça. Porém, “a julgar pelos efeitos costumeiros da alforria, o negro estaria melhor nos grilhões da escravatura. Os negros livres são geralmente preguiçosos, cheios de vícios e desordeiros”. Isso se deve não totalmente à raça, mas “por terem sido soltos no mundo sem estarem preparados”. O resultado é que, despreparados, eles se desgraçam e dão um mau exemplo para os demais escravos. Caldcleugh não leva em conta que os africanos foram desterrados, daí não “estarem preparados” para viver num ambiente estranho, ainda que não exatamente hostil, onde eles ocupam a posição mais baixa na hierarquia do poder. 6 Além dos negros, os índios também perdem sua individualidade sob o olhar nivelador de Caldcleugh. Seus hábitos nômades, segundo ele, “impedem totalmente o trabalho perseverante necessário nas plantações, e pouco ou nada de bom pode advir do seu emprego”. Sua moral se restringe a “uma vaga idéia de um espírito do bem e do mal e de um mundo futuro”. Da mesma maneira como tenta distinguir uma raça das outras, entre os índios ele enxerga diferenças, mas só no nível das tribos: ele jamais conseguiu “descobrir nenhuma semelhança entre os botocudos, (...) e os puris, ou coropós, do Brasil, os índios do Paraguai, os araucanos do Chile ou os descendentes, de crânio pequeno, dos súditos dos incas”. A estratégia é a mesma: os índios são homogeneizados de modo a formar uma coletividade, mais fácil de serem contrapostos uns aos outros e aos brasileiros, portugueses ou os outros europeus, tomados como modelo e ponto de referência. Tal diversidade de povos dificulta a análise que Caldcleugh pretende científica e isenta. “Se a população fosse de uma só cor”, ele lamenta, “poder-se-ia descrever o caráter predominante com mais facilidade”. Como isso não ocorre, ele passa a enumerar os traços de cada grupo, transformando-os em massas sem características distintas. Assim, seu discurso produz um Outro textual, sem ancoramento nem na realidade do eu narrador nem num encontro em que ocorra contato com o Outro. Raça assume uma configuração que nada mais é que uma lista de características descobertas a partir de uma observação que se quer atemporal e objetiva. Ele avalia negros e índios em relação à sua capacidade de trabalho e sua adaptabilidade aos projetos econômicos de exploração da terra, como se eles estivessem separados da natureza, em reservas textuais. O processo ideológico de reificação se completa e a Inglaterra prevalece como o centro que estrutura o discurso, que gera o saber e que ordena as relações de poder. Na literatura de viagem, a descrição dos costumes e das maneiras da população se encontra embutida na narrativa dos acontecimentos diários. Da mesma forma, as considerações de Caldcleugh sobre o comércio brasileiro emergem episodicamente, mas sempre tendo como referência a Inglaterra e seus interesses. Os ingleses têm “o comércio brasileiro inteiramente nas mãos (...), como se existisse um monopólio exclusivo em seu favor”, ele escreve, garantido pelo tratado de 1810, que concedia vantagens alfandegárias a seus produtos. Esse tratado, em sua avaliação, “nada mais era que o quê a estrita amizade entre as duas cortes e a assistência material de sangue e dinheiro fornecida a Portugal, de todas as maneiras, deram à Inglaterra o direito de esperar. Esse tratado foi sempre considerado desfavorável pelos brasileiros, em parte por causa de sua ignorância dos verdadeiros princípios do comércio e em parte por considerarem que o 7 equivalente oferecido à mãe pátria por essas vantagens nada tivesse a ver com eles e não os beneficiasse de maneira nenhuma”. Contendo sua indignação pelo desconhecimento que os brasileiros demonstram para com os “verdadeiros princípios do comércio”, Caldcleugh acrescenta que logo o acordo expira e que eles poderão, então, procurar quem lhes ofereça maiores vantagens, mas tem certeza que o Brasil saberá enxergar o valor de um aliado tão poderoso quanto o monarca inglês. O Brasil compra tudo dos ingleses, “exceto o vinho de Portugal, e a importância desse comércio para a Inglaterra pode ser bem avaliada quando se menciona que, depois das Índias Orientais e Ocidentais e dos Estados Unidos, ele é o maior mercado de nossos tecidos e está crescendo rapidamente”. O pagamento é feito “em diamantes e pedras preciosas, ouro, café, algodão, açúcar e tabaco trazidos do interior (...), algumas drogas e madeiras tintórias”. A Inglaterra não precisa temer nenhuma competição dos demais países com quem o Brasil faz negócios, pois o “capital imenso que [os comerciantes ingleses] têm à sua disposição espanta todos os estrangeiros e os força a abandonar qualquer idéia de competição”. Bom para a Inglaterra, ruim para o Brasil, que se encontra nas mãos de um fornecedor quase que exclusivo, com direitos e regalias que o favorecem em detrimento de seu próprio mercado. O sistema colonial foi trocado pelo capitalista, e o monopólio de Lisboa, pelo açambarcamento de Londres; o Brasil continua como um país periférico, consumidor de produtos manufaturados e fornecedor de matéria prima. Com a volta de dom João a Portugal, um grande número de comerciantes portugueses, temerosos do que poderia lhes acontecer, também decidiu retornar. Por isso, aconselha Caldcleugh, “convém ao novo governo dar todas as facilidades aos estrangeiros inclinados a tentar sua fortuna no Brasil, garantindo-lhes em lei uma naturalização sem grandes custos e completa proteção daí em diante”. Tais estrangeiros, ingleses em sua grande maioria, teriam nacionalidade brasileira, diferenciada por privilégios comerciais e tratamento especial perante a lei. Convenientemente, Caldcleugh se esquiva de mencionar qualquer regulamentação de remessa de lucros ao exterior. Na província das Minas Gerais seu olhar se desvia da população para as riquezas do solo. Ele descreve, com detalhes, a composição dos minérios; avalia a capacidade produtiva das minas e seu potencial de lucro; “visita todos os casebres e compra tudo que valha a pena possuir”. De observador atento ele passa a consumidor voraz: “Nenhum outro lugar poderia ter mais riquezas minerais, e a mula que eu tinha levado comigo de propósito gemia de tanto peso”. Na 8 volta ao Rio ele compra mais cinco mulas, três das quais morreram de exaustão, sob o peso da carga. Para evitar o incômodo de ter de mostrar sua bagagem em cada registro da estrada, ele aceita uma carta do governador, isentando-o dessa obrigação legal. Comentarista atento da sonegação de impostos por parte dos mineiros, Caldcleugh, entretanto, não estranha ser merecedor de tal privilégio, que o livra, provavelmente, da prisão ou mesmo do degredo na África. Como súdito inglês, esse era um tratamento que ele “tinha o direito de esperar”. Ainda que a aliança da Inglaterra fosse com Portugal, Caldcleugh toma o lado do Brasil toda vez que cita alguma divergência entre as antigas metrópole e colônia. Se levarmos em conta a quantidade de material de construção naval de excelente qualidade que abunda no país, ele julga que Portugal pouco fez, e, “mais cedo ou mais tarde, pode arrepender-se profundamente da apatia preguiçosa que permitiu a ruína quase completa de sua marinha”. Os portugueses, diz ele, não se distinguem pelo asseio, e a nobreza “prezava sua antigüidade mais que o normal e se considerava (embora não seja fácil entender porque) decididamente superior a seus súditos”. Também a língua distingue os dois povos: “A pronúncia dos brasileiros não é nem tão nasal nem tão judia no som do s e, no todo, é uma língua mais agradável na boca de um brasileiro que na de um nativo”. A crueldade dos portugueses, que “tinham o hábito de perseguir os índios sempre que podiam”, não lhe passa desapercebida. Tampouco lhe escapa a inabilidade política de dom João VI: se o rei tivesse perseverado em sua decisão inicial de manter a sede do império aqui, comenta Caldcleugh, “e mandado seu filho para a Europa, fazendo concessões e dando privilégios aos brasileiros, seu poder não teria sido cerceado e a metrópole, de pouca importância depois da perda do Brasil, teria voltado ao domínio de d. João VI.” Estaríamos, assim, na condição singular de ser um país sul-americano com possessões na Europa, numa inversão do fluxo de poder e do eixo centro–periferia. Pergunta-se se isso era um mero devaneio com repercussões geopolíticas além da compreensão de Caldcleugh ou se ele, diplomata a serviço de Sua Majestade inglesa, acenava com promessas de fortuna rápida a seus concidadãos e, ao mesmo tempo, com previsões otimistas aos brasileiros. Esse futuro promissor, entretanto, vem condicionado: ele só ocorrerá “se o Brasil se mantiver em paz por algum tempo”, isto é, sem revoltas republicanas e nacionalistas que ponham em risco os empreendimentos europeus, e se “os negócios forem bem conduzidos”, isto é, de acordo com os ingleses, versados que são nos “verdadeiros princípios do mercado”. Caso essas duas condições sejam atendidas, “o tesouro prosperará por fim”, ele garante. 9 Mais que um compêndio para investidores, o livro de Caldcleugh dá forma às relações entre a linguagem, o pensamento e a conduta que fundamentam o império inglês no início do século 19. Como várias narrativas de viagem, ele representa a construção do Novo Mundo (e da África e da Ásia) como o Outro da Europa. Reciprocamente, esse embate define a Europa como fonte e origem da teia de relações de conhecimento e poder que constitui a civilização ocidental. Ao contrário de outros relatos, porém, o narrador, que procura se esconder por trás de um discurso pseudocientífico, às vezes irrompe como dono da narrativa, inserindo uma voz em desacordo com as convenções desse tipo de literatura. Esse contraponto, entretanto, não basta para desmistificar a possibilidade de se reificar maneiras e costumes, povos e paisagens em um mundo sem diferenças, a serviço de uma ideologia hegemônica. 10