Nossa Senhora das Flores ou o requiem pelas certezas
João Manuel de Oliveira
investigador na área dos estudos de género e teoria feminista,
Universidade do Minho (PT), Birkbeck Institute for Social Research (UK)
Esta peça, marco da dança contemporânea portuguesa e europeia,
apresenta-se, anos depois da sua criação e após um percurso com muitas
apresentações, como um trabalho que permite não só uma reinvenção do
acto de dançar, mas sobretudo e no meu entender, como um ensaio (sob a
forma de dança) em que as condições particulares da subjectivação de
género são observadas. De olhos fechados.
Contemporânea em termos de criação, com o fecundo período dos anos 90,
em que Judith Butler chegava à cena com as suas teorias da
performatividade do género e criada no período da obra “Bodies that matter”,
Francisco Camacho, à altura, sem os dados deste novo paradigma
conceptual, faz-nos experienciar o modo o como somos chamados a ser um
género, a partir de uma performance assente numa ambivalência crítica face
à
constância
do
género.
Uma
concomitância
inconsciente
de
pensamentos/acções?
Nossa Senhora das Flores, partilha o título com a obra de Genet, mas
apenas o título e é um olhar –no escuro- sobre a inauguração da
subjectividade sempre e desde logo genderizada. Com um vestido que
também pode ser um hábito, pesado, denso, a figura que Camacho habita ou
que habita Camacho (um dado que não é confirmado pela peça) é uma figura
ambígua, por vezes até passível de ser lida como abjecta, que de olhos
fechados, nasce, renasce e se elabora várias vezes. Esta peça tem presente
um devir constante, a figura de-vem homem, mulher, criança, enunciando a
performance de género. Contudo, a relação com as uvas, o próprio vestido
em que a figura habita permitem pautar esta peça pela leitura crítica advinda
da sua ambivalência. Trata-se de uma peça, que no minuto seguinte, já é
uma outra. Frágeis, as figuras enunciadas devolvem o nosso olhar sobre
elas. Mas por estarem de olhos fechados, perscrutam-nos sem nos verem.
O acto pelo qual nos tornamos género, é codificado, normalizado,
nomeadamente pelo figurino brilhante de Carlota Lagido que, leu na peça a
sua eminente ambiguidade. Estes actos que tornam evidente o género na
sua performance e com isso, transportam-nos para um requiem pela crença
de que há algo natural no género. Francisco Camacho mostra este devir,
acompanhado por música que também nos leva um tempo considerado de
certezas, os tempos antigos, onde a historiografia contemporânea também
nos evidencia que essas certezas não eram assim tão sólidas.
Quando vi esta peça pela primeira vez, lembrei-me de Marx: “Tudo o que é
sólido se dissolve no ar”. Nossa Senhora das Flores, pela sua ambivalência
crítica, abre toda uma possibilidade de questionar o mundo, tornando
sensível essa interrogação, sem nunca nos dirigir para uma pergunta e
permanecendo silente face às respostas. Enigmático, Camacho pouco fala
sobre esta peça e não escreve sobre ela. Não creio que tal lhe seja possível.
A peça é também um acto de resistência à inteligibilidade e permite assim resignificações. Como noutros trabalhos, Francisco Camacho oferece-nos um
espelho onde só nos é possível projectar e especular. De modo que há muito
mais sobre esta condição genderizada na peça através do nosso olhar e do
modo como o que queremos dirigir, do que propriamente in situ. É um
trabalho que nos transporta às inaugurações psíquicas do sujeito, aos pontos
onde tudo o que tínhamos era a lembrança de uma imitação de um original
que não pode nunca ser encontrado e que sobre si, não possamos sequer
dizer que exista, como diria Butler sobre o género. O género é como esta
peça.
Inconsciente, parada e em constante mutação, esta peça é uma indagação
permanente. A lembrar uma condição que conhecemos: o permanente
mistério da nossa condição. De olhos fechados sobre ela, a sentir a sua
profusa ambivalência.
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