Ética e cidadania Terezinha Azerêdo Rios1 A cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. João Guimarães Rosa Cidadania é dever de povo. Só é cidadão quem conquista o seu lugar na perseverante luta do sonho de uma nação. É também obrigação: a de ajudar a construir a claridão na consciência de quem merece o poder. Força gloriosa que faz um homem ser para outro homem caminho do mesmo chão, luz solidária e canção. Thiago de Mello Tenho recorrido à afirmação de Guimarães Rosa quando preciso chamar atenção para a necessidade de assumirmos uma atitude crítica diante das questões que nos inquietam e desafiam. Olhar criticamente significa procurar ver com clareza, profundidade e abrangência essas questões. Procurar “aumentar a cabeça, para o total”. Implica, portanto, uma atitude humilde e corajosa. A atitude crítica é humilde, no sentido de reconhecer nossos limites. “A cabeça da gente é uma só e as coisas que há são demais de muitas”. Só quem reconhece que não sabe, que há ainda muito por ser conhecido, empreende uma busca no sentido de ampliar seu saber. E é corajosa, porque sempre tende a enfrentar perigos, ameaças. O olhar crítico desvenda, aponta coisas que 1 Doutora em Educação. Professora do Mestrado em Educação do Centro Universitário Nove de Julho - Uninove e do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP. podem nos incomodar, nos desinstalar, nos exigir mudanças para as quais muitas vezes não estamos preparados. Quando nos dispomos a refletir criticamente, temos a intenção de nos voltar sobre os problemas, questões-limites com que nos deparamos em nossa prática cotidiana, em nossa vivência das inúmeras situações nas quais nos encontramos. Questões que necessitamos superar e nos incomodam porque nos vemos sem possibilidade de superar imediatamente. Constituem um desafio e em, geral, nos levam a perguntar: O que devemos fazer? Esta pergunta - o que se deve fazer? - nos remete para uma reflexão que se dá no terreno da ética. A etimologia da palavra ética nos leva a ethos, que significa costume, caráter, marca. “O ethos é a casa do homem”, afirma Vaz (1988:12). É superando as condições da natureza, rompendo com a necessidade estabelecida na physis, que os homens, interagindo, instauram o mundo da cultura, fruto de sua liberdade. Assim se estabelece o ethos, “jeito de ser”, resultado do trabalho conjunto dos homens, instituidor de significações diferentes para as ações e relações no interior de cada sociedade. É no terreno do ethos que vamos encontrar o que chamamos comumente de moral. Tratase de um conjunto de princípios, crenças, preceitos e normas que orientam a vida dos homens em sociedade. A moral tem, portanto, um caráter normativo. É ela que nos diz o que devemos fazer. A tarefa das instituições sociais é transmitir - mantendo e transformando - a cultura, os valores sustentadores do ethos de cada sociedade. Ao agir em sociedade, os indivíduos respondem a determinadas solicitações, que lhes são apresentadas sob a forma de deveres. Dizemos sim ao dever quando obedecemos, dizemos não quando desobedecemos. A responsabilidade é o núcleo da moralidade. Somos responsáveis pela atitude que decidimos tomar. Respondemos aos outros e com os outros homens de nossa sociedade. Por isso, toda ação moral tem uma implicação política. Tomamos decisões num contexto organizado de uma determinada maneira, que nos solicita um posicionamento – devemos tomar partido. É essa a natureza do ato político: tomar partido (que é muito diferente de pertencer a um partido). Como afirma Heller (1982:55), “tomar partido significa não ficar indiferentes em face das alternativas sociais, participar e produzir em relação com toda a vida civil e social”. No gesto político há sempre a afirmação de uma vontade, que implica responsabilidade. Somos responsáveis – respondemos e nos comprometemos. O compromisso é próprio dos seres humanos – só eles podem prometer, comprometer. E cumprir a promessa. Ou não cumpri-la. Mesmo o que se chama de nãocompromisso é, na verdade, uma forma de compromisso. A política diz respeito tanto às vivências de caráter privado, na instância da intimidade dos indivíduos ou dos grupos, quanto ao poder de participação na esfera pública. No espaço da vida pública, afirma Arendt (1993:102), os seres humanos “atingem sua plena realidade como homens, porque não apenas são (como na privacidade da casa); também aparecem”. Na verdade, mesmo quando estamos sós, temos como referência a nossa relação com os outros e a ação que desenvolvemos conjuntamente. Agimos moralmente. Mas nem sempre realizamos uma reflexão ética. Nem sempre buscamos verificar a consistência dos valores, os fundamentos das ações. E é disso que temos sentido falta nas sociedades contemporâneas. A pergunta da moral é: o que devemos fazer? A resposta nos é dada, de certa forma, nos códigos, formalizados ou não, em que se encontram as regras, as normas, as leis. A ética, reflexão crítica sobre a moral, é chamada de “ciência do ethos”. Quando estamos no terreno da ética, nosso objetivo é investigar, perguntar pelo sentido dos valores, e não determinálos, como na moral. A ética não nos indica o que devemos fazer; ela pergunta pelo fundamento do dever. A pergunta da ética é: como queremos viver? (Comte-Sponville, 1999). Aqui, a resposta aponta para aquilo que chamamos de vida boa, espaço de afirmação dos direitos de todos, de construção do bem comum. Devemos ter cuidado ao fazer referência ao bem comum, porque essa expressão está muito marcada ideologicamente. Alguns conceitos têm sido “apropriados indevidamente” por algumas concepções, algumas ideologias presentes na sociedade. No discurso liberal, ou neoliberal, encontramos a referência constante ao bem comum e à cidadania. Indagamos, então, o que é o bem comum numa sociedade marcada pela desigualdade, na qual a elite dominante traz para as políticas a sua concepção – será que o que ela denomina “bem comum” corresponde efetivamente àquilo de que a sociedade tem necessidade? Na verdade, ao se falar em atendimento às necessidades, muitas vezes se levam em consideração apenas necessidades imediatas, ditadas pela ideologia. Às vezes o que é chamado de bem comum é, na verdade, algo que vai ao encontro de interesses particulares. Uma visão crítica nos fará voltar às necessidades concretas dos grupos sociais, neste mundo que é chamado de globalizado. O escritor moçambicano Mia Couto, no belo texto intitulado “Por um mundo escutador”, nos faz uma provocação. Afirma ele: “Não existe alternativa: a globalização começou com o primeiro homem. O primeiro homem (se é que alguma vez existiu “um primeiro” homem) era já a humanidade inteira.” (Couto, 2005:155). Apresenta-se nesta afirmação um alerta: num ser humano se encontra a humanidade. Por aí, rompemos com a idéia de uma humanidade abstrata, descontextualizada, desencarnada. Como seres sociais, temos nossa existência humana afirmada na relação, na convivência. Interessa pensar, então, nas formas dessa convivência, nos valores que a sustentam e nos princípios que a orientam. Se a humanidade pode ser reconhecida na ação de cada ser humano, tanto no gesto grandioso, generoso, quanto no ato degradante, aviltante, o grande desafio, é construir o humano na medida dos princípios éticos: o respeito, a justiça, a solidariedade. O horizonte da ética é a dignidade humana, a afirmação dos direitos de cada homem ou mulher, a possibilidade de sua participação na construção de uma história em que identidade e alteridade, diferença e igualdade se estabeleçam e se afirmem a cada momento. É esta a verdadeira significação da cidadania, que não é uma questão geográfica, como se pretende, às vezes. Nascer num país não significa ser cidadão desse país. A cidadania se caracteriza pelo acesso aos bens aí produzidos, pela possibilidade de livremente participar da configuração que cotidianamente se dá a esse país, pelo reconhecimento do direito de dizer sua voz e ser ouvido pelos outros. Por isso ela é, como diz Thiago de Mello, “força gloriosa que faz um homem ser para outro homem caminho do mesmo chão”. E, portanto, só tem condições de se efetivar num espaço de democracia. Maturana (1988:75/76) afirma que a democracia é uma obra de arte político-cotidiana que exige atuar no saber que ninguém é dono da verdade, e que o outro é tão legítimo como qualquer um. Além disso, tal obra exige a reflexão e a aceitação do outro e, sobretudo, a audácia de aceitar que as diferentes ideologias políticas devem operar como diferentes modos de ver os espaços de convivência. Nessa democracia autêntica, cria-se o espaço para que se construam conjuntamente as regras e se estabeleçam os caminhos. A relação entre cidadania e democracia explicita-se também no fato de que ambas são processos. O empenho coletivo deve se dar na direção de uma democratização, assim como de uma construção constante da cidadania, que é sinônimo de liberdade em companhia. A cidadania implica uma consciência de pertença a uma comunidade. Estende-se a todos os indivíduos na sociedade, sem discriminação de raça, gênero, credo religioso, etc. Aponta, portanto, para o direito de todos a uma vida boa, como reclama a ética. Encontra-se aí um desafio porque não estão dadas todas as condições para a construção da vida boa. Trata-se de descobrir algumas delas e de inventar, de criar outras. O que se requer é uma perspectiva utópica, no sentido, por um lado, de conhecimento claro das características do presente, dos limites que nos tolhem e, ao mesmo tempo, das possibilidades, das alternativas que devemos construir para a superação dos problemas e, por outro, da mobilização concreta, por meio do trabalho, da convivência solidária, para que nosso mundo tenha a configuração que julgamos efetivamente humana, construída por nosso desejo e empenho. Santos (1995:78) afirma que “a utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de desejar e por que merece a pena lutar”. No espaço da utopia, reencontramos a incerteza. Mas também a esperança. Utópico não é aquilo cuja existência é impossível, mas é o que ainda não existe e em direção ao qual temos que nos mobilizar. Galeano (1999:328) nos diz: “Em língua castelhana, quando queremos dizer que ainda temos esperança, dizemos: abrigamos a esperança. Bela expressão, belo desafio: abrigá-la, para que não morra de frio nas implacáveis intempéries dos tempos que correm”. Essa é lição que temos que aprender, no mundo complexo e desafiador em que vivemos. Não se trata de ficar à espera. O verbo é esperançar. Referências ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993. COMTE-SPONVILLE, André & FERRY, Luc. A sabedoria dos modernos. São Paulo: Martins Fontes, 1999. COUTO, Mia. Por um mundo escutador. In Pensatempos – textos de opinião. Editorial Ndjira: 2005. GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999. GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965. HELLER, Agnes. Para mudar a vida – felicidade, liberdade e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1982. MATURANA, Humberto. 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