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SP
A estrela da escolha já feita
por Miguel Esteves Cardoso
H
á uma estrela adiantada em todas as nos-
as palavras com o dom de uma balança de merceeiro; mas de nada
sas vidas que nos avisa para onde vamos;
me servem estas habilidades se um outro instinto, desligado mas
embora sempre sem indicar para onde
poderoso, não me mostrasse, dentre as confusões e diante dos
não devemos ir.
mal-entendidos, o rumo das minhas deambulações.
Da mesma maneira que um bom relógio
Quem me lê reconhecerá o paradoxo. Vamos atrás do que nos está
nos diz, muito antes do desastre de
na massa do sangue perseguir. Não há, nesta familiar e dolosa
chegar tarde, que vamos chegar atrasa-
leitura, consanguinidade nenhuma.
dos, esta estrela segue apenas o caminho
Alguma coisa me dizia, por exemplo, embora eu, na altura, não
da nossa vontade e a ela se submete com indiferente alegria.
soubesse ouvir, de tão apoquentado que estava com crescer direito,
Só tenho de escrever as minhas colunas para a Espiral do Tempo de
que nalgum dia a minha filha Tristana estaria a considerar um
três em três meses. Não me encomendam temas. Não fazem sug-
doutoramento em Filosofia sobre o Tempo e O Ser, e que eu, com
estões. A bem ver, tratam-me tão bem como me trata a minha
o meu doutoramento sobre a Saudade e o Tempo, já há mais de
querida Mãe. Mas, mesmo assim, durante três meses dou comigo
vinte anos completado, estaria a escrever acerca disso na Espiral do
a pensar no que terei para dizer – e se vale a pena que seja dito.
Tempo.
Há uma estrela adiantada que, longe de nos conduzir, nos indica
E assim é. Tenho para mim que essa estrela avançada que foge
o caminho que não houvéramos sequer consciência de escolher.
à nossa frente, afinal somente fingindo fugir, nos conduz
Está fixa no nosso céu de possibilidades, desmancha-se em luz
inelutavelmente – o que eu facilmente seria levado a definir desta
mal olhamos para ela; mas segue-nos como quem nos puxasse por
maneira gratuita, mas não menos verdadeira: sem luto, sem nojo.
uma argola no nariz.
A morte do meu Pai apanhou-me desprevenido e muito me
É muito português o fatalismo – isto é comum dizer-se, até
entristece ainda, mas Deus pôs nos meus ossos, mal nasci, o ferro
necessário para aceitá-la e sobreviver a ela, mesmo contra o que
Há uma estrela adiantada que,
longe de nos conduzir, nos indica o
caminho
que
não
houvéramos
sequer consciência de escolher.
parecia ser a minha vontade.
A própria surpresa – e a capacidade de ser surpreendido – fazem
também parte do brilho e da armadura brilhante da nossa estrela,
do anjo avisado que nos acompanha e que nós dizemos
"da guarda" sem fazer alguma ideia má.
Sabemos a média das mortes, as estatísticas de quem bebe e de
quem fuma, a probabilidade de engriparmos e de recuperarmos;
a doce sorte de quem se arrisca sequer a respirar. Mas estes
números crus não andam dentro da nossa estrela; nem atrás
sequer.
quando calha invocar-se o Fado. Mas menos comum e mais útil
São conhecimentos vãos que, por se aplicarem a todos, não se
é reparar, após várias confirmações em linha, que a ideia de não
aplicam nem a mim, nem a si, nem àquela senhora ali ao canto, a
sermos nós a mandar em nós, de que tanto faz resistirmos ou por-
tomar um galão de café de máquina.
fiarmos é um relâmpago de inteligência que nos aflige e, a bem ou
Há mesmo, de verdade, uma estrela adiantada em todas as nossas
a mal, nos leva atrás dele, ofuscados e gratos por tão gentil mapa.
vidas que nos avisa para onde vamos; embora sempre sem indicar
Tenho eu o jeito de armar uma frase atrás doutra; de medir
para onde não devemos ir.
028 | ESPIRAL
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A estrela da escolha já feita